O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador novos bárbaros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador novos bárbaros. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 26 de abril de 2022

A DESTRUIÇÃO do Mercosul pelos novos bárbaros: artigo-denúncia do embaixador Rubens Barbosa (OESP)

 O governo do Bozo-Guedes tem sabotado o Mercosul na maior inconsciência do que ele representa para o Brasil, como denunciado pelo embaixador Rubens Barbosa (abaixo, em um IMPORTANTE ARTIGO, que recomendo ler).

Já num primeiro e único encontro que tive com Paulo Guedes, no primeiro semestre de 2018, constatei que ele não tinha a menor ideia do que era o Mercosul, e tampouco sabia qualquer coisa sobre política comercial. Tive de interrompê-lo imediatamente para esclarecer o que era o Mercosul, assim como contestar sua postura de apoio às medidas de Trump no terreno do sistema multilateral de comércio. Conclui que seria um desastre nessa área e tentei demonstrar a importância do Mercosul no plano microeconômico, senão no macroeconômico também. Não adiantou: os novos bárbaros estão destruindo tudo o que existia de governos anteriores. Paulo Roberto de Almeida MERCOSUL: PROJETO ESTRATÉGICO Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo, 26/04/2022 Nos últimos quatro anos, o Mercosul foi relegado a um perigoso segundo plano. Desde a campanha eleitoral, Paulo Guedes mostrou desinteresse pelo bloco regional integrado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Já como ministro da economia, declarou que o subgrupo não seria prioridade para o novo governo com a justificativa de que era restritivo e deixava o Brasil prisioneiro de alianças ideológicas. Mais recentemente, disse que o Mercosul não estava correspondendo às expectativas e que o Brasil iria levar adiante planos para a modernização do grupo e que quem não estivesse de acordo que se retirasse. Nessa linha, o Brasil propôs a redução de 20% da Tarifa Externa Comum (TEC) com forte oposição da Argentina e acabou reduzindo unilateralmente 10% da TEC para uma lista de 87% de produtos, mantendo fora o setor automotriz e o sucroalcoleiro. O Uruguai, no mesmo diapasão, propôs a flexibilização das negociações para permitir que os países membros pudessem avançar individualmente entendimentos para a conclusão de acordos comerciais, com o apoio inicial de Paulo Guedes. Agora, surge a informação de que à revelia do Mercosul, o Brasil quer fazer novo corte na TEC. A ideia gerada no Ministério da Economia é reduzir em mais 10% as alíquotas do imposto de importação de grande parte dos produtos transacionados com países de fora do bloco, sem o acordo dos parceiros do bloco, com a justificativa, sem sentido para a maioria dos produtos, de “proteção da vida e da saúde das pessoas”, no dizer oficial. Na realidade, o fim é político e tem a ver com as eleições de outubro: busca-se reduzir o preço dos produtos para tentar conter a subida da inflação, agravada pelas consequências da guerra na Ucrânia. A medida será inócua, mas trará mais desgaste para o Brasil. Para quem não sabe, o Tratado de Assunção prevê que as medidas de política comercial propostas só podem ser implementadas com o consenso de todos os países membros e que a coordenação das negociações cabe aos ministérios das relações exteriores. É verdade que o Itamaraty, nos últimos anos, vem perdendo competência em áreas que tradicionalmente coordenava, como as negociações comerciais e meio ambiente, por exemplo, mas não consta que o Tratado que criou o Mercosul tenha sido alterado. A ação isolada do Ministério da Economia deve estar causando sério incomodo ao Itamaraty não só pela descoordenação interna e inclusive com o setor privado, pelo descumprimento do Tratado de Assunção, mas sobretudo pelo fato das autoridades econômicas desconsiderarem os aspectos estratégicos do Mercosul para o Brasil. O Mercosul não é apenas um acordo econômico e comercial, mas tem uma visão de médio e longo prazo importante para os interesses do setor privado, em especial do industrial. O Mercosul passa, nos dias que correm, por um período de grandes turbulências e dificuldades. Embora abalado e sem perspectiva, a vontade política que impulsionou a criação do Mercosul em 1991 ainda está viva. O Mercosul, assim, não vai desaparecer pois nenhum dos países membros assumirá o ônus político de pedir sua dissolução. A questão é saber como o Mercosul poderá, nos próximos anos, servir aos interesses de cada um de seus membros, se permanecerá irrelevante ou se transformará em uma alavanca para o progresso da região. No caso do Brasil, o descaso com o Mercosul não ocorre por acaso. Ele se insere no quase total abandono das relações do Brasil na América do Sul. Considerações ideológicas e falta de uma visão pragmática a respeito dos acontecimentos nos últimos anos no tocante ao lugar do Brasil no mundo, na prática, isolaram o país do seu entorno geográfico, uma de suas prioridades estratégicas, segundo a Política Nacional de Defesa. Algumas decisões podem ser vistas mesmo como contrárias ao interesse brasileiro, como o fim da UNASUL. A guerra da Rússia na Ucrânia inaugura uma nova era na geopolítica e na geoeconomia global. A tendência é o mundo ficar dividido entre o Ocidente e a Eurásia (China e Rússia). O governo dos EUA já está definindo políticas comerciais restritivas para a China e para “países pouco amigos”, que mantiverem comércio e relações com o outro lado. O fortalecimento do regionalismo deverá ser uma das consequências da guerra. Com a redução do ritmo da globalização e o novo ímpeto de medidas restritivas e protecionistas, em decorrência de medidas nacionalistas e de segurança, o Brasil deveria formular uma política comercial ativa, inclusive com o estabelecimento de cadeias produtivas regionais e respeito ao meio ambiente. A América do Sul já forma uma área de livre comércio com pouco aproveitamento de parte das empresas nacionais. A crescente presença da China na Américas do Sul em concorrência com produtos brasileiros e o pouco interesse de empresas norte-americanas em desenvolver negócios e investir na região são outros fatores que uma política externa do novo governo deverá levar em conta. Espera-se que o governo que vai se iniciar em 1 de janeiro de 2023 leve em consideração essa realidade e coloque o Mercosul novamente como um projeto de grande valor estratégico e, por isso, uma prioridade para os interesses brasileiros, sob a coordenação do Itamaraty. Rubens Barbosa, primeiro coordenador nacional do Mercosul e presidente do IRICE

terça-feira, 4 de maio de 2021

Os novos bárbaros e a falsa defesa da soberania nacional - Paulo Roberto de Almeida

 Os novos bárbaros e a falsa defesa da soberania nacional

 

Paulo Roberto de Almeida

Comentários esparsos sobre fraudes nas redes sociais


 

Circulou pelas redes sociais uma “notícia” sobre uma suposta interferência do embaixador da China no caso de um assessor fundamentalista bolsolavista que está arriscado de demissão, pois que participou, com o Bananinha 03 e o infeliz ex-chanceler acidental, da destruição da diplomacia brasileira, desde o final de 2018 até o início de 2019. Postei a manchete, ainda que me pareceu suspeita, apenas me permitindo ironizar como sendo a segunda “bola na caçapa”, pois é evidente que a primeira, por parte de um coletivo de senadores, também foi causada pelos potenciais prejuízos causados ao agronegócio brasileiro em vista da postura ideológica de trio aloprado. A tropa dos “novos bárbaros”, que infesta de modo caoticamente organizado as redes sociais, pretendeu fornecer lições de “soberanismo explícito”, às quais respondi com uma série de comentários cumulativamente dispersos (isto é, sem um ordenamento lógico).

Permito-me simplesmente alinhar esses comentários, sem qualquer objetivo de apresentar um quadro linear no que se refere às denúncias que cabe fazer contra os aloprados da bolsodiplomacia, que deliberada ou inconscientemente, alienaram a soberania brasileira a uma potência estrangeira, ou mais especificamente a um dirigente americano, já devidamente votado para fora do governo da maior democracia ocidental.

 

Os “novos bárbaros” continuam agressivamente atacando as bases do conhecimento científico e das evidências empíricas, patrocinando um ataque geral à racionalidade ou ao simples bom senso. Eles estão em todas as frentes, na área médica, nas políticas setoriais, na diplomacia (até 29/03).

