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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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domingo, 10 de março de 2024

Livros editados, organizados e publicados por Paulo Roberto de Almeida (1992-2024)

 Livros editados por Paulo Roberto de Almeida

Organização, publicação

 

Lista compilada em 1/01/2024 

 

15) Intelectuais na diplomacia brasileira: a cultura a serviço da nação (Brasília: 15 maio 2023, 310 p.; versão final: 26 janeiro 2024; em publicação. Relação de trabalhos n. 4397)

14) Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); Brasília: Funag, 2017; volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913; volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914. Relação de Publicados n. 1271.

13) A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (São Paulo: LVM, 2018, 448 p.; ISBN: 978-8593751394; Amazon)

12) O Homem que pensou o Brasiltrajetória intelectual de Roberto Campos (Curitiba: Appris, 2017, 373 p.; ISBN: 978-85-473-0485-0; Amazon.com.br).

11) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (Brasília: Senado Federal, 2016, 504 p.; ISBN: 978-85-7018-696-6; Livraria do Senado Federal).

10) The Drama of Brazilian Politics: From 1814 to 2015 (with Ted Goertzel; 2015, 278 p.; ISBN: 978-1-4951-2981-0; Kindle, ASIN: B00NZBPX8A).

09) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2016, 326 p.; edição digital; ISBN: 978-85-0212-208-6; Amazon.com.br).

08) Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos (com Rubens Antônio Barbosa e Francisco Rogido Fins; Brasília: Funag, 2010, 244 p.; ISBN: 978-85-7631-274-1; Biblioteca Digital da Funag). 

07) Envisioning Brazil: A Guide to Brazilian Studies in the United States, 1945-2000 (with Marshall C. Eakin; Madison: Wisconsin University Press, 2005, 536 p.; ISBN: 0-299-20770-6; Amazon.com).

06) Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (com Rubens Antonio Barbosa; São Paulo: Saraiva, 2005, 328 p.; ISBN: 978-85-02-05385-4; esgotado).

05) O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000 (com Marshall C. Eakin e Rubens Antônio Barbosa; São Paulo: Paz e Terra, 2002; ISBN: 85-219-0441-X; Academia.edu).

04) Mercosul, Nafta e Alca: a dimensão social (com Yves Chaloult; São Paulo: LTr, 1999; Estante Virtual). 

03) Carlos Delgado de Carvalho: História Diplomática do Brasil (edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13; 420 p.; esgotado; 2ª edição: 2016).

02) José Manoel Cardoso de Oliveira: Actos Diplomaticos do Brasil: tratados do periodo colonial e varios documentos desde 1492 (edição fac-similar, publicada na coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal; Brasília: Senado Federal, 1997; 2 volumes; Volume I: 1493 a 1870; Volume II: 1871 a 1912; Amazon.com.br; forgotten books). 

01) Mercosul: Textos Básicos (Brasília: IPRI-Fundação Alexandre de Gusmão, 1992, Coleção Integração Regional nº 1; Biblioteca Digital da Funag

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília: 4542, 1 janeiro 2024, 2 p.

Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2024/01/livros-organizados-editados-e.html); disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/112738951/4542_Livros_organizados_editados_e_publicados_por_Paulo_Roberto_de_Almeida_2024_).

 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Política externa brasileira: da atual para uma necessária (2022, inédito) - Paulo Roberto de Almeida

 Política externa brasileira: da atual para uma necessária  

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor;

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com).

Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p. (inédito neste formato)

  

Retrocessos institucionais e diplomáticos no período recente

O Brasil conheceu, desde 2019, um processo de deterioração da qualidade de suas políticas públicas, a começar pelo fato de que, justamente, o país nunca exibiu, nesse período, um programa definido de políticas gerais ou setoriais em direção a metas ou objetivos claramente explicitados. O que tivemos, mais propriamente, foi uma ruptura com padrões usuais de governança, parcialmente na economia, enganosamente na política – que, a despeito dos anúncios iniciais, voltou ao velho padrão da “velha política” – e, bem mais nitidamente, em áreas setoriais, como meio ambiente, direitos humanos, cultura e educação e, sobretudo, nas relações exteriores, todas elas contribuindo para uma deterioração excepcional da credibilidade brasileira no plano internacional. Poucas dessas rupturas superam o desastre incomensurável que tem sido o rebaixamento da imagem do Brasil no ambiente externo e uma perda de qualidade notável da ação externa da diplomacia profissional, mas não obviamente por sua própria culpa.

A maior parte desses problemas deriva dramática incapacidade do presidente de não só não corrigir os problemas apontados por observadores isentos, mas de criar novos problemas e agravar os existentes, numa dramática demonstração de ausência de governança. Na área do meio ambiente, essa extraordinária capacidade de criar problemas para si próprio e para o país foi evidente, pois o que se registrou foram recordes seguidos de destruição ambiental, sobretudo na Amazônia, que estão justamente no cerne das críticas internacionais à atual postura do governante brasileira, ademais de seus reiterados ataques ao sistema democrático do Brasil, especialmente em relação ao seu fiabilíssimo sistema eleitoral. 

O próximo governo terá de efetuar uma revisão dos conceitos básicos da atual diplomacia, com a adoção de uma política externa que vise a recuperação da credibilidade externa do país. Os eixos principais são, na área política, um retorno ao multilateralismo com base no Direito Internacional e em princípios e valores tradicionais de nossa diplomacia; na área econômica, cabe perseguir a inserção do país na economia global, por meio da abertura econômica geral e da integração regional. Caberia, igualmente, proceder à revisão das atuais “alianças estratégicas” num sentido puramente pragmático, não mais ideológico.

 

A vertente econômica de uma nova postura internacional para o Brasil

A revisão dos conceitos básicos da política externa deve ter, portanto, o objetivo da plena inserção do Brasil na globalização. A incorporação do país aos padrões de governança econômica da OCDE pode ser um bom começo para a consecução de tal meta, no passado recusada pelos governos lulopetistas por puro preconceito contra o que se julgava ser, equivocadamente, um “clube de países ricos”, quando a organização de Paris é, desde muito tempo, um “clube das boas práticas”. A justificativa alegada para tal recusa era a defesa de espaços soberanos de políticas nacionais visando o desenvolvimento do país. Ora, a soberania sequer necessita ser objeto de retórica – como foi o caso dos governos de esquerda ou de direita –, pois ela se exerce, simplesmente, por meio de políticas conducentes justamente à prosperidade nacional, atualmente indissociáveis da interdependência global. 

A evolução das relações econômicas internacionais foi sensivelmente deteriorada pela política antimultilateralista do governo Trump, com a marginalização indesejável da OMC e uma postura defensiva em relação à ascensão da China nos circuitos da globalização, que foi parcialmente revertida (contra os interesses das próprias empresas americanas. Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se novos acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul em torno de seu eixo básico (que é, atualmente, o da união aduaneira, não o de uma zona de livre comércio). A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas nacionais do setor manufatureiro. 

Um exercício positivo, nesse sentido, embora sem qualquer reforma tributária interna, foi a conclusão do acordo Mercosul-União Europeia, mas prejudicado em sua ratificação e entrada em vigor pelas políticas antiambientais do governo Bolsonaro. Cabe justamente não esquecer que o Mercosul, assim como a UE, é uma personalidade de direito internacional, como tal reconhecido no âmbito da governança econômica global, constituindo, assim, um patrimônio bastante útil no seu reforço institucional com vistas a criar um espaço econômico integrado em esfera continental (da América do Sul). 

