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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Um pouco mais de Roberto Campos, desta vez no céu, ou no limbo dos economistas - Paulo Roberto de Almeida

Uma coisa puxa outra, e acabei me lembrando que, já tendo começado o governo companheiro, fiz uma outra rememoração de Roberto Campos, aos três anos de sua morte, desta vez em conversa com Keynes, Hayek e Marx, em torno de um bom copo de whiskey (mas não sei se servem bebidas alcóolicas no céu):

1332. “O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?”, Brasília, 30 setembro 2004, 4 p. Ensaio colocando RC em conversa com Keynes, Hayek e Marx, no limbo, a propósito do terceiro ano de sua morte. Preparada versão reduzida, sob o título de “O que Roberto Campos pensaria da política econômica”, publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2). Relação de Publicados nº 471.

O que Roberto Campos estaria pensando da política econômica?

Paulo Roberto de Almeida
Preparada versão reduzida, sob o título
“O que Roberto Campos pensaria da política econômica”,
publicada no caderno econômico d’O Estado de São Paulo
(Sábado, 9 de outubro de 2004, p. B2).
Relação de Publicados nº 471.

No dia 9 de outubro se estará ultrapassando a marca dos três primeiros anos do falecimento, em 2001, do diplomata, economista, administrador público, político e pensador Roberto Campos, que foi também um comentarista cáustico e voluntariamente impiedoso de nossas (ir)realidades quotidianas e bizarrices institucionais. Infelizmente para nós (mas talvez felizmente para os seus adversários “filosóficos”), ele não viveu o suficiente para assistir, a partir de 2002, a uma das mais formidáveis revoluções intelectuais já registradas em toda a história do Brasil: nada mais, nada menos do que a incrível conversão da água em vinho, isto é, a transformação do antigo partido adepto das rupturas econômicas – e propenso a fazer passar as “prioridades sociais” antes do respeito aos contratos da dívida – em um grupo comprometido com a responsabilidade fiscal, com a boa gestão das contas públicas e, surpresa das surpresas, com a aceitação decidida e consentida, não só da renovação do acordo de assistência financeira com o FMI, como também das condicionalidades associadas ao seu “menu” de política econômica (mais parecido a um regime de emagrecimento do que a uma churrascaria rodízio).
O que estaria pensando de tudo isso o iconoclasta, irônico e irreverente Roberto Campos? O que estaria escrevendo a respeito da atual política econômica o mais arguto dos polemistas brasileiros contemporâneos, o homem a quem seus inimigos políticos teimavam em chamar de “Bob Fields”, como se ele fosse menos patriota ou menos comprometido com o interesse nacional do que aqueles que o provocavam com slogans mal concebidos, mas que hesitavam em (ou simplesmente evitavam) enfrentá-lo num debate aberto e responsável sobre esses temas candentes da atualidade econômica?
Onde quer que ele possa estar no presente momento – e eu o imagino no limbo econômico das soluções imperfeitas, como compete a todos os partidários da disciplina da escassez, esses adeptos realistas da “ciência lúgubre”, sentado confortavelmente à esquerda de Hayek e à direita de Keynes –, ele deve estar soltando gostosas gargalhadas, comentando com seus incrédulos parceiros essa verdadeira “reversão de expectativas” a que o Brasil assistiu nos últimos dois anos e meio. Vamos imaginar um possível diálogo entre os três, com algumas rápidas incursões por parte de Marx (também, e mais do que nunca, no limbo) e uma única e breve intervenção do seu discípulo russo, Vladimir Ulianov, em férias de paragens mais quentes.
Roberto Campos, que nasceu no mesmo ano da revolução bolchevique, não teria perdido a oportunidade para, em primeiro lugar, espicaçar este último e provocar o filósofo alemão, cujas doutrinas serviram de inspiração para a mais desastrada tentativa de superar os limites estreitos da escassez econômica em nome de uma suposta gestão socialista das forças produtivas. “O que você está achando da ‘nova política econômica’ Vladimir?”, perguntaria ele, para ouvir o outro resmungar ressabiado: “Os companheiros assumiram numa situação de verdadeira guerra econômica, pois os especuladores de Wall Street e os sabotadores internos queriam a derrocada imediata do novo governo. Eles precisaram, temporariamente, compor com as forças do mercado e com os banqueiros gananciosos, mas ainda guardam munição para combater a exploração capitalista e a opressão burguesa. Espere para ver.” 
Sem esperar pelo resto, Roberto Campos dirigiu-se de maneira não menos provocadora ao autor do Capital,: “Você acha mesmo, Karl, que nossos amigos saberão construir a sociedade ideal, na qual cada um contribuirá na medida de suas capacidades e cuja distribuição se fará segundo as necessidades de cada um de seus membros?” “Mas isto não é para agora, seu capitalista utópico”, respondeu o filósofo da mais valia, “e sim para a etapa comunista da revolução brasileira, isto é, para a última e derradeira fase da construção socialista. Por enquanto, até eu recomendaria uma política de transição e uma acomodação com os mercadores do templo, isto é, os donos do capital. De toda forma, ainda estamos no começo: não se esqueça que no Manifestode 1848 eu preconizava primeiro o aprofundamento da globalização capitalista. Estou satisfeito com o que estou vendo: o novo governo caminha a passos rápidos no processo de internacionalização das empresas brasileiras, contribuindo com a missão histórica da rápida universalização do modo capitalista de produção. O socialismo está ao alcance da mão.”
Marx recebeu a surpreendente adesão do liberal Hayek, que também achava que o governo tinha tomado o caminho da servidão, construindo as bases da mesma economia coletivista que um dia tragou sua querida Áustria, sob a forma do dirigismo nazista, assim como a Rússia, sob a economia totalmente estatizada dos bolchevistas. “E o senhor, Herr Campos, não está preocupado ao ver a atual orientação do Brasilianische economik Regierung?”, indagou ele, com o semblante carregado. “De fato, meu caro Friedrich”, comentou Campos, “vários dos membros da nomenklatura tropical padecem de incurável nostalgia em relação aos antigos tempos revolucionários. Mas isso justamente não ocorre com das Finanz Ministerium de Herr Palocci: sua Realeconomik não causaria nenhum tipo de constrangimento ao seu amigo Friedman, de Chicago. Ele até agora se guiou pelo mais retos princípios do Ideal Liberalismus e estou certo de que ouviria com prazer algumas de suas receitas práticas sobre como escapar da servidão, hoje representada por um Estado economicamente opressor da liberdade de empreender, tão bem defendida em sua obra.”
Enquanto Hayek se deleitava ao ouvir essas palavras, Keynes fazia tilintar de impaciência o gelo de seu legítimo scotch, atacando sem mais esperar: “Mas esse doutor em medicina poderia ter evitado o amargo purgante de uma tão inútil quanto cruel recessão, se tivesse seguido uma das receitas da Teoria Geral, que recomendava injeções fiscais anti-cíclicas para poupar os Brazilian workers do desemprego e da perda do poder de compra. Ele precisava ter assegurado a demanda agregada, bem como o nível das despesas públicas, e deveria ter reintroduzido os controles de capitais, evitando a todo custo cair nas mãos daqueles fundamentalistas do FMI”. 
“Você está mal informado, Maynard”, retrucou Campos, que tinha intimidade suficiente com o inglês para chamá-lo pelo seu nome do meio. “O Estado brasileiro não consegue sequer assegurar um dedal orçamentário para a recuperação das esburacadas estradas federais, quanto mais essa injeção fiscal que você recomenda para estimular a demanda agregada. O que ele faz, de um lado, é uma oferta desagregada de promessas insustentáveis de crescimento, ao mesmo tempo em que retira, por outro lado, as poucas poupanças da sociedade, pela mão de uma máquina de arrecadação mais ameaçadora do que um dreadnoughtbritânico.” Antes que Keynes formulasse novas recomendações de política econômica a partir das idéias de algum economista morto, Campos completou, com a mais fina ironia britânica: “As conseqüências econômicas de misterPalocci são, em todo caso, menos perigosas do que as recomendações bizarras dos seus discípulos no Brasil, que pretendem dar cabo de algo que nunca existiu em meu país: o liberalismo econômico. Francamente, Maynard, eles estão completamente out of touch! Passe o gelo, por favor, e se puder a sua garrafa também.”
Virando-se novamente para Hayek, Campos aduziu com um sorriso maroto: “Não aconteceu em minha vida, mas eu ainda vou assistir, no Brasil, aqui do alto, à mais incrível revolução capitalista que se poderia esperar de um antigo líder socialista radical.” Tendo Marx justificado que isso talvez representasse alguma necessidade histórica da fase de transição para o capitalismo globalizado – que, afinal de contas, tinha tido sua marcha interrompida por setenta anos de tropeços socialistas –, Campos concluiu, rendendo uma homenagem à prosa barroca do Manifesto: “Eu também acho Karl: os seus amigos ex-socialistas, hoje neocapitalistas, não têm mais nada a perder, senão os grilhões mentais que os prendem às velhas soluções estatizantes de um passado tão mítico quanto, hoje em dia, inexeqüível. Esses grilhões mentais precisam ser rompidos e eles serão rompidos”. E dirigindo-se a ambos: “Vamos brindar com um gole de Schnaps a esta revolução burguesa tropical?”


