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segunda-feira, 17 de julho de 2023

Um livro em preparação: Gilberto Freyre sobre o longo século XIX, de André Heráclio do Rego - Prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Acabo de colocar um ponto final no meu prefácio a este livro de meu colega e amigo, historiador pernambucano André Heráclio do Rego, do qual transcrevo apenas os primeiros parágrafos. O restante virá quando o livro for publicado...

Paulo Roberto de Almeida

ENTRE O IMPÉRIO E A REPÚBLICA

O SÉCULO XIX NA OBRA DE GILBERTO FREYRE

André Heráclio do Rêgo

            (Edição de Autor)


ÍNDICE

 Prefácio: Gilberto Freyre, um intelectual na longa duração, 5

       Paulo Roberto de Almeida                                                                                

Introdução, 11

Capítulo 1 – O Movimento da Independência, 33

Capítulo 2 – O processo revolucionário,  51

Capítulo 3 – As singularidades da Monarquia,  83

Capítulo 4 - Monarquia e República: continuidade e ruptura,  97

Capítulo 5 – O Império e a unidade nacional,  117

Capítulo 6 – O Oriente no Novo Mundo. Os três primeiros séculos da formação brasileira, 129

Capítulo 7 – Oriente X Ocidente: a Monarquia e a reeuropeização do Brasil no século XIX, 139

Considerações e sugestões,  149

Obras de Gilberto Freyre utilizadas,  163

Referências bibliográficas, 167 


Prefácio

Gilberto Freyre, um intelectual na longa duração

 

O presente livro de André Heráclio do Rêgo constitui um notável esforço de síntese interpretativa sobre um dos autores mais fecundos do pensamento social brasileiro. Junto com Manoel de Oliveira Lima e Manoel Bomfim, Gilberto Freyre foi um dos primeiros historiadores sociais do Brasil. Na verdade, ele foi bem mais do que isso: antropólogo de formação, tendo estudado com Franz Boas, na Universidade de Columbia (NY), ele veio a empreender um levantamento da cultura material e humana do Brasil colonial e imperial, compreendendo não apenas a sua análise da Casa Grande e [da] Senzala, o título de sua primeira grande obra (1933), como também tratou amplamente da miscigenação geral do povo brasileiro a partir de suas fontes étnicas, dos aportes estrangeiros à cultura material e espiritual, assim como da lenta emergência, a partir da sociedade patriarcal, de formações urbanas ao longo da costa atlântica e no interior próximo, tal como refletida em Sobrados e Mucambos (1936) e no seu outro clássico, Ordem e Progresso (1959). O extenso subtítulo dessa terceira grande obra, em 2 volumes, revela, aliás, a extensão de seu trabalho analítico: “Processo de desintegração da sociedade patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre; e da Monarquia para a República”. 

Gilberto Freyre antecipou, de certa forma, a famosa escola francesa dos Annales, com sua forte ênfase no cotidiano das famílias, nos costumes do povinho miúdo, na alimentação e nas técnicas do trabalho humano. Mais de um acadêmico francês em estágio universitário no Brasil dos anos 1930 e 40, na recém fundada Universidade de São Paulo por exemplo, se declarou pronto a reconhecer certa dívida interpretativa em relação ao “mestre de Apipucos”, sua residência e escritório de trabalho no Recife senhorial. Os métodos e os grandes temas da nova historiografia francesa, em pleno florescimento nos anos seguintes à Segunda Guerra, já estavam presentes na obra de Freyre desde duas décadas antes, como facilmente constatável.

(...)

Segue por 3 páginas...


segunda-feira, 19 de junho de 2023

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida

 Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo  

Prefácio ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Brasília: Diplomatizzando, 2022, 189 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7

Disponível na Amazon.com

  

Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”. 

A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946. 

Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.

Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.

Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.

Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014. 

Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.

De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas. 

Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

 

 

Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política. A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.

O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil. 

Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais. 

Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo. Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas. 