O Mercosul – ademais de eventuais arranjos unilaterais que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão, como efetuado atualmente pelo Uruguai com seu objetivo de concluir um acordo de livre comércio com a China – não é, nunca foi, culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, geralmente por distorções criadas em âmbito nacional e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros, o Brasil e a Argentina. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Um sólido diálogo entre os maiores países deveria permitir superar as dificuldades atuais e caminhar no sentido do reforço do Mercosul, não do seu desmantelamento.

Não obstante, caberia efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Essa é uma agenda aberta, mas que ainda não recebeu a atenção devida, dada a descoordenação existente entre os diversos ministérios envolvidos nessa frente, mas sobretudo pela ausência de um diálogo consistente com os principais atores da economia nacional, os agentes privados conectados ao comércio exterior e a uma agenda de produtividade e de inserção do Brasil na economia global. 

 

A dimensão política universalista de uma nova política externa

A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica na definição dos grandes objetivos na frente externa. Tal postura foi sendo progressivamente construída, desde os tempos da ditadura militar, pela qualidade indiscutível de sua diplomacia profissional, mas se fortaleceu amplamente no período democrático, com o pleno engajamento do Brasil em vertentes anteriormente difíceis em sua agenda externa – como meio ambiente e direitos humanos, mas também integração regional –, o que, conjuntamente com a estabilização macroeconômica do Plano Real, permitiu que o Brasil ganhasse ampla credibilidade internacional nos anos 2000.

A política externa do lulopetismo, no entanto, conduziu o Brasil a coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O governo bolsonarista apenas desmantelou, parcial ou totalmente, os esquemas existentes, sem colocar absolutamente nada em seu lugar, a não ser uma política de aliança submissa em relação ao governo americano anterior (o de Donald Trump) e com regimes similares ou de orientação iliberal e direitista. 

A revisão dos padrões impostos à diplomacia profissional desde o início do século implica, em grande medida, uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial. Mas um retorno, pelo provável próximo governo, às opções conhecidas em suas escolhas anteriores, pode redundar, no âmbito regional, no estreitamente de relações com governos de esquerda – em lugar do pragmatismo econômico –, assim como, no plano global, no reforço de uma aliança com a coalizão do BRICS, cuja vocação original para a cooperação econômica tem sido atualmente distorcida pela vontade das duas grandes potências não democráticas de reforçarem essa base organizacional – e até ampliá-la – para o objetivo duvidoso de se construir uma “ordem global” alternativa ao Ocidente, como se o distanciamento em relação às democracias de mercado fosse do interesse do Brasil. A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia criou uma nova situação nas relações internacionais que precisa ser cuidadosamente examinada pelos novos planejadores diplomáticos, de maneira a não fazer do Brasil um mero pião de objetivos nacionais de certos membros do BRICS que não são, e não podem ser, os do Brasil, sobretudo tendo-se em conta a histórica e profunda adesão do país a princípios doutrinais que já tinham sido expostos por Rui Barbosa no início do século XX, depois reafirmados por estadistas do porte de Oswaldo Aranha, no fragor da Segunda Guerra Mundial, assim como por Afonso Arinos de Melo Franco e por San Tiago Dantas no início dos anos 1960. 

 

A circunstância externa do Brasil: uma geografia que precisa ser trabalhada

O filósofo espanhol Ortega y Gasset, escreveu, nas suas Meditaciones del Quijote (1914), uma frase constantemente repetida pelos admiradores: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, eu tampouco me salvo.” Cabe, com efeito, atribuir forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.

A circunstância geográfica do Brasil, a sua projeção estratégica – para usar um conceito dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente, pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total ausência de facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Nessa região se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.

Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. Ou seja, construindo um espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.

Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e mais além, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

A circunstância geográfica do Brasil recomendaria, portanto, uma dedicação especial de sua futura diplomacia no sentido de recompor as bases de uma liderança natural, que se exerceria a partir de um amplo projeto de abertura econômica – unilateral, se for o caso – em direção dos países vizinhos do continente sul-americano, como a base indispensável para sua projeção global. Mas, não contente de dispor dessas “vantagens comparativas regionais” no continente, a antiga diplomacia lulopetista decidiu empreender novos saltos extrarregionais de puro voluntarismo diplomático internacional, primeiro congregando dois outros sócios no projeto do IBAS, a Índia e a África do Sul, depois se lançando com a Rússia, na construção do BRICS, que incorporou a China – sempre propensa a se utilizar de novos tabuleiros para seu projeto de preeminência global –, ambos carentes de estudos técnicos compatíveis com as prioridades econômicas e diplomáticas do Brasil, apenas respondendo a aspirações grandiosas de projeção internacional do então chefe de Estado.

 

A questão mais crucial da agenda internacional e os desafios diplomáticos do Brasil

Depois da invasão e anexação ilegais da península da Criméia, juridicamente sob a soberania da Ucrânia, em 2014, pelo governo de Putin, a nova decisão do líder russo de empreender uma guerra de agressão contra o país vizinho, em fevereiro de 2022, acelerou alguns desenvolvimentos que já se processavam no ambiente internacional, mas sobretudo criou uma nova agenda nas relações internacionais que coloca o mundo ante uma nova divisão geopolítica que se pensava superada na década final do século XX. Depois de quase meio século de um cenário bipolar – confrontando dois sistemas políticos e econômicos antagônicos, o mundo parecia encaminhar-se para uma “nova ordem internacional”, de impulso à globalização sobre a base de sistemas de mercados razoavelmente ancorados na ordem econômica de Bretton Woods: o multilateralismo econômico fundado num consenso básico em torno dos intercâmbios abertos administrados pela tríade FMI-BM-OMC. 

No máximo, a antiga guerra fria geopolítica tinha dado lugar a uma nova guerra fria econômica, caracterizada pelo encolhimento geográfico e econômico da antiga União Soviética e pela irresistível e extraordinária ascensão econômica da China, impulsionada desde sua adesão ao GATT-OMC em 2001. Mas, o que foi chamado de “unilateralismo arrogante” por parte dos Estados Unidos, na última década do século XX, assim como sua postura paranoica de considerar a China um “adversário estratégico”, incitou esta última a rever sua posição mantida desde os anos 1970 (ou talvez até antes), de ver nos EUA um possível aliado na confrontação que ela mantinha com a União Soviética – por diversos motivos, inclusive territoriais – e de passar a reinserir o gigante americano no rol das antigas potências ocidentais que pretendiam manter o gigante asiático – quando este era o “homem doente” da Ásia – numa espécie de continuidade do “século de humilhações”. 

O que ocorreu a partir daí foi uma reaproximação entre as duas grandes autocracias socialistas do passado, mediante diversos mecanismos – entre eles o próprio BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai –, até resultar na “aliança sem limites” proclamada por Xi Jinping junto a Putin, menos de um mês antes da invasão selvagem das forças russas contra a Ucrânia. Essa quase repetição da invasão da Polônia por Hitler, em 1939, criou uma nova situação internacional que colocou o Brasil em face de dilemas que não tinham sido registrados desde aquela época da Segunda Guerra Mundial. Com efeito, mesmo a ditadura do Estado Novo, depois do atropelo feito contra a Constituição de 1934, substituída pela “polaca” de novembro de 1937, não ousou contrariar a doutrina jurídica seguida sem hesitações pela diplomacia brasileira desde o Império: o Brasil não reconheceu a suserania nazista sobre a Polônia, assim como não reconheceu a incorporação dos três Estados bálticos ao império soviético em 1940, pois que tais usurpações do Direito Internacional tinham sido efetuadas por meio da força bruta, tal como se processou no caso da anexação russa da Crimeia, em 2014, e na subsequente invasão da Ucrânia oriental, assim como do resto do país, em 2022. 