Paulo Roberto de Almeida é doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e professor universitário.

sábado, 1 de setembro de 2018

O PT critica a politica economica do governo do PT (maio 2003) - Paulo Roberto de Almeida

Chegou um momento, no primeiro semestre de 2003, em que o próprio think tank do PT, a Fundação Perseu Abramo, começou a criticar a política econômica do governo. O boletim eletrônico Periscópio, da Fundação e da Secretaria Nacional de Formação Política do PT, publicou um artigo de análise crítica a propósito do documento da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais” (redigido pelo economista Marcos Lisboa). Enviei meus comentários ao boletim Periscópio, publicados na seção Cartas do n. 25, maio de 2003, com comentários dos editores ao final do meu texto. 
Registro efetuado sob trabalho n. 1047, como indicado abaixo:

1047. “Um debate sobre a política econômica do Governo PT: Ruptura ma non troppo?”, Washington, 11 maio 2003, 9 p. Comentário a artigo de análise crítica sobre o documento da Secretaria de Política Econômica do Min. da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais”, publicado no boletim eletrônico Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e Secretaria Nacional de Formação Política, do PT. Encaminhado ao boletim Periscópioe publicado na seção Cartas do boletim (n. 25, maio 2003), com comentários dos editores ao final do texto. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018

Um debate sobre a política econômica do Governo PT
Ruptura ma non troppo?

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 11 de maio de 2003

No que parece se apresentar como o primeiro debate sério – pelo menos público – sobre a política econômica do governo do PT, cinco meses depois de sua inauguração, o boletim eletrônico Periscópio, da Fundação Perseu Abramo e da Secretaria Nacional de Formação Política do PT, publicou, em seu nº 25 (maio de 2003), uma análise crítica do documento da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, “Política econômica e reformas estruturais”, indicado nesse artigo como trazendo a assinatura do ministro Antonio Palocci e refletindo, portanto, a visão oficial do governo sobre a conjuntura econômica. Segundo as informações disponíveis, o documento foi de fato elaborado pelo Secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa, já devidamente criticado por outros setores identificados com a esquerda do PT.
Intitulada “Os caminhos da transição”, essa análise crítica não traz assinatura direta de seus autores, mas segundo informação da própria página do Periscópio, os responsáveis pelo seu expediente são o professor de ciência política da UFMG Juarez Guimarães, como editor, a colaboradora Célia Coleman, com a assistência de Hamilton Pereira, presidente da Fundação Perseu Abramo, e de Joaquim Soriano, secretário Nacional de Formação Política do PT. 
Não pretendo fazer uma análise política global desse documento, mas tão somente formular observações tópicas sobre elementos que nele me chamaram a atenção e deixar algumas interrogantes para análise posterior mais aprofundada. Procederei segundo uma metodologia linear, destacando trechos do documento aos quais faço seguir meus comentários específicos, remetendo a próprio texto para controle das citações.
Desde já caberia destacar, no entanto, uma espécie de divergência conceitual e de enfoque analítico entre, de um lado, o formato assumido pelo “documento original”, concebido como uma síntese-apresentação das políticas defendidas e implementadas pelo Ministério da Fazenda, e como tal de cunho essencialmente econômico, e, de outro, a natureza da “análise crítica” propiciada pelos autores em questão, que se situa mais bem no plano de análise política. Essas diferenças de “essência” e de enfoque tornam por vezes impossível a uma terceira parte, como esta que aqui escreve, realizar um “diálogo” entre ambos os textos, já que eles parecem se situar em dois universos paralelos. 

A herança do passado e a conjuntura internacional
A análise crítica começa por reconstituir as condições de partida do governo Lula, mas o faz sem qualquer distinção entre as orientações de política econômica do governo anterior e o que foram resultados de uma conjuntura específica: “No campo econômico, o contexto criado pelo governo Fernando Henrique Cardoso impôs uma combinação perversa do fechamento das linhas de crédito internacionais, uma elevação explosiva do risco Brasil medido pelas agências financeiras, uma escalada de desvalorização do real e uma tendência altista da inflação, gerada em grande medida pela elevação do dólar e pelos reajustes contratados das tarifas públicas.
A rigor, apenas os reajustes definidos contratualmente das tarifas públicas podem ser creditados ao “contexto criado pelo governo FHC”, pois que todos os demais efeitos apontados como produzindo uma “combinação perversa” foram criados e alimentados durante o processo eleitoral, tendo sido provocados e desenvolvidos em grande medida devido ao crescimento do candidato do PT e seu possível impacto nas políticas econômicas em vigor à época, tal como percebido pelos chamados “operadores de mercado”, também conhecidos como “especuladores de Nova York”.
Há, de fato, uma perfeita simultaneidade entre a curva dos prognósticos eleitorais e a deterioração dos indicadores apontados como perversos: “fechamento das linhas de crédito internacionais, uma elevação explosiva do risco Brasil medido pelas agências financeiras, uma escalada de desvalorização do real e uma tendência altista da inflação, gerada em grande medida pela elevação do dólar…”. Pode-se não gostar desses efeitos, mas eles estão na exata direção inversa da política econômica do governo FHC, tal como pilotada pelo ministro da Fazenda Pedro Malan e pelo presidente do BC Armínio Fraga nos dois anos anteriores.
A análise crítica destaca em seguida alguns desses elementos de conjuntura no plano externo, deixando implicitamente entender que o governo Lula conseguiu vencer desafios momentosos: “…a posse e os primeiros cem dias do governo Lula coincidiram com o auge do processo de desestabilização do governo Chávez na Venezuela e a guerra contra o Iraque.” Cabe observar, porém, que o processo político venezuelano praticamente não atingiu o Brasil no plano econômico e todos os desastres econômicos antecipados em função da guerra contra o Iraque revelaram-se falhos e equivocados, antes mesmo dela terminar, ocorrendo, na verdade, a redução dos preços do petróleo e um impacto negligenciável nos fluxos de capitais financeiros em direção ao Brasil. 

O problema do método analítico e o “foco” da abordagem econômica

A análise crítica é precedida de uma apresentação sumária das principas proposições do documento da Fazenda, que pode ser considerada como objetiva e bem sucedida. Um primeiro problema metodológico se coloca ao início da análise crítica, quando os autores falham em revelar a perspectiva a partir da qual pretendem fundamentar essa análise: “A seguir, apresentam-se cinco considerações de ordem geral sobre a proposta acima a partir do campo analítico-normativo que vem sendo desenvolvido no Periscópio.
Na verdade, o “campo analítico-normativo que vem sendo desenvolvido no Periscópio” não está explicitado neste artigo, o que deixa o leitor comum sem saber quais seriam as pressuposições implícitas à abordagem de seus autores. Em contrapartida, a análise crítica coloca os requisitos para um debate civilizado sobre a política econômica do governo, mas o grande problema foi a quase total ausência de enfoque econômico explícito e mesmo de uma crítica interna às premissas implícitas ao documento original, preferindo os autores ater-se a uma abordagem de tipo político-sociológico.
A análise se desloca em seguida para o problema das “evidências empíricas” que se situam na base dos diagnósticos do documento original, que deveriam, segundo a análise crítica ser comprovadas de modo mais explícito, ou até qualificadas: “A noção central, por exemplo, que a diminuição da concentração de renda exigiria focalizar os gastos sociais do Estado para os mais pobres consta desde o início dos anos oitenta de estudos e recomendações do Banco Mundial, tendo sido contestada por inúmeros estudos acadêmicos qualificados. Será que a concentração de renda no Brasil não tem nada a ver com o valor do salário mínimo, com a concentração da propriedade fundiária, com a estrutura tributária regressiva, com os ganhos do capital frente ao trabalho, com os super lucros do sistema financeiro?
Essa visão crítica do documento da Secretaria de Política Econômica do MiniFaz, quanto ao “foco” dos gastos sociais, remete a uma “contestação” desse tipo de abordagem que segundo os autores teria sido feita “por inúmeros estudos acadêmicos qualificados”. Esses estudos não são entretanto referidos no texto, nem a crítica neles formulada é apresentada de maneira clara. Por outro lado, uma “contestação” adicional é oferecida mediante uma série de perguntas, mas não ocorre, infelizmente, alguma tentativa de respondê-las ou de indicar as vias alternativas àquelas focalizadas no documento original.
Caberia observar que não são apenas “estudos do Banco Mundial” que criticam o “desvio” dos gastos sociais em favor de setores relativamente “privilegiados” da população, mas também trabalhos elaborados no Brasil, pela equipe do IPEA, por exemplo, com base numa análise desagregada dos gastos previdenciários e de outros subsidios estatais, como a composição das alocações aos diversos níveis educacionais. Evidências amplas existem quanto à enorme concentração de despesas pevidenciárias em faixas de renda superiores ou quanto à distribuição distorcida das despesas educacionais (gastos no terceiro ciclo representando praticamente o dobro da renda per capita média nacional, ao lado de valores insignificantes para o primeiro ciclo, por exemplo). Estas questões precisam ser consideradas no debate nacional sobre a distribuição desigual da renda.
Por outro lado, as menções, na análise crítica, aos fatores negativos representados pelo “valor do salário mínimo, [pela] concentração da propriedade fundiária, [pela] estrutura tributária regressiva, [pelos] ganhos do capital frente ao trabalho, [pelos] super lucros do sistema financeiro” traduzem uma visão quase jornalística da realidade econômica nacional, não sendo condizentes com uma análise econômica série que tente identificar elementos imanentes ao padrão distributivo brasileiro, desagregando fatores causais ligados ao “estoque” de renda (ou de patrimônio), como a propriedade fundiária, por exemplo, de outros mais vinculados a “fluxos” criados a partir de movimentos cíclicos da atividade econômica, em grande medida determinados pelas políticas governamentais, como os “super lucros do sistema financeiro”, para ficar no terreno privilegiado pelos autores do artigo. Um dos grandes fatores determinantes dos padrões distributivos no Brasil, a qualificação técnico-profissional da população ativa, não é sequer considerada pelos autores do estudo analítico do boletim Periscópio.