Bolsonaristas enchem a boca com seu soberanismo abstrato quando cometeram traição à pátria, ao submeter cada uma das grandes decisões nacionais em comércio internacional, nas votações da ONU, nas relações com outros países, aos interesses dos EUA, atuando como vassalos de um presidente megalomaníaco. 

Como considerar atos de soberania decisões de política externa totalmente sujeitas ao escrutínio estrangeiro como fizeram o Bananinha 03, o Robespirralho e o capacho do chanceler acidental, ao prestar, várias vezes, vassalagem a Trump? Eles isolaram o Brasil do mundo, um pária internacional.

Vergonha dos bolsolavistas ignorantes ao abandonar qualquer defesa do interesse nacional em troca da subordinação às vontades do Trump; não trouxeram nenhuma vantagem ao Brasil, só derrotas: conseguiram nos desentender com TODOS os grandes parceiros do país; um fracasso completo!

Quem passeou com bandeiras de duas potências estrangeiras, pedindo a imbecilidade da “intervenção militar constitucional”? Quem seguiu vergonhosamente cada determinação do Departamento de Estado, até acertar com eles o discurso na AGNU? Não têm vergonha da submissão, de serem capachos?

Aliás, quem foi mesmo que falou “I love you Trump”? E quem foi aquele discípulo do Rasputin de Subúrbio que mandou comprar etanol e trigo americano para ajudar numa certa eleição? E que renunciou a ter presidente do BID brasileiro para eleger um sub do sub do Trump?

Aliás, quem disse que o Brasil já virou um “protetorado chinês” foi aquele guru destrambelhado da Virgínia. Os bolsolavetes debiloides que cospem fogo por aqui não vão acusar o desgoverno atual de rendição a uma potência estrangeira? Por algumas toneladas de soja?

Esses caras não souberam das instruções do patético ex-chanceler acidental para que a China retirasse seu embaixador de Brasília; os chineses devem estar rindo até hoje. Vão lhe oferecer um curso gratuito de mandarim num Instituto Confúcio, a CIA da ditadura chinesa. Vai fazer?

Nos bons velhos tempos em que eu criticava o lulopetismo diplomático, os petistas achavam que eu estava a serviço da CIA. Agora, os idiotas que defendem o bolsolavismo diplomático querem saber quanto a China me paga. E eu ainda continuo usando carro velho, comprando seminovos.

Os exaltados com a soberania não têm nada a dizer do “I love you Trump”; da obediência às “instruções” de Trump em todas as circunstâncias, de uma base militar americana no Brasil à aventura eleitoreira na Venezuela, etanol americano, submissão automática ao Departamento de Estado?

Finalmente, quem acha que o Trump iria salvar o Ocidente? Só mesmo um idiota bolsolavista totalmente submisso aos interesses americanos e ao Bananinha 03. Teve de se desdizer no seu “balanço” mentiroso, ao pretender não ter grudado nos EUA e hostilizado a China! 

A própria oposição ideológica ao nosso maior parceiro comercial – um dos motivos da queda do chanceler acidental – já é uma prova evidente da submissão total à paranoia americana, não uma defesa dos interesses nacionais. Bolsolavistas entreguistas: quem mandou seus dirigentes alienarem a soberania nacional a uma potência estrangeira, ficando a ela submissos até a derrota final do Grande Mentecapto? Por que os militares não os derrubaram como traidores da pátria que foram? Covardes, uns e outros?

Nada a dizer sobre certos aspones do alto mandarinato que poderiam facilmente ser enquadrados na categoria de agentes de uma potência estrangeira? Os arquivos a desvelar um dia vão confirmar a suspeita, aliás evidente desde já prima facie. Basta ler certas “notas” diplomáticas...

O Gabinete do Ódio já foi melhor na preparação das ofensivas nas redes; o pessoal anda destreinado; não combinam antes como é que vão atacar um contrarianista. Precisam voltar para um supletivo para aprenderem pelo menos a escrever: envergonham até a mãe com esse linguajar chulo! Tem muito nervosinho nestas paragens, defendendo causas que estavam em voga nos anos 1930 em certos países (o que eles provavelmente ignoram). Alguns até ficam pateticamente indignados quando seus “argumentos” são confrontados: não esperavam ser ridicularizados. “Menos” pessoal!

Quanto menos os caras têm algo de inteligente para oferecer ao debate, mais eles se encrespam com o que não combina com suas ideias fixas e suas obsessões geopolíticas e ideológicas. Deveriam tomar chá de camomila e se dedicar mais à sua própria ilustração.

 

Meu lema preferido: Nulla dies sine linea, segundo Plínio, isto é, nenhum dia sem escrever. O que é bem diferente de nenhum dia sem uma mentira grosseira, num “portugueis” estropiado, sempre atacando inimigos imaginários, e contribuindo para aumentar o sofrimento da nação, quando não mortos!

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4 maio 2021

 

sábado, 1 de maio de 2021

Meu próximo livro: O Itamaraty sob ataque, 2018-2021: A destruição da diplomacia pelo bolsolavismo - Paulo Roberto de Almeida

Meu próximo livro: 



O Itamaraty sob ataque, 2018-2021

A destruição da diplomacia pelo bolsolavismo 

 

 

Prefácio

 

1. Ascensão e queda do bolsolavismo diplomático, 2018-2021

1.1. O ataque dos novos bárbaros ao Itamaraty

1.2. Novamente no limbo, analisando o bolsolavismo diplomático

1.3. A patética carta de demissão do chanceler acidental

 

2. Degradação democrática e demolição diplomática

2.1. O destino da nação: declínio ou renovação da democracia brasileira?

2.2. A História não se repete, nem mesmo como farsa

2.3. O que fazer na ausência de um estadista circunstancial?

2.4. Uma inédita ruptura nos padrões tradicionais da política externa 

2.5. O alinhamento automático ao presidente Trump: um escândalo temporário

2.6. A hostilidade em relação à China como critério da identidade comum

2.7. O isolamento na esfera internacional e no contexto regional

2.8. O caso da tecnologia 5G: prejuízos reais em qualquer hipótese

2.9. O caso da Amazônia: uma extraordinária vocação para o erro

2.10. A postura no caso da pandemia da COVID: negacionismo em toda a linha

2.11. Uma nova Idade das Trevas?

 

3. Submissão ao Império e relações com os vizinhos regionais

3.1. A importância da descontinuidade, em circunstâncias inéditas

3.2. A importância histórica das relações regionais e hemisféricas

3.3. Da aliança não escrita aos impasses políticos e econômicos

3.4. Bolsonaro e uma inédita relação de alinhamento sem barganha

3.5. A desintegração regional e o desalinhamento com os vizinhos 

3.6. Qual o futuro da integração, do Mercosul, da política externa brasileira?

 

4. Um novo animal na paisagem: o globalismo e os seus descontentes

4.1. O espectro do globalismo: a emergência da irracionalidade oficial

4.2. Dos antiglobalizadores aos antiglobalistas?

4.3. À la recherche du globalisme perdu

4.4. Os nacionalismos canhestros: genitores do antiglobalismo irracional

 

5. Um “balanço” desequilibrado: a despedida do chanceler acidental

5.1. Ascensão e queda de um capacho exemplar

5.2. O “balanço” e o seu oposto: mentiras, falácias e falcatruas 

5.3. A justificativa prolixa e a declaração de política objetiva

 

6. Quo vadis, Brasil? 

6.1. Estaríamos enfrentando uma fase tendencial de declínio?

6.2. O que é verdadeiramente estratégico na vida da nação? 

6.3. Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer?

6.4. Um “exército de ocupação” interno? 

6.5. Sobre os descaminhos do Brasil atual

 

Apêndices

Sumários dos livros do ciclo do bolsolavismo diplomático

(1) Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty

(2) O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira

(3) Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira

(4) O Itamaraty sob ataque, 2018-2021: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo

(5) Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira

 

Livros publicados pelo autor

Nota sobre o autor 


Este livro é dedicado a todos os meus colegas do corpo da diplomacia profissional do Serviço Exterior brasileiro, que tiveram de suportar, durante dois anos e alguns meses, a mais esquizofrênica das diplomacias imagináveis, seja na já longa trajetória da política externa brasileira, desde a Independência, seja no plano da diplomacia mundial, absolutamente sem precedentes em nossa história (e, espera-se, sem sucedâneas), ou na comparação com qualquer outra diplomacia nacional, no contexto regional ou em âmbito mundial. A todos esses colegas, de todas as classes, condições e opiniões sobre a substância do que deveria ser a política externa brasileira, meus cumprimentos pela resiliência, pela persistência e pela resistência, ainda que de maneira silenciosa e discreta. Creio ter interpretado o sentimento da maioria deles, mesmo quando discordaram de minha postura e de meu posicionamento em face do horror que vivemos desde o final de 2018 até o início de 2021. 


