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sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O Fascismo sai do Armário - Paulo Gustavo (Revista Será)

O Fascismo sai do Armário

Paulo Gustavo 

Revista Será, out 21, 2022 

 

Um perfil de uma rede social postou recentemente a seguinte frase: “Ninguém imaginava que dentro do armário tinha mais fascistas do que gays”. A tirada vem a propósito. A ascensão de um extremista como Bolsonaro fez de fato o armário se abrir. Com isso, nossa jovem e precária democracia dá um sofrido soluço. 

O cientista político alemão Yascha Mounk, em seu livro “O povo contra a democracia”, foi profético neste seu conselho: “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século, e seus partidários são cidadãos que, como você, terão que compartilhar o país por uma década ou até um século. Não o subestime e não menospreze essas pessoas […] Você poderá voltar à luta por taxas de impostos mais justas ou debater os limites do Estado de bem-estar social depois que esse perigo iminente tiver sido afastado. Por ora, é preciso união […]”.

As palavras de Mounk formam uma boa síntese: união, a despeito das diferenças políticas, e foco condizente à situação, que agora se sabe não é nada passageira, que é, ao contrário,  de coexistência com o já onipresente adversário. Essa coexistência exigirá dos verdadeiros democratas uma permanente vigilância. Dispensável dizer (mas uma boa redundância por vezes vale a pena) que os fascistas não estão apenas nos três poderes da República, eles estão a seu lado: são vizinhos, colegas, jovens, maduros, idosos, artistas, cientistas, acadêmicos, pessoas ditas “de bem”, ressentidos em geral, autoritários simpáticos e até envernizados pelo saber: enfim, gente como a gente.

Há quem ache o termo “fascista” pesado. Bem, leve é que não é. Seu uso como xingamento não diz outra coisa. Mas seu uso adequado não muda muito a carga negativa que carrega para sempre. Pouco ou nada propondo e muito reagindo, em especial à modernidade, o fascismo, para falar como e com o Umberto Eco do ensaio “O fascismo eterno”, tem uma permanente suspeita em relação ao mundo intelectual e uma “terrível” acusação ao mundo liberal, a saber: o abandono por este dos valores tradicionais. Não por acaso, brota entre fascistas a flor vigorosa de uma imensa hipocrisia.

O termo é pesado, mas leves e levianas são “as ações pelas ações”, como diz Eco. De nossa parte, acrescentamos: “leveza” hoje potencializada pelo fluxo sem consciência crítica das redes sociais. Daí a exacerbação da mentira. Daí, ao revés, a busca frenética pelas “verdades eternas” que só a religião promete, aliás não poucas vezes tem se falado no bolsonarismo como uma espécie de seita. Seita, como bom neofascismo, liberticida. Portanto, é preciso estarmos atentos às palavras e para onde e para quem se dirigem: o que sobra em agressividade, falta em crítica e racionalidade. Não por acaso, como lembra Eco, “Todos os textos nazistas ou fascistas se baseavam em um léxico pobre, em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”.

Além de liberticida e autoritário, o fascismo explora o rancor na política, e Mussolini  foi o primeiro a compreender isso, como bem observa o narrador de “M, o filho do século”, o primeiro volume do monumental romance histórico do italiano Antonio Scurati. Se Mussolini não foi o primeiro, foi um dos mais importantes. No Brasil de hoje, o arauto do rancor chama-se Bolsonaro. Sim, é ele indubitavelmente o maestro a arrancar de boa parte da população o ritmado ódio a fantasmas que supúnhamos desfeitos e pretéritos. Do rancor à violência, eis o passo que resvala para a barbárie e o terrorismo. Nada impede que a violência atual, ainda desorganizada politicamente, degenere em violência institucionalizada, até para “reparar” o líder eventualmente destituído de lugar de poder.

A saída do armário é faca de duas lâminas: de um lado, ela corta explicitamente o laço democrático e constitucional que rege a sociedade; de outro, delimita, por assim dizer, um campo político novo no Brasil, obrigando-nos a ver o que estava incubado ou pelo menos mitigado por certa visão otimista, senão mítica, do próprio País. Como quer que seja, será preciso coexistir à altura e fazer da lucidez, em meio à irracionalidade que irriga o iliberalismo, uma prática cotidiana.

Para jogar esse jogo, será preciso contermos nossas próprias emoções, e isso é algo que leva tempo. Será preciso demonstrar incansavelmente — ressalte-se — que nossa visão pode ser kantianamente edificada como um imperativo categórico que salva a humanidade e que a visão bolsonarista, caso alçada a uma máxima universal, seria o fim da democracia e do Estado de Direito. Oxalá o armário fique vazio e que se possa apontar os extremistas como quem são: extremistas. Extremistas e totalitários.

 

CONSELHO EDITORIAL

Sérgio C. Buarque - Editor Chefe
João Rego
Clemente Rosas
Ivanildo Sampaio


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Os trens de Mussolini - Simon Schwartzman

By Simon on Oct 14, 2022 06:55 am

(Publicado em O Estado de São Paulo, 14 de outubro de 2022)

Me lembro como se fosse hoje. Era aluno em um conhecido ginásio em Belo Horizonte, e entre uma aula e outra, em uma roda de conversa, o professor de filosofia, ex-integralista, falava entusiasmado sobre as vantagens do fascismo. Eu ouvia espantado, e disse que não poderia concordar com aquilo, que eu vinha de uma família judia, muitos meus familiares haviam sido assassinados nos campos de concentração.  “Ah, entendo”, disse o professor, “então você tem um problema pessoal com isso”.

Eram os anos da guerra fria, em que os Estados Unidos e a União Soviética e seus seguidores disputavam não somente a hegemonia internacional, mas também o lugar de quem melhor encarnava os valores dos que haviam se unido para conter o mostro do nazifascismo, proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Os Estados Unidos e a Europa Ocidental empunhavam as bandeiras da democracia, liberdades individuais e direito à propriedade, e a União Soviética, as bandeiras do fim da pobreza, desigualdade e exploração. 