Registre-se que, em 2014, o governo Dilma Rousseff, provavelmente em função do BRICS e mais especialmente pelas relações pessoais travadas entre Lula e Putin desde antes do início desse grupo, em 2009, jamais tomou a posição que seria de se esperar da adesão do Brasil e de sua diplomacia aos sagrados princípios do Direito Internacional ou, mais simplesmente, dos dispositivos da Carta das Nações Unidas que proíbem guerras de agressão. O mesmo pode ser dito do cenário atual, marcado por flagrantes violações da Carta da ONU e, mais ainda, por crimes de guerra, por crimes contra a paz e, possivelmente, até por crimes contra a humanidade, os mesmos que conduziram líderes civis e militares nazistas, em 1946, ao Tribunal de Nuremberg. O Brasil aderiu, formalmente, às resoluções do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, censurando a Rússia pela invasão, mas jamais a condenou diretamente pelas cruéis violações dos tratados internacionais, das leis da guerra e dos protocolos humanitários. 

Ainda que conclamando a uma “cessação das hostilidades” – como se estas fossem recíprocas –, ou apelando a uma solução pacífica do conflito, tendo em conta as “preocupações de segurança das partes” – como se a Ucrânia tivesse, em algum momento criado qualquer insegurança para o seu poderoso vizinho –, o Brasil se opôs terminantemente à imposição de sanções contra a Rússia, como adotadas pelos países aderentes aos artigos pertinentes da Carta da ONU – apenas que de forma unilateral, em vista do uso abusivo do direito de veto pela Rússia –, assim como também se opôs ao apoio militar à Ucrânia agredida, como se esta devesse simplesmente se render em face da maciça ofensiva militar decretada pelo líder saudosista do antigo império russo e soviético. 

Em outros termos, tanto a atual diplomacia bolsonarista, como a possível futura diplomacia lulopetista se colocam, objetivamente, numa posição “solidária” a Moscou, ainda que disfarçada por uma “neutralidade” hipócrita, ou mais exatamente por um “equilíbrio” deformado e enviesado, em nome de interesses oportunistas vinculados ao aprovisionamento em fertilizantes e combustíveis. Tais posturas, à luz de nossas tradições de respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas inseridas em dispositivos pertinentes da Carta da ONU e da Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas (entre outros instrumentos doutrinais e principiológicos do sistema internacional), chocam pela indiferença demonstrada em relação a esses antigos princípios e valores da diplomacia tradicional brasileira, pela atual e pela provável futura orientação de política externa no tocante ao mais grave problema da comunidade mundial na presente conjuntura. 

Se o atual governo permanece indiferente ao suplício de um povo e de uma nação, cabe esperar que um governo compatível com aquelas velhas tradições doutrinárias e universalistas da diplomacia brasileira revise tal posição, em nome do conceito e da imagem externa do Brasil, e que passe a restaurar o prestígio internacional do país, tão duramente conquistado ao longo de décadas, ou mesmo em dois séculos, de paciente construção de uma diplomacia caracterizada pela sua fidelidade aos grandes princípios do Direito Internacional, características que foram terrivelmente abaladas nos últimos quatro anos. Como se pode constatar, não é apenas a democracia que vem patinando no Brasil atual, mas também a sua política externa, para maior angústia da diplomacia profissional. Este é, provavelmente, o maior desafio que se apresenta a uma futura diplomacia compatível com nossas tradições.

 

Paulo Roberto de Almeida, doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas e mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, é autor de diversos livros sobre a política externa e a história diplomática brasileira, entre eles Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(3ª edição: Brasília, Funag, 2017), Apogeu e Demolição da Política Externa: itinerários da diplomacia brasileira (Curitiba: Appris, 2021) e A Grande Ilusão do BRICS e o universo paralelo da diplomacia brasileira (Brasília: Diplomatizzando, Kindle, 2022). 

 

[Brasília, 4208: 28 julho 2022, 8 p.]

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

O Nobel da insensatez - Revista Veja

 O Nobel da insensatez

Revista Veja | Brasil
23 de fevereiro de 2024


A obsessão do presidente pela busca de protagonismo internacional produz mais um vexame diplomático e empurra o Brasil outra vez para o lado errado da história Daniel Pereira

O PRESIDENTE Lula traçou dois grandes objetivos para o seu terceiro mandato. No plano interno, pavimentar o caminho para a sua reeleição, em 2026. No externo, tornar-se um líder global, status com que sonha desde a sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto. Aos olhos de hoje, a segunda meta parece bem mais difícil. Para alcançá-la, o governo brasileiro tenta ser protagonista no debate sobre proteção ao meio ambiente e costurar no âmbito do G20 - grupo que reúne as dezenove maiores economias do mundo, além da União Africana e da União Europeia - uma aliança global contra a fome e a pobreza. Se der certo, o petista pode até ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz, apostam alguns de seus principais assessores, como o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias. O problema de Lula não é o tamanho de sua ambição, mas a forma como ele faz política externa, principalmente quando abandona a tradição brasileira de mediação e conciliação, distorce fatos históricos, tem recaídas ideológicas e entoa discursos irresponsáveis como se estivesse num palanque eleitoral, arranhando a imagem e prejudicando os interesses do país.

A diplomacia é, entre outras coisas, a arte de medir bem as palavras. É justamente o que o presidente não fez, mais uma vez, ao comparar as ações do Exército de Israel em Gaza, deflagradas em resposta aos ataques terroristas do Hamas, ao extermínio de 6 milhões de judeus, durante a Segunda Guerra Mundial, pelo regime nazista de Adolf Hitler. "O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus", disse o presidente brasileiro durante uma entrevista na Etiópia. A comparação é um despropósito completo. Feita de forma improvisada, por ignorância ou ma-fé, ela serviu de estopim para uma crise diplomática entre Brasil e Israel. O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, puxou a reação, escrevendo numa rede social que as palavras de Lula eram vergonhosas e graves. "Isso banaliza o Holocausto e prejudica o povo judeu e o direito de Israel de se defender. Comparar Israel ao Holocausto nazista e a Hitler é cruzar a linha vermelha". Sob ordens de Netanyahu, o chanceler de Israel intensificou o revide, aproveitando para constranger publicamente o embaixador do Brasil no país, Frederico Meyer.

Como ocorre em casos

dessa natureza, Meyer foi convocado pelo governo de Israel a prestar esclarecimentos sobre a fala de Lula. O encontro entre ele e o chanceler israelense, Israel Katz, ocorreu num importante memorial do Holocausto. Lá, sob as lentes e os microfones da imprensa, Katz declarou o presidente brasileiro persona non grata, o que significa que ele não é bem-vindo em Israel enquanto não se retratar, e exigiu um pedido de desculpas. Tudo em hebraico, e sem a presença de um intérprete, o que pode ter impossibilitado a compreensão do que era dito pelo embaixador brasileiro. A crise estava definitivamente instalada. No Brasil, Lula, contrariado, determinou a convocação do embaixador de Israel para prestar esclarecimentos. De nada adiantou. O chanceler Katz continuou a fustigar o presidente brasileiro nas redes sociais: "Sua comparação é promíscua e delirante. Uma vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros. Ainda não é tarde para aprender história e pedir desculpas". Em resposta, o ministro de Relações ExterioresMauro Vieira, declarou que as manifestações de Katz eram inaceitáveis na forma, mentirosas no conteúdo e funcionariam como uma cortina de fumaça.