Prefácio ao livro 

O Itamaraty sob ataque, 2018-2021: 

a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo

  

Paulo Roberto de Almeida 

 

Pretendo que este seja o meu “último” livro, não absolutamente, mas relativamente, e isto a dois títulos: ele tem o objetivo de concluir a série dos livros de debate, ou de “combate”, do ciclo que chamei de “diplomacia bolsolavista”, iniciada de maneira improvisada e que assim continuou por mais quatro exemplares da série, mas tendo sido retirado, para tornar-se obra independente, de conjuntura, de um outro livro que já estava em preparação, e que comporta igualmente ensaios de natureza mais conceitual, ou estrutural; esse outro deve ser publicado em formato impresso, ao contrário deste, que segue a tendência adotada pelos demais deste ciclo “que não deveria existir”, que o foram em formato digital.

Explico rapidamente o que já está exposto no primeiro capítulo desta obra, que retraça a própria trajetória do bolsolavismo diplomático, um experimento alucinante e alucinado de bizarrices no âmbito da política externa, e que durou do início do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, até o mês de março de 2021, quando o chanceler acidental é levado a se demitir, por absoluta falta de condições políticas para continuar no cargo, mesmo dispondo de todo o apoio do presidente (e contra a sua vontade): o que ocorreu, de fato, foi um veto praticamente unânime dos senadores à sua continuidade na função, sob ameaça de paralisia dos trâmites legislativos interessando ao Itamaraty. 

Na verdade, esse período pode se estendido para trás e para frente, no seguinte sentido: os preparativos para “revolucionar” a diplomacia e a política externa do Brasil começaram bem antes, em articulações no seio de um grupo restrito de amadores (de fato, ineptos completos) em temas de política externa, de relações exteriores do Brasil e de política internacional, em geral, que tinham a real intenção de alterar as bases fundamentais de atuação das relações externas do Brasil com base em concepções simplórias, em teorias conspiratórias, em ideologias de extrema-direita, ou mais propriamente reacionárias, que se vinculavam à visão do mundo de ultra-conservadores dos Estados Unidos e, mais especialmente, ao anticomunismo primário e exacerbado do polemista que passa por guru presidencial, Olavo de Carvalho; esse pretenso intelectual cercou-se de um pequeno grupo de fieis devotos, alguns até fanáticos de seu fundamentalismo anticomunista, passando a preparar o que eu chamei de “assalto ao Itamaraty” desde 2017, quando ganharam a adesão de alguns diplomatas profissionais, com articulações mais efetivas no decorrer de 2018, quando o adesista oportunista passou a trabalhar de modo intenso, ainda que clandestinamente, em prol do candidato vencedor nas eleições de outubro desse ano. Imediatamente após a vitória do candidato de extrema-direita, o chanceler designado passou a atacar de forma vergonhosa o Itamaraty e os diplomatas profissionais, como se todos tivessem sido coniventes com o “marxismo cultural”, com o lulopetismo e outros desvios esquerdistas, e até mesmo progressistas, na visão dos alucinados. 

Mas o período também pode ser estendido para a frente, ou seja, sem um corte definitivo na demissão do chanceler acidental, em 29 de março de 2021, na medida em que os responsáveis pelo “furacão” iniciado em 2018 continuam de certo modo no comando da política externa e detendo alavancas de atuação no próprio Itamaraty, o que assegura a sobrevivência, pelo menos parcial, de algumas concepções olavista ou “bolsonaristas” (as aspas se justificam pelo fato de que o próprio presidente tem demonstrado uma incapacidade notória para compreender o mundo exterior e de situar o Brasil nesse contexto). Trata-se de um quadro ainda preocupante, ainda que as “alucinações exteriores” do chanceler acidental não mais disponham da base operacional que lhe foi atribuída desde novembro de 2018; o personagem em questão pretende ainda continuar influenciado, senão a política externa, pelo menos um número indeterminado de seguidores, com o objetivo de manter o Brasil vinculado a essa visão do mundo ultra-conservadora.

Disse que este livro e todos os demais deste ciclo impropriamente chamado de “bolsolavismo diplomático” não deveriam existir pelo fato de que eles nunca integraram projetos definidos de trabalho, e estão de certo modo afastados de minhas concepções relativamente bem organizadas de produção intelectual: pesquisa, leituras extensas, inserção num planejamento de elaboração, redação sistemática de acordo a um esquema previamente estabelecido, culminando numa eventual publicação se por acaso encontram alguma editora complacente (embora eles tenham adotado a via mais fácil e acessível do e-book). Eles surgiram sempre como reação não planejada à obra de destruição que estava sendo conduzida não só no Itamaraty, mas contra o próprio Brasil, representada pela deformação completa de nossas tradições diplomáticas, assim como da própria política externa, num sentido prejudicial aos interesses nacionais, pois que respondendo unicamente a concepções equivocadas do mundo, sob a influência de ideologias esquizofrênicas. 

Foi assim que surgiu o primeiro, Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty, em meados de 2019, praticamente de improviso, feito com base em notas e comentários que passei a fazer ao contemplar – já “liberado” de qualquer função na Secretaria de Estado desde o início desse ano – as loucuras que vinham sendo perpetradas na (e contra uma) instituição das mais respeitadas na burocracia federal e até admirada por vizinhos e outros parceiros externos, dada a qualidade de seu capital humana. Para ser mais preciso, o que mais me angustiava não era tanto os ataques ao Itamaraty – conceito que adotei para título deste quarto livro do ciclo –, pois considero que a diplomacia profissional será perfeitamente capaz de recuperar sua alta qualidade no desempenho de suas funções, uma vez libertada dos “novos bárbaros” que a dominam temporariamente. O mais preocupante foi constatar o prejuízo real, ou potencial, aos interesses nacionais, em decorrência das ações, omissões e deformações que estavam sendo infringidas às políticas setoriais vinculadas à interface externa da ação do Estado (em comércio, em meio ambiente, em direitos humanos, em integração, enfim, um pouco em todas as vertentes da ação internacional do país). 

Ao início, se tinha a esperança de que pressões de militares, de representantes do agronegócio, dos interesses econômicos em geral, assim como da própria classe política, seriam capazes de corrigir, coagir, restringir, fazer retroceder as alucinações exteriores mais estapafúrdias, mas não foi o que ocorreu; ao contrário, recalcitrantes ou divergentes do governo foram sendo eliminados ou afastados e o Brasil parecia navegar satisfeito numa aliança com um punhado diminuto de “aliados” da direita conservadora, em especial, numa submissão vergonhosa ao dirigente bizarro do principal parceiro hemisférico. Estabeleceu-se uma virtual unanimidade na opinião pública contra uma política externa esquizofrênica, o que me levou a prosseguir no meu combate solitário contra a diplomacia “bolsolavista” (esse conceito define muito mal o verdadeiro caos que passou a vigorar na política externa brasileira e na ação de uma diplomacia isolada do mundo, dos interesses nacionais do Brasil e do próprio corpo profissional do Itamaraty). Dei prosseguimento, portanto, ao meu segundo volume do ciclo, O Itamaraty num labirinto de sombras (2020), assim como ao terceiro, Uma certa ideia do Itamaraty (2020), já focado num trabalho de reconstrução da política externa e de restauração da diplomacia profissional, um exercício que também tentei conduzir de modo discreto entre colegas de carreira, sem contudo obter as reações esperadas (já estávamos em meio à pandemia, quando o ritmo normal de trabalho ficou bastante alterado, tanto na Secretaria de Estado quanto nos postos no exterior). 

