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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O euro: a moeda europeia (2002) - Paulo Roberto de Almeida

 O euro: a moeda europeia

 

Paulo Roberto de Almeida

pralmeida@mac.comwww.pralmeida.org

O presente texto constitui “leitura complementar” do

Capítulo 9 (“Impactos e desafios do processo de globalização”) de meu livro

Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002), pp. 179-184.

 

 

Em janeiro de 2002, após vários anos de preparação, o euro foi finalmente introduzido como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, isto é, uma área monetária composta por doze dos quinze países-membros da União Europeia que optaram por integrar a União Econômica e Monetária e funcionando sob um regime de regras unificadas coordenadas pelos ministros de finanças dos países integrantes e pelo Banco Central Europeu, com sede em Frankfurt, na Alemanha. O euro já tinha sido convertido, desde janeiro de 1999, em moeda oficial da UEM — então com onze países participantes — embora funcionando ainda sob forma escritural, mas já dotado de uma paridade única de câmbio em relação a terceiras moedas.

Sua inauguração representa, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu, desde então, à integração europeia.

Com efeito, ainda que não mencionado expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração europeia – o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Europeia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.

O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexequíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Europeia.

No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana. 

Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecu – European currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária e da moeda única europeia.

O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).

No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.

Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final desse ano, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, e no início de 1999 entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros (sob forma escritural).

A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a consequência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagensmicroeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).

O período de transição, que estendeu-se de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assistiu ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passaram a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passaram a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só podia ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passou a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro trimestre de 2002, ocorreu a substituição completa do meio circulante nos países integrantes da UEM, com a entrada em circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada das notas e das moedas nacionais, aqui incluída a Grécia, qualificada para ser admitida na zona monetária no decorrer de 2000. O mais tardar em 1º de julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.

Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até então marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de mais de 9 trilhões de dólares — algo similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (em 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração europeia. 

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. 

De fato, as crises enfrentadas pelos países membros do Mercosul abriram um debate em torno da criação de uma moeda única no bloco. Os primeiros passos na direção de um espaço monetário integrado no Mercosul foram dados em dezembro de 2000, com o anúncio de metas e mecanismos de um exercício de coordenação e de convergência macroeconômica, tais como os referentes à: i) variação da dívida fiscal líquida do setor público consolidado; ii) dívida líquida do setor público consolidado (deduzidas as reservas internacionais) sobre o PIB nominal; iii) inflação, com base nas estatísticas harmonizadas elaboradas pelo Grupo de Monitoramento Econômico.

As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.

 

 

Referências: 

A principal fonte de informação sobre o euro e as economias dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

Para a questão da moeda única no Mercosul, podem ser citados os seguintes trabalhos:

GIAMBIAGI, Fabio. “Uma proposta de unificação monetária dos países do Mercosul”, Revista de Economia Política, v. 17, nº 4, 1997, p. 5-30

––––. “A Moeda Comum como Base do Crescimento do Brasil e Argentina”, Revista do BNDES, V. 8, n. 16, dez 2001, p. 119-166

LAVAGNA, Roberto e GIAMBIAGI, Fábio. Hacia la creación de una moneda común: una propuesta de convergencia coordinada de políticas macroeconómicas en el Mercosur. Ensaios nº 06, BNDES, Macroeconomia, março de 1998

RIBEIRO, Maria de Fátima. “O Euro e as perspectivas de implantação de uma moeda única no Mercosul”, Revista de Direito Constitucional e Internacional, Ed. Revista dos Tribunais, nº 31, ano 8 abril-junho-2000, p. 9-26.

 

 

PRA: Washington, 879; 15/03/2002

domingo, 22 de novembro de 2020

O euro: a moeda europeia (2000); in: Enciclopédia de Direito Brasileiro (2002) - Paulo Roberto de Almeida

O euro: a moeda europeia

 

Paulo Roberto de Almeida

Washington, 14 janeiro 2000.

Publicado em Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2. volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional (Rio de Janeiro: Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), p. 214-219. Relação de Publicados n. 330.

 

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda sob forma escritural até o final de 2001 — de onze dos quinze países-membros da União Europeia, seguida de sua introdução efetiva, a partir de janeiro de 2002, como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, representam, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu desde então, à integração europeia.

Com efeito, ainda que não mencionada expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração europeia – o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Europeia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.

O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexequíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Europeia.

No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana. 

Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecu – European currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Europeia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária (UEM) e da moeda única europeia.

O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).

No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.

Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final de 1998, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, bem como entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros.

A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a consequência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagens microeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).

