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quinta-feira, 13 de abril de 2017

O assalto gramsciano ao Brasil - Olavo de Carvalho

Recordações inúteis
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de março de 2012

Uma fraqueza crônica do pensamento liberal é que, em sua resistência obstinada e não raro heróica ao crescimento do poder estatal, acaba por fazer vista grossa ao fato de que nem sempre os movimentos revolucionários e ditatoriais concentram o poder noEstado, mas às vezes fora dele. Na verdade, nenhum movimento poderia se apossar do Estado se primeiro não se tornasse mais poderoso que ele, criando meios de ação capazes de neutralizar e sobrepor-se a qualquer interferência estatal adversa, bem como, é claro, de manobrar o Estado desde fora e utilizá-lo para seus próprios fins. Qualquer principiante no estudo do leninismo sabe disso.
Que a esquerda petista e pró-petista estava destinada a dominar por completo o Estado brasileiro sem encontrar a mais mínima resistência, é coisa que para mim já estava clara pelo menos desde 1993, quando as famosas CPIs mostraram ser o nosso Parlamento nada mais que um bichinho dócil às injunções da grande mídia, alimentada e manobrada por sua vez pelo onipresente e onissapiente serviço de informações do PT. Foi naquele ano que publiquei A Nova Era e a Revolução Cultural, dando ciência – a quem não desejava ciência nenhuma, por achar que já possuia todas – de que a petização integral do Brasil era apenas questão de tempo. Mal havia então, entre os liberais, quem imaginasse sequer que o PT pudesse vir a ter alguma chance de eleger um presidente da República. E todos me olhavam como a um egresso do Pinel quando eu lhes dizia que, quando isso viesse a acontecer, como fatalmente aconteceria, seria numa ocasião em que o Estado já estivesse completamente dominado por dentro e por fora, a conquista do governo federal nada mais constituindo que a oficialização derradeira de um fato longamente consumado.
Enquanto isso, a intelectualidade liberal gastava todos os seus neurônios no empenho idealístico de defender no plano doutrinário a economia de mercado e a liberdade democrática, duas coisas que a esquerda nem pensaria em atacar muito seriamente naquele momento, já que precisava de ambas para poder parasitá-las e continuar crescendo até ficar forte o bastante para subjugá-las, deformá-las e, no devido tempo (que só agora está chegando) extingui-las.
Havia até quem celebrasse a proliferação das ONGs como um progresso notável da democracia liberal, na medida em que, consagrando as vias não-oficiais de ação social e política, fortalecia a sociedade civil contra as pretensões avassaladoras do gigantismo estatal.
Em vão advertia eu a essas criaturas que a “sociedade civil” era o terreno de escolha para a penetração das forças revolucionárias, decididas a só se lançar à conquista do poder de governo quando estivessem seguras de controlar, por vias não-oficiais, todos os meios possíveis de modelagem da opinião pública, assim como todos os canais de financiamento estatal e privado de uma multidão de empreendimentos revolucionários maiores e menores, setorizados e discretos o bastante para que seu efeito de conjunto simulasse uma transformação espontânea da mentalidade popular. A própria disseminação do termo, insistia este insano colunista, refletia a influência crescente e anônima do pensamento de Antonio Gramsci, naquela época já o autor mais estudado e mais citado em todas as faculdades de letras e de ciências humanas no Brasil, só ignorado por aqueles que mais interesse deveriam ter em defender-se da revolução gramscista.
O primeiro sinal de que alguém havia me prestado alguma atenção não veio senão decorrida quase uma década, e não veio dos liberais. Um artigo memorável do general José Fábrega, publicado em jornal de pequena circulação, mostrou que entre os militares havia ainda alguma inteligência desperta, o que veio a se comprovar nos anos seguintes com os dois livros espetaculares, tecnicamente perfeitos, do general Sérgio Augusto de Avelar Coutinho, A Revolução Gramscista no Ocidente (Rio, Estandarte, 2002) e Cadernos da Liberdade (Belo Horizonte, Grupo Inconfidência, 2004), infelizmente publicados tarde demais para poder inspirar qualquer ação eficaz contra o projeto de controle hegemônico da sociedade brasileira, àquela altura já praticamente vitorioso. O general Coutinho faleceu em 27 de dezembro de 2011 (v. http://www.forte.jor.br/tag/general-sergio-augusto-de-avellar-coutinho/), amargurado de ver a facilidade estonteante com que a malícia organizada – que a estratégia de Gramsci não passa disso – havia se apoderado do país. O que mais o entristecia era que um processo de dominação tão óbvio, tão patente, tão bem explicado de antemão e tão fácil de compreender, pudesse ter sido aplicado a toda uma nação de maneira tão anestésica e imperceptível que qualquer gemido de protesto acabasse soando como extravagância intolerável e quase sinal de demência. Se no resto do mundo a vida imita a arte, no Brasil ela imita a piada: nossa democracia realizou à risca, com séculos de atraso, a boutade de Jonathan Swift sobre o cidadão que morreu mas, não tendo sido avisado disso, continuava acreditando que estava vivo.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O que fazer com os gramscianos de academia? Nada, ou quase nada - Paulo Roberto de Almeida


O que vai na cabeça dos gramscianos de academia? 

