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sábado, 22 de outubro de 2011

Minitratado das inutilidades burocráticas - Paulo Roberto de Almeida


Minitratado das inutilidades burocráticas

Paulo Roberto de Almeida
  
Saindo do trabalho além da hora, cruzei com um colega no corredor, ele numa direção, eu na oposta. Trocamos apenas as palavras habituais de cortesia, sem parar a não ser por um rápido aperto de mão, “olá, como vai?, trabalhando muito?”; “Pois é, é o jeito!”, ele disse, acrescentando ao final: “Vamos esperar pela aposentadoria”, ou algo do estilo (sou péssimo para memorizar certas coisas, além de edições de livros). Havia, evidentemente, certo sentido de cansaço naquelas palavras, algo de desalento ou coisa do gênero. Enfim, nos despedimos e fui para casa sem pensar mais naquele encontro. Mas de alguma coisa serviram aquelas palavras, retidas em minha consciência, aparentemente.
Chegando na garagem do edifício, encontrei-me com outro colega, também voltando tarde do trabalho, provavelmente não pelos meus motivos, mas ainda assim fiz aquelas perguntas habituais e trocamos as palavras esperadas nessas circunstâncias: “Olá, voltando tarde, fazendo hora extra?”; “Pois é, e o pior que não adianta muito...”; “Muita coisa para fazer?”, perguntei enquanto subíamos de elevador para o mesmo andar; “São coisas sobre as quais não há nada a fazer”, disse ele, acrescentando logo em seguida: “Sabemos que não vai adiantar nada, que não há nada a fazer, ainda assim, precisamos responder, para constar...”, terminou ele; enquanto eu virava a chave do meu apartamento, ainda tive tempo de dizer a ele: “Inutilidades burocráticas...”, ao que ele assentiu, disse boa noite e também girou a sua chave.

Entrei em casa ensimesmado com as duas conversas, e imediatamente tive a ideia de escrever este minitratado, o primeiro que me é inspirado diretamente por um evento corrente, um fato concreto, não um divertimento do espírito, como ocorreu com todos os demais desta série. Não tenho palavras, aliás, nem imaginação, apenas impressões vazias, como numa verdadeira inutilidade burocrática. Que coisa mais inútil escrever sobre uma total inutilidade, sem ter perspectiva de avançar nenhum argumento inteligente, alguma palavra significativa sobre alguma realidade efetiva, la verità effetuale delle cose, como dizia meu amigo Niccolò, há muito tempo atrás, muito tempo mesmo.

O que pode haver de interessante em certas inutilidades burocráticas, tarefas das quais é preciso se desempenhar mesmo sabendo que elas não servem para literalmente nada, apenas para alimentar o próprio processo burocrático? O que poderia significar de produtivo adentrar num roteiro kafkiano, no qual não se sabe sequer para que servem todos aqueles papéis que se movem de um lado a outro para, ao final, não produzir sequer um grama de valor agregado na formação do PIB nacional?
Enfim, um burocrata verdadeiro pode até ficar excitado, até quase ter um estado orgástico, com esse tipo de inutilidade inútil – com perdão pela redundância – mas imagino que um racionalista paretiano, como este que aqui escreve, só pode sentir-se incomodado com certos exercícios de pura transpiração burocrática, sem qualquer inspiração produtiva, numa total ineficiência administrativa. Por que a burocracia deveria ser produtiva, ou eficiente, se a sua razão essencial de existência é apenas... existir? Por que deveria ela servir para algo quando a razão burocrática tem como única razão e justificativa servir a si própria e justificar-se pelo simples fato de continuar fazendo sempre as mesmas coisas, sem que alguém pergunte para que, exatamente?

Kafka é, de fato, o melhor autor para tratar de “inutilidades burocráticas” como essas incidentalmente enfocadas aqui; seu romance – de ficção burocrática, se ouso dizer –, O Processo, é o melhor resumo da (des)razão burocrática jamais construído nos anais da literatura mundial. A trama, perfeitamente burocrática, se passa numa capital indeterminada da Europa central e deixa um cidadão comum, Josef K., em estado de estupefação surrealista ante a convocação autoritária de autoridades movidas por propósitos completamente desconhecidos – um crime jamais identificado – e guiadas por códigos de procedimento nunca explicitados para o “acusado”. Ao tratar de maquinações sem sentido que a máquina do Estado pode criar, de maneira perfeitamente anódina, para o homem comum, o romance póstumo de Kafka passou justamente a simbolizar absurdos burocráticos que elevaram o nome do autor a sinônimo do caso em espécie.
O mais curioso é que li o romance, pela primeira vez, na própria cidade de Kafka, Praga, em meio a procedimentos e administrativos do então socialismo real, que me deixaram em estado de torpor burocrático ante a máquina surrealista do Estado autoritário. Mais curioso ainda: se tratava de uma tradução para o espanhol, publicada pela Casa de las Américas, uma editora depois fechada pelo socialismo burocrático cubano, provavelmente o segundo regime mais kafkiano da história mundial do socialismo, depois do campeão absoluto, o regime totalitário norte-coreano. Este merece, não um minitratado, mas um tratado inteiro de interpretação, como a expressão máxima do stalinismo surrealista em toda a história humana conhecida.
Existiria algo equivalente a Kafka na literatura que trata das realidades latino-americanas, aparentemente tão pouco burocráticas e excessivamente desorganizadas? Só consigo pensar agora num romance de ficção burocrática, que se passa nas selvas da Amazônia peruana, mas cuja trama é bem mais interessante do que a selva urbana de Kafka: Pantaleão e as Visitadoras, de Mario Vargas Llosa. De fato, a busca da perfeição administrativa na organização de serviços de “conforto sexual” para soldados servindo em postos recuados da floresta, inclusive cronometrando o tempo dedicado à prestação, em si, é absolutamente kafkiana, embora num sentido bem mais satisfatório do que a acusação indefinida que atinge o pobre Josef K. do romance original. Pode-se inclusive arguir que Vargas Llosa é perfeitamente realista – não socialista, obviamente – em relação a um drama recorrente em certas situações que confrontam as bravas forças armadas ante premências das paixões humanas.: Kafka na selva amazônica pode ser tão surrealista quanto seu equivalente da selva urbana da Europa central e oriental, mas os procedimentos seguidos não exibem o mesmo rigor burocrático do estranho mundo do escritor de Praga.