Todos esses livros, assim como um quinto (ainda em fase de publicação), têm seus sumários reproduzidos num dos apêndices da presente obra, e estão relativamente acessíveis aos interessados em plataformas de interação acadêmica ou no formato Kindle; a lista quase completa de meus livros figura num outro apêndice, assim como dezenas de ensaios, notas e artigos encontram-se livremente disponíveis em minhas ferramentas de comunicação social. Este é, portanto, o “último” livro de um ciclo que não deveria – salvo desastre maior – ter continuidade em meu planejamento normal de trabalhos, com diversos outros projetos parados em meu pipeline contínuo de produção intelectual. Salvo “necessidades” de alguma outra oportunidade de “combate político”, pretendo dedicar-me a trabalhos mais consistentes no plano conceitual, deixando de lado estes escritos que só emergiram em face de desafios inéditos em nossa trajetória diplomática. Com efeito, o que ocorreu no Brasil, e para a sua diplomacia profissional, entre o final de 2018 e o início de 2021, não tem precedentes em nossa história bissecular, e espera-se que não deixe um legado ou alguma semente dotada  das distorções registradas nesse insólito período. 

Este trabalho de resistência intelectual ao “ataque” conduzido contra o Itamaraty, e ao próprio Brasil, não foi isento de custos pessoais e funcionais, como sabem todos aqueles que acompanham minha produção intelectual e o meu mais recente ativismo (involuntário) nas redes de comunicação social, sempre com o objetivo de reagir aos despautérios e loucuras dos “novos bárbaros”. Coloquei essa missão de combate aos aloprados da “bolsodiplomacia” acima de meus interesses pessoais, pois que ainda me encontro no serviço ativo, embora sem qualquer função útil na instituição que é minha desde o período final do regime militar. 

Tal situação não é inédita, pois tenho certa experiência em ostracismos e estágios no limbo. Meu primeiro exílio, voluntário, ocorreu justamente durante a ditadura militar, quando completei minha formação acadêmica durante os anos de estudo intenso em universidades europeias. Depois, já na carreira, enfrentei algumas tribulações, pelo fato de nunca eximir de expressar meu pensamento, seja por escrito, seja diretamente em situações de processo decisório no desempenho de funções diplomáticas; mais impactante foi a longa “travessia no deserto” durante o período do lulopetismo diplomático, com o qual eu também mantinha minhas diferenças de visão diplomática e de prioridades na política externa. 

Aproveitei aquele período para escrever alguns livros, a partir do bom ambiente de estudos e pesquisas da biblioteca do Itamaraty, o que nada mais era do que a continuidade da prática de frequentar bibliotecas, livrarias e arquivos, que sempre mantive nos mais diferentes países e universidades. É o que eu estaria fazendo atualmente, não fosse a quarentena forçada da pandemia, o que aliás me levou a um acréscimo de produtividade no trabalho intelectual, tanto pelo maior tempo disponível para leituras e escritos, como em virtude da disseminação quase alucinantes das interações pelas vias das ferramentas de comunicação social, que multiplicaram extraordinariamente os apelos e incentivos a debates virtuais. Tais novas “metodologias” de comunicação vieram para ficar, mesmo depois de passada a pandemia.

Atualmente, estou planejando voltar aos meus trabalhos de pesquisa histórica e de reflexão comparativa sobre o processo de desenvolvimento brasileira no contexto mundial, mas estarei sempre atento às “surpresas” – de qualquer tipo – que surgirem na frente da diplomacia brasileira e de sua política externa, assim como totalmente disponível para missões temporárias ou designações formais para as quais possa ser indicado. Tendo passado quatro décadas de minha vida no acompanhamento ativo de nossas relações internacionais, tanto no plano do estudo como no terreno prático, tenho prevista a elaboração de mais algumas obras com certo sentido de permanência. Não é certamente o caso desta aqui, ou das demais deste ciclo, que responderam apenas a um desafio da conjuntura. A bem refletir, porém, uma reflexão ponderada sobre “sobressaltos” institucionais, terremotos políticos ou bizarrices eventuais, como os que enfrentamos na presente fase, sempre oferecerá matéria prima para mais alguma obra inserida em nossa trajetória histórica, ainda que o desejo de todos nós é o de que, assim como o experimento do bolsolavismo diplomático não encontra precedentes nesse itinerário, ele não tenha sucedâneos no futuro previsível.

Com isso, dou por temporariamente encerrado este ciclo de esgrima intelectual contra a malta dos “novos bárbaros”, prontificando-me a voltar sempre quando novos desafios surgirem no horizonte das possibilidades políticas de um país em franco processo de transição para novas configurações institucionais. Vale!

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3902, 1º  de maio de 2021

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Minha opinião sobre o quadro atual da desgovernança no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Constatando o óbvio sobre o atual estado de desgovernança no Brasil

Paulo Roberto de Almeida

O problema (um dos problemas) do bando de novos bárbaros que desgovernam o Brasil atualmente não é que eles sejam liberais, de direita, de extrema-direita, conservadores, reacionários, anacrônicos, ou qualquer outra coisa que se encaixe naquele terço final (à direita, evidentemente) do espectro político-ideológico que normalmente costuma dividir o leque das posturas políticas da esquerda à direita, passando obviamente pelo centro e pelas variações de uma ponta à outra do espectro (que vem da Revolução francesa, ou seja, já estava um pouquinho defasado para abrigar todos os matizes da vida política contemporânea).

Esse não é o maior problema, e se fosse só isso tampouco estariam resolvidos nossos problemas atuais de desgovernança no Brasil.

O problema é muito maior e infinitamente mais complicado de resolver ou de superar, pois consiste numa realidade mais prosaica e dificilmente reparável no curto prazo ou nestas duas gerações de novos bárbaros.

Esse problema grave consiste em que os novos bárbaros — eu me refiro à pequena tribo de aloprados que cercam o titular do cargo, familiares e poucos outros assessores mais chegados — são singularmente despreparados para os cargos que ocupam, pois são ignorantes crassos, são de uma burrice congênita, de uma estupidez tão monumental, e de uma arrogância tão fenomenal que os impedem de absorver novos insumos da realidade que os cerca, e que está inteiramente disponível nos meios de comunicação tradicionais, nessa grande mídia que eles tanto desprezam, pois que traz exatamente o oposto do que eles leem habitualmente, ou que eles próprios fabricam em suas bolhas de manipulações fraudulentas, nesse universo de deformações surreais nos quais vivem os representantes da espécie.

Esses alquimistas da ignorância não conseguem aprender com as boas leituras, com a experiência alheia, com a simples observação da realidade, pois que ficam trancados na gaiola de ferro das FakeNews, na célula hermética, inviolável, de sua própria estupidez.

Esta é a realidade. Mas tem outra, ainda mais preocupante: mais da metade, talvez a grande maioria da pequena minoria estável dos que os apoiam consiste em pessoas absolutamente iguais a eles, exatamente similares aos novos bárbaros em sua ignorância crassa e estupidez irremediável. Esta é, infelizmente, a realidade de boa parte do eleitorado brasileiro, assim como é a marca distintiva do eleitorado americano que elegeu aquele estupor de presidente.

Não seria um obstáculo insuperável para a substituição dos novos bárbaros por uma tribo um pouco mais inteligente de dirigentes, em todo caso mais aberta à absorção de novos conhecimentos, se a esquerda e o centro não estivessem tão divididos nos pequenos projetos sectários, exclusivos e excludentes, que os mantêm separados e num estado de concorrência predatória entre si. 

Aparentemente, cálculos mesquinhos e experimentos individualistas no centro, na esquerda e na direita vão preservar essa fragmentação da oposição aos novos bárbaros, o que talvez leve estes últimos à conquista de mais um mandato para a desgovernança do Brasil.

Mas a divisão das oposições é apenas o obstáculo menor à recomposição de uma frente unida contra a barbárie: o principal óbice é a INCAPACIDADE DE PENSAR CLARAMENTE, a dificuldade em estabelecer um diagnóstico mais adequado da realidade e, a partir daí, formular uma estratégia de reconquista de espaços junto ao eleitorado semi-ignorante. 

O fato é que as oposições não têm nada a propor ao “popolo grasso” — aos grandes capitalistas, os donos do dinheiro — e sobretudo ao “popolo minuto”, ao Zé Povinho, que constitui a maioria do eleitorado (desinformado obviamente).

Na ausência de propostas mais tentadoras, mais inteligentes, mais sedutoras, a tendência do eleitorado é a de ficar com o que já existe, com o que já é conhecido — inclusive porque massacrado por doses maciças de propaganda enganosa —, o que dificulta qualquer perspectiva de renovação.