Paulo Roberto de Almeida


Gramscianos de academia é, obviamente, um título genérico, uma marca de fantasia, que dou aos acadêmicos que se alinham com as posições do partido neobolchevique que nos (des)governa, quaisquer que sejam essas políticas e tomadas de posição. Eles apoiam, evidentemente, o partido e o seu chefe, e o título de gramscianos é até um elogio pois a maioria deles, a quase totalidade jamais leu Gramsci, ou Marx, seriamente. Eles apenas refletem uma certa ideologia, um certo consenso mental, em vigor na academia, de que é preciso estar do lado dos "progressistas", os dispensadores de justiça social, dos líderes das causas redistributivas, aqueles que prometem acabar com a exploração imperialista e a super-exploração dos capitalistas nacionais, enfim, todas essas coisas malvadas que estão invariavelmente ligadas aos mercados e ao neoliberalismo.
Eles têm noções muito rudimentares de como funciona o mundo, não têm quase nenhuma formação econômica, e menos ainda como se organiza uma empresa que pretende ser competitiva nos mercados. Eles são apenas professores, ou seja, vivem entre eles, e seus aluninhos passivos e ainda pouco lidos, vivem de livros que são escolhidos entre a literatura convergente nessas teses que foram acima evidenciadas e acham que estão ajudando os pobres e remediados a tentar expropriar os ricos para distribuir aos pobres.
Por que eles continuam apoiando o partido neobolchevique, a despeito de todas as denúncias de crimes e malversações cometidas contra o Estado e a sociedade, de toda a corrupção envolvida nos negócios públicos e privados nos últimos 13 anos (e mesmo antes), apesar da imensa crise econômica e política em que o Brasil se encontra imerso e submergido? Por que?
Eu não sei dizer com exatidão, mas deve ter raízes nessas crenças de caráter religioso ou ideológico, que não podem ser contraditadas mesmo com todas as evidêncas em contrário. Os acadêmicos gramscianis são os true believers da política moderna, os últimos crentes no poder inato do grande líder em trazer justiça social, bem estar e felicidade ao povo de Deus, contra as perversidades dos mercados, dos capitalistas, das elites.
Creio que escapa ao domínio da racionalidade, e não há maneira de desconverter um true believer. Se tornou impossível convencer um true believer que tudo o que ele acreditou até aqui é totalmente equivocado e fadado ao fracasso. Eles continuam a acreditar.
O que vamos fazer?
Com os acadêmicos gramscianos nada, eles são incorrigíveis.
Só nos resta educar os mais jovens, e nisso cabe uma grande responsabilidade àqueles que possuem uma visão um pouco mais sofisticada do mundo, no sentido de também escreverem, publicarem, esclarecerem os mais jovens (e alguns velhos também).
Acho que é isso que deve ser feito, é isso que estou fazendo.


Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 22 de abril de 2016

terça-feira, 29 de março de 2016

Os Miseraveis (nao os de Victor Hugo; os de agora) - Paulo Roberto de Almeida


Os Miseráveis

Paulo Roberto de Almeida

Não se pretende tratar aqui de pobreza, da ignorância ou da injustiça social no século XIX. Personagens e cenários são diferentes dos imortalizados por Victor Hugo no seu épico de tonalidades sombrias, mas que adquiriu luminosidade nos musicais do século XXI. Os nossos miseráveis estão longe de ser pobres, não sofrem nenhuma injustiça social e, se são ignorantes – politicamente falando –, praticam mesmo a velha desonestidade nos negócios públicos, exibindo a má-fé típica dos vilões da dramaturgia universal. Eles são os que permitiram a ascensão, sustentaram a hegemonia e estão comprometidos com a sobrevivência da maior quadrilha política que assaltou o Brasil pela via legal, mas que pretende se perpetuar no poder por todos os meios possíveis.
Descartando os rufiões titulares, vamos tratar dos responsáveis, em última instância, pelo sucesso circunstancial e pela sobrevida delongada da delinquência moral que tisnou a governança no Brasil e que foi responsável por um dos maiores casos de corrupção já vistos neste nosso planetinha redondo, como diria a peça chave do maior espetáculo de imoralidade da história política brasileira. Por ordem de importância eles são: (a) grandes banqueiros; (b) gramscianos da academia; (c) empresários estratégicos, a começar pelas construtoras; (d) militantes ignaros, neobolcheviques sem o saber; (e) aliados úteis e inúteis da incultura brasileira.
Nenhum projeto de poder se faz sem recursos, moeda sonante ou qualquer outro tipo de apoio financeiro, e por isso eu coloco os grandes banqueiros em primeiro lugar da minha escala de miseráveis. Banqueiros, mais do que empresários em geral, são os que possuem a visão macroeconômica, empregam os melhores consultores econômicos, trabalham com o recurso universal e fungível, capaz de se desdobrar em todas as esferas da vida pública (e privada também). Ao passo que empresários precisam estar ligados a um setor qualquer, e se fazem representar por associações especializadas num ramo determinado da atividade produtiva, ficando por força do ofício na microeconomia, os grandes banqueiros circulam altaneiros por todos os setores da economia, possuindo até uma osmose bem mais intensa com a esfera governamental, até nos seus antros mais sensíveis, como soem ser o Tesouro (pela emissão da dívida pública) e o Banco Central (pela supervisão do meio circulante e sua atuação nos mercados de créditos).
Desde o Renascimento, nenhum grande príncipe (ou candidato a) pode assentar o seu poder sem dispor de grandes banqueiros ao seu lado. Foi o que logo percebeu o candidato a condottiere, quando ainda transacionava (secretamente, inclusive) com os chefões do seu setor produtivo e, logo, com toda a representação dos industriais. Não existe campanha eleitoral sem ajuda dos financistas; eles foram generosos ao extremo com o dito príncipe, desde o início de sua irresistível ascensão, pois descobriram que poderiam ganhar dinheiro por via da dívida pública e outros mecanismos dos mercados financeiros. São os primeiros e grandes culpados da lista de miseráveis apoiadores dos traficantes da política nacional. São os últimos a pularem do barco.
Os gramscianos da academia veem em segundo lugar porque foram eles que deram legitimidade e aparência de credibilidade aos rústicos companheiros que não tinham, como era natural, a sofisticação do verbo e a clareza da escrita. Foram esses litterati de aluguel que se encantaram com o sindicalista carismático e, frustrados pelas aventuras anteriores do guevarismo urbano, se lançaram de corpo e alma no apoio dito intelectual à nova classe que se preparava para assaltar o céu do poder burguês. Esses gramscianos que não leram Gramsci possuíam uma vasta interface (inclusive de classe) com os guerrilheiros reciclados na política partidária, que ensinaram aos sindicalistas alternativos como construir uma máquina de conquista do poder, com alguns toques de clandestinidade e táticas stalinistas de administração, como soe acontecer.
Empresários no Brasil sempre foram historicamente dependentes do Estado, de medidas tarifárias, de subsídio, de regras de não-concorrência, que possam melhorar suas vantagens pouco competitivas. Mas há uma categoria de super-empresários que está umbilicalmente ligada ao Estado, pois são os que trabalham com as grandes encomendas do governo, na faixa dos sete dígitos ou mais. Empreiteiras, construtoras, o pessoal dos investimentos pesados são geneticamente corruptos de nascimento, em qualquer país, época ou circunstância. No Brasil a promiscuidade chega combinada ao patrimonialismo tradicional da classe política, que nos tempos mais recentes acabou virando um patrimonialismo do tipo gangster. Não surpreende, assim, que os maiores clientes da República de Curitiba sejam justamente esses grandes homens da pesada.
Ninguém precisa explicar o que são os militantes ignaros, pois eles constituem a terceira componente do partido neobolchevique, característica que eles exibem sem sequer ter lido uma linha sequer do grande deformador do marxismo no século XX, o homem que criou a engenharia social totalitária em atividade na pátria do socialismo durante setenta anos, até implodir por força de suas próprias contradições. Eles são a massa de manobra da organização criminosa, e farão tudo o que o seu mestre mandar, por mais contraditórios, ilógicos ou ridículos que sejam os seus slogans.
Finalmente, os companheiros de viagem são esses aspirantes a uma teta qualquer do Estado e que ficam subscrevendo manifestos – redigidos pelos gramscianos – em apoio à sobrevivência dos mafiosos. Eles conseguem falar de defesa da legalidade sem sequer se referir aos casos de corrupção que saltam aos olhos de todos e que levaram multidões às ruas do Brasil. Eles são ou não são miseráveis?