A metodologia das ausências e dos silêncios

O ritmo e a direção da análise crítica, que pareciam encaminhar-se para um debate consistente sobre as alternativas de política econômica à disposição do governo, são logo em seguida quebrados por uma consideração de tipo bibliográfico e um lamento quanto ao recurso exclusivo a uma única “escola de pensamento”, como revelado neste trecho: “O próprio teor argumentativo do documento, a bibliografia utilizada e citada, a construção dos dados revela a característica fundamentalmente monológica do documento, isto é, ele passa por alto pelos grandes diálogos críticos, pelas grandes tradições interpretativas do Brasil, clássicas e recentes, por escolas as mais variadas do pensamento econômico internacional ou nacional. O seu grande diálogo é, na verdade, consigo mesmo, isto é, com aquelas verdades enunciadas e atestadas em um trecho de uma determinada escola de pensamento.”
A crítica aqui deixa o terreno substantivo para se deter na forma, ou na metodologia supostamente adotada pelo documento original, acusado de não passar, ou mesmo ignorar, as “grandes tradições interpretativas do Brasil” e de se fixar numa “determinada escola de pensamento”. Não se percebe bem onde estariam os pecados substantivos do documento, pois o fato de passar por cima de “diálogos críticos”, de “tradições interpretativas” ou de uma pluridade de “escolas” do pensamento econômico não permitiria, por essa simples razão, desqualificar, do ponto de vista do conteúdo, uma determinada argumentação. 
Essa argumentação, no entanto, deveria ser analisada (e aí sim, eventualmente desqualificada) com base em seus méritos (ou deméritos) próprios, em sua coerência lógica ou adequação intrínseca à realidade que pretende examinar, não em função de estar mais próxima ou mais distante de tradições, diálogos e escolas que sequer são identificadas e qualificadas também em seu mérito próprio. A crítica revela aqui uma inconsistência heurística que não seria sustentável num ensaio acadêmico submetido à análise de parecerista anônimo para fins de publicação. 
O enfoque da análise crítica passa então a privilegiar as lacunas supostamente existentes no documento, o que no entanto levanta o problema do campo escolhido para debate, se o do documento original ou aquele preferido dos autores: “Uma terceira observação diz respeito aos silêncios do documento. Quais são as consequências do aprofundamento do superávit primário, estabelecendo-se como piso o máximo praticado na era Malan? Há como se aumentar o salário mínimo substancialmente, enfrentar o arrocho do funcionalismo público, melhorar qualitativamente a saúde e a educação públicas, realizar uma reforma agrária mais ampla ou atacar de frente o atraso nos investimento de infra-estrutura ou mesmo recuperar o atraso nos investimento em habitação e saneamento com um tal recuo nos gastos do Estado? Qual destes objetivos seria possível?”
Esse tipo de procedimento, de “crítica pela ausência”, conforma um dos problemas mais graves da análise crítica, como revelado na passagem acima transcrita. A crítica não está dirigida ao que o documento contém, mas ao que ele supostamente deixaria de conter, a que se seguem perguntas selecionadas pelos autores da análise. Mas estas perguntas poderiam ser multiplicadas por dez, sem que fosse resolvido o problema da consistência lógica: ou seja, como fazer uma crítica “leal”, mas no próprio terreno argumentativo do texto contemplado, não em terrenos não cobertos (segundo a visão seletiva da análise crítica) pelo documento original?
Os objetivos indicados pelos autores são todos válidos em seu mérito próprio, mas caberia a eles destacar e “provar” a relevância dos elementos selecionados para a análise em apreço, não apenas apontar sua suposta ausência no documento da Fazenda. Assim, em que medida o fim do chamado “arrocho do funcionalismo”, a expansão dos gastos em educação, na reforma agrária e com infra-estrutura são relevantes para os objetivos focalizados no documento, comprometido, segundo resumo feito pelos próprios críticos, com a manutenção da estabilidade fiscal e a diminuição da “despoupança” estatal? 
Se esses elementos de política econômica são importantes para uma boa gestão econômica de governo, por que os próprios autores da crítica não respondem à pergunta por eles mesmos colocada?: em que medida esses “objetivos” (fim do “arrocho”, gastos com educação e reforma agrária, investimentos em infra-estrutura) contribuem para o atingimento das metas focalizadas no documento original da Fazenda?

Mais silêncios eloquentes: gritos e sussurros econômicos

Dando continuidade à “estratégia das lacunas”, os autores da análise crítica se detêm num problema de natureza econômica: “Chega-se a um outro silêncio espantoso do texto: nos anos noventa, o crescimento explosivo da dívida pública deu-se a partir basicamente da sua dimensão financeira (juros e amortizacão de dívidas); a maior parte do tempo houve superávit operacional isto é, aquilo que o Estado arrecadou foi sistematicamente maior do que o Estado gastou, excluídos seus gastos financeiros. A dimensão financeira da dívida sequer é mencionada no documento e esta omissão é compatível com a idéia de que os juros reais devem permanecer no mesmo patamar dos últimos anos.
Trata-se, contudo, de uma análise sujeita a caução, uma vez que outros estudos indicam que o elemento “juros” é responsável por apenas uma parte, e não a mais importante, do crescimento da dívida pública ocorrida no período. De toda forma, trata-se de uma equação parecida com a do ovo e da galinha, uma vez que os juros altos não representam apenas uma “perversidade” do modelo econômico anterior, mas são, como reconhecem inclusive economistas da antiga oposição, o resultado de uma situação objetiva que não foi ainda encaminhada de modo satisfatório pelo Estado brasileiro: a diminuição de seus requerimentos em termos de receitas (ou empréstimos) para justamente diminuir o patamar dos juros. 
Em todo caso, os autores da crítica fariam bem em apontar os caminhos para a redução da “dimensão financeira” da dívida pública, por eles considerada como o mal absoluto: se via redução “compulsória”, ou administrativa, dos juros ou se via redução dos requerimentos de financiamento do Estado. Não se compreenderia um silêncio tão clamoroso sobre um importantíssimo problema de política econômica.
Continuando sua estratégia de condenar o documento pelos seus supostos “silêncios”, os autores se referem agora ao tradicional problema da vulnerabilidade externa da economia brasileira que, desde os anos 1930 pelo menos, se resume a um problema de fragilidade financeira, aqui colocado na lista das lacunas: “Um terceiro silêncio: há um grande consenso entre economistas de distintas tradições, após várias crises cambiais sofridas pelo país, que a redução da vulnerabilidade externa da economia brasileira é um objetivo estratégico central a ser perseguido. O documento sequer problematiza de forma mais profunda esta questão.
Talvez seja de fato lamentável, mas se esta questão é considerada como “estratégica” e “central” e portanto digna de ser “problematizada”, então não se compreende o silêncio clamoroso dos autores em se recusar por sua vez a “problematizá-la”, oferecendo sua própria interpretação sobre as raízes profundas e as formas de superação dessa vulnerabilidade. Uma crítica que não se fundamenta a si mesma perde grande parte de sua legitimidade intrínseca. 