Um elemento é comum aos dois universos acima identificados: a perfeita inutilidade de toda máquina burocrática para resolver problemas reais das pessoas e das sociedades. As burocracias, nas selvas ou nas cidades, enredam os cidadãos numa teia de obrigações e atividades as mais diversas sem trazer necessariamente avanços para as sociedades em causa, apenas movendo pessoas, coisas, papéis de um lado a outro, criando uma aparência de ativismo, quando tudo se move em círculos, sem sair do lugar, como na armadilha do moto perpétuo. A burocracia é feita para repetir-se, para perpetuar-se, para criar sua própria razão e através dela legitimar-se, por procedimentos que ela mesma cria e das quais se alimenta sem quebra de rotina (ou ela é sua própria rotina).
Não que as burocracias vivam inteiramente de suas próprias inutilidades, mas é que, à diferença do mundo real da produção, do comércio, da produção agrícola, ou dos serviços vinculados a qualquer uma dessas atividades, as burocracias suscitam o surgimento, permitem a expansão e levam ao auge de sua expressão irracional as inutilidades que elas criam, alimentam e multiplicam em todos os escalões do aparelho de Estado. Burocracias, e suas inutilidades, também existem no mundo corporativo, talvez até mais desenvolvidas e muito melhor nutridas, com roupas mais vistosas e salários mais polpudos. O próprio das inutilidades corporativas, porém, é que elas têm prazo de validade e data de vencimento de curtíssimo prazo, praticamente no espaço do ciclo de vida de produto ou serviço, que precisa produzir resultados efetivos sob risco de colocar no vermelho os retornos financeiros da corporação em causa.
Em contraste, as inutilidades da burocracia de Estado tendem a crescer e se estabilizar no seu próprio movimento circular, criando uma aparência de movimento, mas na verdade girando em círculos em torno de alguma razão desconhecida, se não é a da própria burocracia estatal. Nada a demove de seus movimentos habituais, sincronizados a códigos de procedimento tão obscuros quanto velhos manuais de alquimia renascentistas. Os movimentos se repetem, incansáveis, os papéis se acumulam, os editais se multiplicam e os dispêndios acontecem, mas nada acontece de verdade, a não ser a própria transpiração burocrática, muito pouco inspirada, de fato, mas produzindo cada vez mais transpiração, como convém a uma legítima inutilidade burocrática, das grandes.
Que outra prova da perfeita inutilidade da burocracia estatal que sua notória e imensa faculdade de continuamente rabiscar papéis, de compor longos memorandos, de redigir minutas, de numerar notas e ultimar relatórios, chegando inclusive a propor inteiros tratados, e até alguns minitratados, sem se importar com o resultado final ou com o valor de mercado e a significação social de toda essa agitação?
Incansáveis e inconscientes esses redatores de minitratados, que poderiam estar produzindo algum ensaio de qualidade para elevar os padrões intelectuais da humanidade, mas que passam o tempo, e ocupam um pouco do tempo alheio, redigindo minitratados que não possuem qualquer outro objetivo senão o puro divertimento pessoal, na mais clara definição do que representa uma inutilidade burocrática. Vale!
Brasília, 9 de outubro de 2011

domingo, 14 de agosto de 2011

Minitratado do Inusitado - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado do Inusitado
Paulo Roberto de Almeida
(ver toda a série neste link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/04/minitratados-um-exercicio-ludico.html)

O que é o inusitado? Como diz o próprio conceito, trata-se de algo fora do normal, além do padrão costumeiro das coisas, que só ocorre de forma imprevista, em momentos não esperados, como uma surpresa. Diz-se, assim, dos acontecimentos raros, ou mesmo inéditos, que rompem com o processo habitual dos fenômenos correntes, ou de eventos pouco frequentes, que literalmente “caem do céu”, qualquer que seja sua qualidade – boa ou má – e seu impacto circunstancial. Sendo inusitado, sempre haverá um impacto, temporário ou permanente em função de sua intensidade.

Nos assuntos humanos, o inusitado pode assumir diferentes formas, todas elas, ou quase todas, provenientes de fontes externas (uma vez que ninguém “planeja” o inusitado). Quase sempre, é um evento independente, ou alguém, que produz o efeito inusitado na vida de outro alguém, que é então tomado de surpresa, como deve ser, para receber a classificação de inesperado, ou inusitado, justamente. O inusitado deve ser contrastado com a normalidade das coisas, com o ritmo habitual – frequentemente aborrecido – com que a vida se desenrola, vindo então romper a monotonia do cotidiano, causando surpresa, admiração, no mais das vezes contentamento, em alguns casos surpresas desagradáveis.
Como não se pretende num minitratado como este falar das tragédias e infelicidades humanos, fiquemos com o inusitado agradável, aqueles que nos promete melhores dias, uma vida mais feliz, uma mudança para melhor. Claro, todos esperam ter um aumento de salário, ganhar na loteria, ter mais possibilidades de mudar para uma vida mais atraente, livre das preocupações habituais com dinheiro, trabalho ou amor. Por que não provocar, então, o seu “próprio” inusitado? Porque isso é geralmente impossível no domínio das possibilidades humanas: todas as pessoas normais – pelo menos as mais “racionais” – são movidas por aquele princípio que os economistas chamam de maximização do bem-estar, mais corriqueiramente pela busca da satisfação pessoal, ou o aumento do prazer, segundo os freudianos. Advém daí que essas pessoas, dotadas de expectativas racionais, pretendem construir o seu futuro de bem-estar maximizado – se possível imediatamente – de maneira convencional, atuando sobre os meios e ferramentas à disposição, e nisso não existe nenhum caráter de inusitado em todo o empreendimento.

O inusitado surge, de fato, de forma totalmente inesperada: um acontecimento político, ou econômico, que altera fundamentalmente as regras do jogo – e cria novas oportunidades para as habilidades de quem é “atingido” pelo inesperado; o aparecimento de novos personagens no cenário habitual de nosso cotidiano, despertando novas sensações ou sentimentos há muito julgados “aposentados”; a oferta surpreendente de novas possibilidades de atuação profissional – acadêmica ou de mercado – que mobilizam nossas vantagens comparativas naturais (ou adquiridas); enfim, todo e qualquer evento fortuito que constitua uma boa surpresa, que altera o itinerário usual de nossas vidas, merece essa alcunha de inusitado; se não fosse assim, não seria “o” inusitado, e sim as pequenas surpresas da vida. Todo mundo tem “direito” a pequenas surpresas ao longo da vida, um pequeno número, contudo, recebe a grata surpresa de um verdadeiro inusitado, sempre saudado com prazer e sorrisos.

Pensando bem, nem mesmo ganhar na loteria constitui um inusitado na acepção própria da palavra, uma vez que o jogador buscou aquilo conscientemente, de forma otimisticamente sonhadora, mas ainda assim planejada, e situada no terreno das possibilidades (ainda que com uma única chance em vários milhões de “azares”). Jogar na loteria é especular com a sorte, uma atividade que os especuladores profissionais conduzem todos os dias nas bolsas de valores e nos mercados de futuros, com maiores e melhores chances de ganhar do que amadores, como somos todos nós. O inusitado merece esse nome porque ocorre justamente quando não estamos especulando com nada, muito menos tentando fazer com que ele ocorra.
Ele se dá numa aparição repentina, num olhar trocado, num piscar de olhos, num sorriso disfarçado, até mesmo numa busca ao acaso na internet (o Google pode ter milhões de inusitados inesperados, que só aparecem quando desdobramos alguns dos seus milhões de itens que aparecem em qualquer busca inocente). Muito do que acontece em nossas vidas tem correlações causais, e mecanismos indutivos que fazem com que certos eventos sejam de fato determinísticos, ou pelo menos possíveis dentro do terreno das combinações da causa e efeito normalmente existentes em algum processo qualquer (trabalho, política, economia, ganhos materiais, etc.). Só o inesperado corresponde a uma química misteriosa – como aquela do amor – que responde a “leis” desconhecidas para nós, uma combinação de moléculas não captada no reino de nossa imaginação, uma sensação diferente que invade nosso ser, inebria nosso pensamento e nos destaca, pelo menos durante algum tempo, deste mundo terreno que é o nosso de todos os dias.
A única coisa a ser feita, nesses casos, é abrir-se ao inusitado, e não planejar mais nada, pela próxima meia hora, ou mais. Como diria um general famoso:
On s’engage, et puis on voit...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de agosto de 2011
(sem revisão, so far...)

sábado, 9 de julho de 2011

Minitratado das corporações de ofício - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado das corporações de ofício
Paulo Roberto de Almeida
(ver toda a série neste link)

Um amigo meu me escreve para dizer que está sendo perseguido por uma poderosa corporação de ofício; enviou-me seu protesto por escrito: “Sou Réu” (até me forneceu o número do processo). Bem, não vou poder ajudá-lo como eu (ou ele) gostaria, pois não tenho esse poder; aliás, nem sou advogado, o que por acaso me lembra que eu tampouco pertenço, profissionalmente, a qualquer uma dessas poderosas organizações dedicadas a preservar o seu monopólio profissional (e, adicionalmente, a achacar consumidores, como eu e você). Sou apenas da modesta tribo dos sociólogos, não tão poderosa nem tão bem organizada quanto a dos advogados, a dos engenheiros, a dos arquitetos, a dos médicos, a dos economistas e as de muitas outras corporações dedicadas ao fechamento dos mercados, de forma a converter todos os demais cidadãos em seus obrigados clientes (mais propriamente em servos indefesos).
Meu amigo é economista e está sendo cobrado por várias mensalidades atrasadas pelo Conselho Regional de Economia da jurisdição onde ele se formou e onde logo em seguida se registrou, no entusiasmo do momento. Acontece que ele nunca se exerceu profissionalmente como economista e, logo depois de formado, foi fazer mestrado e doutorado no exterior; em sua volta, começou a trabalhar em áreas diferentes das que supostamente se exigem habilidades e conhecimentos restritos aos de um economista profissional ou exclusivos dessa “corporação”. Mais do que cobrado, ele está sendo processado, e suponho que o mesmo deva ter acontecido também com outros cidadãos formados e inscritos numa corporação qualquer e que se “esquecem” de pagar a taxa da sua corporação. Este é, portanto, o tema deste minitratado.