Brasília, 27/03/2016

sábado, 4 de outubro de 2014

A politica externa companheira e a diplomacia partidaria: contraponto aos gramscianos da academia - Paulo Roberto de Almeida

A política externa companheira e a diplomacia partidária: um contraponto aos gramscianos da academia, por Paulo Roberto de Almeida

by Coordenação, 4/10/2014
 

O término de um mandato presidencial sempre é uma boa ocasião para se efetuar um balanço das coisas boas e das menos boas que transcorreram durante o período. Por deformação de ofício, mas também por inclinação pessoal, tenho feito esse tipo de avaliação ao final e até no início de novos mandatos, num terreno que por acaso é o meu pelas últimas três décadas, pelo menos: os das relações internacionais do Brasil e da política externa dos governos que se sucederam desde o final dos anos 1970 (em plena ditadura, portanto), até a atualidade. Uma lista nominal de todos os ensaios de avaliação que escrevi a esse respeito ao longo dessas décadas seria provavelmente enfadonha, mas talvez possa ser útil aos que manifestem o desejo, e o interesse, de conhecer, ainda que seletivamente, o que produzi de mais relevante nessa área. Por isso, permito-me enumerar os mais representativos desse tipo de produção ao final deste breve ensaio.
Mas o que me motiva a novamente realizar o mesmo tipo de exercício é a publicação recente, no calor dos debates eleitorais, de dois ou três artigos dentro da linha do continuísmo diplomático, ou seja, escritos deliberadamente com a intenção de “provar” que a política externa companheira, em curso desde o primeiro dia do regime lulo-petista – que entrou para a história como a era do “Nunca Antes”, que aliás serviu de título a meu livro mais recente – é a única suscetível de defender a soberania do Brasil, e que ela deve ser preservada com todo o ativismo e altivez que supostamente a caracterizam (segundo a figura de estilo, pro domo sua, de um ex-chanceler). Como eu acho que esses artigos nada mais são do que propaganda enganosa a serviço do partido no poder, publicidade encomendada travestida de análise acadêmica, resolvi apresentar aqui outros elementos de discussão, ao alinhar alguns argumentos em favor de uma outra visão, que pelo menos tem a vantagem, sobre essas, de oferecer uma perspectiva “interna” da diplomacia companheira, e sem que ninguém me tivesse encomendado tal tarefa. Ni Dieu, ni maître, como diria um anarquista; e eu: nem mestre, nem patrão.
Primeiro: distinguir a política externa da diplomacia, stricto sensu
Cabe distinguir, primeiramente, entre política externa e diplomacia – que são assemelhadas mas não devem ser confundidas –, para, a partir daí, fazer uma avaliação de ambas ao longo do período recente. A primeira não se distinguiu muito, ou praticamente nada, da política externa conduzida nos dois mandatos do presidente Lula, ou seja, significou uma continuidade conceitual, em suas grandes linhas, ainda que tenha representado certa diminuição no ímpeto para novas iniciativas e no impulso para projeções exageradas no plano internacional. A segunda, a diplomacia, foi certamente diferente, ainda que ambas tenham apresentado forte ênfase na chamada diplomacia presidencial, ou seja, o envolvimento direto do chefe de Estado com certos temas, embora com certa diminuição na intensidade das ações, como aliás ocorreu na transição de uma para outra política externa. Foram estilos diferentes, digamos assim, na maneira de conduzir a política externa e a diplomacia: um pouco diferentes entre si, mais na forma do que no conteúdo, ainda que continuassem pertencendo e aderindo, ambos, aos mesmos princípios e modos de funcionamento.
Cabe, portanto, examinar uma e outra em sua substância, e não apenas na forma sob a qual foram respectivamente desenvolvidas. Quando se diz que a política externa não se distinguiu muito entre os dois mandatos anteriores do presidente Lula (2003-2006, e 2007-2010) e o mandato da sucessora, é porque esta preservou basicamente as mesmas orientações, as mesmas linhas essenciais que estavam em curso desde o início do primeiro mandato lulo-petista, do qual esta foi mera continuação, quando não foi uma simples projeção no tempo, por pessoas interpostas, da mesma política externa.
Cabe registrar, desde logo, que essa política externa (e sua diplomacia) foi muito bem recebida pelas correntes ditas progressistas da opinião pública, o que significa quase toda a academia, por ter sido considerada como bastante inovadora em relação às linhas anteriormente conhecidas da política externa brasileira, que era influenciada (se não determinada, em grande medida) pelo Itamaraty. Esta é a principal característica da política externa lulo-petista, da qual a política externa “dilmista” (se é possível, de fato, falar de uma) representa, como já se disse, mera continuidade.
Avaliação da política externa e da diplomacia de 2011 a 2014
A avaliação que se pode fazer, de uma e de outra, é, portanto, válida para todo o período lulo-petista e seus grandes traços são bastante conhecidos pelos observadores dos meios de comunicação, tanto quanto pelos analistas acadêmicos. Se trata de uma política que se pretende – numa espécie de classificação pro domo sua, ou seja, em causa própria – “ativa e altiva”, e que se quer soberana, ou mais exatamente defensora da soberania nacional. Como elogio em boca própria pode ser vitupério, digamos que ela se conforma a certos traços que seus próprios protagonistas selecionaram para si: uma diplomacia voltada para o Sul – como se uma orientação para o Norte constituísse um pecado original e basicamente orientada a “mudar as relações de força” no cenário internacional, tido como prejudicial às novas aspirações do governo para o país.
Essa foi a intenção proclamada pelo anterior chefe de Estado, e confirmada pelo seu único chanceler mais de uma vez, que ainda acrescentava que se pretendia criar uma “nova geografia do comércio internacional”. Como ocorreu em várias outras esferas da vida nacional, e de suas políticas públicas, se pretendia romper com o universo anterior, considerado uma “herança maldita” sob diversos aspectos, ainda que esta caracterização tenha mais de demagogia política do que de análise objetiva. Na política externa, em todo caso, as pretensões eram bastante ambiciosas, e em torno delas se mobilizou uma diplomacia que foi convidada a “vestir a camisa” do novo governo.
Em síntese, se acreditava que a ordem mundial anterior estava caracterizada por uma “extraordinária concentração de poder econômico, militar, político, ideológico, cultural” (e vários outros mais) nas mãos das antigas potências coloniais europeias e, principalmente, do império americano. Esta é a análise que o principal ideólogo daquela diplomacia – o ex-Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães – fez de maneira recorrente da situação internacional encontrada pela diplomacia lulo-petista no início do milênio, e que seus protagonistas e principais proponentes tentaram modificar. O caminho estaria numa aliança entre potências emergentes e países do Sul de maneira geral, para se opor a esse poder desmesurado do hegemonismo arrogante, de maneira a poder “democratizar as relações internacionais”, redistribuindo aquelas fontes de poder entre novos atores.