O problema da “lógica política”: um universo paralelo

Os autores da análise crítica deixam o terreno da “política econômica” para o terreno mais difícil das intenções políticas, por eles identificado como possuidor de uma “lógica” própria: “Uma quarta consideração, talvez a principal, diz respeito à lógica política que fundamenta as opções do documento. Elas precisam ser esclarecidas e debatidas.
Trata-se, contudo, de uma “exigência metodológica” que se situa na mesma linha das “ausências”, reais ou supostas, do documento: como ele não explícita sua “lógica política” os autores da crítica o farão por sua própria iniciativa, mesmo se o documento original não pretende ter, ou defender, uma “lógica política” específica, preferindo situar-se, presumivelmente, na modesta racionalidade da análise econômica, sem preocupar-se com esse tipo de “problematização” que costuma frequentar os textos sociológicos.
Como fazer, então, para “esclarecer” ou “debater” essa “lógica política”? Tudo depende da própria seleção dos autores da crítica, não dos argumentos contidos original e explicitamente no documento objeto de análise crítica. Pode haver algum elemento de arbitrariedade nesse tipo de procedimento, como qualquer especialista em metodologia poderia confirmar. 
Adentrando o terreno pantanoso da “lógica política”, os autores “descobrem” o que seriam as “reais intenções” do documento original: “Certamente a grande atração da estratégia do documento é fundamentar a viabilidade, a necessidade e o sentido virtuoso de um caminho de baixa intensidade de conflito com as forças políticas e econômicas que sustentaram o governo Fernando Henrique.”
Aqui, no entanto, o objeto escolhido para a crítica está inteiramente desfocado, pois que ao privilegiar a suposta “lógica política” do documento, a análise foge totalmente ao terreno no qual se situa o documento original da Fazenda, que se situa inteiramente no campo da análise e das possíveis alternativas de política econômica à disposição do governo. Que essas alternativas poupem ou não a antiga base política do governo anterior não estava em consideração no documento em análise, mas trata-se de uma extrapolação ou ilação dos autores da análise crítica em questão.
Mas, nessas condições, não há condições de diálogo entre ambos os textos, pois eles se situam e patamares diferentes, de fato incompatíveis entre si, o que torna impossível qualquer comentário crítico a partir de uma terceira posição. Simplesmente não existe um terreno comum de diálogo, mas dois universos distintos separados por anos-luz entre objetivos originais e intenções secundárias. Mais uma vez deve-se chamar a atenção para esse tipo de procedimento não compatível com as boas regras da análise textual.
A análise crítica se detém, em seguida, em alguns exemplos dessa “lógica política” na qual eles escolhem o objeto da caça e exibem triunfalmente a sacola vazia do caçador original: “Na estratégia proposta não há um conflito aberto com o FMI (ou com as agências internacionais que se pautam hoje pelo chamado ‘Novo Consenso de Washington’).
Não se tem idéia, exatamente, do que possa ser esse “novo consenso de Washington”, não explicitado ou explicado na análise crítica. Conhece-se o antigo “consenso”, publicado reiteradas vezes, e hoje objeto de um novo conjunto de ensaios analíticos, dito “pós-Consenso de Washingon”, que visa reafirmar e aprofundar o anterior. Em todo caso, o que se proclama como “conflito aberto com o FMI” afigura-se mais como um produto da imaginação dos autores da análise crítica do que como um dado da realidade, pois não se sabe de nenhum conflito emanando da Fazenda ou do FMI a respeito de políticas econômicas do governo brasileiro, existentes ou alternativas. Ao contrário, as últimas manifestações, de cada uma partes, revelaram total entendimento.
Para que a “problemática” em torno do FMI e do “novo consenso de Washington” fosse mais compreensível à maioria dos leitores, caberia aos autores da crítica deixar bem claro a que tipo de conflito se referem, quais seriam seus componentes e como ele poderia ser resolvido com a predominância de uma ou outra alternativa. À falta dessas definições, ficamos apenas no terreno do imaginário, ou das alucinações coletivas. 
Se os autores entendem que o documento da Fazenda deveria comportar uma “estratégia de conflito aberto com o FMI”, por honestidade intelectual e maior esclarecimento dos leitores deveriam dizer qual deveria ser, exatamente, essa proposta. Como não o fazem, a crítica perde muito de sua consistência lógica. 
Um segundo personagem, nacional e internacional, vem frequentar a análise: Em relação ao capital financeiro, estabelecem-se as mais nítidas garantias de que os seus interesses continuarão a ser contemplados e priorizados.” O chamado “capital financeiro” é um dos mais curiosos personagens que frequentam as análises ditas de esquerda. Trata-se de uma entidade quase fantasmagórica, pois não são identificados exatamente quem são, exatamente, o que fazem e o que pretendem essas figuras malignas da economia nacional (e internacional).
Obviamente existem os banqueiros, mas como todos sabem eles não “brincam” com o seu próprio dinheiro e sim captam os ativos de milhares (milhões) de depositantes e usuários do sistema bancário e financeiro para canalizar recursos para outras áreas, em primeiro lugar para o próprio governo, que mobiliza, como se sabe, grande parte da poupança (e dos fluxos) dos residentes. Os autores da crítica deveriam dizer claramente quais são os interesses desse setor e dizer como e por que o governo decidiu contemplá-los e “priorizá-los”. E talvez oferecer sua própria visão alternativa de como e em que condições esses interesses não deveriam ser contemplados e, ao contrário, “despriorizados”. Seria o mínimo de exigência argumentativa que se espera de autores que tem uma visão muito clara sobre as insuficiências substantivas e de lógica política do documento da Fazenda. 
Outras figuras também comparecem no cenário: “Ao grande capital industrial, propõe-se uma linha de políticas desenvolvimentistas mais ativas. Aos grandes proprietários do campo, compõe-se um roteiro de uma reforma agrária em escala reduzida.”
Insuficiente, não é mesmo? Mas, a análise crítica tampouco vai além dessas generalidades, e não nos diz como deveriam ser as linhas específicas de uma política industrial ainda mais desenvolvimentista e uma reforma agrária em escala ampliada. Se não o faz, a crítica se situa no mesmo patamar do documento criticado: carece de explicitações sobre pontos que ela julga fundamentais. 

À margem da lógica: extrapolando da economia para a mudança política

A seção final da análise crítica penetra num terreno que ultrapassa em muito as modestas virtudes prescritivas em matéria de política econômica do documento da Fazenda. Com efeito, ela começa por atribuir ao documento virtudes que ele aparentemente não tem, nem pretenderia ostentar: “O grande problema a ser respondido por esta estratégia de mudanças de ‘baixa intensidade’ seria, de um lado, a administração das tensões internas ao PT, da base política mais próxima do governo, dos movimentos sociais organizados e, de outro, das aspirações de mudanças profundas no país que se refletiram nas eleições de 2002.”
Parece-me contudo que esta questão situa-se inteiramente à margem, ao exterior mesmo, dos objetivos e propósitos do documento criticado, que não pretende tratar de “mudanças” de alta ou de baixa intensidade, e sim refletir sobre e expor os fundamentos de determinadas escolhas em matéria de política econômica. Em nenhum momento, o documento original se dirige a setores do PT, mas à sociedade como um todo e ele está sim dialogando com a sociedade sobre como realizar as mudanças profundas prometidas na campanha eleitoral. Apenas ocorre que as modalidades de mudança favorecidas pela equipe da Fazenda distanciam-se consideravelmente, cabe reconhecer de modo claro, daquelas modalidades que parecem preferir os autores da crítica. 
A análise crítica adquire então contornos explicitamente gramscianos – o que certamente é um direito dos autores, mas afigura-se incongruente com a natureza do documento original – para fazer algumas recomendações que soam como advertências: “Há experiências históricas de partidos de esquerda que foram derrotados em função de planos voluntaristas de mudança. Mas nas últimas décadas o mais comum é o fracasso de governos eleitos com promessas de mudanças profundas e que foram sendo progressivamente imobilizados por racionalidades continuístas.” 
Trata-se de nova extrapolação que se situa-se num universo paralelo ao do documento da Fazenda, não guardando com ele qualquer relação de parentesco lógico, substantivo ou metodológico. O documento original não pretende provar ou testar nenhuma tese sociológica ou realizar qualquer exercício de comparatismo histórico, neste caso de caráter diacrônico, mas tão somente oferecer os seus próprios fundamentos para aquilo que a análise crítica chama de “racionalidade continuísta”. Talvez se trate disso mesmo, mas o debate tem de situar-se no terreno próprio das políticas propostas, não na projeção utópica do futuro, ou seja, o que pode vir a acontecer caso tais políticas sejam praticadas durante um certo tempo. 
De fato, o que está implícito na crítica gramsciana aqui focalizada?: “…uma política econômica dotada de fundamentos liberais é a longo prazo incompatível com a própria natureza socialista ou mesmo social-democrata de um partido no governo. Uma política econômica de fundamentos liberais paralisaria o próprio ethos de mudança na cultura política, a vontade das pessoas, suas crenças, suas esperanças e, ao final, pressionaria para a mudança da própria identidade e bases sociais do partido que a conduz.
A primeira frase é incontestavelmente verdadeira, tanto do ponto de vista político como do histórico: políticas liberais são em geral opostas a orientações socializantes, mas isso não corresponde a nenhuma verdade revelada, na teoria ou na prática. Trata-se de uma banal e reiterada constatação, podendo ser encontrada em qualquer manual universitário. Deve-se entender que ela apenas figura no texto de análise como uma espécie de advertência de tipo político-ideológica, algo como: “atenção, essa política nos afasta do verdadeiro caminho que guia o partido”?
A segunda frase, porém, deve ser considerada como incorreta, em todos os sentidos, pois que uma política liberal pode, sim, representar um “ethos de mudança”, sobretudo num país caracterizado por anos ou décadas de políticas intervencionistas ou dirigistas. Ao contrário do que supõem os autores da anaálise crítica, uma política liberal não tem nenhum poder “paralisante” sobre pessoas, suas crenças ou esperanças, tanto porque já provou, na prática, que ela pode gerar debate e mesmo contestação, de tipo econômico ou ideológico, como a que acaba de configurar-se.
Por fim, pode-se até mesmo aventar a hipótese de que, se bem sucedida, essa política “liberal” – que na verdade deve ser considerada simplesmente como pragmática – terminará por mudar até mesmo o partido vitorioso nas eleições. Terá sido, talvez, um resultado inesperado da famosa lei das consequências involuntárias. 
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 11 de maio de 2003