Para o governo brasileiro, Netanyahu está aproveitando o caso para fugir de explicações sobre denúncias de crimes de guerra cometidos pelas forças israelenses contra civis palestinos. Pode até ser verdade, mas quem deu a deixa, como uma declaração desatinada e irresponsável, foi Lula. As recaídas ideológicas e os improvisos têm feito mal ao presidente na área internacional. Como se sabe, a esquerda brasileira e o PT nutrem simpatia pela causa palestina e defendem a existência de dois Estados independentes na região, o que é rechaçado por Israel. Até aí, tudo dentro da normalidade. A situação começa a desandar quando desce aos detalhes. Após as barbaridades perpetradas pelo Hamas em 7 de outubro, Lula resistiu quanto pode a chamar de terroristas os atos praticados pelo grupo contra civis israelenses, que incluíram assassinatos, torturas, sequestros e estupros. A duras penas, a diplomacia brasileira, um nicho de excelência no serviço público brasileiro, conseguiu convencer o presidente a fazer o que devia ser feito: chamar os terroristas pelo nome. Lula, por sinal, foge das cascas de banana que ele mesmo costuma espalhar pelo caminho ao seguir o roteiro dos diplomatas profissionais.

Dias antes de sua declaração desastrosa, o presidente divulgou uma mensagem nas redes sociais em que, fazendo jus à tradição brasileira, dizia que o ataque do Hamas era indefensável e merecia condenação veemente, mas que a reação de Israel era desproporcional, indiscriminada e inaceitável, tendo resultado na morte de cerca de 30 000 civis, incluindo mulheres e crianças. Por isso, Lula defendia um imediato cessar-fogo. Essa posição enfática, manifestada de forma ponderada, foi logo atropelada pela entrevista na Etiópia, que ainda serviu de pretexto para os radicais de sempre e os áulicos de plantão tentarem dourar a pílula do desatino retórico cometido pelo chefe. Assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, o ex-chanceler Celso Amorim afirmou que a fala de Lula "sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções que pode ajudar a resolver uma questão que a frieza dos interesses políticos foi incapaz de solucionar", conforme relatado pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo. O senso de protagonismo brasileiro nesse caso não é apenas exagerado. Simplesmente não aconteceu.

Além de causar problemas no cenário externo, Lula conseguiu dar um tiro no pé na política interna, tomando para si o protagonismo da agenda negativa, que até então estava toda no colo de seu principal adversário, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Embora algumas vozes desatinadas tenham dado apoio, a exemplo da deputada Gleisi Hoffmann, presidente do PT, que atacou Netanyahu dizendo que o israelense não tem autoridade moral nem política para apontar o dedo para ninguém, o bom senso foi a tônica no Congresso. Conhecido por seu perfil conciliador, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, cobrou de Lula, de quem é aliado, uma retratação por comparar a ação militar de Israel em Gaza ao Holocausto. "Ainda que a reação do governo de Israel (aos atos terroristas do Hamas) venha a ser considerada desproporcional, excessiva, violenta, indiscriminada, não há como estabelecer um comparativo com a perseguição sofrida pelo povo judeu no nazismo", disse o senador. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner, um dos poucos quadros no PT com coragem para dizer o que pensa ao presidente da República, seguiu caminho parecido. Durante a sessão plenária, Wagner relatou ter dito o seguinte a Lula: "Não tiro uma palavra do que vossa excelência disse, a não ser o final, porque, na minha opinião, não se traz à baila o episódio do Holocausto para nenhuma comparação".

Desde a campanha eleitoral de 2022, Lula vem usando a política externa para fazer um contraponto a Bolsonaro, cuja gestão chegou a se gabar de ter transformado o Brasil num pária internacional. No primeiro ano de seu terceiro mandato, o petista privilegiou a agenda internacional e visitou mais de vinte países, tentando conquistar um pouco de visibilidade positiva no cenário internacional. Essa ofensiva, se bem-sucedida, pode render dividendos de imagem, acordos em diferentes áreas e ganhos financeiros. Também pode lustrar a própria imagem de Lula, que chegou a ser chamado de "o cara" por Barack Obama. Anos depois, em sua biografia, o ex-presidente americano relatou que o petista lhe causara boa impressão, mas ressaltou também que, segundo constava, tinha escrúpulos de um chefão de uma organização criminosa.

Pelo menos até 2026, a forma como o Brasil será visto no exterior dependerá de como Lula se portará em temas tão distintos como meio ambiente, combate à miséria e negociações de paz. Na quarta-feira, o presidente recebeu o chefe da diplomacia dos Estados Unidos, Antony Blinken, e ouviu dele que os americanos concordam com a solução de dois Estados independentes na região, mas rechaçam veementemente a comparação feita por Lula entre a ação de Israel em Gaza e o Holocausto. Hoje, o Brasil é um importante líder regional, com pretensão de ascender à primeira prateleira dos países protagonistas no cenário internacional. As oportunidades para ganhar relevância estão dadas. O Brasil sediará em novembro a reunião do G20, quando Lula espera sacramentar a aliança global contra a fome e a pobreza. Além disso, será palco no ano que vem da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. De olho ou não no Nobel da Paz, o presidente petista pode conseguir avanços importantes nesses dois encontros. Basta deixar a ideologia, a tentação do palanque e o improviso desrespeitoso de lado. Como bem ressaltou o ex-embaixador Marcos Azambuja, a diplomacia é feita de "palavras cuidadas", ponderadas, bem pensadas. A crise diplomática com Israel é uma prova disso.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A guerra de Lula - Editorial Estadão

 A guerra de Lula

Estadão.com.br, 21 de fevereiro de 2024

O presidente Lula da Silva parece ter declarado guerra ao Ocidente. Uma guerra imaginária, claro, mas nesse delírio o petista pretende posicionar o Brasil na vanguarda da luta contra tudo o que simboliza os valores ocidentais - tendo como companheiros de armas um punhado de notórias ditaduras, como China, Rússia, Irã e Venezuela.

A irresponsável declaração de Lula sobre Israel, comparando a campanha israelense contra os terroristas do Hamas ao Holocausto, está perfeitamente alinhada a esse empreendimento ideológico. Não foi, portanto, fortuita nem acidental.

Lula parece empenhado em usar seu terceiro mandato para lançar-se como líder político do tal "Sul Global", uma espécie de aggiornamento do "Terceiro Mundo" dos tempos da guerra fria. Nessa nova ordem, as características distintivas do Ocidente - democracia, economia de mercado e globalização - são confrontadas por regimes autocráticos que buscam reviver o modelo que põe o Estado e a soberania nacional em primeiro lugar, à custa das liberdades individuais, direitos humanos e valores universais, denunciados como armas retóricas das democracias liberais para perpetuar sua supremacia.

No confronto Ocidente-Oriente, a geopolítica e a segurança nacional prevalecem sobre a economia e a globalização. A geopolítica multilateral do pós-guerra se fragmenta em arranjos insuficientes para as necessidades de cooperação ante desafios globais, como mudanças climáticas, pandemias, terrorismo e guerras.

O Brasil não está imune a essas incertezas, mas, comparativamente, tem vantagens. Suas dimensões, sua democracia multiétnica e pacífica e sua economia relativamente industrializada e diversificada o tornam uma potência regional. Seus recursos o colocam numa posição-chave para equacionar o tripé do desenvolvimento sustentável global: segurança alimentar, energética e ambiental.

Nessas águas turvas e tumultuosas, sem grandes instrumentos de poder, o País precisa, para defender interesses nacionais e promover os globais, de sutileza, inteligência e credibilidade. Felizmente, conta com uma tradição diplomática consagrada nos princípios constitucionais do respeito aos direitos humanos, à democracia e à ordem baseada em regras, e corporificada nos quadros técnicos do Itamaraty.

Mas esse capital está sendo dilapidado pela diplomacia sectária do presidente Lula da Silva. Lula já disse que a democracia é relativa. Mas sua política externa é definida por um princípio absoluto: a hostilidade ao Ocidente (o "Norte", os "ricos") e o alinhamento automático a tudo o que lhe é antagônico.