A Weltanschauung dos companheiros e seus objetivos táticos
Este é o arcabouço mental, e o quadro conceitual, em torno do qual se construiu a política externa lulo-petista, e em função do qual se mobilizou uma diplomacia voltada essencialmente para esses grandes objetivos. As metas táticas para alcançá-los, pelo menos parcialmente, foram apresentadas, ao início daquele governo, como estando integradas por três prioridades: (a) reforço e ampliação do Mercosul e constituição de um espaço econômico integrado na América do Sul; (b) conquista de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas; (c) finalização das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha, com aquela orientação de aliança com os países do Sul, no sentido de criar a “nova geografia do comércio internacional”. Qualquer que seja a posição do observador jornalístico, ou do analista acadêmico, pode-se avaliar, então, se esses objetivos foram alcançados, ou cumpridos parcialmente, com base na diplomacia mobilizada para atingi-los. Uma avaliação honesta diria que eles sequer foram arranhados, ainda que os adeptos dos governos lulo-petistas sempre terão motivos para se explicar quanto ao atingimento apenas parcial ou nulo de tais objetivos.
Ainda que os fieis seguidores da causa companheira possam dizer, por exemplo, que o Mercosul “deixou de ser apenas comercial, para também ser político e social”, um critério honesto e objetivo de aferição teria de reconhecer que o Mercosul é, sempre foi, um tratado de integração comercial, e é isso que o define como instrumento de criação de um espaço econômico comum no cone sul. O Mercosul está mais próximo, hoje, das metas fixadas institucionalmente no Tratado de Assunção em 1991? Ou seja, de um mercado comum? Sequer uma união aduaneira completa ou uma zona de livre comércio acabada foram realizadas; ao contrário, a convergência interna diminuiu, para não dizer que as divergências de política comercial, mas também em outras políticas setoriais, só fizeram aumentar ao longo dos últimos doze anos. O Mercosul é hoje uma sombra do que foi, e não se pode pretender que a adesão política de países tão pouco propensos ao livre comércio, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, o fará mais forte em seus objetivos essenciais, que continuam sendo aqueles estipulados no artigo 1o do TA.
Quanto ao assento permanente no CSNU, é óbvio que a reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu órgão de segurança não dependiam da postura assumida pelo Brasil, num processo tão complexo quanto a ascensão e declínio de novos atores nos cenários geopolíticos mundiais. Mas o ativismo da diplomacia lulista pode ter contribuído, também, para o acirramento da rigidez oposicionista de outros atores regionais, a começar pela própria Argentina, preocupação sempre mantida pela anterior diplomacia – a de FHC – para não causar, justamente, desacertos públicos numa questão que merecia iniciativas mais discretas e profissionais. Tampouco o terceiro objetivo dependia da capacidade negociadora do Brasil, ou mesmo de seus muitos aliados no sistema de comércio internacional, mas não houve, nesse terreno, realismo suficiente para atuar nas duas vertentes: a do multilateralismo do sistema de comércio regido pela OMC, e o minilateralismo dos blocos e acordos comerciais de menor amplitude geográfica, e mais suscetíveis de serem implementados de modo mais rápido e com objetivos práticos mais bem definidos, ainda que mais limitados.
Quando o governo Dilma assumiu, porém, esses dois últimos objetivos já estavam praticamente “congelados”, e não cabiam mais iniciativas nesses dois terrenos. Mas a via do minilateralismo comercial continuava sempre aberta para novas iniciativas brasileiras, muito embora o Mercosul pudesse ser, como é, de fato, uma espécie de “pedra no sapato” para a busca de acordos comerciais regionais. Não que o Mercosul possa ser infenso a acordos de liberalização comercial com outros países e blocos comerciais, mas é que a postura de alguns de seus sócios – nomeadamente a da Argentina – tem dificultado sobremaneira a definição de posições comuns para permitir o avanço em negociações desse tipo. Não se espera, a esse respeito, que o ingresso político dos novos associados bolivarianos venha a facilitar as coisas nesse terreno, muito pelo contrário: as perspectivas, portanto, são as de um Mercosul paralisado e introvertido, situação já configurada a partir do neoprotecionismo demonstrado pelos países membros a partir da crise de 2008 (na Argentina desde sempre) e que promete continuar vigente caso não ocorra uma mudança radical na política comercial.
Esta é, portanto, a avaliação que se pode fazer da política externa dos governos lulo-petistas, mas exclusivamente em relação aos objetivos diplomáticos estabelecidos pelo próprio chefe de Estado e seu chanceler, ao início do regime companheiro. Não é preciso, aqui, fazer menção a diversos outros elementos de continuidade, igualmente nítidos entre um governo e outro, e que tem a ver mais com a diplomacia partidária do que com opções de política externa que pudessem representar itens de uma agenda “normal” das relações exteriores do Brasil. Alguns casos podem servir de ilustração.
O lado obscuro da política externa companheira
O apoio incondicional a algumas das piores ditaduras do continente, e alhures, por exemplo, não figuraria na “agenda normal” do Itamaraty, em circunstâncias “normais” da política externa. O apoio irrestrito a vários candidatos tidos por progressistas, ou de esquerda, na região e fora dela, foi outra iniciativa que rompeu tradições bem assentadas no Itamaraty, e até alguns princípios constitucionais muito claros da tradição brasileira, como a não intervenção nos assuntos internos de outros países. Como explicar de outro modo, senão por uma diplomacia totalmente partidária, e ideologicamente comprometida com o chavismo militante, o envolvimento no caso da crise política em Honduras?
Como justificar o apoio repetido, continuado e incondicional, ao regime chavista, e a seu sucessor, em face de tantas violações às cláusulas democráticas da OEA e do próprio Mercosul? Como explicar a existência de empréstimos secretos bilionários, e todos os tipos de apoio financeiro, à mais velha ditadura do hemisfério americano, senão pelo comprometimento de vários membros do partido hegemônico com a filosofia e a história de um regime que encarna as piores violações dos direitos humanos e dos princípios democráticos na região? Em quais circunstâncias, exatamente, o Paraguai foi suspenso do Mercosul – contrariamente, aliás, aos procedimentos determinados pela própria cláusula democrático do bloco e admitida a Venezuela no intervalo? O Itamaraty foi acatado em seus pareceres jurídicos e em sua análise política?