Não sei se os marquetólogos políticos já constataram, se os especialistas em comunicações já repararam, pois fazem praticamente dois anos (talvez mais) que somos bombardeados diariamente, constantemente, incessantemente, embrutecedoramente, pela mesma descarga maciça, avassaladora, dominadora de notícias, anúncios e peças de propaganda, pela presença irritante do mesmo personagem, 24hs por dia, sete dias da semana, todos os dias do mês: não existe um dia sequer, talvez nem um mísero minuto em que estejamos livres dessa presença desagradável, desse sujeitinho asqueroso que é o protótipo mesmo dos novos bárbaros, a ignorância em pessoa, a estupidez encarnada, a burrice deslavada, o fulcro da desgovernança em formato de dirigente.

Sorry Brasil, se não trago boas notícias (e eu não trouxe todas as más notícias, por exemplo, sobre a mediocridade de certos assessores, mesmo alguns recheados de títulos) e só dispenso banhos de ducha gelada sobre essa diminuta parcela de pertencentes à reduzida bolha de acadêmicos que me leem. A realidade é dura, para o Brasil e os brasileiros, mas a grande maioria não se dedica a reflexões aprofundadas a esse respeito: o povinho miúdo só quer sobreviver, os donos do dinheiro só querem preservar o seu patrimônio — se possível ampliá-lo, a partir da estupidez e da fragilidade intrínseca dos novos bárbaros — e os meus pares estão, estamos, reduzidos à nossa bolha acadêmica tradicional. 

Não seremos o primeiro, nem o último país a entrar e a se manter numa longa decadência, permeada de retrocessos pontuais, mesmo em meio a certos avanços materiais. Mario de Andrade já dizia, um século atrás, que o progresso também é uma fatalidade.

Pois bem: avançaremos na senda do progresso material, ao mesmo tempo em que estaremos recuando espiritualmente, retrocedendo mentalmente, culturalmente.

Pelo menos, enquanto os novos bárbaros estiverem no poder.

Termino, dizendo que a maior parte da culpa pela desunião das oposições — mas não vou poder argumentar agora, neste texto já muito longo — e pela nova derrota das forças democráticas que certamente virá,  incumbe às esquerdas, como sempre sectárias e arrogantes. Não é o centro, pois o centro está onde sempre esteve, no centro, de modo oportunista ou até sensato. As esquerdas possuem a chave da superação dos atuais impasses brasileiros. Elas estarão à altura de suas responsabilidades? Não acredito; mas sobre isso me pronunciarei oportunamente.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 7/10/2020

sexta-feira, 10 de julho de 2020

A Barbárie chegou ao Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Dos extremismos políticos e das formas de prejudicar a nação

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: discussão pública; finalidade: exposição sobre a situação do Brasil]


O espectro político pós-1789 abriga as mais diferentes concepções sobre as formas de se conceber e organizar o Estado, a economia, a cultura, etc., geralmente indo da extrema-direita (reacionários radicais, tradicionalistas fundamentalistas) até a extrema-esquerda (revolucionários anarquistas, comunistas integrais), passando por todas as demais cores do leque, liberais clássicos, socialistas democráticos e outras.
Todas essas posturas são, em princípio, eleitoralmente legítimas, desde que respeitadas algumas normas fundamentais do jogo civilizatório: alternância no governo pelo voto popular, respeito a todas as liberdades democráticas, defesa dos direitos humanos, etc.
Esquerda e direita muito afastadas do liberalismo econômico — que significa ampla defesa da iniciativa privada, da abertura econômica, da liberalização comercial e do acolhimento sem restrições ao investimento estrangeiro, imigração e fluxos livres de capitais — tendem a ser nacionalistas e estatizantes, duas posturas igualmente nefastas ao crescimento econômico, ao desenvolvimento e à prosperidade social dos países.
O nacionalismo de esquerda tende a ser mais rastaquera, ao favorecer protecionismo comercial, as restrições ao investimento estrangeiro, e com isso bloqueia um ritmo mais pronunciado de crescimento e de empregos de qualidade para a população.
O nacionalismo de direita costuma ser mais agressivo, culturalmente canhestro, geralmente reacionário e ignorante. Pode ser racista, mas é distintamente xenófobo.
Ambos nacionalismos são patéticos e nefastos no plano econômico e até civilizatório, quando se tornam excludentes e especialmente estúpidos em sua introversão ignorante e limitadora.
Por isso sou, como já disse um filósofo espanhol, contra todas as pátrias, e decididamente globalizador, globalista e multilateralista.
Considero a atual postura estupidamente nacionalista do presente desgoverno do Brasil, assim como sua política externa antiglobalista e sua diplomacia medíocre e dotada de uma indigência mental nunca vista em toda a nossa história, como duas manifestações terrivelmente nefastas e regressivas do ponto de vista civilizatório, diminuindo tremendamente o Brasil aos olhos do mundo.
Este talvez seja o ponto mais baixo a que chegamos em quase dois séculos de vida independente. Não haverá muito a comemorar, praticamente nada, se chegarmos a setembro de 2022 com o mesmo bando de bárbaros ignorantes que ocupam atualmente o centro do poder. Trata-se de uma extrema-direita que sequer possui qualquer qualificação política ou doutrinal, puro barbarismo com pitadas (ou maciças doses, a ver) de criminalidade e banditismo rastaquera.
Nem sei como os altos escalões do nosso Estamento Burocrático — civil e militar —, assim como os respeitáveis representantes das elites econômicas aceitam conviver e transacionar com os bárbaros no poder: provavelmente porque todos eles estão interessados em ganhos privados e corporativos.
Essa gente — as elites em geral, algumas delas em particular — não possui os requisitos mínimos que possam ser identificados com a dignidade da nação. Consentem com o já visível afundamento do país, com o rebaixamento das instituições de Estado, com a mediocrização da cultura, com a deterioração da imagem do Brasil no mundo. Acho que nunca vivemos, em nossa trajetória independente, momentos tão sombrios na vida da nação.
Não me lembro de ter contemplado, da segunda metade do século XX para cá, um quadro de anomia tão grave na história do Brasil.
Gostaria de poder deixar, em 2022, um testemunho da vitalidade da produção intelectual em 200 anos de trajetória nacional. Temo ter de contemplar apenas escombros, como uma espécie de Gibbon em face das ruínas de Roma, ou na posição dos mandarins da corte imperial chinesa ante os saques das tropas ocidentais no Palácio de Verão, ou ainda da corte de Bizâncio contemplando a fúria dos cruzados na marcha para Jerusalém.
Episódios insanos de destruição não são raros na história da Humanidade. O Brasil ainda não tinha sido apresentado a nenhum: talvez seja o caso agora, sob os pés de uma extrema-direita barbárica.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de julho de 2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Meu artigo sobre o novo patrimonialismo estatal no Brasil, desta vez sob o comando dos novos bárbaros, visando inclusive o Itamaraty, que precisa ser preservado de sua sanha destruidora; no Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr).


O patrimonialismo estatal e os novos bárbaros

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: discussão de um fenômeno permanente; finalidade: debate público]
O Estado da Arte, O Estado de S. Paulo (19/06/2020; link: https://t.co/0pf41nF0sr?amp=1).