A questão central é esta: o que são, o que fazem, e qual o impacto para os cidadãos da atuação dessas corporações de ofício que aprisionam seus “associados” e submetem todos os demais cidadãos ao seu poder monopolístico? Seria possível escapar de suas reservas de mercados, subtrair-se à ditadura corporativa, eliminar o seu jogo monopolístico, que tem óbvias implicações em termos de transferência de renda?
As modernas corporações são o que restou, no mundo contemporâneo, das antigas ordens profissionais medievais, quando artesãos e trabalhadores especializados estavam reunidos numa comunidade legalmente reconhecida de profissionais dotados de uma autorização superior que os habilitava a explorar legalmente uma reserva de mercado (mediante um pagamento qualquer à autoridade concedente). Em contrapartida, eles tinham o monopólio exclusivo – o que parece uma redundância, mas neste caso é justificado – de não apenas oferecer seus serviços e produtos à comunidade colocada sob a jurisdição daquela autoridade, como também de impedir qualquer outra pessoa de também oferecer esses mesmos bens e serviços fora da comunidade assim registrada.
Todas as cidades medievais da Europa ocidental (e mesmo em Estados organizados do Oriente, como na China, por exemplo), tinham suas corporações de ofícios, eventualmente divididas em seções ou corpos especializados. Mesmo os acadêmicos, os intelectuais universitários, constituíam (e de certa forma ainda constituem, hoje em dia) uma comunidade fechada, uma casta de monopolistas do saber e do conhecimento especializado. Novas corporações iam surgindo – por exemplo, os impressores, com a invenção da imprensa móvel – e as mais velhas tratavam de preservar seus monopólios mesmo quando o ofício se mostrava defasado tecnologicamente (fabricantes de velas, ou se chapéus, ou qualquer outra atividade superada pelo tempo).
A Revolução francesa mudou um pouco, mas só um pouco, esse panorama, ao abolir as corporações fechadas e ao começar a regular as relações de trabalho e entre agentes econômicos por meio dos códigos modernos (civil, de comércio, etc.). As antigas corporações foram substituídas por essas ordens que nos mantêm aprisionadas aos seus monopólios privados (oficialmente sancionados). De certa forma, elas se disseminaram tremendamente no mundo moderno, em especial em países que não se libertaram, de verdade, do passado medieval ou da centralização absolutista.
Portugal, por exemplo, manteve durante muito tempo esse mesmo sistema, que se estendia além da vida civil e cobria o próprio Estado, através da venda de ofícios públicos (uma das fontes mais rendosas de recursos para os cofres do rei, até o surgimento de monopólios oficiais sobre produtos “estratégicos” e metais e gemas preciosas, como ouro e diamantes). O Brasil republicano pode ter eliminado alguns desses monopólios, mas conservou alguns dos velhos e criou vários novos monopólios.
Médicos e advogados constituem, claramente, as duas espécies mais antigas de uma categoria que abrange hoje diversas outras profissões fechadas, e que dispõem de privilégios “medievais” ao limitar a concorrência e ao impor suas próprias regras ao conjunto da sociedade. A justificativa usada para legitimar o monopólio legal é sempre a de que essas “ordens” contribuem para elevar a qualidade da formação e da prestação de serviços à população e que estabelecem padrões uniformes de atendimento aos mercados de usuários. Na sombra dessas corporações mais antigas foram surgindo outras, como a dos engenheiros e arquitetos (hoje separadas), a dos contabilistas, da qual saíram os economistas, além de uma infinidade de outras que pretendem também exercer o monopólio sobre o exercício de determinadas atividades.
O debate é obscurecido pela confusão entre o reconhecimento profissional – o que geralmente se faz no âmbito da formação acadêmica – e a regulamentação profissional, que obviamente visa ao fechamento do mercado, com restrições legais aos não reconhecidos. Era, por exemplo, o que existia em relação aos jornalistas, seres perfeitamente normais – como eu e você, que sabemos ler e escrever – mas que se pretendiam (e ainda pretendem) exercer o monopólio sobre qualquer atividade que implique redação e publicação de algum pasquim ou veículo de comunicação. Você acredita realmente, caro leitor, que um boletim de uma categoria profissional qualquer – digamos até mesmo uma nobre profissão, de cidadãos perfeitamente alfabetizados, como a dos diplomatas – necessita de um jornalista profissional, credenciado pelo Ministério do Trabalho para ser montado, publicado e distribuído?
Esse talvez seja o menor dos abusos perpetrados contra os interesses dos cidadãos por essas modernas corporações de ofícios, ainda que todas elas contribuem para fechar os mercados e impor preços extorsivos aos consumidores compulsórios, que somos todos nós. Pior, a qualidade dos serviços nem sempre é garantida: quem pode assegurar, por exemplo, que é melhor ter um jornalista generalista escrevendo um pouco sobre todos os assuntos, em lugar de economistas, administradores e outros especialistas atuando como jornalistas? A sociedade sempre estará melhor com a maior competição possível, não com restrições e sistemas fechados. A abolição da reserva de mercado para jornalistas – que o lobby dos próprios e de alguns representantes políticos está tentando restabelecer – representou um enorme progresso social, e um passo na boa direção.
Meu amigo me informa que está sendo processado: “Recebo agora uma comunicação de que estou sendo processado. Querem de mim as mensalidades atrasadas. Na verdade, os valores são modestos, muito menos do que vale o meu tempo e o do advogado para lidar com essa briga. Mas sou teimoso. Por princípio, não quero pagar.” Imagino que, como ele, outros profissionais – economistas, advogados, arquitetos – também estariam melhor se pudessem exercer seus talentos à margem de qualquer regulamentação profissional. Se eles precisam pautar-se pelas normas e padrões estabelecidos por uma máfia organizada, o leque de serviços que eles poderiam oferecer livremente à sociedade diminui significativamente.
Alguns desses serviços, aliás, são impostos compulsoriamente à sociedade. Por que, por exemplo, dois adultos, atuando em legítimo consenso para lograr um simples divórcio corriqueiro, necessitam ainda assim dos serviços de um advogado imposto legalmente para certificar que eles o fazem no pleno domínio da razão? Por acaso a OAB pensa que todos os adultos em instância de divórcio são perfeitos idiotas, a necessitar de “aconselhamento legal” mesmo na ausência do que aconselhar? Ou seria apenas uma maneira legal, aliás compulsória, de extorquir dinheiro dos cidadãos.
Será que seria possível a um advogado processar a OAB por extorsão legal? Um advogado, hipoteticamente, que pretendesse atuar à margem da OAB, e deixar de pagar suas mensalidades extorquidas, poderia processar a OAB por coação abusiva? Sei que a OAB – assim como o Conselho de Economistas, ou outras corporações mafiosas – tem o direito de processar advogados que não pagam o pedágio exigido, mas por que não poderia ser o contrário?
Por que a sociedade brasileira não começa a desmantelar suas máfias corporativas e outras associações de extorsão legal? Por que não podemos libertar profissionais e cidadãos das castas organizadas para exercer monopólios abusivos? Poucas profissões são capazes de “matar”, literalmente, os cidadãos se as práticas forem liberadas: elas são efetivamente em número muito reduzido. Todas as outras, incapazes de prejudicar os cidadãos – mas que os estão de fato prejudicando mediante regulamentos absurdos – deveriam ser desregulamentadas e liberalizadas. Estaríamos muito melhor sem monopólios e reservas de mercado. Libertem-se desses grilhões, cidadãos!