Estes são elementos que também devem entrar em qualquer avaliação que se faça da política externa seguida nos últimos doze anos, fruto de uma diplomacia marcada pelas opções partidárias mais exacerbadas que foram dadas contemplar por um Itamaraty basicamente profissional, em toda a sua história, mas que foi submetido aos novos objetivos e opções do regime companheiro. Se houve alguma novidade na diplomacia do terceiro mandato do regime lulo-petista foi a perda da pirotecnia anterior que era garantida pelo próprio chefe de Estado, com seu estilo peculiar de conduzir as relações exteriores do Brasil: diminuíram o ativismo, as iniciativas, e a diplomacia dita presidencial assumiu contornos mais discretos; mas não se podem apontar elementos realmente novos nessa política externa. O que houve de novidade, como o ingresso “pleno” da Venezuela no Mercosul, por exemplo, já estava embutido nas propostas do governo anterior, cujas principais iniciativas diplomáticas – como as reuniões de cúpula entre chefes de Estado e de governo da América do Sul, por um lado, e seus contrapartes da África, e dos países árabes, de outro – ficaram mais ou menos “congeladas”, ou pelo menos sofreram sensível redução em seu ímpeto.
O Itamaraty foi ignorado pela presidência na gestão de 2011 a 2014?
Não se pode ignorar simplesmente um ministério que conduz uma agenda relevante nas políticas públicas do país. Talvez essa impressão seja o reflexo do modo de ser da presidente, que também não parece se relacionar muito bem com os líderes congressuais, com os representantes partidários, com empresários e líderes sindicais e de movimentos populares, como fazia, por exemplo, e com grande sucesso, seu antecessor. São traços de personalidade que definem toda uma gestão, e não apenas o relacionamento com o Itamaraty. Provavelmente uma menor empatia pelos temas internacionais tenha gerado essa imagem de um distanciamento entre a presidente e o Itamaraty, e claramente não havia, nunca houve, entre ela e seus dois chanceleres, o mesmo tipo de intimidade que ela pode ter exibido em relação a alguns de seus ministros mais próximos. Mas deve-se levar em conta, também, o fato de que a presidente nunca foi uma petista “fundadora”, e não parece ter gozado das mesmas alavancas de apoio no partido de que dispunham alguns companheiros “históricos”. Ou seja, outros ministérios setoriais podem também ter se ressentido do mesmo tratamento distante registrado, provavelmente, no caso do Itamaraty.
Para saber se o Itamaraty foi realmente “ignorado” seria preciso fazer um levantamento preciso, primeiro, das dotações orçamentárias, e de sua distribuição e evolução ao longo deste mandato, depois dos compromissos inscritos na agenda do Itamaraty que a presidente eventualmente desdenhou ou não pretendeu assumir. Apenas a partir de uma avaliação objetiva desse tipo seria possível defender a tese explicitada na questão, a de que o Itamaraty foi “ignorado” na gestão Dilma. Em relação aos recentes cortes de verbas, aparentemente lineares e válidos para todos os ministérios, seria preciso saber se eles foram mais profundos no caso do Itamaraty do que nos demais órgãos da administração direta. Registre-se que o Itamaraty possui um perfil de gastos bastante modesto no conjunto da administração pública, mas que a maior parte deles é quase rígida, pois que correspondendo a compromissos e obrigações externas que não podem ser suprimidos ou reduzidos facilmente, sem mencionar o fator cambial, que pode ser muito negativo em caso de desvalorização da moeda nacional.
Caberia também considerar que os dois mandatos anteriores foram tão vistosos, tão resplandecentes, tão eloquentes em matéria de política externa e de diplomacia, que seria muito difícil, senão impossível, tentar estabelecer uma postura equivalente em qualquer outro governo, passado, presente ou futuro. Nunca antes na história do Brasil tivemos um presidente tão eloquente, tão verborrágico, tão envolvido em questões internacionais, talvez por gosto, mais provavelmente por alguma obsessão de fundo psicológico, alguma necessidade de afirmação, desejo de ganhar algum Prêmio Nobel – ao lado das dezenas de doutorados honoris causae jamais acumulados por qualquer outro político na face da Terra ou outros sentimentos ainda mais obscuros para nossa condição de simples observadores da diplomacia lulista. Frente a ela, todas as demais se apagam em sua normalidade ou mediocridade: este é um fato da história política recente do Brasil, independentemente do julgamento que se faça sobre o conteúdo daquela diplomacia e da avaliação objetiva que se tenha quanto aos resultados (ou falta de) de sua política externa.
Não obstante, considerados todos esses fatores, é muito provável, sim, que em função de peculiaridades individuais e pessoais, tenha ocorrido alguma falta de sintonia entre o Itamaraty e a presidente, inclusive porque existem certos rituais do cerimonial diplomático, ademais de constrangimentos derivados de situações externas que não podem ser facilmente administrados por apenas uma das partes, que reforçaram essa impressão de distanciamento entre a Casa de Rio Branco e a presidente. Pode-se dizer, em suma, numa linguagem goethiana e weberiana, que nunca existiram suficientes “afinidades eletivas” entre a presidente e a Casa de Rio Branco, embora isso possa ter ocorrido com outros presidentes também. Mas, o fato é que, vindo logo após o mais pirotécnico de todos os nossos presidentes, travestido de diplomata, ficava realmente difícil igualar certos padrões de comportamento, e até de compostura, no plano das relações exteriores do Brasil.
Lista seletiva de trabalhos do autor sobre política externa do Brasil:
José Augusto; Seitenfus, Ricardo; Nabuco de Castro, Sergio Henrique (orgs.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990) (2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, ISBN: 85-7387-909-2; v. I: Crescimento, Modernização e Política Externa; p. 537-559),
“La politique internationale du Parti des Travailleurs: de la fondation du parti à la diplomatie du gouvernement Lula”, In: Denis Rolland et Joëlle Chassin (orgs.), Pour Comprendre le Brésil de Lula (Paris: L’Harmattan, 2004, ISBN: 2-7475-6749-4; p. 221-238; link: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/73BresilLula.html).
“A política internacional do Partido dos Trabalhadores: da fundação do partido à diplomacia do governo Lula”, Sociologia e Política (Curitiba: UFPR; n. 20 jun. 2003, p. 87-102; ISSN: 0104-4478; link: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782003000100008).
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor no Centro Universitário de Brasília – Uniceub (pralmeida@mac.com )