Sua passagem pela África foi um microcosmo desse estado de coisas. Interesses econômicos foram tratados de forma ligeira. Em entrevista, ele se evadiu de cobrar a Rússia e a Venezuela por sua truculência autocrática, ao mesmo tempo que insultou judeus de todo o mundo ao atribuir a Israel práticas comparáveis às dos nazistas.

Seja em conflitos onde o País teria força e autoridade para atuar, como os da América Latina, seja naqueles nos quais não tem força, Lula se alinha ao que há de mais retrógrado e autoritário. Abrindo mão de sua neutralidade, o País se desqualifica como potencial mediador. O Brasil poderia promover seus interesses econômicos e pontos de cooperação com a Eurásia sem prejuízo da defesa de valores civilizacionais comuns ao Ocidente. Mas Lula sacrifica os últimos sem nenhum ganho em relação aos primeiros. Em sua ânsia de se autopromover como líder global dos "pobres" contra os "ricos", reduziu a máquina do Itamaraty a linha auxiliar de sua ideologia maniqueísta e seu voluntarismo narcisista.

A "frente ampla democrática" propagandeada na campanha eleitoral deveria ter sido projetada para as relações internacionais. Mas também aqui ela se mostrou uma fantasia eivada de sectarismo ideológico - arrastando consigo o Brasil, obliterando suas oportunidades de integração econômica e prejudicando possibilidades de cooperação pela promoção da paz, da democracia, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais que a Constituição traçou como norte da diplomacia nacional.

sábado, 30 de dezembro de 2023

As atrocidades russas na Ucrânia continuam: o Itamaraty teria alguma nota para soltar a este respeito?

 From: Centre for Defence Strategies (CDS)

  • On the morning of December 29, Russia launched the most massive aerial attack on Ukraine to date using various types of strike drones and missiles. In total, the enemy used 158 aerial attack assets. It directed them towards industrial, military, and civilian objects, including critical infrastructure. “Everything was flying, except, for maybe, "Kalibr." There were "Kinzhals," ballistic missiles, S-300, and cruise missiles... "Shahed" drones were also used.” - Yuriy Ihnat, the Spokesperson of the Ukrainian Air Force, said.

  • According to the updated information, during the morning aerial attack, Ukraine's air defense destroyed 88 Kh-101/Kh-555/Kh-55 cruise missiles and 27 strike drones of the Shahed-136/131 type.

  • Ukrainian rescuers from the State Emergency Service have saved 53 people, with 8 of them rescued from under the rubble. As of 6:30 p.m. there were reports of 30 fatalities and more than 160 injuries due to Russia's morning mass strike on Ukrainian territory.

    • As of 17:30, at least 8 people were reported killed, and another 13 people were reported injured as result of the morning rocket strike on the city of Zaporizhzhia. Search and rescue at the sites of Russian missile impacts continues. 

    • Due to the Russian missile impacts in Dnipro, 6 people have died, and another 30 have been injured, including a 1.5-year-old child. In Dnipro, a fire broke out in a maternity hospital after the attack. Patients and staff, according to the Ukrainian Ministry of Health, were unharmed. In addition to the damaged shopping center and maternity hospital, one private house in the city has been completely destroyed. Eight administrative buildings are damaged, along with at least two dozen multi-story buildings and several cars.Bottom of Form

    • Eight injured individuals were rescued and the bodies of nine deceased persons were recovered from the rubble of a warehouse building in the Shevchenkivskyi district of Kyiv.

    • As a result of a Russian missile hitting the residential sector of the city of Smila in Cherkasy Oblast, nine people were injured, including a child. According to preliminary information, 51 buildings have been damaged.

    • In Lviv, based on the latest information, 30 individuals, including two children, were injured following the Russian rocket attack.

    • In the city of Konotop in Sumy Oblast, four civilians were injured by Russian shelling, and numerous residential and administrative buildings sustained significant damage.

    • Between five and eight in the morning on December 29, Kharkiv was subjected to three waves of missile strikes by Russia. Three individuals lost their lives, and 13 sustained injuries, with 11 of them admitted to hospitals. Among those hospitalized, three are in critical condition, while others are in a moderately severe state. The city's infrastructure, including a hospital, polyclinic, school, over a dozen residential buildings, a "Nova Poshta" branch, and industrial facilities, suffered damage.

    • During the drone attack in Odesa, debris from a downed drone fell onto a multi-story building, causing a fire. Twenty-three people were evacuated from the high-rise, five were rescued, and six individuals were injured, including two children. Two fatalities were confirmed. Additionally, under the debris of a three-story residential building, which also caught fire, a deceased woman was found, and four people were injured.


      Centre for Defence Strategies (CDS) is a Ukrainian security think tank. We operate since 2020. We publish this brief daily. If you would like to subscribe, please send us an email at cds.dailybrief@gmail.com

      The CDC Daily Brief is produced with the support of the Kyiv School of Economics

      https://kse.ua

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O que esperar da política externa brasileira em 2024? Não muita coisa… - Paulo Roberto de Almeida

 Em janeiro de 2023, quase um ano atrás, ao formular meus votos de sucesso ao novo governo que se iniciava, depois de quatro anos deprimentes, e não só na politica externa, eu escrevi, neste mesmo quilombo de resistência intelectual que é o Diplomatizzando, estas palavras, especificamente dedicadas à política externa e à diplomacia de Lula 3:

Serei especialmente crítico em relação a uma política externa feita de muitos equívocos conceituais (como a velha e anacrônica visão “classista” da divisão do mundo) e de sua primeira diplomacia partidária, com vergonhosos apoios a execráveis ditaduras supostamente de esquerda (e algumas de direita também). 

Sou, em particular, um opositor talvez isolado e de primeira hora do BRIC-BRICS, que considero um grande erro estratégico da diplomacia lulopetista, por nos unir, sem qualquer convergência sólida de objetivos compartilhados, a duas grandes autocracias e a duas outras democracias de baixíssima qualidade (como é a nossa aliás), apenas pela ilusão de que se trataria da construção de uma ordem mundial alternativa à velha dominação de antigas potências colonialistas ou do novo hegemonismo americano, o que é um programa meramente oposicionista, sem qualquer conexão com propostas visando a melhoria da qualidade de políticas públicas de desenvolvimento econômico e social, ou com a elevação dos padrões de governança democrática e de defesa dos direitos humanos e das liberdades individuais.


Continuo mantendo o mesmo ceticismo sadio em relação à diplomacia partidária do PT, de Lula especialmente, assim como a esperança de que a sociedade, senão o corpo profissional do Itamaraty, possa corrigir os aspectos mais nefastos dessa política externa para o Brasil e sua sociedade.

Os interessados em ler a íntegra de meus votos a Lula 3 em janeiro de 2023, podem acessar este link deste meu blog:

https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/12/o-que-eu-tramava-para-lula-ao-inicio-de.html?m=1


Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 28/12/2023


terça-feira, 25 de julho de 2023

Antiamericanismo na política externa brasileira? - Mariana Sanches (BBC Brasil, Wahington)

 Há antiamericanismo na relação do governo Lula com os EUA?

Lula e Biden

CRÉDITO, REUTERS

Legenda da foto, 

Lula e Biden em encontro na Casa Branca em fevereiro de 2023

Trinta e cinco minutos. A julgar pela rapidez com que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022, a relação entre os dois países prometia entusiasmo e entrosamento. 

A mensagem pública da Casa Branca ainda na noite do domingo do pleito era também o desfecho da estratégia que os americanos adotaram ao longo dos meses que antecederam a eleição brasileira. 