Brasília, 9 de julho de 2011

sábado, 7 de maio de 2011

O governo "produz" inflacao - Raquel Landim (OESP)

Não, não é ela quem diz que o governo produz inflação. Sou eu.
Trata-se de uma acusação grave, aos olhos de alguns.
Não na opinião dos monetaristas (eu não sou um, adianto de imediato), para quem toda inflação é um problema (ou processo) essencialmente monetário.
E quem "produz" dinheiro? O governo! Logo...
Enfim, o governo produz inflação ao não atacar de imediato fatores que ele CONTROLA (e não são os preços das commodities, obviamente) e que ele até estimula na expansão: como o crédito exagerado, os gastos públicos irresponsáveis, essa ânsia de criar empregos e produzir crescimento da renda que beira à insanidade, pois ele quer fazer tudo sozinho, e para isso precisa do dinheiro da sociedade, que ele vai buscar nos nossos bolsos, compulsoriamente (via impostos diretos, indiretos, taxas, contribuições, adicionais disso e daquilo), e no caixa das empresas (pelos mesmos expedientes, só que obrigando cada empresa a gastar horas, centenas delas, apenas se dedicando a uma tarefa perfeitamente inútil: recolher impostos, provar que o fez e guardar todas as provas de sua fiabilidade fiscal).
Um governo assim só pode ser maluco, além de irresponsável quanto aos mecanismos inflacionários.
Estamos pagando o preço de um governo ativista.
Mas o que mais me chamou a atenção nesta "crônica" econômica dessa jornalista do Estadão, foi esta frase, anódina, ao final:

"A ata do Copom deve ser lida nas entrelinhas, dizem os especialistas. As entrelinhas não deixam dúvida que a percepção do BC sobre a gravidade da inflação mudou."

Duas coisas: eu também acho, e acho que o BC perdeu tempo acreditando que essas tais medidas macroprudenciais iriam funcionar, antes de voltar aos velhos juros cruéis e exorbitantes.
Mas, isso me lembra um minitratado que fiz, alguns anos atrás, sobre as entrelinhas, neste link:

Minitratado das entrelinhas

Divirtam-se com um, desesperem-se com o outro, espero que corretamente...
Paulo Roberto de Almeida

O fim da “louvação” das medidas macroprudenciais
Raquel Landim, Blog O Estado de S.Paulo
28 de abril de 2011 | 18h04

Fiz agora um exercício simples: comparar a ata do Comitê de Política Monetária (Copom) divulgada hoje e o mesmo documento que veio a público no mês passado. Na verdade, comparei mais detalhadamente a seção de implementação da política monetária, na qual o Copom dá mais dicas de sua visão sobre a inflação e seu comportamento futuro. Por essa leitura, parece que o entusiasmo do Banco Central com as chamadas medidas macroprudenciais ficou para trás.

O BC menciona em ambas as atas que as ações macroprudenciais (aperto do crédito) e as ações convencionais (alta dos juros) ainda terão seus efeitos incorporados à dinâmica de preços. Na ata de março, no entanto, a autoridade monetária utilizava um aposto para falar das medidas macroprudenciais: “um instrumento rápido e potente para conter pressões localizadas de demanda”. Na ata de abril, o aposto desapareceu. Em seu lugar, o BC diz que as ações macroprudenciais, e PRINCIPALMENTE as ações convencionais ainda vão impactar a inflação.

Na ata de março, o BC dedicou um parágrafo inteiro ao final do documento para ressaltar um cenário alternativo, no qual “a desaceleração da atividade doméstica, a complexidade do ambiente internacional e a eventual introdução de ações macroprudenciais” poderiam criar “oportunidades” para que a “estratégia de política monetária seja reavaliada”. Ou seja, com mais medidas macroprudenciais talvez fosse possível parar ou subir menos os juros. Na ata de abril, isso desapareceu.

Em seu lugar, o BC acrescentou que a melhor estratégia para garantir que a inflação perca fôlego e fique dentro da meta em 2012 é promover “ajustes das condições monetárias” por um período “suficientemente prolongado”. “Ajustes nas condições monetárias” significa subir os juros. As justificativas para um aperto “prolongado” são ”o balanço de riscos da inflação”, o “ritmo ainda incerto de moderação da atividade doméstica” e a “complexidade do cenário internacional”.

E mais um ponto importante. Logo no início do documento divulgado ontem, o BC repetiu que a inflação de serviços continua em patamar elevado, mas fez um comentário importante. No acumulado em doze meses até março, a alta dos preços do cabelereiro, borracheiro, médico, empregada doméstica, etc, atingiu 8,53%, maior variação desde agosto de 1997. Assim, a autoridade monetária demonstra preocupação com um conjunto de preços que reflete apenas a força da demanda interna e que não tem nada a ver com o crédito – ou seja, um setor no qual as medidas macroprudenciais não tem nenhum efeito.

A ata do Copom deve ser lida nas entrelinhas, dizem os especialistas. As entrelinhas não deixam dúvida que a percepção do BC sobre a gravidade da inflação mudou. O problema é que a teoria ainda não foi transformada em prática. Apesar de tudo que foi dito na ata divulgada hoje, na última reunião, o BC diminuiu a intensidade do aperto monetário e subiu a Selic apenas 0,25 ponto, abaixo dos 0,5 ponto do encontro anterior.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Minitratado dos reencontros - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado dos reencontros
Paulo Roberto de Almeida

(ver toda a série neste link)