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Eleicoes 2014: a politica externa do continuismo diplomatico-academico- Sebastiao Velasco

Em artigo publicado no Correio do Brasil, o panfleto possivelmente mais mentiroso criado (e financiado) pelo Stalin Sem Gulag -- ainda bem, do contrário eu não estaria aqui -- um acadêmico típico do típico gramscismo dominante nesses ambientes que anteriormente eram críticos, mas que deixaram de sê-lo há mais ou menos dez anos,, vem, tipicamente, defender o continuismo na política externa e nas opções diplomáticas do lulo-petismo.
A pretexto de examinar as propostas dos dois principais candidatos oposicionistas -- que ele tenta caracterizar, desonestamente, como aliados do império e subservientes aos "ricos" -- ele faz uma defesa indisfarçável das más opções adotadas nesses anos do Nunca Antes.
Parece que ele não sabe muito bem distinguir uma união aduaneira de uma zona de livre comércio, no caso do Mercosul -- já que acha que a simples eliminação de tarifas, que ele reduz a acordos com os "ricos", retira o significado do Mercosul, esquecendo que este pretenderia ser um mercado comum -- e se compraz em reproduzir beatamente a fórmula, que ele acha "feliz", de um ex-chanceler, que chamou a sua própria política externa, sem se envergonhar por fazer elogio em causa própria, de "ativa e altiva". 
Parece que esse pessoal quer ter o monopólio de todas as virtudes, acusando, de forma totalmente desonesta, os demais de submissão ao império.
Ah, sim, ele esqueceu completamente o apoio ideológico -- e eu até diria sectário e criminoso -- dos companheiros travestidos de diplomatas a algumas das piores ditaduras, na região e alhures, além daquele antiamericanismo infantil e anacrônico, que eles confundem com oposição ao hegemonismo imperial.
Enfim, nada que seja propriamente surpreendente: nossa academia continua a chafurdar no entulho autoritário dos neobolcheviques.
Paulo Roberto de Almeida 