terça-feira, 31 de julho de 2018

Crimes economics companheiros: o Inovar-Auto continua a prejudicar o Brasil (IstoÉ)

Uma ameaça ao made in Brazil

Como um processo na OMC contra a política de proteção aos carros produzidos no País se transformou em risco para as fabricantes locais de computadores e celulares


Uma ameaça ao made in Brazil
Nas negociações entre as montadoras instaladas no Brasil e o governo em torno de um programa para proteger a produção nacional, era comum ouvir representantes do setor minimizarem o risco já identificado de um eventual processo na Organização Mundial de Comércio (OMC) contra medidas como a exigência de etapas fabris locais e um adicional de imposto aos importados. Quando o Inovar-Auto foi anunciado, em 2012, a avaliação era de que um contencioso internacional não surtiria efeitos antes do fim do prazo da política setorial, em 2017. Como previsto, a condenação na entidade só saiu em meados do ano passado, por uma queixa aberta por europeus e japoneses. O Inovar-Auto já não existe mais, foi substituído por um novo programa de benefícios. E a conta do processo na entidade periga recair sobre outros fabricantes nacionais: as empresas de tecnologia.
Ao elaborar o documento que questionou os incentivos da cadeia automotiva, os representantes da União Europeia e do Japão aproveitaram para revisar um conjunto de políticas setoriais brasileiras. Decidiram incluir outras iniciativas que julgavam desrespeitar as regras de comércio mundial, como a Lei de Informática e programas de desonerações voltados aos exportadores. Um recurso do Brasil contra a decisão está em fase final de apreciação. A expectativa é que o veredito saia até outubro. Se mantida a condenação, computadores, tablets e celulares nacionais podem ficar até 15% mais caros, o suficiente para reduzir a competitividade com os semelhantes importados e ameaçar a permanência de fábricas e centros de pesquisa no País. “Os investimentos foram feitos considerando a lei, não pode haver quebra de contrato”, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). “Entramos de gaiato no navio no processo e estamos esperançosos de que vamos conseguir superá-lo.”

Produção nacional: Fábrica da Bematech, no Paraná. Cerca de 70% das receitas advêm de produtos beneficiados pela lei (Crédito:Divulgação)

A Lei de Informática existe desde 1991, o que endossa a tese de que a norma, isoladamente, não seria suficiente para motivar o processo. Ela prevê a redução de 80% de IPI para as empresas que cumprirem etapas de produção no Brasil e investirem no mínimo 4% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento. Também estimula a compra de insumos locais. A queixa na OMC questiona sobretudo o estímulo para as etapas de fabricação nacional. “Estamos num momento de muita incerteza sobre o que vai acontecer com o programa”, afirma João Emílio Gonçalves, gerente-executivo de Política Industrial na Confederação Nacional da Indústria (CNI). “Se, por um lado, a decisão do painel da OMC condenou o Brasil, também não é incomum que o órgão de apelação reveja essas decisões.” O setor evita falar em plano B, embora a hipótese já tenha sido admitida até pelo Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab. O cenário mais provável é o de uma reversão parcial do incentivo.
Como os planos de negócios das empresas contam com o benefício, previsto para acabar somente em 2029, o risco de desinvestimento não está descartado. “Um movimento natural seria tirar a fábrica daqui”, afirma Eros Jantsch, presidente da Bematech. A empresa de automação comercial fabrica computadores, impressoras e terminais que são usados nos pontos de vendas de seus clientes. O executivo, porém, acredita que esse cenário mais drástico é menos provável. “Havia uma discussão de que a Lei de Informática ia acabar. Estamos mais longe disso.” Criada em 1987, a empresa do Paraná abriu capital na bolsa vinte anos depois. Hoje, faz parte da Totvs, que somou R$ 563 milhões em receitas no trimestre. Cerca de 70% do faturamento da Bematech advêm de produtos que são incentivados pela Lei de Informática. O benefício tem relação com cerca de 200 vagas no grupo.

Alvo central: processo na OMC foi motivado pela criação do Inovar-Auto, que estimulou a fabricação de carros nacionais (Crédito:Fabio Braga/Folhapress)

Para o presidente da empresa, o incentivo permitiu a criação de um ecossistema de automação comercial brasileiro, inexistente em mercados semelhantes. “Se olhar qualquer outro país da América Latina, o setor é controlado por empresas americanas e europeias”, diz Jantsch. “Todos os países que não precisam hoje proteger seus mercados, ficaram por décadas protegendo.” Além das brasileiras, multinacionais que fabricam hoje no País defendem a importância da regra. “A Dell, assim como muitas empresas globais, vieram para o Brasil muito em função da Lei de Informática”, afirmou Mauricio Helfer, diretor da Dell computadores em apresentação sobre o tema na Câmara, em junho. “Certamente, a lei não vai resolver todos os gargalos de competitividade, mas é uma alavanca para continuar com toda essa cadeia produtiva e de desenvolvimento no Brasil.”
Como exemplo do impulso, a empresa citou os 750 funcionários que possui nos centros de pesquisa locais. No mesmo evento no Legislativo, também defenderam a política a Ericsson, citando os 500 pesquisadores no Brasil e R$ 1 bilhão de investimentos na área pela operação local. Além delas, a WEG apontou 2,5 mil funcionários do grupo relacionados aos produtos beneficiados pela lei e uma melhora nas exportações. O setor usa como argumento de defesa a necessidade de compensar a complexidade tributária do País e acredita que uma interpretação mais abrangente sobre a exigência de produção local, proibida nas regras da OMC, possa ser favorável ao Brasil com base em outros casos julgados na entidade. Ao mesmo tempo em que sofre a disputa na OMC, a lei é alvo de críticas no País. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que o benefício continua a ser prorrogado sem ter seus impactos medidos sobre o setor e apresenta falhas nas checagens sobre as contrapartidas de investimentos em pesquisa. A renúncia anual aos cofres públicos é de cerca de R$ 5 bilhões.
A discussão sobre a eficácia e sobre a necessidade de manutenção da lei deve se acentuar no período eleitoral. Candidatos à presidência vêm sinalizando a intenção de reduzir incentivos fiscais como uma medida para reduzir o quadro de déficit do governo federal. Em defesa, o setor apresenta números apurados pelo próprio Executivo como resultados da política. Segundo o último balanço da Lei de Informática, do Ministério da Ciência e Tecnologia, as 529 empresas beneficiadas, que somavam R$ 46,7 bilhões em receitas em 2015, investiram R$ 1,3 bilhão em pesquisa em desenvolvimento no ano. Elas empregavam pouco mais de 117 mil funcionários. A arrecadação com a venda dos produtos beneficiados pela lei é estimada em R$ 9,8 bilhões. “A lei acabou desenvolvendo uma série de centros de pesquisa no Brasil”, afirma Barbato, da Abinee. “A grande maioria não sobrevive sem esse aporte.” Qualquer que seja a decisão da OMC, o prazo de até dois anos para fazer eventuais mudanças é considerado exíguo. E, além da política setorial de informática, ainda há risco aos exportadores nos outros programas (leia abaixo) questionados.