O período de transição, que vai de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assiste ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passam a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passam a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só pode ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passa a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro semestre de 2002, se terá a circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada progressiva das notas e das moedas nacionais. O mais tardar em 1º de julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.

Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo Deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de cerca de 9 trilhões de dólares — similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (a partir de 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração europeia. 

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.

Referência: A principal fonte de informação sobre o euro e as economias dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Preparado para a

Enciclopédia de Direito Brasileiro

sob a coordenação dos profs. Carlos Valder do Nascimento

e Geraldo Magela Alves (Editora Forense).

2º volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional.

[Washington, 719: 14.01.2000]

[Revisão, 719b: 30.09.2000]

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44555431/O_euro_a_moeda_europeia_2002_).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O euro aos 20 anos; ensaio PRA quando de sua criação (2000)

Quando o euro foi introduzido como moeda fiduciária – ou seja, em 1999, antes de sua introdução efetiva, como meio circulante, o que só ocorreu em 2002 – eu recebi um convite para fazer um verbete sobre o euro para uma Enciclopédia de Direito.
Agora que o euro já completou 20 anos, pode-se ler este meu ensaio com o olhar crítico do que deu certo e do que pode não dar certo. A integração tem muitos requerimentos e o da unificação monetária é um dos mais difíceis.
Eu provavelmente vou escrever um novo ensaio, com a experiência – êxitos e frustrações – das últimas duas décadas, e as falhas se devem mais a decisões políticas dos países membros do que a deficiências da própria moeda. Enquanto isso, vale ler o que eu escrevia no início de 2000, com uma pequena revisão alguns meses depois, apenas para contemplar a questão de uma eventual moeda comum no Mercosul, este sim uma grande frustração.
Mas, como no caso do euro, a culpa não é do Mercosul, e sim por causa de decisões políticas dos países membros.
Vamos reler e refletir.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de janeiro de 2019

O euro: a moeda europeia

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 719: 14/01/2000
In Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2º volume: Direito Comunitário, de Integração e Internacional
(Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; ISBN 85-309-0860-0), pp. 214-219.

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda sob forma escritural até o final de 2001 — de onze dos quinze países-membros da União Européia, seguida de sua introdução efetiva, a partir de janeiro de 2002, como meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, representam, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política que presidiu desde então, à integração européia.
Com efeito, ainda que não mencionada expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da integração européia – o Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário” estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade Européia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas etapas subsequentes.
O movimento “unificacionista” no campo monetário começa efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner de união monetária (de 1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos). Ambos foram tornados inexeqüíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e 1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de unificação das moedas nacionais da então Comunidade Européia.
No regime de livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e depois, como resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram, obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas mais “fracas” como a lira italiana.
Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum, instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura moeda comum, podendo-se considerar o ecuEuropean currency unit, até então um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Européia, de 1992, que dá os fundamentos jurídicos da união econômica e monetária (UEM) e da moeda única européia.
O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de Janeiro de 1999, viu o estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).
No decurso da segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos Estados. Os principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem sempre pôde ser alcançado.
Com uma avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que participariam do euro a partir de 1º de Janeiro seguinte. O Conselho Europeu de Bruxelas (Maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se qualificar em diversos critérios importantes. No final de 1998, foram fixadas irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, bem como entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados monetários e cambiais passaram a poder operar com euros.
A opção dos Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar representarão a conseqüência natural da afirmação ulterior do poder econômico da União Européia no plano internacional.
De fato, o euro confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração européia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).
No plano interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento na zona do euro. Suas vantagens microeconômicas também são facilmente demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal exercida por alguns Estados).
O período de transição, que vai de 1º de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assiste ao desenvolvimento de processos importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais agregados monetários e a emissões passam a ser de responsabilidade exclusiva do BCE, os mercados financeiros passam a operar em euros, ainda que do ponto de vista prático o euro só pode ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer pessoa passa a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa moeda). Finalmente, no primeiro semestre de 2002, se terá a circulação das notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada progressiva das notas e das moedas nacionais. O mais tardar em 1º de Julho de 2002 se assistirá à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à UEM.
Do ponto de vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Européia.
A importância da União Européia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de cerca de 9 trilhões de dólares — similar ao norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.
O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Européia.
O comportamento de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (a partir de 2001) e da campanha favorável conduzida pelo big business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de “marcha lenta” no processo de integração européia.
Que ensinamentos ou que conseqüências poderiam ser extraídos a partir da experiência européia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.
Referência: A principal fonte de informação sobre o euro e as economia dos países membros é a página do banco Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.

Paulo Roberto de Almeida
 [Washington, 719: 14.01.2000]

[Revisão, 719b: 30.09.2000]