Depois de ter tratado, num dos minitratados (sem jogo de palavras) desta série, dos desencontros, cabe falar também dos reencontros, que podem eventualmente ocorrer, embora eles possam demorar algum tempo para se materializar, por vezes até alguns anos. O reencontro pode ser considerado a inflexão da curva de dispersão, ou da linha de divergência, que tinha sido formada, ou que existia, por ocasião do desencontro. Com efeito, o reencontro só se justifica, na maior parte dos casos, após um desencontro ter acontecido, salvo se a separação anterior foi uma obra do acaso, uma contingência inesperada, um acidente de percurso ou seja lá qual fator acidental. Em qualquer hipótese, um reencontro depende da vontade de pelo menos uma das partes, imponderável como pode ser a realização de uma expectativa, sempre dependente das trapaças da sorte o da astúcia da razão. Se as duas partes o desejam, então a conjunção se faz mais facilmente ainda, embora essa hipótese seja mais rara.
A razão, a motivação e o esforço para realizar o reencontro estão todos situados numa mesma dimensão fundamental: a carência, real ou percebida, em relação a uma situação de melhor conforto espiritual com uma dada relação. Tem de ser isso, ou então não haveriam motivos para tantas angústias, tantas reflexões ao léu, tantas suposições otimistas, tantos cenários idealizados. Carências podem se manifestar de duas maneiras: uma negativa, que seria uma espécie de estado depressivo, outra mais positiva, que seria a esperança levada ao estado de euforia, caso o reencontro se materialize por acaso ou por intenção. Seria simples assim? Provavelmente não, pois raramente existem soluções extremas para a maior parte dos casos e sim o continuum de situações indefinidas, que angustiam o “paciente”.
Existe uma estratégia para o reencontro, ou estratégias? Eventualmente, a parte interessada no reencontro pode elaborar uma (e segui-la, o que parece mais importante), embora tudo possa ser muito difuso e até isento de planejamento quanto aos lances táticos que levariam, supostamente, ao almejado reencontro, que é, por certo, a convergência de vontades. Na paz como na guerra, na vida civil como na vida militar (se é que se pode falar em vida, neste caso), na autonomia como na dependência, sempre se pode desenhar estratégias para enfrentar os acasos da vida (embora isso não queira dizer que todas elas funcionem adequadamente). Jogos de guerra, ou jogos de amor, nem tudo termina com final feliz para todos, o tempo todo.
Já que este é um minitratado – ou seja, um documento formal de procedimentos, métodos e disposições práticas, quase um manual de serviço – caberia descrever os detalhes da estratégia e discutir seus elementos táticos. Quem sabe a partir daqui não resulte um desses How to do?, desses que vendem nas estantes de autoajuda – ou até um Idiot’s Guide to Making Up Again – que podem ser úteis a almas gêmeas temporariamente separadas ou a corações desesperados? Não tenho certeza de oferecer o manual perfeito para tranquilizar corações desesperados, mas vou tentar acalmar os confusos (sem garantia de sucesso e sem dinheiro devolvido).
A primeira tarefa nesse tipo de empreendimento é definir as chances de que o objetivo se concretize; existem várias possibilidades classificatórias: o reencontro pode ser utópico, realizável, impossível, razoável no médio prazo, imprevisível, mesmo no longo prazo, etc. Pode até conceber um quadro analítico – quem sabe uma tabela Excel? – com cronogramas definidos, cujas células poderiam ser ocupadas por “missões” graduais para a consecução do reencontro, até a etapa final de atingimento do objetivo fixado. Uma estratégia consequente prevê várias táticas alternativas, todas conjugadas ou atuando de forma sucessiva, conforme os efeitos e resultados da aplicação de cada um.
Existem métodos diretos ou indiretos de aproximação, o que for mais conveniente. Hoje em dia, o Google resolve quase todos os pedidos de busca, mesmo os mais inusitados (suponho que até a polícia, em suas missões para os mais “wanted men”, mas podem ser “women” também, use o Google para buscas rápidas). As redes sociais também “atingem” – literalmente – milhões de pessoas, embora nesses casos de busca afetiva um dos lados sempre peca por timidez.
Definida a estratégia e desenvolvidas algumas técnicas, cabe esperar uma implantação decisiva da missão “reencontro”, de preferência com ações bem pensadas para não frustrar o objetivo final. Geralmente a abordagem é gradual, indireta e silenciosa, embora existam os apressadinhos (em parte incautos) que passam a uma tática de assédio pouco recomendável para a maior parte dos casos. Um “levantamento de terreno” preliminar – como no caso do planejamento militar – parece indispensável ao desenvolvimento de uma estratégia bem montada, o que implica em conhecimentos mínimos de cartografia afetiva e de mapeamento sentimental.
A logística também apresenta papel importante, pois é preciso planejar as operações sobre o terreno, com margem suficiente de manobras e recursos disponíveis para manter presença no terreno. Aqui não precisa de soldados, no sentido estrito do termo, mas certamente precisará de talão de cheques, no sentido estrito e no lato, sobretudo neste último. Quanto mais lato melhor, pois essas táticas de sedução costumam ser altamente custosas para o bolso do contribuinte...
Enfim, quaisquer que sejam as táticas e estratégias a serem mobilizadas no esforço de reencontro, é preciso ter algo para “vender”; do contrário fica difícil concretizar a meta da “conquista” (como nos objetivos militares). O objeto, parece claro, é o próprio iniciador do esforço de reencontro, o personagem que se coloca na posição de articulador de novas situações, o proponente de uma nova etapa de vida. Nesse ponto entramos naquilo que os americanos chamam de core of the matter, ou na substância da matéria. Não tenho sugestões a fazer neste particular. Apenas desejar que o pretendente seja o personagem dos sonhos da pessoa visada. Também acontece...

Brasília, 14 de abril de 2011

Minitratados: um exercício lúdico-reflexivo...

Creio já ter referido aqui minha série de minitratados, uma série de pequenos textos curtos, aleatórios na temática e no tempo, sobre aquilo que alguns filósofos poderiam chamar de "grandes questões da humanidade".
Trata-se claramente de um divertissement, mas que não deixa de ter um significado -- aliás vários -- que é complementar ao, ou diverso do, objeto efetivamente tratado em cada um desses minitratados (aleatórios mas cuidadosamente escolhidos).
Ou alguém acha que reticências, ou entrelinhas, constituem grande problemas filosóficos da humanidade?
É uma maneira divertida, para os que apreciam ironias e sutilezas, para falar dos sentimentos humanos, meus ou dos outros.

Listo abaixo a relação dos minitratados produzidos so far, aqui sem transcrição completa, mas remetendo aos links para sua leitura integral.
Não tenho certeza de que coloquei todos os minitratados; pode ser que eu tenha esquecido algum no caos de meus arquivos eletrônicos. Tenho de pesquisar: esses minitratados são espertos, fugidios, eles se escondem nas mais surpreendentes reentrâncias do pensamento...
Tenho vários outros planejados no pipeline, e aceito sugestões dos leitores para novos minitratados, mas apenas sobre os mais graves problemas da humanidade, como alertei anteriormente.
Mas de maneira divertida, como também coloquei, o que não deixa de ser relevante, mesmo se constitui uma simples distração na leitura de coisas verdadeiramente sérias...
Paulo Roberto de Almeida

Série dos minitratados (até aqui...)

1) Minitratado das reticências
Pouca gente dotada de uma certa familiaridade com a palavra escrita consegue atribuir real importância às reticências, inclusive este cidadão que aqui escreve. Quero falar das reticências stricto sensu, isto é, os famosos três pontinhos ao final de alguma frase ou expressão... (...)
Ler a suite deste minitratado neste link.

2) Minitratado das interrogações
Interrogantes são inerentes à espécie humana, e talvez mesmo a certos primatas. Determinadas escolhas, ou caminhos, nos levam a uma situação de melhor conforto material ou de maior segurança pessoal, sem que, no entanto, saibamos, ou tenhamos certeza, ao início, que aquela opção selecionada é, de fato, a de melhor retorno ou benefício possível. Dúvidas, questionamentos, angústias, em face das possibilidades abertas em nossa existência, são inevitáveis em todas as etapas e circunstâncias da vida. Daí a interrogação, normalmente simbolizada pelo sinal sinuoso que colocamos ao final de certas frases: ? (...)
Ler a suite deste minitratado neste link.

3) Minitratado das entrelinhas
Tratados, em geral, costumam ser solenes, como convém aos grandes textos declaratórios, escritos em tom impessoal e devendo refletir alguma realidade objetiva, uma relação entre Estados...
Minitratados, por suposição, deveriam ser versões reduzidas de seus irmãos maiores... (...)
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4) Minitratado da imaginação
A imaginação não é um simples sentido natural, e sim um ato da vontade, embora não possamos impedir nossa própria consciência de imaginar “coisas”. Mas essas coisas imaginadas são instruídas, orientadas, criadas e administradas por nós, como se fossemos um diretor de cinema ou de teatro, quando eles dizem aos atores como o script deve ser realmente lido e interpretado. (...)
Ler a suite deste minitratado neste link.