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6 de maio de 2022

 

Índice

 

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo    9

1. O papel dos Brics na economia mundial        15

O Bric e os Brics         15

A Rússia, um “animal menos igual que os outros”  16

A China e a Índia         17

E o Brasil nesse processo?     20

 

2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos    24

Esse obscuro objeto de curiosidade    24

O Brasil, como fica no retrato?      25

Russia e China: do comunismo a um capitalismo especial    26

O fascínio é justificado?      29

O que os Brics podem oferecer ao mundo?    31

 

3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil   33

Introdução: a caminho da Briclândia  33

Radiografia dos Brics     34

Ficha corrida dos personagens     35

De onde vieram, para onde vão?      37

New kids in the block       40

Políticas domésticas    43

Políticas econômicas externas    45

Impacto dos Brics na economia mundial        47

Impacto da economia mundial sobre os Brics      48

Consequências geoestratégicas     50

O Brasil e os Brics   53

Alguma conclusão preventiva?    57

 

4. A democracia nos Brics    59

A democracia é um critério universal?      59

Como se situam os Brics do ponto de vista do critério democrático?   60

Alguma chance de o critério democrático ser adotado no âmbito dos Brics?   62

 

5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics    63

Sobre um funeral anunciado    63

Qualificando o debate       64

O que define o G7, e deveria definir também o Brics e o G20      64

Quais as funções do G7, que deveriam, também, ser cumpridas pelo G20?   67

 

6. O Bric e a substituição de hegemonias     70

Introdução: por que o Bric e apenas o Bric?     70

Bric: uma nova categoria conceitual ou apenas um acrônimo apelativo?      71

O Bric na ordem global: um papel relevante, ou apenas uma instância formal?   73

O Bric e a economia política da nova ordem mundial: contrastes e confrontos    81

Grandezas e misérias da substituição hegemônica: lições da História  86

Conclusão: um acrônimo talvez invertido     95

 

7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009      98

Existe um papel para os Brics na crise econômica?     98

Os Brics podem sustentar uma recuperação financeira europeia?    100

A ascensão dos Brics tornaria o mundo mais multipolar e democrático?   103

 

8. O futuro econômico do Brics e dos Brics     106

Das distinções necessárias     106

O Brics representa uma proposta alternativa à ordem mundial do G7?   108

O que teriam os Brics a oferecer de melhor para uma nova ordem mundial?   109

O futuro econômico do Brics (se existe um...)       111

Existe algum legado a ser deixado pelo Brics?       114

 

9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição     116

O Brasil e os principais componentes de sua geoeconomia elementar                   116

Potencial e limitações da economia brasileira no contexto internacional              122

A emergência econômica e a presença política internacional do Brasil                 127

A política externa brasileira e sua atuação no âmbito do Brics    131

O que busca o Brasil nos Brics? O que deveria, talvez, buscar?   136

 

10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil   143

Uma sigla inventada por um economista de finanças     143

Um novo animal no cenário diplomático mundial      144

Existe um papel para o Brics na atual configuração de poder?    151

Vínculos e efeitos futuros: um exercício especulativo      156

 

11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria   164

Introdução: o que é um relatório de minoria?  164

O que é estratégico numa parceria?       165

Quando o estratégico vira simplesmente tático  167

Parcerias são sempre assimétricas, estrategicamente desiguais  168

A experiência brasileira de parcerias: formuladas ex-ante       171

A proliferação e o abuso de uma relação não assumida      177

 

Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia   181

Indicações bibliográficas    187

Nota sobre o autor     189

 

 

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quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Prefácio ao livro de Arnaldo Godoy: Direito e História: formação do Estado brasileiro - Paulo Roberto de Almeida

O prefácio que escrevi para a obra de um grande mestre do Direito, da história política e constitucional do Brasil e da evolução jurídica comparativa dos Estados modernos, com um conhecimento ainda mais preciso sobre a formação do Estado brasileiro: 


Da construção do primeiro Estado brasileiro aos desafios atuais

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Prefácio ao livro de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy: Direito e História: formação do Estado brasileiro (Londrina: Thoth, 2022, p. 13-19; ISBN: 978-65-5959-341-5).