Política externa: O que está em jogo nesta eleição

Correio do Brasil, 2/10/2014 13:42
Por Sebastião Velasco - de São Paulo

Política externa: O que está em jogo nesta eleição
Política externa: O que está em jogo nesta eleição
As cartas estão na mesa. Mais do que em 2010, mais do que em 2006 e provavelmente bem mais do que em qualquer outra depois do longo recesso do pós 1964, as diferenças programáticas no tema dapolítica externa estão muito claras na campanha presidencial deste ano.
A posição da candidatura oficial não reserva surpresas: com as adaptações necessárias para ajustar-se aos dados sempre cambiantes da conjuntura internacional, com esta ou aquela correção de rumo, o programa de Dilma não se distingue  essencialmente daquele que vem pautando, desde o início, as ações de seu governo.  O qual, por sua vez, segue pelo caminho aberto oito anos antes pela política de Lula, “ativa e altiva” na fórmula feliz do Ministro Celso Amorim.
O que há de novo é o espaço dedicado ao tema da política externa nos pronunciamentos oficiais da oposição, e os pontos de vistas expostos nesses documentos. Deixando de lado artigos de circunstância e entrevistas, são dois os documentos mais importantes: o Programa da coligação “Unidos pelo Brasil” (Marina-Beto Albuquerque), e uma longa entrevista publicada pela revista Política Externa, a que responderam os dois candidatos de oposição (na época, Aécio e Eduardo Campos).
Chama atenção a grande semelhança entre o programa das duas candidaturas. Elas coincidem em sua retórica — ao se apresentarem como restauradoras da autonomia do Itamaraty, supostamente sacrificada aos interesses e aos preconceitos ideológicos do partido dominante. Convergem na defesa da  adesão brasileira aos grandes acordos comerciais ora em negociação sob patrocínio dos Estados Unidos com países latino-americanos e asiáticos (a Parceria Comercial Trans-pacífica), com a União Européia (o Acordo Transatlântico de Comércio e Investimento), e com ambos: o Acordo sobre Comércio em Serviços. Fazem coro na crítica ao estado presente do Mercosul, e na proposta de flexibilização de suas regras para dar margem de liberdade maior ao Brasil na condução de sua política de comércio exterior. Estão afinadas também na defesa de uma aproximação maior com os Estados Unidos e de uma postura abertamente crítica face a (alguns) governos apontados como responsáveis por violações de direitos humanos.
No plano mais geral, ambos os programas contemplam a transformação do sistema internacional, no sentido de uma distribuição mais equilibrada de poder, e advogam para a diplomacia brasileira o exercício de um papel construtivo no redesenho de seus mecanismos de governança. Apesar dessas e outras similitudes, há algumas diferenças entre as duas propostas, como veremos logo a seguir.
Mas seguir é preciso? Não seria melhor indicar logo essas diferenças, de resto adjetivas, e deixar aos eleitores – a essa altura bem instruídos  –  o encargo de escolher entre os programas, de acordo com suas preferências e seu juízo?
Seria assim se os programas políticos fossem translúcidos. Mas não são. Usualmente, eles ocultam, tanto quanto revelam  — e quando prestamos atenção a esse jogo de claro escuro vemos que eles informam mais do que os seus autores imaginavam.
Tome-se, por exemplo, o caso da integração regional e a adesão aos acordos comerciais promovidos pelos Estados Unidos. Embora avaliem muito criticamente o Mercosul, ambas as candidaturas falam em reformulá-lo, sob liderança brasileira, para lhe dar maior flexibilidade e, no final das contas, revigorá-lo. Ora, do ponto de vista estritamente comercial, é evidente que a celebração, com economias desenvolvidas, de acordos com cláusula de eliminação de tarifas retira a razão de ser do Mercosul. O leitor está autorizado, portanto, a depreciar os protestos de compromisso com a integração regional. Fazendo eco a anos de propaganda negativa da grande imprensa, a opção preferencial dos dois programas é pelos ricos.
Mas os acordos em questão não se restringem a remover barreiras tarifárias, nem é este o seu maior objetivo. Do contrário, não haveria muito o quê negociar entre a Europa e os Estados Unidos, pois suas tarifas já são muito reduzidas. O que esses acordos pretendem é harmonizar regras para uma gama enorme de temas tradicionalmente objeto de regulamentação pelos Estados Nacionais: serviços, investimento estrangeiro, propriedade intelectual, compras governamentais, para citar apenas alguns.
Ao fazer isso, esses acordos não inovam. No final do século passado, vários desses temas passaram a ser disciplinados por regras estabelecidas em negociação multilateral, que desde então vêm sendo aplicadas pela OMC. O meio natural para reformá-las seria também a negociação multilateral no âmbito desta organização. É a inexistência de consenso sobre o que mudar, e sobre própria direção da mudança que leva os Estados Unidos e seus aliados a optarem pelo caminho da negociação secreta entre “iguais”.