5) Minitratado da reencarnação
Não, não quero falar da reencarnação "real", aquela na qual acreditam piamente hindus e tibetanos, pelo menos os religiosos, nisso seguindo, ao que parece, os antigos egípcios, que já não estão mais entre nós para contar como a sua, supostamente rica, experiência nessa matéria. Os primeiros são radicais, capazes até de interromper a construção de um templo por uma minhoca que apareceu no canteiro de obras; afinal, nunca se sabe: pode ser a mãe de alguém. Enfim, se os egípcios ainda nos assustam com múmias de Hollywood, os outros nunca provaram o que afirmam. (...)
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6) Minitratado das Improbabilidades
Uma improbabilidade é algo que, como o conceito indica, não corre nenhum risco de acontecer; constitui, assim, um não-evento, uma impossibilidade prática. Poucas pessoas, salvo as muito sonhadoras, ficam atrás, ou se colocam em busca, de coisas impossíveis, ou seja, de improbabilidades. Aqueles que o fazem, de verdade, ou sinceramente, costumam ser chamados de utopistas, ou talvez até, dependendo da natureza de seus sonhos, de românticos incuráveis. (...)
Ler a suite deste minitratado neste link

7) Minitratado dos desencontros
O que é um desencontro? Dito simplesmente, é uma defasagem, no tempo ou no espaço, entre dois corpos, cada um seguindo vias próprias e diferenciadas, sem qualquer possibilidade de cruzamento. Para fins deste minitratado, no entanto, o desencontro é um descompasso entre dois sentimentos, um pretendendo resposta e reação, o outro permanecendo desatento ou distraído, o que pressupõe alguma instância de reciprocidade ou linha de cruzamento, mesmo virtual. (...)
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8) Minitratado dos reencontros
O reencontro pode ser considerado a inflexão da curva de dispersão, ou da linha de divergência, que tinha sido formada, ou que existia, por ocasião do desencontro. Com efeito, o reencontro só se justifica, na maior parte dos casos, após um desencontro ter acontecido, salvo se a separação anterior foi uma obra do acaso, uma contingência inesperada, um acidente de percurso ou seja lá qual fator acidental. (...)
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9) Minitratado das corporações de ofício
Um amigo meu me escreve para dizer que está sendo perseguido por uma poderosa corporação de ofício; enviou-me seu protesto por escrito: “Sou Réu” (até me forneceu o número do processo). Bem, não vou poder ajudá-lo como eu (ou ele) gostaria, pois não tenho esse poder; aliás, nem sou advogado, o que por acaso me lembra que eu tampouco pertenço, profissionalmente, a qualquer uma dessas poderosas organizações dedicadas a preservar o seu monopólio profissional (e, adicionalmente, a achacar consumidores, como eu e você). Sou apenas da modesta tribo dos sociólogos, não tão poderosa nem tão bem organizada quanto a dos advogados, a dos engenheiros, a dos arquitetos, a dos médicos, a dos economistas e as de muitas outras corporações dedicadas ao fechamento dos mercados, de forma a converter todos os demais cidadãos em seus obrigados clientes (mais propriamente em servos indefesos).
Ler a suite deste minitratado neste link.

Pensou num tema relevante? Indique...
Paulo Roberto de Almeida

sábado, 2 de abril de 2011

Minitratado dos desencontros - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado dos desencontros
Paulo Roberto de Almeida

O que é um desencontro? Dito simplesmente, é uma defasagem, no tempo ou no espaço, entre dois corpos, cada um seguindo vias próprias e diferenciadas, sem qualquer possibilidade de cruzamento. Para fins deste minitratado, no entanto, o desencontro é um descompasso entre dois sentimentos, um pretendendo resposta e reação, o outro permanecendo desatento ou distraído, o que pressupõe alguma instância de reciprocidade ou linha de cruzamento, mesmo virtual.
Na melhor das hipóteses, o desencontro é passageiro, e a correspondência esperada se faz em algum momento, em algum lugar. Na pior, as expectativas de uma parte não logram sensibilizar ou dobrar a vontade da outra parte, e o desencontro se converte em motivo de sofrimento. Todo desencontro, ou toda indiferença é um sofrimento, pelo menos para uma das partes. Todos nós sabemos disso.
Por que existem desencontros? Eu poderia ser economicista e dizer que a reta (sempre crescente) da procura não encontra a “sua” curva da oferta, o que pode ocorrer em face de qualquer falha de mercado ou externalidade negativa. Sendo menos sarcástico, e mecanicista, pode-se dizer que, no terreno dos sentimentos humanos, não existe qualquer equivalência mecânica, como aquela identificada com a “lei de Say”, que pretende que a oferta cria sua própria demanda.
Mas tampouco funciona neste caso a chamada “inversão keynesiana”, que espera que a demanda artificialmente criada pelo poder de emissão de alguma autoridade desperte os “espíritos animais” dos agentes de mercado, que decidem, a partir daí, manter a oferta agregada. Os economistas, assim como os contabilistas, não gostam de desencontros: eles sempre pretendem fechar a equação de equilíbrio, buscando a resposta para déficits ou superávits mesmo por meios artificiais.
No caso das amizades ainda se pode esperar alguma reciprocidade, ou seja, um equilíbrio e correspondência de vontades e prestações mútuas; nas amizades existe, sobretudo, confiança entre as partes. Tudo isso é muito difícil de ser estabelecido no caso de paixões mais “incisivas”, como o amor, que não exige retorno direto; ele pode ser unilateral, unidirecional, não correspondido e assimétrico, como nas relações de dependência ou de assistência entre países avançados e economias miseráveis, que vivem da cooperação ao desenvolvimento (outro nome para a assistência pública).
Como nas relações econômicas, porém, o desencontro é uma expectativa não realizada, por insuficiência de fatores ou de insumos, que atendam aos requisitos dos “consumidores”. Não se trata apenas de uma assimetria de informação, mas de um desequilíbrio sistêmico, que impregna toda a equação de mercado, afetando aquela transação que se esperava realizar. O desencontro, portanto, está muito longe daquela situação que os economistas chamariam de “ótimo paretiano”. Numa figuração de química doméstica, ele seria como a superposição entre a água e o azeite.
Nem todas as culturas, porém, cultivam essa oposição de sentimentos, o confronto de posições, essas cenas dramáticas, típicas de novelas mexicanas. Na tradição oriental, a aparente oposição do yin e do yang acaba conhecendo alguma síntese reconciliadora, assim como na sua gastronomia encontramos o agridoce, que nos enche de prazer, mesmo momentâneo. Mas o desencontro constitui justamente o retorno do azedo sobre o sentimento temporário de doçura e de conforto espiritual.
Existem soluções para os desencontros? Talvez, mas certamente não “a” solução, a fórmula mágica que permitiria eliminar toda frustração e todo sentimento de impotência em face da indiferença alheia. Algumas situações podem ser apenas contornadas, pelo uso dos “estímulos corretos”, geralmente de natureza material. Muitos “compram” o amor, é verdade, ou atuam para criar uma relação de dependência, o que teoricamente pode fazer com que retas paralelas se encontrem em algum ponto do espaço. Mas esse tipo de “equilíbrio” é muito frágil, já que espíritos independentes não suportam a subordinação de sua vontade, justamente.
Qual seria, então, um possível remédio a um desencontro específico? Sem nenhuma garantia de sucesso, como em qualquer empreendimento humano, fazer-se admirar, provocar o reconhecimento da outra parte pelas ações beneméritas, generosas e “desprendidas” que se decide oferecer unilateralmente. Em uma palavra: ser bom, o que implica ser atencioso, prestativo, sempre pronto a confortar a outra parte, aquela com a qual se busca o encontro, justamente. Sinceridade é fundamental, mas confessar a ação calculada poderia parecer oportunismo, interesse egoísta, até maquiavelismo, no sentido vulgar deste conceito.
Sempre se espera que o desencontro seja passageiro, mas o descompasso pode, na verdade, durar anos, ou décadas. Paciência e constância nos sentimentos constituem, neste caso, duas virtudes fundamentais. Feliz final do seu desencontro...