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Uma critica minha a keynesianos e unicampistas, de 2005 - Paulo Roberto de Almeida

No início do primeiro mandato do governo Lula, ante à continuidade das mesmas linhas gerais de política econômica adotadas na gestão anterior de FHC-2, economistas keynesianos e unicampistas em geral se desdobraram em críticas acérrimas ao suposto modelo "neoliberal", pretendendo fazer algo que eles finalmente conseguiram fazer a partir do segundo mandato de Lula e sobretudo no primeiro mandato de sua sucessora, ou seja, aplicar as suas receitas keynesianas e unicampistas à gestão econômica. Eles publicaram um livro com suas receitas no final de 2003.
Deu no que deu, e contemplamos hoje (2015-2016) toda a extensão do desastre, que eu chamo de A Grande Destruição.
Pois bem, em 2005 eu efetuei uma longa resenha -- na verdade uma glosa de extratos do livro, seguida de comentários meus -- jamais publicada, desse livro que prometia oferecer uma política econômica alternativa à que era seguida pelo então ministro Palocci.
Não que eu tivesse a pretensão de defender o então ministro que caiu por corrupção ao final do primeiro mandato, mas é que as receitas dos "desenvolvimentistas" eram por demais rústicas para o meu espírito crítico.
Como essa resenha crítica nunca foi publicada, eu a posto aqui para demonstrar que os keynesianos de botequim e os unicampistas de circo nunca desistiram de aplicar suas receitas. Eles finalmente conseguiram, no mandato de uma outra unicampista que provou, sobejamente, que essa turma é capaz de tudo para destruir a economia brasileira.
Conseguiram, parabéns.
Mas não foi por falta de alertas e advertências.
Pelo menos da minha parte.
Eis o que eu escrevia então...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12 de janeiro de 2016


Um novo modelo econômico para o Brasil

Comentários e observações de Paulo Roberto de Almeida ao livro Agenda Brasil
(destacados entre parênteses e iniciadas com a sigla PRA)
Brasília, 26 de dezembro de 2005.

Sumário do livro:
João Sicsú, José Luís Oreiro e Luiz Fernando de Paula (orgs.)
Agenda Brasil: políticas econômicas para o crescimento com estabilidade de preços
(Barueri-Rio de Janeiro: Editora Manole & Fundação Konrad Adenauer, 2003, 390 p)

O texto apresentado a seguir é um sumário das principais proposições contidas no livro "Agenda Brasil: políticas econômicas para o crescimento com estabilidade de preços", publicado pela Editora Manole & Fundação Konrad Adenauer, 2003, 390 p., tendo como organizadores e autores, João Sicsú (UFRJ), José Luís Oreiro (UFPR) e Luiz Fernando de Paula (UERJ) e os demais autores: Carmem Feijó (UFF), Fernando Cardim de Carvalho (UFRJ), Fernando Ferrari-Filho (UFRGS), Guilherme Jonas (UFPR), Helder Ferreira de Mendonça (UFF), Jennifer Hermann (UFRJ), Marco Crocco (UFMG), Renaut Michel (UCAM), Rogério Sobreira (EBAPE/FGV) e Sidney de Castro Oliveira (UFRJ).

O livro Agenda Brasil foi lançado no Rio de Janeiro no dia 17 de novembro de 2003 (na livraria Letras & Expressões) e, posteriormente, em Campinas, Curitiba e Belo Horizonte. Algumas fotos do lançamento do Rio, assim como a capa, o sumário e opiniões dos economistas Luiz Carlos Bresser Pereira, João Sayad e Luiz Gonzaga Belluzzo sobre o livro, podem ser encontradas no site www.ie.ufrj.br/moeda


1. Alguns pressupostos do Agenda Brasil
Agenda Brasil é um livro de diagnósticos e propostas para transformação da realidade econômica brasileira. Foi concebido por iniciativa do Grupo de Estudos sobre Moeda e Sistema Financeiro, grupo de natureza interinstitucional (UFRJ, UERJ, UFPR, UFF, EBAPE/FGV, UFMG e UFRGS) sediado no Instituto de Economia da UFRJ. Propõe-se no livro uma alternativa de modelo de política econômica factível que, portanto, pode e deveria ser adotado no País. Não se propõe um modelo de ruptura - o que se propõe é uma transição processual e reformista.
(PRA: a despeito da ressalva, o livro e o conjunto de propostas formuladas por seus autores constituem, sim, um modelo de ruptura, não com o capitalismo, obviamente, pois subsistem muito poucos defensores de qualquer modo de produção alternativo ao existente, mas uma ruptura com a gestão “conservadora” em economia, que na verdade nem chega a ser uma proposta “revolucionária”, mas sim “passadista”, reacionária, no sentido em que se propõe a volta com receitas e recomendações seguidas no passado e que já provaram ou sua inocuidade ou sua nocividade do ponto de vista da boa gestão macroeconômica do país. Não se deve ter nada contra, em princípio, promessas de “ruptura”, pois por vezes elas são necessárias, mas seria importante assumi-las pelo que elas são, não negar-lhes o caráter de profunda inversão do modelo econômico seguido pelo país nos últimos dez anos, que é o que propõem, justamente, este livro e os seus autores. Não se deve ter medo de assumir a responsabilidade intelectual por propostas de ruptura: eu, por exemplo, também proponho a ruptura com esse “modelo” – vá lá, o termo, com o qual não concordo – mas entendo que a minha proposta vá num sentido contrário ao pretendido pelo grupo autor do livro, já que não proponho mais intervenção estatal na economia – que é, basicamente, o que nos estão prometendo esses autores, mas sim uma liberação geral dos entraves colocados pelo Estado para o livre jogo de mercado e a criação de condições institucionais e estruturais para o investimento privado e a intensificação dos intercâmbios globais, sem os controles que eles ainda pretendem impor, contra todas as evidências de sua ineficiência no passado.)

Agenda Brasil tem como ponto de partida dois pressupostos fundamentais. O primeiro é que o modelo de política econômica adotado a partir de meados da década de 1990 pelo governo brasileiro não conseguiu eliminar os entraves ao crescimento sustentado da nossa economia, que estão fundamentalmente no setor externo.
(PRA: O primeiro pressuposto já parte de um diagnóstico errado, uma vez que ele parte de uma afirmação não fundamentada, que consiste em acusar um suposto modelo, não definido e não formalizado explicitamente, por um suposto fracasso, a de superar os entraves ao crescimento econômico do país, cuja responsabilidade vai muito além de um simples “modelo” de política econômica, e toca nas próprias instituições do país, atingindo sua estrutura econômica e as condições nas quais se movem os agentes econômicos. Por outro lado, esse “pressuposto” parte de uma “constatação” no mínimo incorreta, e em grande medida equivocada ou exagerada, que seria a transferência de nossos fracassos em manter um ritmo de crescimento sustentado para o plano externo, descurando por completo sua natureza essencialmente interna. O chamado “estrangulamento externo” constitui a mais freqüente “obsessão” dos nossos economistas ditos “estruturalistas”, desde a era Prebisch, pelo menos. Se, em algum momento, esse “estrangulamento externo” representou algum tipo de entrave ao processo de desenvolvimento do Brasil, há muito tempo ele deixou de desempenhar esse papel, e a ênfase exagerada em sua importância recorrente constitui a mais notável miopia analítica desse conjunto de economistas. Nossos entraves ao crescimento não estão, como afirmado, “fundamentalmente no setor externo”, mas são, em sua maior parte, localizados no próprio Brasil. Não reconhecer isso, quando o mundo cresce muito mais do que o Brasil, é de uma miopia incompreensível para economistas supostamente bem informados.)

Em outras palavras, o tripé de política econômica adotado a partir de 1999 – baseado na geração de superávits primários elevados (atualmente em 4,25% do PIB a.a.), metas de inflação e regime de câmbio flutuante – não tem garantido o crescimento sustentado. De fato, a tendência da economia brasileira nos últimos anos tem sido de semi-estagnação, com crescimento médio de 2,0% a.a. no período 1996/2002.
(PRA: Os autores não reconhecem a existência de um problema fiscal no Brasil. Para eles, a geração de superávits é uma mera perversão das autoridades econômicas, algo como uma maldade gratuita, como se os líderes políticos gostassem de infligir ao país sofrimento desnecessário. Da mesma forma, metas de inflação e regime de câmbio flutuante são condenáveis em si, apenas pelo fato de não “entregarem” crescimento sustentado, como se medidas de política monetária, em seu sentido estrito, tivessem a obrigação de fazer algo mais do que são supostas fazer, isto é, garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, e como se o crescimento tivesse de ser o resultado obrigatório de sua implementação, na ausência de quaisquer outras políticas ou práticas associadas ao meio ambiente macroeconômico que deve embasar o processo de crescimento, que também requer condições institucionais e infra-estruturais, inclusive no plano microeconômico para sua manifestação adequada.)