Dos dois lados, havia os que acreditavam firmemente em suas bandeiras, e apontavam o dedo para as violações cotidianas destes direitos pelo outro. Mas havia também os que viam como, em ambos, a lógica do poder e de defesa dos interesses estabelecidos muitas vezes se sobrepunha ao discurso humanitário. Na União Soviética, os últimos vestígios da democracia participativa haviam sido enterrados pelos expurgos de Stalin, e nos Estados Unidos os princípios da liberdade e igualdade eram violados diariamente pela persistência da desigualdade social e do racismo. Internacionalmente, a União Soviética impunha com mão de ferro seu poder sobre a Europa Oriental, e os Estados Unidos, em nome da luta contra o comunismo e para defender os interesses de suas companhias, apoiavam as ditaduras latino-americanas e os remanescentes do colonialismo na África e Ásia, muitas vezes de forma sangrenta, como no Vietnam.

Para quem pensava que o mais importante era a promessa dos direitos sociais, as restrições à democracia e aos direitos humanos nos regimes socialistas eram vistas como “erros”, pequenos pecados que poderiam ser eventualmente corrigidos, ou inevitáveis na luta contra os inimigos e por um mundo melhor. Do outro lado, para quem valorizava sobretudo a liberdade econômica e os direitos civis, a pobreza e o apoio a ditaduras totalitárias eram também descontados como problemas circunstanciais, que eventualmente seriam resolvidos em um regime de liberdade política e econômica.  E havia os que concluíam que, no fundo, todos eram cínicos, o único que realmente importava era a disputa pelo poder político e econômico, e que os discursos dos direitos humanos não passavam de um amontoado vazio de palavras.

Esta disputa entre valores, e de regimes políticos que dão mais ênfase a umas partes do que outras dos direitos humanos, marcou o mundo ao longo do século 20, e só foi interrompida pela novidade do nazifascismo, que foi além do cinismo, e passou a incorporar como valores a guerra, a xenofobia, a violência, o racismo e a discriminação.  Era uma doutrina que se dizia se inspirar em supostas tradições, identidades e sentimentos mais profundos dos povos, muitas vezes de cunho religioso, diante dos quais os discursos sobre valores e direitos, e a própria racionalidade abstrata das ciências sociais e naturais, cultivadas, segundo eles, por elites cosmopolitas, perdiam sentido. 

A história mostrou o horror e o desastre criados por esta doutrina, e os importantes resultados trazidos pela liberdade política e econômica e pelos movimentos em prol dos direitos sociais. É inegável que hoje, em todo o mundo e no agregado, existe menos pobreza, miséria e opressão do que cem anos atrás, e que estamos muito mais próximos dos ideais dos direitos humanos do que jamais tivemos.  Mas a distância ainda é grande, mais para determinados grupos e povos do que para outros, e o próprio progresso gera expectativas que acabam se transformando em frustração e ressentimento.

É esse o caldo de cultura para o ressurgimento das doutrinas fascistas e autoritárias, de valorização da violência, xenofobia e ataque às instituições da democracia liberal. Mussolini, afinal, fez os trens italianos andarem no horário, e o nazismo tirou a Alemanha da depressão dos tempos da República de Weimar. Será que isto não é mais importante, como pensava meu professor de filosofia, do que a retórica da ética e dos direitos?

É assim também que raciocinam muitos dos que hoje, no Brasil, não dão maior importância ao crescimento da extrema direita, e a alimentam como a maneira mais prática de conseguir determinados resultados. Mas o que está principalmente em disputa não é saber quem é mais ou menos corrupto, ou quem dá mais prioridade à liberdade econômica ou aos direitos sociais, e sim quem defende ou quem trabalha para romper o consenso sobre os direitos humanos e o regime democrático que, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Eu tenho, sim, um problema pessoal com isto, e espero que não seja só meu.




quarta-feira, 11 de maio de 2022

Quem é fascista na guerra da Ucrânia? - Jaime Pinsky (CB, Chumbo Gordo)

Quem é fascista na guerra da Ucrânia? 

Jaime Pinsky

10/05/2022

Verdade. Muitos ucranianos ficaram do lado nazista durante a II Guerra Mundial. Isso dá aos russos o direito de invadir o país vizinho?

OTAN- UCRÂNIA

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO CORREIO BRAZILIENSE
E NO SITE DO AUTOR, www.jaimepinsky.com.br

A bandeira da Ucrânia tem as cores azul e amarela. Já o grupo nacionalista direitista Pravy Sector usa a mesma bandeira, mas com as cores preta e vermelha. Este grupo se organizou a partir de 2013/14 quando promoveu manifestações contra seu governo, aliado da Rússia, conseguiu depô-lo e acabou por mergulhar o país em um caos político, econômico e étnico. A situação só se equilibrou a partir da surpreendente eleição do atual presidente, Vladimir Zielensky. Ele competiu como um “azarão”, entre os partidários da Rússia e os ultra-direitista. Para surpresa de todo mundo e do mundo todo ele venceu as eleições, tornou-se popular e acabou tendo que sustentar uma guerra contra Putin que não se conformou com sua vitória, uma vez que desejava um governante submisso aos seus desejos.

Todos devem se lembrar que no início do atual governo brasileiro grupos bolsonaristas referiam-se a “ucranizar” o Brasil. Seu objetivo declarado era promover uma guinada para a direita. Mas não seria errado supor que tinham a intenção de destituir poderes da República, algo promovido pelo grupo ucraniano que lhes servia de modelo (em 2014). A ultra direita ucraniana era chauvinista, francamente antirrussa, antissemita e antiglobalização. Além do que, é bom lembrar que agrupamentos políticos como o Pravy Sector promoviam treinamento militar, que ofereciam a correligionários de outros países. A militante bolsonarista, muito evidente no início do mandato presidencial atual, Sara Winter, proclamava a quem queria ouvir e a quem não queria também, que ela própria teria recebido treinamento na Ucrânia, com esse pessoal.

Putin e seu circulo de apoiadores alega que ao derrubar, em 2014, um presidente legalmente eleito, os ucranianos tiveram uma atitude fascista, de nacionalismo extremo, com caráter de antiglobalização, além de chauvinista. De fato, esse perfil político tem se manifestado em muitos países, podendo ser uma ameaça séria às instituições democráticas. Contudo, a invasão russa não se deu por aqueles que poderíamos chamar de “bons motivos”. Em nenhum momento o governo russo preocupou-se com a democracia, mesmo porque o próprio presidente russo não é um exemplo acabado de democrata radical… Ele manipulou e manipula as leis e os tribunais russos, colocando-os a serviço de seus interesses, não do interesse do aperfeiçoamento da democracia russa, muito menos do sistema democrático como concepção e prática política. Aristóteles já dizia, há mais de dois mil anos, que o sistema democrático baseia-se, antes de tudo, em “governar por turnos”, isto é, em haver revezamento de indivíduos e correntes políticas no poder. Oferecer veneno e cadeia aos adversários – o que tem acontecido na Rússia – não é, exatamente, a melhor maneira de estimular o desenvolvimento da democracia, convenhamos.