 

 

No frontispício a este livro, o intelectual Arnaldo Godoy seleciona uma frase pouco reproduzida do francês Alexis de Tocqueville, um dos grandes fundadores da sociologia, em uma de suas obras menos famosas, O Antigo Regime e a Revolução: “A história é uma galeria de quadros em que há poucos originais e muitas cópias”. 

De fato, esta é uma tendência visível nas mais diversas comunidades humanas organizadas em forma de Estados, ao longo de toda a história: imperadores, estadistas, partidos políticos, movimentos sociais, pensadores individuais, tendem a reproduzir ideias, formações políticas e instituições que, em democracias ou em regimes autocráticos, prolongam conceitos e organizações que perpassam toda a história humana, ou até das civilizações. Isso se aplicava à própria história francesa, como Tocqueville registrou naquela obra, registrando aqui que em 1848, quando ele foi por breve tempo, chanceler da Segunda República, a França estava ainda na sua quinta constituição, das quinze que o país exibiu até chegar na atual Quinta República. Ou seja, a França teve quase o dobro das constituições quanto o Brasil teve de moedas, campeão absoluto na história monetária mundial (até aqui, esperando a Venezuela chavista nos ultrapassar). 


 Essa característica se aplica particularmente à feitura de novas constituições, que, na história política dos países modernos e contemporâneos, tende a repetir uma glosa dos mesmos dispositivos e instituições mais ou menos num estilo à la Montesquieu, com alguns toques de Benjamin Constant e o liberalismo político da Carta de Cádiz (1812), com outros dispositivos da constituição americana naqueles países presidencialistas, como o Brasil. Praticamente todos os países contemporâneos – com poucas exceções – tendem a consolidar formas de Estado com base no esquema tripartite dos poderes, que devem, pelo menos em teoria, serem harmônicos e independentes entre si, com algumas instituições assessórias no plano judiciário ou no controle dos gastos públicos. Parafraseando George Orwell, se poderia dizer que “todos os animais estatais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. 


 O livro de Arnaldo Godoy parte do momento em que se funda “o nascimento do Estado brasileiro”, e ele tem razão em identificar o adjetivo brasileiro, uma vez que “Estado”, ou algo equivalente, o Brasil (ou os “Brasis”, pois que não tivemos, de fato, uma nação unificada até meados do século XIX) já tinha, desde que aqui chegou o primeiro governador-geral, Dom Tomé de Souza, em 1549, depois trocado por vários vice-reis e, finalmente, pela Corte dos Braganças em sua inteireza, em 1808. Foram eles que construíram os rudimentos do futuro Estado independente, que toma forma, muito precariamente, em 1821, ainda sob a regência do príncipe Dom Pedro, para depois se apresentar ao mundo como “Império do Brasil”, no final de 1822. O reconhecimento diplomático formal demorou um pouco, ainda que os Estados Unidos tenham dada a partida em 1824, mas as grandes potências europeias só começaram a reconhecer nossa existência depois que “acertamos as contas”, com Portugal e com Dom João VI, no tratado patrocinado pela Grã-Bretanha em 1825.


 No momento em que “comemoramos” – as aspas podem ser necessárias numa fase de aparente “desunião” da nação – os 200 anos desse ato de criação, esta obra é indispensável para conhecermos: como se organizou o novo Estado, a partir da Constituição de 1824 (outorgada, depois do fechamento arbitrário, pelo jovem imperador, da primeira Assembleia Constituinte); como era financiado esse Estado (muito precariamente, para dizer o mínimo, daí a sucessão de empréstimos externos); como se consolidou esse Estado (basicamente pela “parada institucional” oferecida pelo chamado Regresso, depois dos impulsos liberais dos primeiros tempos); quais eram os fundamentos conceituais, no plano econômico e político, da jovem nação americana, a segunda maior do hemisfério (mas muito atrasada em relação ao gigante anglo-saxão do Norte) e, finalmente, quais eram, no início de nossa conturbada história política, os projetos para o Brasil, essencialmente o Estado unitário monárquico que Bonifácio estimava indispensável à preservação da própria existência da nação, e os impulsos libertários, republicanos e progressistas, avançados por Frei Caneca, um dos maiores intelectuais de nossa história, infelizmente ceifado pela prepotência da Corte do Rio de Janeiro, na breve experiência da Confederação do Equador, em 1824, proponente de um Estado federal, como finalmente a República se encarregou de instituir, 67 anos depois. 