Curitiba-Brasília, 2 de abril de 2011

sexta-feira, 18 de março de 2011

Minitratado das Improbabilidades: administrando o impossível

Minitratado das Improbabilidades
Paulo Roberto de Almeida

Uma improbabilidade é algo que, como o conceito indica, não corre nenhum risco de acontecer; constitui, assim, um não-evento, uma impossibilidade prática. Poucas pessoas, salvo as muito sonhadoras, ficam atrás, ou se colocam em busca, de coisas impossíveis, ou seja, de improbabilidades. Aqueles que o fazem, de verdade, ou sinceramente, costumam ser chamados de utopistas, ou talvez até, dependendo da natureza de seus sonhos, de românticos incuráveis.
Não creio pertencer a uma ou outra dessas categorias tribais, embora, por vezes, eu mesmo também me surpreenda inventando coisas impossíveis de se materializarem neste nosso mundinho ordinário. Fingindo ser realista – o que só sou 50% do tempo, assumindo no que restar dele uma infinidade de outras posturas, aliás até acima do limite teórico de 100% – não vou tratar aqui das coisas impossíveis ou totalmente improváveis, a despeito de ter enquadrado este minitratado no bloco das improbabilidades.
Pretendo, antes, tratar das “improbabilidades prováveis”, ou pelo menos daquelas plausíveis, ou seja, daquelas que mesmo sendo aparentemente impossíveis de acontecer, por vezes aparecem no nosso caminho e tropeçamos com elas, geralmente de modo inesperado. Assim, a despeito da aparente contradição, creio enquadrar-me perfeitamente no “caos normal” do mundo em que vivemos, feito de necessidades, de um lado, e de acasos, do outro.
Adotando esse tipo de abordagem num minitratado aparentemente sério – mas esta série apresenta também algumas surpresas – tenho consciência de que já estou adentrando, de fato, no campo das probabilidades, uma área coberta por refinadas teorias matemáticas e por especulações probabilísticas das mais sérias, justamente. Não pretendo, porém, abordar essas improbabilidades prováveis pelo lado da ciência, da razão; esta será uma abordagem puramente impressionista, como costumam ser vários dos meus minitratados (e eu já fiz mais de três, como sabem os meus poucos leitores).
Não vou, portanto, oferecer cálculos pascalianos, ou equações à maneira de Laplace, sobre as “minhas” (im)probabilidades, mas simplesmente inscrever-me, temporariamente, numa daquelas duas tribos antes desdenhadas. Não que eu seja um utopista, adepto de soluções utópicas para os problemas sociais ou individuais, e que daí me tenha convertido num romântico incurável. Consideremos este minitratado como uma espécie de licença poética, por assim dizer.
Quais seriam, então, as improbabilidades prováveis ou plausíveis, suscetíveis de serem enquadradas nos cânones pouco rígidos destes meus minitratados? Elas são, justamente, aquelas “coisas” que, por mais impossíveis que apareçam, nos esforçamos por atingir ou realizar; são aquelas que merecem todo o nosso empenho, recolhem todo o engenho e arte de nossas humildes capacidades humanas; são também aquelas que respondem a um ideal mais elevado da vida, que contemplam, justamente, todo esse oceano de improbabilidades com pelo menos um ou duas gotículas de probabilidades desejáveis. Nesse caso, minha “teoria” das improbabilidades prováveis jamais trabalha com a teoria dos grandes números; apenas com os pequenos números das escolhas pessoais e dos sonhos individuais.
Todos aqueles que, como eu, pautam sua postura frente ao mundo pelas leis da razão, todos os que somos agnósticos, céticos, ou simplesmente materialistas – o que absolutamente implica ser fatalista ou determinista – aceitamos o princípio irrecorrível da flecha do tempo, nos conformamos ao caráter “irrepetível” da história. Mesmo quando se costuma retomar a famosa frase sobre a “repetência” da História – geralmente com H maiúsculo, e acompanhada daquele lugar comum muito abusado sobre a tragédia e a farsa – pode-se afirmar, com certeza, que as águas de um rio não voltam jamais a passar pelo mesmo lugar.
Todos temos consciência de que nunca conseguiremos reproduzir fielmente, como da primeira vez, aquele estado de felicidade quase absoluta que decorreu da descoberta do primeiro amor, aquela certeza de amar e ser amado, um êxtase derivado do sentimento puro da reciprocidade no afeto, mas que depois foi vencido pelas trapaças da sorte e se perdeu nas brumas do tempo para nunca mais voltar. Acreditar que o nirvana possa voltar, sabemos, é uma das situações mais improváveis que podem ocorrer.
E, no entanto, queremos acreditar que o retorno dessa condição é algo totalmente plausível, quase provável, que se pretende certo e verdadeiro como uma rocha. O que custa acreditar nesse tipo de sonho induzido, mesmo correndo o risco de ser enquadrado na profissão pouco respeitada de utopista profissional ou de cair naquele estado catatônico dos românticos incuráveis? O que fazer quando até os materialistas de carteirinha proclamam que “sonhar é preciso”? O que estamos fazendo, justamente, é tentar tornar certas improbabilidades prováveis.
Isso é próprio da espécie humana, cheia de inventores malucos, de poetas sonhadores, de cientistas devotados às causas mais bizarras da humanidade, de literatos geniais produzindo obras primas ab initio, e até simples escrevinhadores, como um que conheço, que perdem o seu tempo e o dos leitores sujando papel com coisas improváveis e sonhos impossíveis. Somos incuráveis, de fato, nessa busca contínua da felicidade perfeita, do amor insuperável (e eterno), da realização plena de nossas possibilidades e até de nossos desejos.
Com todo respeito pela perfeição matemática dos cálculos probabilísticos, sempre devemos introduzir um pouco de teoria quântica naquelas coisas que costumam ser consideradas improváveis ou impossíveis. Assim, portanto, como explica a teoria dos quanta, uma coisa pode estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo, ou então se trata daquela coisa de se ter dois corpos ocupando o mesmo lugar no espaço (vocês procurem na Wikipédia). Da mesma forma, sem ser quântico, eu também acho que as improbabilidades, por mais “duras” que possam ser, podem se tornar prováveis, ou possíveis, num passe de mágica (sobretudo a partir de um teclado próximo...).
Não me perguntem como, sob quais condições ou a propósito do quê, exatamente. Cada um escreva no seu caderninho de deveres e desejos as suas preferências, pagando, se desejar, algum copyright para esta minha teoria das “improbabilidades prováveis”. Na verdade, não vou patenteá-la, sequer registrar copyright; vai ficar como “trade secret”, como no caso da Coca-Cola (embora com um pouco menos de sucesso, até aqui). O que eu sei é que já tenho meu caderninho de desejos (este no qual redigi estas notas numa viagem aérea) e nele vou registrando minhas improbabilidades prováveis, esperando que algum dia, como na conhecida canção, all my dreams come true...
Será provável, pelo menos possível? Não tenho certeza, nem condições de defender a hipótese, mas vou, desde já, formular duas possibilidades retiradas de um caderno virtual e que há muito aguardam o devido registro formal: pretendo – isso antes de reencarnar como diretor da Library of Congress – terminar de ler todos os livros de minhas duas bibliotecas, o que é teoricamente improvável, mas não impossível; pretendo também – mas este desejo já não é tão improvável quanto o anterior – continuar escrevendo minitratados sobre perfeitas inutilidades históricas e sociais. Não tem importância: sempre perdemos tempo na vida com alguma coisa...
Fiquem, pois, com esta inutilidade, e esperem pela próxima...