Não deixa de ser irônico que Putin não esperava por Zelinsky no poder. Um não político (era ator, antes de ser presidente, imitava e caricaturava presidentes na tevê, entre outras atividades artísticas) no poder, um cidadão com antecedentes familiares judaicos, não podia e não pode ser chamado de fascista ou de antissemita. Mas, como a lógica formal não é problema para governos autoritários, Putin e seu círculo de poder fingem que o presidente ucraniano é de extrema direita. Não é. E agora, para coroar a falta de sentido de algumas acusações, além de garantirem que os governantes ucranianos podem  ser antissemitas e judeus (!) um ministro russo acaba de afirmar que Zelinsky pode ser fascista, embora judeu, pois até Hitler tinha sangue judaico. O absurdo é evidente. Mas, não se trata apenas de atentado à lógica. É também um atentado às milhões de vítimas do nazismo. Além de infeliz, imbecil, grosseira, agressiva, a frase de uma autoridade russa fere todas as pessoas de bom senso no mundo, as de bom caráter, as sensíveis, todas as que têm compromisso com verdade. E, devo deixar muito claro, sou um apreciador da cultura russa, amo seus escritores – vários assassinados por Stalin – seus músicos, suas orquestras, seus cineastas, seus dançarinos.

Contudo, como neto de imigrantes, que só escaparam das câmaras de gás nazistas, perpetradas pelo mesmo Hitler a quem o ministro russo se refere como tendo sague judeu, eu me sinto no direito e no dever moral de solicitar pedido formal de desculpas por parte dessa autoridade. Minha avó Sara só escapou do Holocausto, com seus nove filhos, porque o Brasil permitiu que para cá ela viesse. Foi um bom investimento do país: hoje somos, entre netos, bisnetos e tataranetos dela mais de duzentos bons brasileiros que trabalham aqui como médicos, professores, empresários, técnicos, dentistas, editores, artistas, ente outras profissões.

Sim, a Ucrânia talvez não possa se vangloriar de seu passado democrático, de ser um país aberto para minorias culturais e étnicas. Sim, durante a II Guerra Mundial nem sempre colaborou com as democracias; na verdade, esteve mais perto da Alemanha nazista e há casos terríveis de massacres perpetrados por ucranianos contra minorias nessa época e até antes da guerra.  Contudo, ter ficado do “lado certo” contra o nazismo não dá à Rússia carta branca para invadir seus vizinhos, estados independentes, mesmo que não goste de seus governantes. E inventar mentiras contra ucranianos e outros povos não é digno de um país e um povo tão relevantes quanto o russo.

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JAIME PINSKY: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto. Autor de vários livros sobre preconceito, cidadania e escravidão. Organizador e coautor do livro “Novos Combates da História“.

jaimepinsky@gmail.com

www.jaimepinsky.com.br

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Como eu diria, a História não se repete, mas tem gente que gosta de repetir erros passados - Carlos Brickmann


APRENDER, JAMAIS 

COLUNA CARLOS BRICKMANN

EDIÇÃO DOS JORNAIS DE QUARTA-FEIRA, 15 DE SETEMBRO DE 2021

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Esta é uma história que nada tem a ver com o Brasil, embora nos dê lições. Nas décadas de 1920 e 1930, o nazismo estava longe de ser o partido mais forte da Alemanha. Maiores eram a Social-Democracia (SPD) e o Comunista (KPD), ambos fortes no movimento operário. O KPD, de extrema-esquerda, considerava que seu principal adversário, por buscar adeptos no mesmo campo, era o SPD, de meia-esquerda. União, nem pensar: o KPD achava que os anos 30 seriam os últimos do capitalismo. Chegariam ao poder os esquerdistas, inevitavelmente, e o KPD queria ser o representante único da esquerda. Logo, o inimigo era a social-democracia. A SPD era tratada como “social-fascismo”, “ala moderada do fascismo”.

O KPD, até na cor preferida, o vermelho, obedecia às ordens do líder vermelho Stalin, que ditava, de Moscou: “O fascismo (...) e a social-democracia (...) não se excluem (...). Ao contrário, se complementam”. O KPD não aceitava críticas a Stalin (a quem chamava de “guia genial dos povos) e jamais admitiu que ele pudesse errar. Enquanto isso, os nazistas cresciam, passavam de 800 mil para 13 milhões de votos, até se aliavam aos vermelhos no combate à SPD. Em 1931, por exemplo, se aliaram nazistas e vermelhos num plebiscito sobre a dissolução do Legislativo da Prússia, baluarte da SPD. Perderam, mas os nazistas mostraram força. A SPD ainda propôs uma aliança, os vermelhos a recusaram. Hitler chegou ao poder. Já não havia mais como contê-lo.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O caminho do Brasil para o hitlerismo tropical - Martim Vasques da Cunha

Em 2008, 11 anos antes do Brasil encontrar-com um “estúpido criminoso” — que é como Voegelin chamava Hitler —, guindado à presidência em 2018 por um conjunto excepcional de circunstâncias (como foram as que cercaram Hitler em sua ascensão fatídica ao poder), Martim Vasques da Cunha já resumia, através de uma análise da vida e da obra do filósofo alemão antinazista, as características principais das personalidades que justamente permitiram a ascensão de um estúpido criminoso ao poder, empenhado ativamente numa obra de destruição. É a isso a que estamos assistindo atualmente no Brasil: Martim Vasques da Cunha apenas antecipou, involuntariamente, o Sonderweg brasileiro, o caminho especial do Brasil para a vergonha e o opróbrio.
Paulo Roberto de Almeida