Em segundo lugar, a economia tem se caracterizado por ciclos da conhecida forma stop-and-go cujos ritmo e amplitude são determinados essencialmente pelos humores, vontades e expectativas dos mercados financeiros doméstico e, principalmente, internacional.
(PRA: Não é principalmente “internacional” o condicionante essencial do atual ciclo de stop-and-go da economia brasileira, e sim de ordem interna. Por outro lado, não são os humores dos mercados financeiros que determinam seu comportamento, e se fossem, eles seriam favoráveis, pois a oferta de liquidez tem sido adequada, assim como a disponibilidade de investimentos externos. As razões devem ser buscadas em outra parte, mas suspeito que os autores do livro partiram da “idéia fixa” das limitações externas, e financeiras, ao crescimento econômico. Tal obsessão deveria merecer um pouco mais de fundamentação empírica.)


2. As Linhas Gerais de um Novo Modelo Econômico
2.1)-O Brasil é um caso relativamente singular dentre os países chamados emergentes, já que as políticas liberais-conservadoras sugeridas pelo Fundo Monetário Internacional eram e são adotadas voluntariamente pelos nossos governos – até recentemente pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e, atualmente, pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Uma eventual reorientação da política econômica doméstica só seria possível com a liquidação dos compromissos financeiros assumidos com o Fundo. A principal proposição relativamente ao FMI é precisamente a não submissão às suas idéias, não renovando acordos, especialmente aqueles que não são necessários e recuperando, desta forma, a autonomia de decisão doméstica sobre políticas macroeconômicas e reformas institucionais.
(PRA: Ao contrário do que dizem os autores, as políticas recomendadas pelo FMI não foram e não são adotadas voluntariamente pelas autoridades econômicas, mas apenas in extremis, na iminência de um crise econômica ou de uma ruptura de pagamentos externos. O qualificativo de “liberais-conservadoras” dado a essas políticas já revela o ânimo dos autores de mais acusar do que de explicar, ou de justificar o apelativo, que em si não quer dizer absolutamente nada, pois da mesma forma se poderia qualificar suas propostas de “intervencionistas-revolucionárias”, sem que isso acrescente qualquer coisa de útil ao debate econômico.
            Em segundo lugar, a “liquidação dos compromissos financeiros assumidos com o Fundo” não muda absolutamente nada o caráter e o conteúdo das políticas econômicas internas, que não são determinadas pelo Fundo, mas decididas pelas autoridades com base numa avaliação da situação concreta. Tanto é assim que a não recondução do acordo com o FMI, em março de 2005, e a “liquidação” antecipada das amortizações devidas não significou nenhuma mudança fundamental, não na orientação, mas na situação econômica do Brasil. O Brasil tem autonomia “recuperada”, mas o que isso implica em termos de condições macroeconômicas concretas? Nada além disso: podemos decidir nós mesmos o que fazer com as orientações de política econômica. Isso não muda em nada a situação fiscal e a natureza dos entraves ao nosso processo de crescimento, que continuam pesando sobre nós mesmos como antes.
A tentativa de “externalizar” nossos problemas fundamentais constitui a mais notória, e a mais ineficiente, escapatória aos nossos problemas básicos, que são todos “made in Brasil”. Não reconhecer isso é querer jogar areia nos olhos de quem deve participar desse debate de forma consciente e bem informada. Não preciso reafirmar aqui que essa ênfase exagerada no caráter externo dos nossos problemas constitui o mais sério impedimento a seu encaminhamento de modo satisfatório.)


2.2)-Com relação a política antiinflacionária, defende-se que se evite utilizar a taxa de juros para controlar a inflação. A elevação da taxa de juros básica (a taxa Selic) somente é capaz de reduzir a inflação se causar redução dos gastos de consumo e investimento, gerando desemprego, reduzindo a demanda e inibindo, em conseqüência, o empresariado a reajustar seus preços - já que o contexto torna-se bastante desfavorável. Utilizar a taxa de juros para combater a inflação é o mesmo que gerar desemprego para combater a inflação, o que não é aceitável dentro de um novo modelo econômico que visa o crescimento sustentável com equidade social. Assim, propõe-se elaborar um conjunto de instrumentos capaz de manter a estabilidade de preços. Por exemplo, proibir a indexação de quaisquer preços da economia, entre esses, tarifas de serviços públicos, aluguéis, salários etc. Organizar câmaras setoriais para sincronizar aumentos salariais e/ou margens de lucro com aumentos de produtividade.
(PRA: Os autores pretendem retirar a cobra da cesta tocando flauta. Propõem que não se use a taxa de juros para combater a inflação, mas não têm nada a propor em troca, a não ser a proibição da indexação de preços e a negociação entre setores interessados, justamente, na alta de seus “preços” relativos, que são os salários e os lucros. Poucos preços são indexados hoje na economia brasileira, e esses que o são deveriam, de fato, sofrer um processo de desindexação, com base numa maior abertura da economia à concorrência, pois eles estão, justamente, em setores relativamente oligopolizados ou cartelizados, que mereceram tal “proteção” no passado, em virtude dos processos de privatização e desestatização, para criar as condições de atratividade aos investimentos, o que hoje não se justifica mais.
            Esse “conjunto de instrumentos capaz de manter a estabilidade de preços” que eles pregam não têm nenhum sentido, a não ser que pretendam a volta aos controles de preços ou, justamente, essas “câmaras setoriais”, que nunca resolveram nada, a não ser estabelecer um “pacto perverso” pelo qual os atores em pauta transferem para o resto da sociedade sua avidez por salários e lucros maiores. Já vimos esse filme no passado, ele não resolveu nada e não pode resolver, a não ser manter o ímpeto inflacionário.
            O alegado objetivo do “crescimento sustentável com equidade social” não quer dizer absolutamente nada, pois ninguém seria a favor do não crescimento com aumento das desigualdades. É o que se chama de proposta inócua, pois apenas essa afirmação não constitui um novo “modelo econômico”. Modelos, em princípio, não existem, mas se os autores pretendem propor algum precisariam sair do nível de generalidade em que se situam. A renúncia à alavanca dos juros, por exemplo, pode ser uma proposta concreta, mas se eles não dizem o que vão colocar no seu lugar, isso tem tanta consistência quanto um pudim de clara de ovos. Os “instrumentos”que eles propõem são risíveis ou ineficientes como “controle de preços”: já provaram no passado não funcionar e continuarão não funcionando no presente e no futuro.)

Ademais, seria necessário substituir importações, estabelecer um novo regime cambial e controlar o movimento internacional de capitais financeiros para reduzir a "importação de inflação", que contamina a economia doméstica seja pelo aumento do preço do dólar, seja pelo aumento do preço em dólar de produtos adquiridos no exterior.
(PRA: os autores nos garantem aqui um conjunto de medidas que seriam inflacionárias e “produtoras” de fuga de capitais, sem assumir nenhuma responsabilidade pelos efeitos deletérios que essas medidas teriam sobre o conjunto da economia. Há praticamente dois anos o país convive com a baixa do preço do dólar, o que também para eles deve ser deletério, pois pretendem um “câmbio administrado”. Faltou dizer em benefício de quem, pois qualquer “preço cambial” produz “ricos” e “pobres” numa ou noutra ponta da equação, que o que se presume que resultaria da sua política de administração cambial seria uma transferência de renda do conjunto da sociedade para os exportadores brasileiros, que assim se veriam desobrigados de investir em ganhos de produtividade e melhorias na sua competitividade internacional. Trata-se de um Robin Hood às avessas, pois a erosão cambial torna a todos mais pobres, e apenas alguns mais ricos.
“Substituir importações” é apenas um novo nome para protecionismo tarifário, “defesa” cambial e outros mecanismos defensivos em política comercial. Trata-se de um “tiro no pé”, da mesma forma como o controle de capitais, que só consegue impedir o ingresso de investimentos, mas não a saída de capitais – nacionais – da economia.)


2.3)-No que se refere ao regime cambial, propõe-se substituir o regime atual de flutuação cambial pura e livre por um regime de minidesvalorizações programadas da taxa de câmbio (ou seja, crawling-peg ativo com regras implícitas e flexíveis). A livre e plena flutuação da taxa de câmbio, num contexto de grande mobilidade de capitais, gera uma grande volatilidade da taxa de câmbio, a qual, por um lado, dificulta a gestão da política macroeconômica e, por outro, aumenta a incerteza entre os tomadores de decisão a respeito de valores futuros, tais como, custo de produção/comercialização e receitas de exportação. Essa incerteza adicional desestimula o investimento, reduzindo o crescimento econômico.
(PRA: O que os autores propõem é um mecanismo automático e regular (isto é, recorrente) de realimentação da inflação, ademais de um “prêmio” aos ineficientes que não gostam de competir com ofertantes externos. Quem não gosta de volatilidade na taxa de câmbio prefere, certamente, a promessa de uma pressão permanente sobre os preços, o que faz com que todos os agentes tenham certeza de que podem corrigir os seus preços num determinado patamar, o que, pela “lei” das antecipações, se traduz por uma correção preventiva maior do que a estabelecida no mecanismo oficial de crawling-peg. Os autores devem adorar exportadores ineficientes e gostam de infligir sofrimento ao conjunto da população.)