Seja por meio de diplomatas, de autoridades militares, de enviados da Casa Branca ou até mesmo do chefe da CIA (Central Intelligence Agency), eles expressaram apoio às instituições democráticas do Brasil e sinalizaram a militares e civis brasileiros que nenhuma ruptura institucional contaria com o apoio dos EUA. E esperavam que o comportamento geraria conexão, e até mesmo gratidão, do novo governo brasileiro.

Até por isso, os americanos demonstraram confusão e frustração quando, em diferentes ocasiões nos últimos seis meses, foram também confrontados com declarações duras de Lula (veja exemplos abaixo). Onde alguns analistas e diplomatas em Washington ouviram ecos de antiamericanismo, a diplomacia brasileira e outros especialistas argumentam haver independência, busca por multipolaridade e até mesmo resquícios de uma desconfiança histórica. 

"É claro que existem ressentimentos históricos e questões ideológicas, mas o que alguns chamariam hoje de 'antiamericanismo' parece mais uma questão de senso de oportunidade no contexto de um mundo com novos líderes (leia-se, China), do que qualquer outra coisa", diz Fernanda Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP. "Eu resumiria o nosso antiamericanismo como um mix de agir com o cérebro e agir com o fígado. Bastante cérebro e pitadas de fígado", afirma.

Fim do Matér

Já Ryan Berg, diretor do programa Américas do Center for Strategic & International Studies, vê o governo Biden numa armadilha. “Eles (governo Biden) pintaram Lula como um democrata salvador e agora estão presos a isso. Lula está obviamente contrariando interesses americanos, mas não podemos criticá-lo como normalmente faríamos, por todo o endosso que foi dado", disse Berg à BBC News Brasil.

"E era bastante óbvio de saída que Celso Amorimnão era o maior fã dos EUA”, segue ele, citando o ex-chanceler e assessor especial de Lula. 

Seis intensos meses

Fim do Podcast

Por dizer que os EUA deveriam “parar de incentivar a guerra” na Ucrânia, Lula foi acusado por John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, de “papagaiar” o discurso sino-russo. 

Ao receber o líder venezuelano Nicolás Maduro em Brasília, o brasileiro argumentou que havia “uma narrativa” sobre as condições não democráticas da Venezuela, declaração recebida pelos americanos como crítica à atuação deles na região. 

E ao expressar a intenção de desalojar o dólar da posição de moeda de transações internacionais ("Quem é que decidiu que era o dólar a moeda?"), Lula foi visto como entusiasta da redução do protagonismo global americano. 

Embora tenha se alinhado repetidas vezes aos EUA em condenar a invasão russa no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil contrariou os americanos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ao se recusar a transferir armamentos à Ucrânia, um pedido primeiro feito a Lula pelo chanceler alemão Olaf Scholz em janeiro. 

O governo brasileiro também permitiu, no começo do ano, a atracagem de navios militares iranianos sob sanção americana em um porto do Rio de Janeiro, o que levou congressistas mais exaltados a sugerir que a gestão Biden deveria estender ao Brasil as sanções (o que não aconteceu). 

A gestão Lula também não endossou o texto final da Cúpula da Democracia de Biden, em março, que trazia uma condenação à invasão da Rússia pela Ucrânia. E aos olhos dos americanos, Lula precisou ser cobrado a enviar um emissário brasileiro à Kiev, após remeter Celso Amorim para um encontro com Vladimir Putin em Moscou — o próprio Amorim acabou indo à Ucrânia depois.

John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA

CRÉDITO, REUTERS

Legenda da foto, 

John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, disse que 'Brasil está papagueando a propaganda russa e chinesa'

Em abril, o jornal americano Washington Post listou as rusgas em um texto intitulado: “O Ocidente acreditou que Lula seria um parceiro. Mas ele tinha seus próprios planos”. 

"A política externa brasileira não é anti-ninguém, é pró Brasil", responde a nova embaixadora brasileira em Washington, Maria Luiza Viotti, ao ser questionada pela BBC News Brasil sobre os que apontam possível antiamericanismo na política externa brasileira. “E o Brasil valoriza as relações com os EUA (...). O presidente Lula deu demonstração clara nesse sentido ao visitar os EUA apenas quarenta dias após ter tomado posse”, completa.

Viotti relembra que, na tradição diplomática brasileira, a regra foi uma postura independente em relação a superpotências. Getúlio Vargas, por exemplo, mantinha relações aquecidas com a Alemanha, de Adolf Hitler, e a Itália, de Benito Mussolini, logo antes de aderir à Segunda Guerra ao lado dos aliados. Jânio Quadros e João Goulart fizeram fortes aproximações com a China, mesmo contra os interesses americanos. 

Nem mesmo o regime militar brasileiro se alinhou por completo aos EUA, salvo no início, sob a batuta de Castelo Branco: manteve relações diplomáticas com a União Soviética — apesar de o golpe de 1964 ter sido patrocinado pelos americanos. 

Exceções à trajetória foram o governo Dutra (1946-1951), no pós-guerra imediato, e, mais recentemente, o período Jair Bolsonaro - Donald Trump, em que o Brasil experimentou um alinhamento automático em relação aos americanos. Em 2019, pela primeira vez na história, o Brasil votou contra a condenação ao embargo americano em Cuba, ao lado apenas de EUA e Israel (em um total de 193 países). 

"Hoje Brasil e EUA se reconhecem como duas grandes democracias, que compartilham valores e um considerável patrimônio de interesses comuns, de presença recíproca e de cooperação", diz Viotti.

Lula e Biden em encontro na Casa Branca

CRÉDITO, RICARDO STUCKERT/ PR

Legenda da foto, 

Ao expressar a intenção de desalojar o dólar da posição de moeda de transações internacionais, Lula foi visto como entusiasta da redução do protagonismo global americano

O que querem e o que oferecem os americanos?

Publicamente, a diplomacia americana nega ver sinais de antiamericanismo em Lula e calibra suas declarações entre críticas duras e palavras de apreço ao aliado. 

Questionado diretamente sobre o assunto pela BBC News Brasil, o secretário adjunto para o Hemisfério Ocidental, Brian Nichols, afirmou que “Lula é um grande aliado em tantas áreas”. 

“Nem sempre vamos concordar em tudo, mas o mundo é melhor com o Brasil nele”, disse Nichols à BBC News Brasil em junho

Posicionamento que alguns analistas, especialmente os americanos, veem com ceticismo.

"Acho que o governo Biden lida bem com a situação, mas há pessoas no governo americano muito desapontadas, sugerindo que Lula seja um falso amigo. Não concordo completamente com isso, mas há elementos de verdade", afirma Brian Winter, editor da revista americana America’s Quarterly.

“Lula e Celso Amorim acreditam em uma ordem multipolar, com vários países poderosos, e que isso seria melhor para o Brasil. E eu entendo e respeito isso. Não acho que Lula odeie os EUA, mas, na prática, ele claramente quer ver os americanos não tão poderosos quanto são hoje”, resume Winter, que conclui: “Todo mundo em Washington percebe que ele torce contra os EUA. Então, é constrangedor”. 

Para analisar a equação da relação bilateral, é preciso colocar outro elemento no xadrez: a China. Os EUA assistem ao avanço contínuo da influência de Pequim, sua maior antagonista global, na América Latina na última década, seja por meio do comércio ou por investimento direto, e o Brasil é o principal parceiro chinês em ambos os quesitos.

Já são 21 os países latinos ou caribenhos a assinarem o acordo de desenvolvimento econômico chinês conhecido como Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês). E embora o Brasil não tenha assinado o BRI, tampouco é signatário do Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica, a tentativa de resposta dos EUA ao BRI que patina em injetar recursos na região.

O Brasil também tem enviado recados de que não pretende ter de escolher entre China e EUA, em rota de tensão crescente, em temas como a tecnologia de semicondutores.