Eric Voegelin e a coragem da filosofia by MVC


Eric Voegelin e a coragem da filosofia

MVC

MVC

Jan 24, 2018 · 20 min read


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The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.
W.B. Yeats, “The Second Coming”
Conta-se que o filósofo grego Anaxágoras caminhava por uma estrada quando encontrou um homem agonizante. Este lamentou o fato de estar distante de sua pátria na hora da morte. Para tranqüilizá-lo, Anaxágoras disse-lhe: “Não se preocupe, meu caro. A descida ao inferno é a mesma de qualquer lugar”.
A historieta é dura sem dúvida — pois o inferno, seja na antiguidade clássica, seja no nosso mundo de esvanecentes valores cristãos, é o julgamento da nossa rejeição eterna e irrevogável do mundo como é –, e alude à coragem que todos temos de ter se queremos conhecer a realidade.
Porém, antes de mais nada, o que é essa tal “realidade”? Não temos a pretensão de responder aqui a esta pergunta, mas, para ir à raiz do problema, basta que nos perguntemos: O que entendemos por realidade? Como a compreendemos? Esse foi, em todos os tempos, um problema constante, que só pode encontrar alguma solução se o homem der ouvidos a esse fundo insubornável do ser de que fala Ortega y Gasset, ao mais íntimo dos seus pensamentos naquele momento em que enfrenta o seu reflexo no espelho e tenta reconhecer a própria face.
É daí que me dirijo a você, leitor. Não sou filósofo, e muito menos um condutor de homens. Sou, no máximo, um cidadão que, por um comichão na consciência, tenta observar as coisas como são e por isso chegou a algumas conclusões perturbadoras. Por isso, gostaria de que me lesse, não como quem traz respostas para todos os problemas, mas apenas como alguém que reflete sobre o que todos sabem, mas talvez tenham medo de dizer. E aqui procurarei que essa voz não seja apenas minha; através dela, queria transmitir a de outra pessoa, a do homem que tentarei apresentar aqui: Eric Voegelin.
Voegelin nasceu em Colônia, na Alemanha, a 3 de janeiro de 1901, e faleceu em Stanford, na Califórnia, a 19 de janeiro de 1985. É um dos maiores filósofos do século XX, mas permanece ignorado em boa parte dos meios acadêmicos nacionais. Por quê? Bem, na verdade, não há mistério nisso: é um autor difícil por ser duro como poucos, rigoroso como um verdadeiro filósofo deve ser e, como se não bastasse, escreve com uma facilidade que desnorteia os que pensam que a filosofia deve ser transmitida como um código secreto para iniciados. Além disso, não brinca com as coisas sérias da vida.
Pelos locais de nascimento e morte, já percebemos que não morreu na terra natal. Em 1938, teve de fugir da Viena, onde tinha estudado e depois começado a carreira universitária, devido ao Anschluss, a anexação da Áustria pela Alemanha governada pelo Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas. Nessa altura, era já persona non grata para os nazistas: em 1933, quando eles haviam chegado ao poder, publicara dois estudos que criticavam as raízes ideológicas do partido — Raça e Estado e O Estado autoritário.
Em Viena, tinha sido discípulo de Hans Kelsen, o filósofo do Direito positivista que, ironicamente — porque as suas teorias serviram para fundamentar doutrinalmente o sistema legal nazista — , também tivera de fugir por ser de ascendência judaica. Voegelin não era judeu nem socialista, e também não tinha a intenção de ser um opositor político do nazismo; era contrário a qualquer ideologia por motivos estritamente intelectuais e espirituais, pois num momento em que ninguém mais tinha coragem de admiti-lo, já sabia que era insustentável para qualquer um que quisesse manter um mínimo de honestidade moral.
Depois de uma breve passagem, pela Suíça, chegou aos Estados Unidos, onde recomeçou a carreira acadêmica como filósofo, fixando-se na Universidade de Louisiana, em Baton Rouge. Era um fim de mundo acadêmico, convenhamos, mas permitiu-lhe preparou-se durante vinte anos para o trabalho de toda a vida — desmascarar o mecanismo que permite às ideologias políticas corromper uma nação inteira.
Ali começou por escreveu um tratado de 3.200 páginas sobre a História das idéias políticas, que abandonou e que só viria a ser publicado postumamente. A seguir, dedicou-se a pesquisar os símbolos religiosos de Israel e da filosofia grega, e publicou parte dos resultados deste trabalho no livro A nova ciência da política, de 1953, que lhe valeu uma reportagem na Time e o transformou em um nome celebrado nas universidades americanas. Mesmo assim, Voegelin não se acomodou sobre os louros; começou a redação do grande tratado Ordem e História, iniciado em 1955 e só terminado no final da vida.
Contudo, em 1958, treze anos depois do fim da Segunda Guerra, suas atividades acadêmicas nos Estados Unidos foram interrompidas quando a Ludwig-Maximilian Universität de Munique o convidou a assumir a cátedra de ciências políticas, que tinha sido a de Max Weber e estava vaga havia vinte anos. Ali, Voegelin acrescentou um trabalho administrativo às responsabilidades acadêmicas, fundando o Instituto de Ciência Política. Por fim, em 1969, voltou para os Estados Unidos, desta vez para trabalhar em Stanford, onde permaneceria até a morte.
Voegelin aceitou o desafio de voltar para a Alemanha — apesar da posição de destaque no meio acadêmico conquistada a duras penas — por um motivo simples: era a oportunidade de, vinte anos depois, acertar as contas com os fantasmas do nazismo.
Quando chegou, o país estava em pleno processo de “desnazificação”. Oficialmente, tratava-se uma “condenação do passado nazista” feita pelo povo e pelo governo de Konrad Adenauer, que girava em torno da noção de culpa coletiva. O termo soava bem num país ocupado por quatro potências ocidentais e dividido por um muro, mas realmente “desnazificava” o país? Essa “revisão” do passado assegurava uma mudança real para o presente e o futuro?