 Neste contexto, é necessário a adoção, por parte do Banco Central do Brasil, de um regime cambial que: (i) permita a manutenção da taxa real de câmbio num patamar consistente com a obtenção de grandes superávits na balança comercial, (ii) auxilie na redução da volatilidade da taxa de câmbio e (iii) auxilie na manutenção da estabilidade do nível de preços. Esse regime necessariamente deve ser apoiado por medidas de controles sobre o fluxo internacional de capitais e pela formação de um montante considerável de reservas por parte do Banco Central.
(PRA: Pretender fixar a “taxa real de câmbio” é como ter uma bola de cristal, o que não parece estar ao alcance desses autores, nem do próprio Banco Central. Em lugar de grandes superávits na balança comercial, o que qualquer país deve pretender são grandes fluxos em ambos os sentidos das transações correntes, pois isso assegura um nível adequado de irrigação da economia em divisas, o que diminui, ipso facto, o grau de volatilidade no setor externo. Esse fluxo ampliado também contribui para gerar maior estabilidade nos preços internos, pois a concorrência na oferta é a melhor garantia de que os ofertantes internos não possam impunemente aumentar os seus preços.)


2.4)-No contexto de uma nova arquitetura de política econômica, em que se introduzem
controles de capitais e uma política antiinflacionária não-monetária, e considerando o nível corrente relativamente alto da capacidade ociosa da industria brasileira, sustenta-se que é possível fazer uma redução firme e gradual na taxa básica de juros (taxa Selic) para um patamar real de 6% (ou um pouco menos) ao ano - patamar necessário e compatível com um crescimento econômico da ordem de 5% ao ano. A taxa de juros é muito alta no Brasil porque o governo atribui a mesma múltiplas funções: combate a inflação, equilíbrio do balanço de pagamentos e rolagem da dívida pública.
(PRA: Diagnóstico exemplarmente equivocado. A taxa de juros é alta no Brasil porque acumulamos muitos passivos não cobertos pelos orçamentos correntes, o que é na essência um problema fiscal. O problema dos autores é que eles não reconhecem a existência de um problema fiscal no brasil. Ainda que se admita que os juros no Brasil são absurdamente altos, e que o BC exagera na dose, não há como resolver o problema dos juros no Brasil sem corrigir as distorções fiscais, sem abrir o sistema de crédito a mais concorrência e sem diminuir a pressão “extrativa” do Estado brasileiro sobre o conjunto da economia.)

2.5)-Defende-se uma estratégia de sustentabilidade da dívida pública e de política fiscal ativa gerando-se – inicialmente - um superávit primário de 3,0% do PIB. A estabilização da dívida pública como proporção do PIB não depende apenas do superávit primário, mas na realidade da combinação entre superávit primário/crescimento do produto/taxa real de juros.
(PRA: Os comentários anteriores permanecem válidos aqui também. Um superávit primário de apenas 3% será suficiente quando a dívida pública no Brasil tiver caído para menos de 30% do PIB. O crescimento é importante, mas o problema brasileiro é justamente o de ter crescimento insuficiente, e isso tem outros fatores que não apenas os juros.)

(PRA: Pretender isso é magia econômica, sem dar os meios.)

Nossas estimativas indicam que um superávit primário de 3,0% do PIB, em conjunto com uma taxa real de juros de 6% e um crescimento econômico de 5,0% ao ano, seria suficiente para reduzir a dívida para menos de 50% do PIB até 2011 e para possibilitar a implementação de políticas fiscais ativas com a realização de obras de infra-estrutura e programas sociais abrangentes.
(PRA: Correto, mas o problema é que já estamos com 51% do PIB na dívida e o esforço fiscal tem de ser bem maior. O crescimento nesse nível não virá e a taxa de juros não será reduzida apenas politicamente.)

Contudo, deve-se reconhecer que a meta 3% do PIB para o superávit primário que foi sugerida para um período tão longo é bastante cautelosa, já que o superávit primário deve ser determinado por um conjunto de fatores que se alteram ao longo dos anos: capacidade ociosa existente, taxa de desemprego etc. Em outras palavras, esta meta poderia ser revista caso as condições fossem extremamente favoráveis, como um crescimento continuado do PIB superior a 5% ao ano ou, alternativamente, caso as condições fossem desfavoráveis, isto é, diante de uma taxa de desemprego muito elevada.
(PRA: O problema é que as condições são extremamente desfavoráveis...)


2.6)-A introdução de controles na entrada e saída de capitais é uma medida fundamental para viabilizar um novo modelo econômico. Os objetivos fundamentais da proposta de política de controles de capitais para o Brasil são: (i) permitir maior autonomia da política monetária, fiscal e cambial; (ii) garantir o equilíbrio do saldo em transações correntes do balanço de pagamentos, ao impedir que a entrada de grandes fluxos de capital no país gere uma forte apreciação da taxa real de câmbio; (iii) reduzir a volatilidade da taxa de câmbio. A mudança do regime cambial e a redução da taxa de juros para patamares compatíveis com o crescimento a um ritmo de 5,0% ao ano requer a redução do grau de abertura da conta de capitais do balanço de pagamentos brasileiro. Isso pode ser obtido com medidas como a introdução de depósitos compulsórios não remunerados por um período de 1 ano sobre os capitais externos que entram no país e pelo aumento considerável do IOF sobre todas as aplicações financeiras de não-residentes no Brasil, além de outras medidas complementares, como limitação a exposição dos bancos ao risco cambial e o estabelecimento de limites e regras para a movimentação de recursos da Conta CC5.
(PRA: A política proposta redundaria não apenas em que não teremos mais capitais entrando, como os capitais nacionais procurariam rapidamente a porta de saída. Trata-se de retrocesso inacreditável na política econômica.)


2.7)-A compatibilidade entre uma nova política macroeconômica com políticas setoriais (política industrial e tecnológica, política de investimentos em infra-estrutura, etc.) é vital para viabilizar um crescimento econômico sustentável, de modo a superar tanto o estrangulamento externo quanto possíveis gargalos no processo de crescimento (ex: energia elétrica). Para tanto, deve-se construir a confiança no desempenho futuro da economia através de políticas macroeconômicas e industriais apropriadas. A responsabilidade pela criação de um ambiente seguro e positivo ao crescimento econômico depende do Estado que deve desenvolver instrumentos e mecanismos de coordenação entre os agentes econômicos em torno de um projeto comum de desenvolvimento.
(PRA: Nada contra “políticas adequadas”, mas no Brasil “políticas setoriais” sempre são favorecimento a setores específicos, ou transferência de dinheiro para quem já é rico, como os industriais da FIESP e outros espertos que “provam” que o seu setor é “estratégico” para a economia nacional. Estratégico para mim é educação de qualidade, todo o resto pode ser fornecido pelo mercado, inclusive educação aliás.)


2.8)-Neste contexto, deve-se estimular e criar condições para a retomada do investimento produtivo de forma sustentada. A retomada do investimento deve visar a redução da dependência de capitais externos e o aumento da produtividade, do salário real e do nível de emprego. Por exemplo, a política industrial deve ser discricionária, tendo como norteador a necessidade do país gerar superávits comerciais para diminuir a nossa vulnerabilidade externa. A política de emprego deve simultaneamente promover o aumento dos postos de trabalho, via aumento do investimento e do gasto público, e reduzir o grau de informalidade, através de políticas de apoio às pequenas e médias empresas, incluindo a agricultura familiar.
(PRA: Parece que os autores nunca ouviram falar de constrangimento fiscal. O Estado não tem dinheiro nem para os gastos correntes, quanto mais para aumentar investimentos públicos em setores geradores de emprego. Reduzir “dependência” de capitais externos é outra obsessão desses economistas, quando apenas países com contas desequilibradas apresentam essa dependência.)


O livro "Agenda Brasil" contém ainda propostas em outros campos cruciais para a construção de um novo modelo econômico, tais como, a necessidade de instituição de mecanismos privados de financiamento de longo prazo na economia, o reordenamento dos instrumentos de financiamento para o desenvolvimento regional e a implantação de instrumentos que visam a melhora da distribuição da renda no País.
(PRA: Pela primeira vez se fala em mecanismos privados de financiamento, o que é de certo modo surpreendente, quando ele deveria estar na base do processo de crescimento. “Construção de um novo modelo econômico” é uma frase de efeito, que não quer dizer absolutamente nada, ou tudo, depende de como se olha o processo. Os autores, por exemplo, acreditam em mais intervencionismo estatal, em controles de capitais, em papel primordial do Estado como investidor primário e coisas do gênero. Acho que eles vão continuar ensinando nos bancos universitários, pois parecem pouco preparados para administrar o país real.)

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 26 de dezembro de 2005.