"Não temos nenhuma preferência por uma fábrica de semicondutores chinesa. Mas se eles (chineses) oferecerem boas condições, não vejo porque a gente recusar. Não temos medo do lobo mau", disse Celso Amorim à Reuters.

Neste contexto, o Brasil é um país com o qual os EUA precisariam aprofundar relações. A visita de Lula à capital americana, em fevereiro, poderia ter servido para avançar, mas organizada em clima de correria, frustrou o presidente brasileiro, que esperava ser recebido para uma visita de Estado, não apenas de trabalho, e ter a oportunidade de falar ao Congresso dos EUA, o que não aconteceu. Em comparação, o líder indiano Narendra Modi, cujo país se abstém de endossar as críticas americanas à invasão da Rússia à Ucrânia na ONU, foi recebido recentemente com a solenidade que Lula não recebeu.

Ainda durante a visita do brasileiro, em fevereiro, os americanos ofereceram seu ingresso ao Fundo Amazônia, algo desejado e celebrado pelo Brasil. Mas o baixo valor do aporte inicialmente disponibilizado, US$50 milhões, causou mal-estar no lado brasileiro a ponto de ser excluído da declaração conjunta dos países. Meses depois, Biden anunciou a intenção de enviar US$ 500 milhões à Amazônia — remessa que o Congresso dos EUA ainda não aprovou.

Antes mesmo do pleito de 2022, no entanto, ao menos um diplomata americano ouvido reservadamente pela BBC News Brasil expressou preocupação com as simpatias de Lula a regimes como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense. Embora a relação entre Bolsonaro e Biden fosse, na prática, inexistente, este diplomata dizia que os americanos apreciavam o modo como Bolsonaro alinhou o Brasil em temas ideológicos caros aos americanos e expressava desconfiança ao que seria a relação com Lula. 

"Depois de 30 anos do fim da Guerra Fria, pessoas em Washington, republicanos e democratas, ainda acham difícil trabalhar com um país latino-americano que fica a meio caminho entre amigo e inimigo. Querem perguntar: 'Ei, Brasil, você é amigo ou não?' Ninguém pergunta isso à França, por exemplo", afirma Brian Winter.

Recentemente, Washington demonstrou insatisfação diante de iniciativas brasileiras para suavizar um texto crítico a violações de direitos humanos do governo de Daniel Ortega, na Nicarágua, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). 

“Lula tem amizade pessoal com todos os esquerdistas da América Latina. A razão pela qual o Brasil quis diluir a resolução da OEA sobre a Nicarágua é justamente a relação de Lula com Ortega. Eles se conheceram nos anos 80, relacionamentos são importantes e impactam a política, mesmo décadas depois. A outra parte disso é o Brasil tentando se posicionar para uma maior autonomia estratégica e, para isso, precisa manter os EUA a certa distância”, diz Berg, do programa Américas do Center for Strategic & International Studies.

Regionalmente, este não é um ponto isolado de discordância. Embora os americanos tenham dito publicamente que gostariam de ter com o Brasil um diálogo para promover eleições livres na Venezuela no ano que vem, as autoridades dos dois países não têm discutido o assunto. Em vez disso, há poucos dias, Lula se uniu ao presidente francês Emmanuel Macron para tratar o tema em uma reunião com representantes do governo e da oposição venezuelana. 

Apesar da grande pressão de americanos para que o Brasil compusesse uma força militar para ser enviada ao Haiti, onde o país liderou por mais de uma década uma missão de paz da ONU, o governo Lula já os fez saber que não embarcará na proposta.

O líder venezuelano Nicolás maduro e o presidente brasileiro Lula

CRÉDITO, REUTERS

Legenda da foto, 

O líder venezuelano Nicolás Maduro e o presidente brasileiro Lula se encontraram em maio, em Brasília

Interesses brasileiros e multipolaridade

Em um artigo para edição de maio/junho da publicação Foreign Affairs, o professor de Relações Internacionais da FGV Matias Spektor afirma que, ao evitar se alinhar com posicionamentos americanos na guerra da Ucrânia, por exemplo, países como o Brasil não estão sendo amorais ou acríticos, estão apenas mantendo necessária flexibilidade de compromissos para se adaptar a possíveis novos cenários geopolíticos. 

“Os países do Sul global estão preparados para abrir caminho em meados do século 21. Eles se protegem não apenas para obter concessões materiais, mas também para elevar seu status, e abraçam a multipolaridade como uma oportunidade de subir na ordem internacional. Se quiser permanecer em primeiro lugar entre as grandes potências em um mundo multipolar, os Estados Unidos devem enfrentar o Sul global em seus próprios termos”, conclui Spektor.

É exatamente isso o que dizem três diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil sobre o assunto. 

Segundo eles, ao retomar a proximidade com a Venezuela em termos que desagradam os americanos, Lula está cuidando do que interessa ao país: manter boas relações com vizinho de fronteira e reaver dinheiro de empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para o país. 

Os próprios americanos, recordam eles, flexibilizaram sanções ao petróleo venezuelano quando isso atendia ao interesse de baixar o preço da commodity, diante da guerra na Ucrânia. 

Do mesmo modo, ao advogar por transações em outras moedas que não o dólar, Lula estaria buscando facilitar trocas comerciais com qualquer parceiro, já que o Brasil não está em condição de escolher de quem comprar ou para quem vender. 

Com os EUA, interessa aos brasileiros tocar as agendas em comum: democracia, meio ambiente, comércio bilateral. 

"Toda política externa tem componente ideológico, tem motivações normativas, morais. Sempre tem uma visão de mundo ali. Mas é preciso olhar para a política externa a partir de indicadores objetivos: atração de investimentos, facilitação de fluxo de pessoas, atração de eventos de porte ao país. Isso é o que interessa", argumenta Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais. 

Segundo Belém Lopes, se quer liderar a região e exercer protagonismo global, Lula tem que se comportar de maneira distinta da defendida pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, que não refreia críticas às esquerdas na América Latina e expressou forte apoio à Ucrânia. Esta semana, Lula disse que Boric é jovem e apressado em seus posicionamentos. 

"O Brasil tem que lidar com Maduro e Ortega. O Brasil é metade da América do Sul, tem que lidar com muito mais gente do que o Chile, precisa se relacionar com muitos se quiser liderar a região, o que é a nossa proposta. Para a gente conseguir ter aspirações globais, a gente tem que se cacifar como líder regional", afirma Belém Lopes, que completa: "Tem custos? Tem. A forma como Lula faz é a melhor? Não sei. Mas certamente é melhor do que havia antes". 

Há quem, no entanto, veja riscos na estratégia de Lula até agora. 

"O grande projeto diplomático de uma nova 'ordem mundial' de Lula vai causar problemas para o Brasil nas suas relações com os países ocidentais, com repercussões sobre interesses militares em equipamento e cooperação", afirma o embaixador aposentado Paulo Roberto de Almeida. 

Recentemente a Alemanha bloqueou a exportação para as Filipinas dos tanques Guarani, fabricados pelo Brasil, com componentes alemães. A negativa veio depois que o Brasil se recusou a repassar munições para a Alemanha que chegariam à Ucrânia. A justificativa oficial alemã foi a de que o governo filipino comete violações aos Direitos Humanos. Produtos da Embraer também podem ser afetados nesta dinâmica.

Os americanos têm expressado que, embora defendam uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, pleito histórico do Brasil, não endossarão uma eventual candidatura brasileira. Para o embaixador Rubens Ricupero, as ações de Lula podem reduzir a disposição dos americanos de cooperar em temas centrais para o Brasil, como o meio ambiente e a democracia. Ele não vê vantagens estratégicas no comportamento do presidente.