O patrimonialismo, nosso velho conhecido, tem, evidentemente, um longo passado na história do Brasil. Provavelmente, ele terá também um brilhante futuro pelos anos à frente. É o que se constata, em todo caso, por meio das medidas governamentais do “novo Brasil” dos bolsolavistas, que desde já estão identificados à segunda parte do título deste artigo. Eles são os novos bárbaros, pois estão deliberadamente empenhados na destruição de muito do que existe atualmente no Brasil, no plano institucional, segundo se pode julgar pelas palavras e ações do próprio presidente, que é quem comanda, de fato, esses novos bárbaros.
Como devidamente estudado nas obras magistrais do maior sociólogo do século XX, Max Weber, o patrimonialismo é inerente às sociedades tradicionais, e esteve representado em todas as épocas e em quaisquer circunstâncias nas formações políticas que não puderam ainda passar a formas mais elaboradas de organização social e estatal, aquelas compreendidas no universo institucional do que ele chamou de administração racional-legal. Aliás, se por acaso Weber, falecido há exatos cem anos, desembarcasse no Brasil do século XXI – mas isso sempre foi válido para qualquer outra época – teria de refazer sua tipologia das formas de dominação política, embaralhando os seus tipos-ideais, uma vez que conseguimos, por aqui, misturar formas tradicionais, carismáticas e racionais-legais de administração política, todas elas coexistindo ao mesmo tempo e justapostas, como numa colcha de retalhos.
O patrimonialismo, que desembarcou aqui junto com Tomé de Souza, em 1549, mas que já existia no Portugal medieval – como ensinou Raymundo Faoro –, atravessou todas as épocas e todos os regimes políticos, superpondo-se desde os tempos dos “homens de bem”, dominando as administrações locais, passando pelos donatários, governadores-gerais, pelos vice-reis, coexistindo com a corte transplantada, o Reino Unido e sob os dois reinados do Império. A República trouxe poucas mudanças a esse patrimonialismo oligárquico, típico dos regimes tradicionais, mas alguma mudança ocorreu, não se sabe bem se para melhor. 
Mário de Andrade, poeta modernista que se frustrou com o pequeno impacto que teve sobre a sociedade a Semana de Arte Moderna, quase cem anos atrás, traduziu um pouco desse espírito pessimista no seu Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, cujas páginas já trazem diversos exemplos de patrimonialismo – ou seja, a mistura do público e do privado – nas ações de alguns personagens. Entre 1922 (a Semana) e 1928 (Macunaíma) ele perpetrou um poema – “O poeta come amendoim” – no qual algumas estrofes revelam como o Brasil avançava, mas preservando traços de continuidade, em meio a poucos avanços; disse ele: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. O fato é que a fatalidade da dominação artificialmente carismática da “era Vargas” introduziu algumas mudanças cosméticas no mandonismo local – uma vez que não se fez nenhuma reforma agrária, a despeito da “revolução burguesa” –, preservando o patrimonialismo no famoso tripé do “coronelismo, enxada e voto” de que falava Vitor Nunes Leal, dez anos antes que Raymundo Faoro dissecasse a continuidade do fenômeno no seu clássico “Os Donos do Poder”. Ele sempre recusou o caráter weberiano de sua obra, mas o fato é que o chamado “estamento burocrático”, base do patrimonialismo brasileiro moderno, continuou sendo preservado mesmo na nova modernização conduzida pelo regime militar poucos anos depois.
Pouco antes que Vitor Nunes Leal consagrasse seu estudo às formas tradicionais de patrimonialismo, de base essencialmente rural, um episódio ao final do Estado Novo revelou uma das novas faces da modernização desse fenômeno: seu caráter “estatal”, ou pelo menos abrigado nos interstícios do Estado burocrático construído na era Vargas e simbolizado, em grande medida, pelo DASP, o Departamento Administrativo do Serviço Público, suposto terminar com o pistolão e o apadrinhamento e disciplinar o ingresso no serviço público. Pois foi entre outubro de 1945, quando ditador foi derrubado pelas Forças Armadas, e janeiro de 1946, quando tomou posse o presidente eleito em dezembro, no primeiro escrutínio desde 1930, que o chefe interino do Estado, José Linhares, presidente da Suprema Corte, facilitou o ingresso em cargos públicos, sem qualquer concurso, de membros de sua extensa família e de inúmeros outros oportunistas, ensejando então o famoso slogan, “os Linhares são milhares”, ou seja, um exemplo típico do novo patrimonialismo de feição estatal. 
A modernização então operada sob a ditadura dos generais foi de fato impressionante, praticamente completando o processo de industrialização substitutiva e, finalmente, levando a cabo a transformação da agricultura, que tinha continuado atrasada mesmo depois que Monteiro Lobato alertava para o perigo das saúvas nos tempos de Mario de Andrade. A Embrapa e a própria capitalização do campo contornaram a necessidade de uma “reforma agrária”, nos moldes pregados por militantes da esquerda e intelectuais como Caio Prado Jr. Mas o patrimonialismo continuou impávido, embora tenha mudado de mecanismos e de ferramentas de atuação, deixando as formas tradicionais de dominação típicas do “Brasil essencialmente agrícola” para assumir as novas vestes do coronelismo eletrônico das redes de rádio e televisão do Brasil moderno: essas mudanças podem ser seguidas nos mapas eleitorais e no deslocamento dos apoios em função das novas políticas de assistencialismo estatal. 
A própria transposição da capital federal para o interior criou ou reforçou essas novas formas, desta vez com a ampliação desmesurada do Estado dirigista e intervencionista, com suas múltiplas corporações públicas, confirmando a “ditadura” do estamento burocrático de que falava Faoro ainda na República de 1946. Tanto a tecnocracia do regime militar quanto a Nova República, consolidada sob a Constituição de 1988 representaram, antes de mais nada, a ascensão irresistível do funcionalismo público, o novo patrimonialismo estatal, com seus novos “senhores feudais” e seus novos “mandarins da República”. A nata da magistratura, por exemplo, é o mais próximo que temos da aristocracia do Antigo Regime, criando para si mesma, aliás, privilégios, prebendas e penduricalhos salariais de que nunca gozou a antiga aristocracia da espada e menos ainda a nobreza de títulos. 
Durante algum tempo, por sinal, a “República Sindical” criada pelos companheiros que ocuparam o poder entre 2003 e 2016, aperfeiçoou ainda mais o velho patrimonialismo dos antigos donos do poder, mas o fizeram à sua maneira, como revelado pelas investigações sobre a gigantesca máquina de corrupção criada e alimentada pelos novos donos do poder, o que permitiria falar de um “patrimonialismo gangsterista”, dadas as técnicas criminosas desvendadas por ocasião do processo do Mensalão; elas foram, depois, expostas amplamente no bojo da Operação Lava Jato, que se ocupou basicamente do chamado Petrolão, mas ainda há muito a ser revelado, pois as operações de “compra e venda” se estenderam a vários outros âmbitos políticos e do funcionalismo público. Aparentemente, o patrimonialismo voltou a formas mais “tradicionais” depois do impeachment e da substituição dos donos do poder.
Independentemente das diferentes formas de patrimonialismo que o Brasil conheceu ao longo da história, sempre se pode dizer que ele permanece impérvio à modernização das instituições, como já constatado por diversos especialistas, entre eles mestre Antônio Paim, um dos grandes analistas do patrimonialismo. Este parece extrair novas forças da extrema fragmentação partidária experimentada no sistema político-eleitoral brasileiro nas últimas décadas, o que multiplica, justamente, as operações de apropriação privada dos bens públicos (o que constitui, como se sabe, o cerne do patrimonialismo de todas as épocas). Tal dispersão da representação cidadã – com muitos partidos criados unicamente para fruir, de forma bem patrimonialista, dos recursos públicos, num processo quase similar ao da multiplicação de igrejas evangélicas, aqui recolhendo dízimos privados – favoreceu inclusive a rejeição da política tradicional, o que abriu espaço à ascensão de novos tipos de populismo, como o que se assiste atualmente no Brasil, apenas com o sinal aparentemente contrário ao populismo de esquerda que vicejou durante três lustros neste século. 
A despeito dos anúncios grandiosos de rejeição da “velha política” e de correção das velhas distorções do sistema político anterior, não existe nenhuma indicação de que as velhas práticas do patrimonialismo – tradicional, ou novo, inclusive gangsterista, não importa – tenham sido aposentadas. Ele se insinua, inclusive, na organização mais weberiana, mais racional-legal, que se poderia conceber no Estado brasileiro desde praticamente dois séculos: o ministério das Relações Exteriores, no qual o recrutamento por concurso e a reserva de mercado para os próprios profissionais da carreira são proverbiais (embora nem sempre tenha sido assim: antes de 1946, muitos diplomatas podiam entrar “pela janela”). Foi anunciado, há pouco, que o governo da “nova política” pensa abrir o Itamaraty a colaboradores recrutados de fora, ou seja, “assessores” que não seriam servidores concursados, mas escolhidos a dedo. Isto nada mais é do que patrimonialismo puro, ou seja, apropriação da coisa pública pelos donos (supõe-se que temporários) do poder, o que nos remete, finalmente, à caracterização dos “novos bárbaros” feita na segunda parte do título deste artigo. 
Na análise weberiana das antigas formas de dominação política, ele destacou o papel da República romana, e da figura do cidadão, protegido por leis, como uma das bases da evolução política na Europa medieval e moderna, que desembocaria finalmente no Estado pós-absolutista. Ora, o Império romano foi submergido por tribos bárbaras, cujos membros tinham no patrimonialismo uma das características do usufruto dos bens públicos e sua transmissão hereditária, sem qualquer controle por algum corpo representativo de “cidadãos”, uma entidade desconhecida nessas formações. O Estado brasileiro atual parece ter sido posto sob o controle dos “novos bárbaros” que emergiram na política sem qualquer estrutura partidária ou institucional, baseados apenas nos instintos primitivos daquele que pretende apresentar-se como “líder carismático”, mas que nada mais representa do que uma espécie de contrafação do conceito weberiano original. 
O Itamaraty, que se orgulhava de ser a mais “weberiana” das corporações de Estado, parece estar prestes a ser submergido por esses “novos bárbaros”, que podem deformar o caráter “racional-legal” de seus métodos burocráticos de trabalho. Se Weber estivesse vivo, talvez usasse o conceito de Entzauberung – isto é, desencanto – para sinalizar o sentimento dos diplomatas do corpo profissional do Itamaraty em face do estupro que parece estar sendo preparado pelos bolsolavistas contra a outrora respeitada instituição formuladora da essência da política externa nacional, uma realidade agora praticamente desfigurada. A História não os absolverá desse novo crime institucional.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 17 de junho de 2020