Voegelin responderá decididamente que não. Em 1964, deu uma série de palestras sob o título de “Hitler e os alemães” que foram um enorme sucesso de público[1]. Conforme o filósofo tinha pretendido, esse público estava composto na sua maioria por estudantes, que eram o seu alvo preferencial por já correrem o risco de perder a noção do que fora viver nos tempos de Hitler. E as perguntas que lhes fez não diziam respeito a pretensas culpas coletivas, mas atingiam aquele fundo insubornável do ser: como fora possível que semelhante corrupção espiritual tivesse atingido todos os níveis da sociedade, da política à intelectualidade, do mundo dos negócios à moral? E essa corrupção não continuaria a atuar na mente da jovem geração, mesmo vinte anos depois do desaparecimento do nazismo?
De acordo com a retórica da culpa coletiva, todos os alemães seriam culpados pelo nazismo. Que sentido fazia isso? Os membros do partido teriam a mesma responsabilidade que os que tinham votado em Hitler por acharem que seria o salvador do mundo? E os que não queriam saber de política e desejavam apenas escapar ao pesadelo da ruína econômica após a Primeira Guerra Mundial? Tudo isso não passava de uma paródia de expiação, que mascarava algo muito mais importante: a responsabilidade individual.
De fato, a “desnazificação” não atingia os altos escalões do poder público. Membros importantes da antiga burocracia nazista — simples “funcionários” ou “burocratas”, dizia-se, sem responsabilidade pelas decisões criminosas e por isso mesmo incapazes de perturbar alguém — permaneciam em cargos chave do novo governo. Um caso clamoroso era o de Hans Globke, que despertou as mais ferozes indignações de Voegelin e da filósofa Hannah Arendt.
Em 1958, Globke era o braço direito de Adenauer, ocupando o cargo de “subsecretário de Estado e chefe da divisão pessoal da Chancelaria da Alemanha Ocidental”. Vinte e seis anos antes, fora um dos funcionários mais respeitados do Ministério do Interior do Terceiro Reich. Quando surgiu o escândalo em torno do seu passado, Globke apressou-se a afirmar que apenas procurara tomar “medidas mitigadoras”. Curiosas medidas, aliás… Em primeiro lugar, fora o autor da lei segundo a qual todo judeu deveria ter como segundo nome “Israel” e usar uma estrela de Davi amarela a fim de mostrar que não tinha “ascendência ariana”; e isso foi em 1932, quando “a subida de Hitler não era uma certeza, mas apenas uma forte possibilidade”. Mais tarde, já no ministério, criara a lei que obrigava moças tchecas que pretendessem casar com soldados alemães a exibir fotos em que apareciam vestidas de maiô, para comprovar os dados antropométricos arianos (talvez fosse mesmo uma mitigação, pois antes se exigiam fotos em que apareciam nuas).
Isso já fora denunciado por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, o livro-reportagem publicado em 1962 que narrava o julgamento de Adolf Eichmann, acusado pelo governo de Israel de ser o “arquiteto da Solução Final”. Arendt se perguntava se Eichmann, um burocrata arrivista, seria o monstro de que tanto se falava. E chega à conclusão de que não: tratava-se de um “homem-massa”, sem vida interior, sem convicções pessoais, imbuído apenas do intuito de seguir o rebanho — mesmo que este praticasse assassinato em quantidades industriais. De quem era a responsabilidade? Dos alemães? Dos judeus? Do Ocidente? Talvez de todos, desde que isso não mascarasse o fato de que, antes de mais nada, o verdadeiro responsável por suas ações era o próprio Eichmann.
A conclusão que se impunha era que o verdadeiro processo de “desnazificação” não se podia obter por meio de um processo legal ou político; era necessária uma reviravolta da consciência, uma revolução do espírito — uma conversão pessoal que tinha de começar com uma “descida aos infernos”. E essa foi a tarefa que Voegelin se impôs ao chegar à Alemanha em 1958: fazer a sua terra natal compreender que, para “dominar” o passado, tinha antes de mais nada de “dominar” o presente.
Para isso, Voegelin recupera e propõe no conjunto da sua obra duas noções praticamente esquecidas no ambiente acadêmico: a do homem maduro e a do princípio antropológico.
O “homem maduro” corresponde ao spoudaios de Aristóteles, a pessoa que desenvolveu ao máximo as suas potencialidades e, em conseqüência, aprendeu que governar e comandar os outros é antes de mais nada governar e comandar-se a si mesmo, especialmente no domínio das paixões e dos sentimentos. Conhece a profundidade da sua alma e da dos seus semelhantes porque desceu ao inferno do conhecimento próprio e de lá voltou. Neste sentido, não é apenas alguém que manda, mas alguém que representa os anseios mais íntimos dos homens de carne e osso que compõem a sociedade; não é um chefe político ou institucional, mas um líder autêntico, com liderança existencial, pois chega a ser o reflexo da sociedade que governa. Tudo isso pode ser resumido na seguinte sentença: a sociedade é a alma do homem escrita por extenso. Voegelin recuperará essa noção de Platão e a chamará de princípio antropológico.
Ora bem, nas suas palestras sobre “Hitler e os alemães” Voegelin começa apresentando uma carta escrita por um jovem acadêmico à famosa revista Der Spiegel:
“Quando lemos que Hitler foi um amador, ‘abaixo da média dos homens’, perguntamo-nos automaticamente como então ele foi capaz de modelar uma época. Reconheço que ele era um ‘jogador’, mas um jogador que ofuscou os outros. […] E o seu único crime foi o de ser um jogador que perdeu, e que levou consigo todo um povo, de maneira que afundou com ele. Entretanto, toda a política é um jogo e os ganhos aumentam quando as apostas são altas. Hoje já não podemos e não queremos jogar; portanto, também nos é impossível ganhar — a não ser o tão cotado padrão de vida. Mas talvez estejamos perdendo mais, mesmo sem Hitler”.
Aqui estão prefigurados muitos dos clichês que, inquietantemente, voltamos há pouco a ouvir repetidos na imprensa e na academia: o de que Hitler, no fim das contas, era um grande líder, o de que a política é um jogo, e o de que sua única culpa foi perder. Nem se menciona que o nazismo e o seu líder tinham um projeto de eliminação sistemática de toda uma raça e, nas palavras de Churchill, de toda a civilização.
Voegelin apresenta outro exemplo, extraído de um acadêmico que faz a seguinte descrição física e psicológica de Hitler:
“Hitler fascinava as pessoas com seus olhos azuis profundos, ligeiramente esgazeados, quase radiantes. Muitos que se encontravam com ele eram incapazes de resistir a seu olhar”.