O foco central da obra de Arnaldo Godoy é essencialmente o Estado brasileiro, como aliás evidenciado no subtítulo (que é, conceitualmente, o título do livro), antes que a nação, pela simples razão – como já enfatizado por dezenas de historiadores e cientistas políticos – que o Estado precede a nação, e de certa forma a cria, a molda, a organiza (algumas vezes de forma brutal, como na escravidão do século XIX, ou nas ditaduras do século XX). O centralismo ibérico foi preservado na institucionalidade aqui implementada pelos Braganças e depois adaptado às vicissitudes da terra, como detectaram desde cedo os liberais conservadores das Regências e do Regresso ao início do Segundo Reinado. Sua reflexão fundada no Direito e na História – que é o título real da obra – vai de 1808, quando se tem um Estado português no Brasil, até 1831, quando a política “brasileira” deixa, finalmente, de ser em parte portuguesa, como registrado em inúmeras inclinações políticas e diplomáticas do primeiro imperador. Alguns intérpretes, como Manoel Bomfim, no início do século XX, acreditam que o Estado só se tornou realmente “brasileiro” depois de 1831, embora Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista brasileiro – a despeito de jamais ter vivido na terra que ele considerava sua, desde os estudos em Coimbra, na última década do século XVIII –, tinha plena convicção de que a nação começou a ser forjada desde a transferência da Corte, quando ele também dá início ao seu grande empreendimento intelectual, o Correio Braziliense, editado em Londres de 1808 a 1822.

O autor tem razão em sublinhar a origem europeia de nossas instituições de Estado, e não poderia ser de outro modo, dados os vínculos de toda a sorte que nos prendiam ao molde português e, em parte, ao espírito liberal da Carta de Cádiz, que foi adotada em Portugal depois da Revolução do Porto, em 1820, e que, portanto, influenciou, em grande medida, os constitucionalistas eleitos e os membros da comissão que redigiu a Carta de 1824. Ele também chama a atenção para o aspecto crucial do financiamento do Estado, autor que é de inúmeros livros e artigos sobre a história e o funcionamento dos diversos sistemas tributários do Brasil, assim como membro de grupos de pesquisas nessa área e, principalmente, um “burocrata-mor” da organização e aplicação da tributação no Brasil atual. Não se trata apenas de um exegeta de normas constitucionais e legais relativas ao Estado e seu funcionamento, mas de um pesquisador no plena sentido da palavra, pois que vai às fontes primárias, aos documentos históricos que fundamentam o que ele chama de “primeiro Estado brasileiro”. 

Ele refaz a “história real”, não apenas aquela documental – como, por exemplo, em Varnhagen, Rocha Pombo e outros – pois que resgata a importância do “corso” utilizado por Dom Pedro, durante os entreveros com os portugueses pretensamente “restauradores” do pacto colonial. A guerra de corso era um empreendimento dos soberanos nos conflitos contra Estados inimigos sem a necessidade de mobilizar frotas e exércitos, contratando simplesmente – por vezes dando cartas patentes oficiais – seus “empresários marítimos” que dividiam o butim, as presas, com os soberanos contratantes. Cabe não confundir corsários com piratas, estes uma espécie de “microempresários” da pilhagem individual, ao contrário dos primeiros, que agiam em favor dos Estados aos quais estavam vinculados. Nos tempos coloniais, os piratas agiam de maneira mais intensa nas águas do Caribe, saqueando os galeões espanhóis carregados de ouro e prata arrancados do México e das colônias andinas da América do Sul. Os corsários visitavam mais frequentemente o continente na parte atlântica e no Pacífico: Brasil e Peru, por exemplo, receberam muitas “visitas” dos corsários mais conhecidos: Fulton, Cavendish, Francis Drake e alguns franceses. Por incrível que pareça, o corso continuou impune durante várias décadas depois do Congresso de Viena (1815) e só foi abolido formalmente em 1856, pelo tratado de Paris, que sacramentou a “nova ordem internacional”, depois da primeira guerra da Crimeia (1853-55); este também foi o primeiro instrumento “multilateral” ao qual aderiu o Brasil do Segundo Reinado. 