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Uma mania abjeta: atirar contra o mensageiro - Paulo Roberto de Almeida

Da obscura e inútil arte de atirar contra o mensageiro

Tenho reparado que um dos mais fúteis exercícios a que se dedicam os defensores, promotores, adoradores da nova ordem política e do novo pensamento único é essa mania de, na impossibilidade de rebater fatos, atacar o seu mero veiculador.
A imprensa livre, um sistema que incomoda muita gente, veicula fatos, entre os quais se encontram os dizeres e os atos dos próprios governantes.
Geralmente, a imprensa séria comporta dois tipos de matérias: reportagens e análises (ou artigos de opinião). Estes últimos podem até pecar por subjetividade, uma vez que expressam posturas próprias de quem assina a matéria, geralmente jornalistas mais experientes ou personalidades convidadas, como acadêmicos, funcionários, executivos do setor.
As primeiras são geralmente obra de repórteres, e podem até não conter assinatura, mas ainda que contenham se destinam primariamente a informar o que efetivamente aconteceu.
Não existe melhor maneira de se aproximar da verdade do que relatar o que efetivamente aconteceu, e isso inclui entrevistas, declarações, manifestações diversas de dirigentes e responsáveis políticos.
Este meu blog se dedica a exposição, descrição, transcrição, reprodução de muitas matérias de imprensa, ou seja, relato de fatos, tal como efetivamente aconteceram.
Sobre isso, costumo comentar, o que cabe inteiramente nos propósitos deste espaço, voltado para o debate objetivo de questões relevantes das políticas públicas, em especial na política externa.
Meus comentários expressam única e exclusivamente minha opinião, e como tal podem se prestar a comentários posteriores dos leitores.
O que me surpreende, porém, desta vez vindo dos promotores da nova ordem política, é a brutalidade dos ataques ao escriba que aqui comparece, independentemente de qualquer comentário sobre os fatos descritos ou expostos. Esses novos mercenários do politicamente correto segundo os cânones do novo pensamento único não estão interessados em debater fatos, posturas, questões reais, objetivos – independentes dos mensageiros a favor ou contra –, mas pretendem apenas intimidar, acusar, vilipendiar, xingar, ofender, ameaçar.
Para quem já enfrentou outras tribos anteriores, defensoras de outro pensamento único, não existe muita novidade.
O que impressiona um pouco, porém, é a virulência dos novos cruzados...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 29 de julho de 2019

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Para libertar a nação dos bárbaros - Paulo Roberto de Almeida

Para libertar a nação dos bárbaros
(sob a inspiração de Maquiavel)

Paulo Roberto de Almeida

No último capítulo do seu Príncipe, Maquiavel faz uma “Exortação para tentar libertar a Itália dos bárbaros”. Estes eram invasores estrangeiros que devastavam os vários reinos, principados e repúblicas independentes em que se dividia a península de tradições seculares. Maquiavel esperava que um novo príncipe, ou alguma liderança providencial, conduzisse o povo italiano por novos caminhos.
Não é seguro que a nação brasileira encontre-se hoje tão “espoliada e lacerada”, ou que tenha de suportar “ruína de toda sorte”, como no caso da Itália de Maquiavel. Mas ela encontra-se, certamente, desesperançada e agoniada. O Brasil dispõe de uma democracia plena, ainda que de baixa qualidade intrínseca e com inúmeros defeitos formais e substantivos. O maior defeito de sua democracia, quiçá, é o total despeito dos direitos da cidadania, dos direitos elementares dos cidadãos mais humildes, fonte provável do clima de violência e de insegurança que vitima a todos e cada um, nos mais diferentes cantos do país.
Ocorrem aqui desventuras de toda a espécie, a começar pela incapacidade das elites em assegurar os direitos da cidadania, o que traduziu-se, recentemente, na mais profunda degradação dos costumes políticos já conhecida na história da nação. Há um aumento da corrupção em todas as partes e a extorsão diária por um sistema de derrama mais insidioso do que o dos antigos opressores coloniais; há a deterioração dos serviços públicos, o aumento da insegurança nas cidades, as mortes evitáveis ocorrendo em casas de saúde e outras mortes estúpidas nos cárceres lotados ou em combates entre agentes públicos e criminosos de baixa extração. Mas também existem criminosos de alta estirpe escapando da justiça por defeitos de procedimento, ou por comprar aqueles que os deveriam julgar; há dinheiro público sendo desviado e recursos esvaindo-se em obras inexistentes ou superfaturadas, com a conivência daqueles mesmos que deveriam fiscalizá-las.
Diferentemente do que pretendia Maquiavel para a sua Itália, nenhum líder providencial salvará esta nação a não ser que ela mesma queira ser salva, por seu próprio esforço, empenho e dedicação. Nenhum príncipe iluminado será capaz de redimir a nação de seus males mais conhecidos, a não ser que ela própria tome em suas mãos essa tarefa. Nem se vê, no presente, por que a nação deveria confiar o seu destino a mais um representante do Estado, quando vêm do próprio Estado os mais insidiosos ataques ao seu bem-estar e prosperidade.
Por acaso, não estão as fontes da corrupção concentradas no Estado, sendo os agentes públicos os seus promotores mais ativos? Não se vê que o estímulo à sonegação brota de um sistema de arrecadação extorsivo e da cobrança extensiva de toda sorte de impostos, taxas e contribuições, que tira dos privados a poupança que eles poderiam empregar para fins produtivos? Não se constata que toda essa arrecadação – e os pobres pagam mais dos que os ricos, no sistema regressivo dos impostos indiretos – não revertem em serviços para o povo, mas alimentam o gigante estatal, que cresce exageradamente há décadas?
À diferença dos tempos de Maquiavel, soldados invasores e mercenários à soldo não são bárbaros estrangeiros, e sim inimigos daqui mesmo. Nossos quatro cavaleiros do apocalipse são: o mau governo, a injustiça, a corrupção e a má educação. Em todas as partes da nação, temos notícias dos terríveis efeitos desses males nacionais sobre o moral do nosso povo. São eles a fonte última de toda violência e dos piores atentados aos direitos da cidadania. Já está na hora de combatermos nossos próprios bárbaros.
Não se pense em terroristas profissionais, em homens-bomba que se explodem com a alegria prometida aos justos. Não falamos de fundamentalistas que só admitem a verdade da sua própria religião, de intolerantes prontos a queimar e a trucidar em defesa de suas crenças. Esses são desajustados no mundo do livre arbítrio, da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos humanos, o que não impede que eles sejam, ao mesmo tempo, criminosos da pior espécie. Esses bárbaros não são novos: sua origem remonta às seitas dos assassinos, às guerras de religião em reinos pretendidamente piedosos, aos tempos de caça às bruxas, dos dogmatismos e dos grupos mafiosos, que estão conosco há vários séculos.
Falamos de “novos bárbaros”, uma classe especial de um gênero universal, que proliferou de forma não controlada nesta nação. Quem são estes “novos bárbaros”, que sugam o sangue do nosso povo, que limitam a capacidade de crescimento de sua economia, que dificultam o funcionamento e até a consolidação de instituições sólidas de governança? Quem são esses formidáveis obstrutores da boa educação pública em todos os níveis, do provimento de justiça, onde a justiça é devida, da garantia de segurança pública, nas casas e nas ruas? Quem são os que conspiram contra a simples aspiração do povo em ter um futuro melhor para os seus filhos, com emprego e renda decentes, com serviços públicos de qualidade, ou de poder dispor, no próprio mercado, de todo tipo de bem ou serviço, sem enfrentar monopólios, preços de cartéis, colusões organizadas e protegidas pelo Estado, que deveria pensar, antes de tudo, no interesse do cidadão comum? Quem são esses bárbaros que nos assolam regularmente, com nossa própria conivência?
Não é difícil identificá-los, pois eles estão todos os dias nas folhas impressas e nos meios de comunicação, eles entram em nossas casas sem que saibamos ou possamos impedir, eles tomam nossas terras sem que as autoridades se comovam, eles invadem prédios públicos sem que o poder legítimo se empenhe em desalojá-los, eles assaltam os cofres públicos quase à luz do dia, por meio de subterfúgios que são criados, paradoxalmente, justamente para evitar esse tipo de apropriação indébita. Estes nossos bárbaros não usam armaduras ou máscaras, no máximo identidades falsas; eles não são bandoleiros de estradas, como nos tempos de Maquiavel, embora também os haja; mas estes não são os mais danosos, no plano patrimonial privado ou do ponto de vista do tesouro público. Eles, na verdade, são nossos conhecidos e com eles interagimos quase todos os dias. Eles estão entre nós. Eles “somos” nós, ou quase...