E, com palavras mais reveladoras:
“É quase impossível comunicar aos que nunca o conheceram o impacto pessoal de Hitler […]. Havia, no entanto, muitas pessoas sobre quem isso não tinha absolutamente nenhum efeito. Certa vez um coronel me descreveu que, quando estava conversando com Hitler, sentiu uma aversão crescente ao homem enquanto este o fitava de perto (vale notar que Hitler dispensou esse coronel e outros muitos rapidamente). A reação reversa foi provocada numa requintada proprietária da Pomerânia de ascendência aristocrática e convicções cristãs, que detestava Hitler. Encontrou-o por acaso no passeio de madeira de uma praia do Mar Báltico, foi atingida por um breve momento pelo olhar dele e declarou, como fulminada por um raio, que embora ainda não gostasse dele, sentia que ele era um grande homem. Aqueles a quem Hitler tolerava perto dele eram, é claro, mais do que tocados pelo seu olhar, e eram transformados em seus satélites voluntários”.
Nestes parágrafos quase hagiográficos, o Führer aparece como um “enigma”, como se tivesse uma “aura” incomum que o transformasse em um homem situado “além do bem e do mal”. É verdade que o seu autor, Percy Schramm, tinha feito parte do Supremo Comando das Tropas de Guerra; mas já agora, devidamente munido do seu “certificado de desnazificação”, era um acadêmico de renome e ganhador da Ordem do Mérito — a maior honra que, na Alemanha pós-guerra, se podia conferir a um civil.
Esse tipo de mitificação, diz Voegelin, mascara um fato relevante para qualquer análise política decente: o da representação social. Se as pessoas viam essa “aura” em Hitler, por mais que antipatizassem com a sua causa, as suas idéias ou mesmo a sua pessoa, era porque desejavam participar dela, ver essa “aura” refletida nelas mesmas. O jornalista Konrad Heiden descreveu isso com precisão já em 1933, quando ainda ninguém previa as dimensões que o nazismo viria a assumir:
“Com uma confiança ímpar, Hitler expressou o pânico sem palavras das massas confrontadas por um inimigo invisível e deu um nome ao espectro sem nome. Ele era um fragmento puro da própria alma da massa moderna […]. Alguém se perguntará quais foram as artes pelas quais ele conquistou as massas; na verdade, ele não as conquistou, apenas as retratou e as representou”.
Essa intuição brilhante, que Heiden captou no calor da hora, mostra o fundo da “aura” e do “enigma” de Hitler. Não havia ali nada da liderança do “homem maduro”, mas apenas um homem-massa imbuído de um intenso complexo de inferioridade e da intensidade que conferem a angústia e o ódio. O próprio estilo repleto de clichês dos “hagiógrafos” manifesta esta realidade, pois a primeira manifestação da corrupção social está na corrupção da linguagem, que se torna uma “língua de madeira”, rígida, repetitiva e vazia de sentido real, como a que caracterizou igualmente o governo totalitário soviético.
Schramm acrescenta, ainda no tema do “enigma de Hitler” e baseado em testemunhos dos que cercavam o Führer, que este só contava aos que lhe estavam próximos o estritamente necessário, mesmo nos momentos decisivos da Segunda Guerra. Essa atitude enigmática é às vezes mencionada, mesmo hoje, como uma “técnica de liderança”. Voegelin, pelo contrário, chega a uma conclusão muito mais banal e concreta:
“O problema obviamente escapou a Schramm, pois esse sonegar informações, mesmo aos membros do Estado Maior e do Almirantado, tinha uma razão institucional. Nos últimos anos, Hitler não contou com nenhum Estado Maior para conduzir a guerra, mas tomou as rédeas do exército em suas próprias mãos, pois temia ser posto sob pressão se tivesse de enfrentar um grupo de seis ou sete generais e almirantes com visão de jogo. Assim, lidava com eles apenas individual e pessoalmente, e esse contato isolador, em que nenhuma pessoa sabia qual era o plano todo, era uma tática deliberada e um instrumento de estabelecimento da ditadura”.
Com efeito, esse reservar para si a informação de conjunto é uma das técnicas clássicas de manipulação do poder. Novamente, não aí nenhum tipo de liderança, mas apenas uma imposição da ambição pessoal.
Uma segunda amostra dessa manipulação surge da análise do relacionamento do Führer com a sua “comitiva”. Para Schramm, como para outros, a “culpa de tudo” não estaria em Hitler, mas sim naqueles que o cercavam. Ele, homem imbuído de um sonho grandioso, teria sido influenciado por asseclas criminosos e incompetentes; se tivesse podido traduzir na prática os seus ideais, o nazismo teria tido outro destino histórico.
Ora, é mais do que sabido que a ordem decisiva para a última fase da “Solução Final” — a do extermínio em massa dos judeus — veio do próprio Hitler. O que nos leva à teoria oposta, também apresentada com certa freqüência: a “culpa de tudo” teria sido exclusivamente do Führer, não do partido nem do governo nem do povo. Sabemos aonde conduz esse raciocínio: à afirmação de que “o nazismo foi desvirtuado por Hitler; sem ele, seria outra coisa, muito mais bonita” (É interessante notar que se usa o mesmo procedimento para o comunismo, apenas trocando “Hitler” por “Stalin”).
As duas teorias são nitidamente insuficientes. Se aplicarmos o princípio antropológico, o de que o líder representa os anseios dos seus adeptos, veremos que Hitler se cercava de uma comitiva incompetente porque ele próprio era incompetente. Por ser o representante do homem-massa inferiorizado, as suas palavras só encontravam eco em uma “pseudo-elite” intelectual e militar que, no fim, não passava de uma “massa inferiorizada”, de uma “ralé”.
Voegelin apresenta seis parâmetros para analisar o “caso de amor” de Hitler com sua comitiva:
“(1) Hitler estava a par da inadequação de seu círculo. (2) Hitler era, no entanto, obcecado com a ‘camaradagem’ e a ‘lealdade’. Desaprovava veementemente as mudanças que Mussolini fazia em sua guarda, as trocas de ministros. (3) Ele era conservador em seus hábitos de vida e dificilmente rompia relações com pessoas com quem crescia. (4) Teria ocorrido uma mudança, no entanto, se tivesse sido capaz de ver os seus homens como eramrealmente, de discernir quem dentre eles era incompetente ou tinha sérias deficiências de caráter. Eis a contradição: por um lado, ele tinha consciência da inadequação desse círculo; por outro, não era capaz de detectar-lhes a incompetência, as deficiências de caráter. (5) Portanto, não tinha precisamente aquilo pelo que muitas vezes foi louvado: o conhecimento da natureza humana. (6) Hitler conseguia suprimir um julgamento inteiramente correto, mas que não lhe era conveniente, a fim de justificar pessoas que lhe pareciam úteis e devotadas”.