"Só posso atribuir isso ao ressentimento (alguns dizem que Lula culpa em parte os americanos pela Lava Jato e sua condenação) e, em parte, ao cálculo, com vistas talvez a agradar setores mais radicais do PT e de apoiadores acaso insatisfeitos com a política econômica e outras orientações do governo", diz Ricupero, recordando a aprovação recente do arcabouço fiscal na Câmara, que não contou com o apoio de setores da esquerda que compõem a base do governo Lula. 

"Não acho que essa linha vá gerar apoio interno, pois a opinião pública brasileira em geral é simpática aos EUA fora os setores de esquerda e nacionalistas mais radicais", afirma o embaixador.

O assessor presidencial Celso Amorim e o vice-chanceler da Ucrânia, Andrii Melnyk

CRÉDITO, DIVULGAÇÃO

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O assessor presidencial Celso Amorim e o vice-chanceler da Ucrânia, Andrii Melnyk, em encontro em Kiev 

Desconfianças recentes e históricas

Ricupero não é o único a citar o histórico da Operação Lava Jato para explicar possíveis desconfianças de Lula com os EUA. Houve colaboração formal e informal do Departamento de Justiça dos EUA com investigadores e autoridades brasileiras no caso que levou Lula à prisão e à inelegibilidade em 2018. Os processos contra Lula acabaram anulados pelo Supremo Tribunal Federal.

“Não vejo Lula como antiamericano. Eu acho que o que se percebe por parte dele é uma desconfiança, mas não hostilidade. Isso tem a ver primeiramente com a sensação pessoal do presidente de que Washington — especialmente o Departamento de Justiça — teria contribuído de alguma forma para sua prisão”, diz André Pagliarini, professor de História do Hampden-Sydney College, na Virgínia, e colaborador do Washington Brazil Office, organização que faz a interface entre parte da sociedade civil brasileira e o Congresso americano. 

Para ilustrar o que considera um “trauma” de Lula com os americanos, Pagliarini conta uma anedota. 

“Há dois anos, conversei com uma pessoa do círculo de Lula que me contou da tentativa de planejar uma viagem aos EUA (ainda antes das eleições brasileiras). Mas parte deles temia que Lula seria preso ao descer do avião. Eu e outros falamos que isso era um absurdo, não aconteceria de jeito nenhum. Eles não confiavam e a visita não rolou. Sempre achei isso emblemático e acho que ajuda a explicar uma certa visão equivocada sobre os EUA hoje”, diz Pagliarini. 

Em junho de 2021, a BBC News Brasil revelou que 23 deputados democratas pediram ao governo Biden que tornasse públicas as informações sobre cooperações na investigação. Dois anos mais tarde, o Departamento de Justiça jamais respondeu aos deputados. A demanda tinha sido feita em uma articulação com a sociedade civil brasileira, representada pelo Washington Brasil Office na capital americana. 

Se o governo Biden não tem colaborado pra esclarecer o passado recente das relações entre o Departamento de Justiça e as autoridades brasileiras, coube ao próprio Joe Biden, então vice de Obama, realizar uma das maiores aberturas de arquivos americanos sobre o Brasil, em 2014. 

Em visita a Brasília, Biden entregou pessoalmente à então presidente Dilma Rousseff 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil. O material abasteceu a Comissão Nacional da Verdade, estabelecida no governo Dilma.

O gesto dos americanos, no entanto, não era desinteressado. Era, na verdade, uma tentativa de reaquecer relações abaladas depois que se tornou pública a espionagem do país contra Dilma. Vazamentos de documentos diplomáticos americanos pelo site Wikileaks, em 2013, apontavam que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) tinha grampeado até mesmo a linha telefônica usada pela presidente no avião presidencial. Como retaliação, Dilma cancelou uma visita de Estado que faria a Barack Obama em Washington D.C. 

Em julho, o jornal El País revelou uma nova suposta espionagem levada a cabo por uma agência espanhola a pedido dos EUA, em 2018, e que tinha como alvo reuniões do ex-presidente do Equador Rafael Correa (2007-2017) com os ex-presidentes da Argentina, Brasil e Uruguai, Cristina Fernández de Kirchner , Lula, Dilma e José Mujica, em 2018. 

Nos últimos dias, deputados democratas da ala à esquerda do partido tentaram passar uma emenda legislativa para forçar os EUA a abrir supostos arquivos adicionais sobre a ditadura brasileira. A emenda não foi aprovada. Uma fonte do Departamento de Estado dos EUA especializada em América Latina disse à BBC News Brasil que já não há material relevante disponível ainda sob sigilo no arquivo americano. 

Dilma Rousseff e Joe Biden em Brasília

CRÉDITO, RICARDO STUCKERT/ PR

Legenda da foto, 

Dilma Rousseff recebeu documentos americanos sobre a ditadura do então vice-presidente dos EUA Joe Biden

“O ápice do antiamericanismo no Brasil veio com o golpe militar, que completará 60 anos no ano que vem. Temos que lembrar que os EUA participaram ativamente da derrubada do governo João Goulart, o que gerou uma profunda desconfiança, justificada, nos americanos a partir daí. Os americanos foram nefastos em 1964”, afirma o historiador James Green, da Brown University, um dos maiores especialistas americanos em ditadura militar no Brasil. 

O golpe no Brasil foi apenas uma das ações dos americanos na região durante a Guerra Fria que mobilizaram sentimentos contra os EUA não só nas esquerdas, mas nas lideranças políticas latinas em geral. 

No período, os americanos tentaram, com maior ou menor sucesso, suprimir revoluções ou governos democráticos socialistas na região, em sua disputa por hegemonia econômica e geopolítica com a socialista União Soviética.

Da Cuba de Fidel Castro ao Chile de Salvador Allende, a interferência política americana em assuntos domésticos na região era palpável no século 20 e os governos americanos também sabiam e acobertaram violações de direitos humanos cometidas sistematicamente pelo regime brasileiro (e também pelos demais) contra seus opositores políticos e chegaram a oferecer treinamento para militares brasileiros com aulas teóricas e práticas de técnicas de tortura e de estratégias de combate a guerrilhas. 

Essas informações foram descritas pelos próprios americanos em documentos oficiais tornados públicos nos últimos anos. 

“Historicamente, o antiamericanismo passou a ser uma força enorme e capaz de aglutinar a esquerda da América Latina, animar a militância, gerar identidade ideológica. O problema é que ele faz cada vez menos sentido concreta e estrategicamente”, afirma Felipe Krause, professor do Centro de Estudos Latino Americanos da Universidade Cambridge.

Segundo Krause, a partir da década de 1990, progressivamente, os americanos entenderam que a estabilidade da região era mais facilmente atingida se os ritos democráticos fossem respeitados em cada país — o que reduziu o intervencionismo. 

Além disso, setores da esquerda latina aumentaram sua interlocução com a sociedade civil americana, que adotou um eficiente sistema de pressão sobre os congressistas e a própria Casa Branca. Em certa medida, foi exatamente isso o que se viu nas repetidas manifestações críticas da gestão Biden e do parlamento americano à política ambiental e indigenista do governo de Jair Bolsonaro, ou na estratégia americana de apoio à democracia do Brasil. 

Mas enquanto parte da esquerda latina passou a atuar por dentro da política dos EUA, outra segue recusando iniciativas americanas, mesmo quando os interesses são coincidentes.

“Uma parte da esquerda brasileira não consegue atualizar o quadro geopolítico. Desconfia até mesmo dos supostos reais interesses de Biden ao defender a democracia no Brasil, como se fosse uma fachada para controlar o país, tomar a Amazônia. Quando a explicação é muito simples, os americanos passaram por algo semelhante com Trump e conseguem entender a gravidade da situação e ter empatia”, diz James Green.