Os novos bárbaros são os políticos demagogos e desonestos, que se elegem com grandes promessas de obras e realizações, mas que logo fazem dos negócios públicos o seu negócio particular, aquele pelo qual vivem e do qual vivem. Eles são os juízes venais, que se vendem por um punhado de moedas, a despeito de já ostentarem os maiores salários deste “principado”; existem, também, os que são honestos pessoalmente, mas que pretendem fazer justiça com as próprias mãos, isto é, interpretam a lei de forma distorcida para defender supostas causas sociais, quando não “criam” eles próprios a lei, em defesa de ideologias obscuras. Bárbaros também são os capitalistas promíscuos, que preferem ganhar dinheiro em colusão com funcionários públicos, afastando a concorrência, via cartéis arranjados e tarifas altas; são os que procuram uma participação “especial” em compras governamentais e é por meio destas que se opera a conjugação de interesses especiais de funcionários públicos e de parlamentares com o capitalismo de compadrio, que não é uma especialidade exclusiva desta nação, mas que aqui se aclimatou muito bem.
Deixando as esferas da alta política ou do grande capital, encontramos também outros bárbaros, na burocracia média, nas universidades, nas classes liberais, na esfera comercial. Há funcionários de governo que se servem do Estado, em vez de servir ao público; professores de universidades públicas que acreditam que a sociedade tem a “obrigação” de doar recursos às suas entidades, sem que tenham de prestar contas de sua produção ou de submetê-la a avaliações independentes; advogados sem escrúpulos que se especializam nas chamadas filigranas jurídicas para livrar notórios criminosos das garras da lei; por último, mas não menos importante, empresários que mantêm “caixa dois” como se fosse um alter ego literário. Muitos justificam o expediente escuso a pretexto de se defender contra as exações fiscais das autoridades da receita, e nisso recebem a colaboração de fiscais inventivos, sempre prontos a dar um abatimento de 50% na multa devida, desde que a arrecadação se faça também por vias paralelas. Ao fim e ao cabo, as classes médias se consideram vítimas de um sistema injusto, pelo qual elas não se sentem responsáveis, mas estão prontas a se utilizar dos pequenos benefícios de um sistema profundamente desigual e iníquo que perpetua desigualdades e pequenas contravenções, retardando o pleno estabelecimento do império da lei.
Há toda uma categoria especial de manipuladores da ingenuidade alheia, que são os adeptos da “teologia da prosperidade”: eles iludem os humildes – e outros nem tão humildes – agitando ameaças do capeta, de um lado, e promessas de redenção divina, de outro. Trata-se, talvez, do mais lucrativo investimento já conhecido na história econômica mundial, pois que os insumos e os meios de produção desses bárbaros religiosos não são feitos de matérias-primas ou de equipamentos, e sim de pura retórica, a fabricação literal de ouro, uma nova forma de alquimia, bem melhor do que aquela praticada nos tempos de Maquiavel.
Existem outros bárbaros, igualmente, nas chamadas “classes subalternas”, muitos deles simples ingênuos de espírito, manipulados por pretensos militantes intelectualmente desonestos, prontos a condenar o agronegócio e a comandar uma invasão de laboratórios e campos de experimentação de espécies elaboradas pela mão do homem, numa réplica de antigos ataques ludditas, tão obscurantistas quanto nefastos ao desenvolvimento de uma ciência libertadora de penúrias ancestrais. Existem falsos sindicalistas, que montam cartórios legais de extração de recursos dos trabalhadores, a pretexto de representação classista. Existem movimentos ditos minoritários, de inclinação racial, propensos a criar novas formas de apartheid social e cultural, sob escusa de redimir antigas injustiças. Há os que acreditam que a riqueza deve ser distribuída pelos estoques patrimoniais, não por fluxos crescentes de renda do trabalho, e que se entregam às invasões de propriedades urbanas e rurais, como profissionais da “expropriação social”.
Temos de lutar contra esses bárbaros: contra os que pretendem destruir nossas instituições democráticas pela via de velhos arremedos de “poder popular” e de “democracia direta”, que constituem um insulto à teoria e à prática da representação política; contra os que querem limitar a liberdade de imprensa a pretexto de “responsabilidade social”; contra os que querem fazer a escola retroceder a tempos obscurantistas de explicações ingênuas e anti-científicas; contra os que aspiram a dividir o povo em categorias raciais estanques, sob escusa de redimir antigas injustiças; contra os que defendem privilégios inaceitáveis, como os do foro privilegiado para políticos de província e pensões milionárias para os que exerceram cargos públicos por escasso tempo. Temos de defender a república contra todos os agentes corruptores, muitos deles eleitos por nós mesmos para altos cargos nas instituições de representação política. 
Nós carregamos uma parte de responsabilidade por essas deficiências que impedem a nação de deslanchar e de conformar uma situação mais amena no plano social, sobretudo em favor das classes menos favorecidas. Não se trata de colocar este “principado” numa posição de grande potência ou de pretender igualá-lo ao mais possante dos impérios, numa vã pretensão à grandeza que não ajuda em nada a diminuir o fosso de iniquidades que separa as classes abastadas das menos privilegiadas. O que se pretende é reduzir o grau de sofrimento humano embutido no atual sistema de reprodução de desigualdades. Isto se obtém pela eliminação do mau governo, pela diminuição da corrupção, pelo adequado funcionamento da justiça e, sobretudo, pela elevação de todos os cidadãos a um patamar mais condizente de dignidade social pela via da educação de qualidade para todos.
Para isso, não se deve esperar por nenhum “redentor” da nação. Não se quer um príncipe guerreiro, menos ainda autoritário ou alegadamente iluminado. Não se trata de construir o Estado a partir do nada, como no tempo de Maquiavel, mas de reconstruí-lo em novas bases, convertendo-o, de obstrutor do crescimento, o que ele é hoje, de fato, em um promotor das condições pelas quais possa ser estimulado o desenvolvimento da nação. O Estado precisa ser colocado em seu devido lugar, de simples administração das coisas. Trata-se de restabelecer o controle da própria sociedade sobre a administração dos homens. Toda a insegurança pública deriva, hoje, da incapacidade do Estado em prover esse bem primário de que necessitam todos os cidadãos. Se ele não o faz é porque se desviou de sua missão fundamental e básica, que é a de zelar para vida e a segurança dos que lhe pagam impostos. Temos de recolocar o Estado na sua função precípua de zelar pelo bem comum e antes de tudo pela segurança dos cidadãos. Quanto à criação de riqueza, a própria sociedade se encarregará disso...