É especialmente importante aqui a expressão “como eram realmente”. A incompetência de Hitler e de sua comitiva devem-se simplesmente a que não foram capazes de ver a realidade. Por isso, não formaram uma “elite”, uma minoria seleta que sabe que primeiro a realidade tem de ser estudada com amor para só depois se tornar dócil; formaram uma “ralé” que acreditava que a realidade estivesse aos seus pés apenas por serem eles quem eram. E se as coisas davam errado, limitavam-se a negar toda a responsabilidade, lançando as culpas, conforme o caso, ora no Führer, ora na sua comitiva. Mas quem se recusa a ver as conseqüências do real, não merece outro nome que o de estúpido.
Antes de mais nada, devo dar um esclarecimento. O leitor talvez se tenha surpreendido com as palavras “ralé” e “estúpido”, e pense que são insultos vulgares. Não são. Na verdade, são termos técnicos e rigorosos, que classificam um determinado comportamento diante do real. Além de que um insulto preciso às vezes pode ser um excelente diagnóstico.
Comecemos com o termo “estupidez”. Voegelin faz um resumo delicioso de como essa palavra é usado desde o início dos tempos, da Bíblia até a mais recente literatura moderna, passando pela filosofia grega. Os israelenses chamam o homem que cria desordem na sociedade de “tolo”, nabal, pois não é um “crente”, não aceita a revelação de Deus; Platão usa outro termo, amathes, o homem irracional, que não se curva à razão e, portanto, tem uma imagem defeituosa da realidade. Para São Tomás de Aquino, o “tolo” é o stultus, o estulto, que não compreende nem a revelação, nem a razão, e mesmo assim tenta mudar a realidade, tendo como resultado óbvio produzir o caos. Por fim, na literatura moderna Voegelin encontra no escritor austríaco Robert Musil as expressões “estúpido”, “idiota” e “néscio”, que retratam o mesmo tipo humano.
Qualquer um de nós já sentiu o momento em que se depara com a estupidez do próximo como um dos tormentos mais angustiantes de sua vida. Ortega y Gasset define certeiramente a distinção entre o tonto e o “perspicaz”: o segundo sempre se surpreende a dois passos de se tornar um tonto (e aí está o início da inteligência), ao passo que o primeiro jamais suspeita de si mesmo, sempre se considera “discreto” e se instala na sua torpeza e tranqüilidade de “néscio”. Não há como tirar o tonto da sua tontice; aliás, como bem diz Ortega, a diferença entre um “néscio” e um homem “mau” é que o mau descansa às vezes, o néscio nunca.
Voegelin toma de Musil os conceitos de “estupidez simples” e “estupidez inteligente”. O “estúpido simples” é alguém que erra por ignorar o que acontece, por mera desinformação; já o “estúpido inteligente” é alguém que insiste no erro por acreditar que sempre tem razão. Do resumo histórico que o filósofo faz, ressalta uma constante que caracteriza o “estúpido inteligente”: a negação deliberada da razão, que lança o ser humano na bestialidade, mesmo que esta assuma as formas aparentemente sofisticadas da técnica ou da ideologia. O estúpido não quer conhecer, prefere permanecer na negação da realidade. No fim das contas, pensa com o poeta alemão Novalis (muito admirado pelos nazistas): “o mundo será como eu quero que ele seja”. Por não respeitar a realidade como ela é, violenta-a de uma forma ou de outra; mas, como ela é “insubornável”, cedo ou tarde ela se vingará, pregando-lhe uma peça. E como resultado o estúpido assume uma atitude de revolta contra tudo e contra todos.
Ao binômio de Musil, Voegelin acrescenta mais um termo para descrever “Hitler e os alemães”: o de “estupidez criminosa”. Se o estúpido inteligente insiste no erro, o criminoso está disposto a fazê-lo custe o que custar. A sua vontade racional é substituída por um desejo de poder alucinado, que acaba encontrando satisfação somente na destruição do seu semelhante; as aparentes “razões” que invoca para fazê-lo — de raça, de credo, de cor ou de sexo –, não passam de pretextos.
Hitler foi exatamente isso: um estúpido criminoso, o exato oposto do spoudaios, do homem maduro defendido por Aristóteles. Contudo, permaneceu um ser humano: não é possível perder a razão ou o próprio espírito só porque queremos: eles continuam a fazer parte da constituição humana. Como diria Voegelin: “Foi de uma humanidade em forma absolutamente humana, porém a humanidade mais notavelmente desordenada e doente: uma humanidade pneumopatológica”. O estúpido, e mais ainda o estúpido criminoso, não é um “psicopata”, mas algo mais profundo: sofre de uma doença do espírito, de uma pneumopatologia, que nasce da vontade humana mas acaba por enraizar-se em todo o ser da pessoa.
Musil criou também a distinção entre “primeira realidade” e “segunda realidade”. A primeira é a realidade captada pela apreensão concreta das coisas, entendida pela razão e refletida no bom senso, em que todos vivem e se comunicam; a segunda é a pseudo-realidade criada como alternativa pelo espírito doente, em que ele tentará viver e expressar-se independentemente dos desejos dos seus semelhantes. Quando ocorre o choque inevitável entre as duas, nasce a mentira erigida num sistema em que todos os dados incompreensíveis da “primeira realidade” têm de encontrar uma explicação exata na “segunda realidade”. E nesse momento ocorre uma desumanização: o ser humano, esse algo concreto e inesgotável, feito de carne e espírito, é transformado em um mero conceito, uma simples abstração — uma “estatística”. Daí para o genocídio é apenas um passo.
Este foi o caso da Alemanha na época em que foi representada política e existencialmente por Adolf Hitler. Não houve nenhuma “aura”, nenhum “enigma”, muito menos uma “personalidade demoníaca”: tratava-se somente de uma nação de estúpidos governada por um estúpido criminoso. No choque entre a primeira realidade e a segunda, a “elite” da nação abdicou do espírito e decidiu deixar-se escravizar pelo desejo de poder, tornando-se “ralé” submetida à “autoridade da ignorância”. Essa “ralé” só estava aberta à vontade do Führer, e isso porque também ela estava imersa na mesma doença espiritual.