Em vôo, São Paulo-Chicago, 16-17/03/2011.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Minitratados sobre as grandes questoes da humanidade: apenas deixando de ser serio, por uma vez

Recebo, de vez em quando, algum comentário sobre meus posts menos sérios, digamos assim.
Por posts menos sérios eu quero indicar aqueles que não têm nenhum outro objetivo senão o de me distrair um pouco, saindo daqueles textos prolixos -- e por vezes chatos -- que costumo escrever, para adentrar no terreno do "divertissement".
Isso acontece quando deparo com alguma palavra, ou situação -- pode ser um simples ponto de exclamação, bem ou mal colocado (não importa agora) -- que me faz refletir sobre os imponderáveis da existência humana e sobre os mais graves problemas que assolam a humanidade.
Enfim, coisas como os desencontros, os subterfúgios, as "dérobades" -- preciso encontrar o equivalente exato, em Português, dessa palavra francesa; alguém me ajude, por favor -- mas também podem ser simples regras ou normas gramaticais, como as reticências e as entrelinhas.
A vida já é bastante complicada como ela é: os meus minitratados têm, precisamente, a intenção de fazê-la ainda mais complicada, ao discorrer de maneira pedante sobre problemas simples.
Mas, pelo menos, eu me divirto assim...
Abaixo, uma relação dos minitratados produzidos até agora, sem transcrição completa, mas com os links para sua leitura integral.
Ainda tenho outros no pipeline, mas aceito sugestões para novos minitratados.
Só uma condição: eles não podem ser sobre nenhum problema realmente importante para a humanidade.
Para isso já temos revistas, jornais e livros em número suficiente.
Apenas divertissement, lembrem-se...
Paulo Roberto de Almeida

Série dos minitratados (so far...)

1) Minitratado das reticências:
Pouca gente dotada de uma certa familiaridade com a palavra escrita consegue atribuir real importância às reticências, inclusive este cidadão que aqui escreve. Quero falar das reticências stricto sensu, isto é, os famosos três pontinhos ao final de alguma frase ou expressão...
Ler a suite deste minitratado neste link.

2) Minitratado das interrogações:
Interrogantes são inerentes à espécie humana, e talvez mesmo a certos primatas. Determinadas escolhas, ou caminhos, nos levam a uma situação de melhor conforto material ou de maior segurança pessoal, sem que, no entanto, saibamos, ou tenhamos certeza, ao início, que aquela opção selecionada é, de fato, a de melhor retorno ou benefício possível. Dúvidas, questionamentos, angústias, em face das possibilidades abertas em nossa existência, são inevitáveis em todas as etapas e circunstâncias da vida. Daí a interrogação, normalmente simbolizada pelo sinal sinuoso que colocamos ao final de certas frases: ?
Ler a suite deste minitratado neste link.

3) Minitratado das entrelinhas:
Tratados, em geral, costumam ser solenes, como convém aos grandes textos declaratórios, escritos em tom impessoal e devendo refletir alguma realidade objetiva, uma relação entre Estados...
Minitratados, por suposição, deveriam ser versões reduzidas de seus irmãos maiores...
Ler a suite deste minitratado neste link.

4) Minitratado da imaginação:
A imaginação não é um simples sentido natural, e sim um ato da vontade, embora não possamos impedir nossa própria consciência de imaginar “coisas”. Mas essas coisas imaginadas são instruídas, orientadas, criadas e administradas por nós, como se fossemos um diretor de cinema ou de teatro, quando eles dizem aos atores como o script deve ser realmente lido e interpretado.
Ler a suite deste minitratado neste link.

5) Minitratado da reencarnação:
Não, não quero falar da reencarnação "real", aquela na qual acreditam piamente hindus e tibetanos, pelo menos os religiosos, nisso seguindo, ao que parece, os antigos egípcios, que já não estão mais entre nós para contar como a sua, supostamente rica, experiência nessa matéria. Os primeiros são radicais, capazes até de interromper a construção de um templo por uma minhoca que apareceu no canteiro de obras; afinal, nunca se sabe: pode ser a mãe de alguém. Enfim, se os egípcios ainda nos assustam com múmias de Hollywood, os outros nunca provaram o que afirmam.
Ler a suite deste minitratado neste link.


OK, OK, já tem vários na fila, cada um mais desimportante que o outro; os mais estranhos passam na frente...
Paulo Roberto de Almeida

sexta-feira, 12 de março de 2010

1781) Brevissimo tratado da subserviencia - Paulo Roberto de Almeida


Brevíssimo Tratado da Subserviência

Paulo Roberto de Almeida
(um raro escrito dedicado a terceiros)

O subserviente é aquele que se dobra às conveniências de uma autoridade superior, mesmo quando essa autoridade atua manifestamente em detrimento de seus próprios interesses pessoais; o subserviente prefere submeter-se às inconveniências cometidas por aquela autoridade, e o faz de livre e espontânea vontade, ainda que de modo vergonhoso, a ter de corrigir, mesmo gentilmente, essa mesma autoridade. O subserviente, que também pode ser considerado um sabujo, no sentido estrito, não hesita em desmentir-se, a posteriori, negar declarações suas, previamente tornadas públicas, ou em afastar-se de posições anteriormente assumidas, ou defendidas historicamente, apenas para se conformar à vontade, muitas vezes irracional e inexplicável, dessa mesma autoridade superior. Obviamente, ele não seria subserviente sem essa degradação moral.
O subserviente profissional considera que sua própria sorte, sua sobrevivência funcional, assim como seu futuro destino estão indissoluvelmente ligados ao grau de subserviência máximo que ele conseguir expressar em favor de sua autoridade oficial. Ele pertence, de corpo e alma, quando não de coração e mente, a essa autoridade, à qual ele devota fidelidade canina e pela qual ele está disposto a sacrificar seu conforto pessoal, sua coerência moral (se é que dispõe de alguma) e até sua ética profissional, quando não sua consciência mais íntima (se existir, claro) em favor do bem estar de sua autoridade, tudo isso por escolha própria, não por imposição daquela autoridade. Sua sabujice dedicada é, assim, introjetada, a ponto que ele não mais distingue entre o que humanamente aceitável, e socialmente respeitável, e o que é subserviência pura, sem qualquer hesitação ou exame de consciência. Ele não seria um subserviente perfeito sem essa diminuição intelectual (se o termo se aplica).
O subserviente completo se antecipa, de certa forma, aos problemas que poderiam advir de alguma frase mal posta de sua autoridade. Em consequência de uma circunstância do gênero, ele constrói toda uma teoria justificadora das bobagens superiores com base numa suposta má compreensão por parte dos ouvintes ou interlocutores, imputando aos demais as legítimas dúvidas que estes possam ter em relação às inconveniências do chefe, o que o faz atribuir os equívocos de entendimento aos próprios questionadores. Um subserviente assim tão bem construído é algo raro, mas especialmente valorizado nas situações em que é preciso conter a autoridade numa gaiola de ferro, compatível com a dimensão das bobagens produzidas.
Não é fácil encontrar um subserviente perfeito. Existem muitos, claro, por propensão inata de caráter, mas nem sempre eles são selecionados para servir diretamente uma autoridade, embora alguns se esforcem bastante para conseguir uma tal distinção (se o termo se aplica). Geralmente, um subserviente é construído aos poucos, com a degradação gradual de caráter acompanhando os progressos da carreira, até o ponto em que a subserviência se converte em segunda natureza, algo assim indistinguível das características originais, ou construídas, do personagem em questão. Essa promiscuidade entre o Dr. Jeckyll e Mister Hyde passa então a não mais ser considerada uma alternância de personalidades, mas constitui-se em algo sólido, um bloco unificado que acompanha o novo personagem em toda e qualquer situação de subserviência prática (e as oportunidades são muitas, posto que o subserviente existe sempre em função de uma autoridade medíocre, cuja quantidade, infelizmente, parece se multiplicar ao ritmo da erosão de qualidade das autoridades públicas).
Talvez exista algum manual da subserviência, assim como existem muitos “Idiot’s Guide” para qualquer coisa humanamente concebível, mas não foi possível encontrar algum disponível no mercado, com essa abrangência teórica e essas pretensões práticas. Talvez algum subserviente despertado de sua letargia intelectual possa vir a conceber algum, o que seria útil para todo e qualquer candidato à carreira de sabujo profissional. Não se espera que ele o subscreva em seu próprio nome, a menos que suas deficiências morais e sua total falta de caráter o autorizem a continuar a defender as bobagens de “sua” autoridade, mesmo quando esta deixou de representar poder e prepotência. Afinal de contas, um bom subserviente tem um currículo a defender, mesmo quando este não é o que parece, ou aquele que é proclamado.
Shanghai, 12.03.2010