É desnecessário insistir no que significa essa escolha do ponto de vista do sistema multilateral de comércio. O argumento para aderir a esses acordos deixa isso muito claro: “não podemos correr o risco de ficar de fora, e sermos obrigados a nos sujeitar depois a normas decididas por outrem”. O suposto é claro: os outros definirão novas regras, independentemente de nossa vontade  –  e, no caso, o coletivo indicado pelo pronome vai muito além de nós, brasileiros. Se a regra de ouro do regime em vigor é a mudança por consenso (ou, em última instância, pelo voto da maioria), o que prevalece nos referidos acordos é a lógica excludente da oligarquia: os pares decidem; aos demais resta a opção entre aceitar o que foi decidido, ou ficar à margem.
Agora, o que há de tão especial nessas “novas regras”? Seus defensores usam termos sedutores quando se referem a elas. Seriam mais “ambiciosas”, ou mais “avançadas” – quem vai insistir em manter regras “modestas” e “atrasadas”? Mas há um ardil nessa linguagem: esses adjetivos não se aplicam com propriedade às regras, mas aos interesses sociais que as promovem e são por elas beneficiados. Em detrimento de outros interesses, naturalmente, mas sobre isso é melhor não dizer nada.
Os dois programas apresentam tais mudanças como respostas aos imperativos da economia industrial, que se organizaria hoje em cadeias produtivas globais. Nesse contexto, as normas precisariam ser harmonizadas, sob pena de entravar a atividade das firmas.  Quando se abre a caixa preta (o que acontece por vezes, quando o segredo que cerca a negociação desses acordos é quebrado por um bisbilhoteiro mal intencionado qualquer), a desconfiança nos assalta. As regras propostas conferem amplas prerrogativas às corporações multinacionais e limitam severamente os graus de liberdade dos poderes públicos. E quando vemos que países participam das negociações desses acordos, e quem fica fora deles –  nenhum dos BRICS, para início de conversa  — concluímos com facilidade: o que se pretende é a integração subordinada nessas ditas cadeias  –  que funcionariam efetivamente como tais, liames aprisionando os anseios de desenvolvimento econômico e social de nosso país.
Até aqui, os dois programas vão de mãos dadas. Mas em alguns momentos eles se separam (não muito, é verdade). Os documentos da chapa encabeçada por Marina são bem mais incisivos na condenação a governos acusados de violar direitos humanos  – por coincidência, todos eles na lista negra dos Estados Unidos  –, mas não dizem uma palavra sobre as crises humanitárias provocadas pelas intervenções militares da superpotência e seus aliados, ou sobre as violações crônicas que prevalecem em muitos de seus Estados clientes.
E há a denúncia do princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, que sempre orientou o Brasil nas negociações sobre o clima. Essa noção serviria de escudo para os novos grandes poluidores globais, e o governo a estaria usando para fugir às nossas obrigações como membros solidários da humanidade, ameaçada pelo desastre que ronda o nosso planeta. Imbuído desse espírito generoso, no capítulo dedicado à matéria, o programa de Marina estabelece metas “ambiciosas” para o Brasil em futuro próximo e distante: redução das emissões de CO2 per capital em 70% até 2050. O fato de os Estados Unidos responderem, sozinhos, por cerca de 17 % das emissões globais de carbono, enquanto a contribuição do Brasil não passa de 1,5%, não conta. Somos todos responsáveis, e temos de contribuir igualmente na resolução do problema.
Chegamos, enfim, ao tema da multipolaridade. Como se sabe, o conceito é central na política exterior do Brasil desde o início do governo Lula. Àquela época, o mantra nos estudos em Relações Internacionais era a unipolaridade. No mundo do pós Guerra-Fria haveria apenas uma única hiperpotência, um único pólo. E daí a falar em Império global era um passo  –  que muitos deram celeremente, durante os preparativos da invasão do Iraque, e pouco depois. Como se sabe também, o Brasil se opôs a essa operação militar, pela voz de seu presidente Lula — para grande escândalo dos comentaristas que integram o que poderíamos denominar de “Partido Americano do Brasil”.
Outros tempos, outras palavras. Agora, a fórmula “um mundo multipolar” entrou na moda. Mas entre o significado dela no discurso oficial e no léxico da oposição há uma diferença flagrante. Para o primeiro, ao promover a integração sul-americana o Brasil contribui para a constituição de um pólo a mais no sistema internacional; para o segundo, o sistema tende a assistir à afirmação de outros pólos de poder, mas o Brasil deve continuar gravitando na órbita do mesmo astro de sempre.
Sebastião Velasco,  é professor da Unicamp, especialista em Ciência Política, com ênfase em Economia Política e Relações Internacionais e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).