Para mostrar com clareza o que caracteriza a “ralé”, Voegelin usa um episódio do Dom Quixote. Como todos sabem, o cavaleiro espanhol é a personificação do homem que vive na “segunda realidade”, confundindo moinhos com monstros e camponesas com nobres donzelas. A certa altura do romance, o Quixote é libertado de uma gaiola de madeira pelo cônego, que o acompanha até a sua casa e procura convencê-lo de que suas aventuras não passam de rematada loucura. O cavaleiro responde-lhe que suas aventuras são tão reais como as que compõem os livros de cavalaria da época; o verdadeiro louco, diz, seria o cônego, que não acredita nesses livros “apesar de terem sido publicados com a licença do rei”. Aqui temos o raciocínio característico da “autoridade da ignorância”: aceita-se incondicionalmente a mentira porque “a autoridade” (que pode ser do rei, do Führer ou da “maioria”, tanto faz) a aprova.
Uma “ralé” comandada por um “estúpido”, intoxicada por uma doença erigida em sistema legal: essa estupidez institucionalizada gera uma situação de sonâmbulos conduzidos por outros sonâmbulos. Houve, entretanto, alguns que se ergueram contra essa “opção preferencial pelo desastre” e cumpriram a famosa frase do filósofo inglês Richard Hooker: ao menos “a posteridade saberá que não deixamos, pelo silêncio negligente, que as coisas se passassem como um sonho”.
O mito de que não houve resistência ao nazismo mostra-se cada vez mais infundado. Já mencionamos as obras do próprio Voegelin ou o de Robert Musil, que, ainda em 1937, deu uma conferência pública chamada “Da estupidez”. Mas existiram vários tipos de resistência, como o dos prelados Faulhaber ou Von Galen (que os nazistas não ousaram prender), de católicos como Fritz Gehrlich e Alfred Delp (executados), dos pastores Dietrich Bonhöffer (preso e executado) e Martin Niemöller (a princípio fascinado pelo nazismo, mas que percebeu a armadilha e foi preso), de intelectuais como Hermann Broch e Thomas Mann (exilados nos EUA) — e, é claro, dos irmãos Hans e Sophie Scholl.
Em fevereiro de 1943, os Scholl — que tinham formado com mais três amigos um grupo clandestino chamado “Rosa Branca” — distribuíram nos corredores da universidade de Munique milhares de panfletos em que denunciavam a loucura da guerra e a existência de campos de concentração. A Gestapo, com eficiência alemã, caçou-os e prendeu-os quase que imediatamente. Depois de uma farsa de julgamento, os Scholl foram condenados à morte e levados à guilhotina; Sophie tinha 21 anos e Hans, 25 anos. A evocação dos dois não é casual: o próprio Voegelin batizou o Instituto de Ciência Política de Munique, que fundou e onde deu as suas palestras sobre “Hitler e os alemães”, de Geschwister-Scholl-Institut (Instituto Irmãos Scholl); para o filósofo de Colônia, uma política autêntica tem de estar sob a égide da coragem.
A conclusão de Voegelin é um chamado à responsabilidade individual e a uma qualidade completamente insuspeitada neste contexto: a humildade. Porque a humildade é exatamente aquilo que afirmamos no início deste artigo: confiar na realidade. A coragem de confiar no real é a única garantia que permite superar a estupidez institucionalizada, tornar-se um homem maduro e encontrar essa realidade que fundamenta o encontro com todas as outras realidades: a vida do espírito. São necessários anos e anos de dedicação, e é necessária também uma reviravolta interior para perceber as coisas por esse novo olhar. Mas o começo de tudo está em perceber que estamos sempre a dois passos de nos tornarmos estúpidos.
Enfrentar-se com essa clareza é uma espécie de descida aos infernos; mas não esquecemos que o estúpido também desce, e de maneira muito pior: no caso de Hitler, basta ler os últimos relatos de sua vida no fétido bunker onde escolheu morrer. Uma frase publicitária da época, profundamente irônica, afirmava: “Hitler no bunker — esse, sim, é o verdadeiro Hitler!” E o que era? Segundo Joachim Fest, um homem consumido pelo ódio à humanidade, cristalizado nos seus padrões de pensamento, dominado por uma força irracional orientada somente para a destruição. É interessante confrontar esta atitude com a de Winston Churchill, a “nêmesis de Hitler”, que descreve assim os seus “anos de ostracismo” na década de 30:
“Todo profeta deve provir da civilização, mas todo profeta tem de ir para o deserto. Deve ter uma impressão profunda de uma sociedade complexa e de tudo o que ela tem para dar, e depois atravessar períodos de isolamento e meditação. É mediante esse processo que a dinamite psíquica é feita”.
spoudaios, o homem que “desceu ao inferno” do autoconhecimento e de lá voltou, é precisamente esta “dinamite psíquica”. Esta é a lição que Eric Voegelin deixou para todas as jovens gerações: a de que a tarefa da filosofia é cultivar a coragem e confiar no real, sempre de acordo com o aviso do profeta Ezequiel: “Filho do homem, te pus como sentinela para a casa de Israel. Assim, quando ouvires uma palavra da minha boca, hás de avisá-los da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: ‘Ímpio, certamente hás de morrer’ e tu não o desviares do seu caminho ímpio, o ímpio morrerá por causa da sua iniqüidade, mas eu requererei o seu sangue de ti. Por outra parte, se procurares desviar o ímpio do seu caminho, para que se converta, e ele não se converter do seu caminho, ele morrerá por sua iniqüidade, mas tu terás salvo tua vida” (Ez 33:7–9).


Palestra que dei em 2008 sobre “Hitler e os Alemães” no FORTE 2008, idealizado pela Febratel — Federação Brasileira de Telecomunicações.

[1] Hitler e os Alemães foi publicado no Brasil em 2008, com tradução de Elpídio Dantas da Fonseca, pela editora É Realizações, que também lançou Reflexões Autobiográficas, também de autoria de Voegelin. Todos os trechos em português desse livro específico vieram dessa tradução.
[Ensaio previamente publicado no segundo número da revista Dicta&Contradicta, em dezembro de 2008.]