O pequeno (menos de 200 páginas) livro de Arnaldo Godoy impressiona pelo volume de minúcias e detalhes sobre a organização e o funcionamento do primeiro Estado brasileiro, um mini-Leviatã burocrático que explica um pouco como chegamos ao super-Leviatã dos tempos atuais. A parte sobre o financiamento daquele Estado, tanto sob Dom João VI quanto sob Dom Pedro I, é primorosa, e completa, em sua descrição das múltiplas formas de “extorsão” estatal, algo certamente preservado em nossos tempos. A tributação foi especialmente “cuidadosa” nas questões do tráfico e da escravidão, provavelmente a maior “tragédia” nacional em mais de 500 anos de história, pois que deixou marcas indeléveis na nacionalidade, mesmo depois de terem sido ambos abolidos. O Brasil, por sinal, é o mais antigo e frequente “cliente” dos relatórios anuais da mais antiga ONG do mundo, a British (depois internacional, quando o Reino Unido aboliu a escravidão) Anti-Slavery Society, pois que nunca deixamos de figurar em seus registros, seja durante o tráfico, depois enquanto durou o regime escravo, seja ainda, contemporaneamente, na parte das “formas análogas à escravidão”, que são ainda abundantes no vasto heartland brasileiro, e até em algumas grandes cidades (e até capitais dos estados). Os três volumes de Laurentino Gomes sobre a escravidão no mundo e no Brasil vão, provavelmente, figurar como clássicos em nossa literatura, e, quando traduzidos, na bibliografia internacional sobre a questão.

Os fundamentos doutrinais e jurídicos desse primeiro Estado – e dos que se seguiram, nos últimos dois séculos – são analisados pela ótica do estudo do Direito, nas duas faculdades criadas ainda no Primeiro Reinado, reformadas no final do Império e na República. Machado de Assis e Joaquim Nabuco comparecem nessa vertente, provavelmente a mais simbólica de uma nação bacharelesca, que continua dando um prestígio talvez exagerado aos bacharéis de Direito. Estes integram a quase totalidade da diplomacia profissional, aberta aos mais diversos talentos – como queria o verdadeiro “pai” da política externa brasileira, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai –, mas essencialmente “lotada” de bacharéis em Direito (nos últimos tempos de egressos dos cursos de relações internacionais). Talvez não por outra razão, o peso do Estado é mais sentido sobre aqueles que cometem crimes contra o Estado, do que aqueles que “florescem” na sociedade civil.

Os dois últimos capítulos, sobre os primeiros pensadores do Estado e da nação – Cairu e Silvestre Pinheiro Ferreira – e sobre aqueles que pioneiramente pensaram a organização do Estado e a forma de governar um continente ainda disperso em regiões pouco conectadas entre si – Bonifácio e Caneca, justamente, talvez devessem ser lidos em primeiro lugar, pois nesses quatro intelectuais estão as ideias fundamentais que percorreram e sustentaram – nem sempre com sucesso, como no caso do frei pernambucano – o processo de formação do Estado brasileiro. Todos eles eram “iluministas” no sentido largo do conceito, mas foram em grande medida contidos em seus projetos pelo arcaísmo da Contrarreforma ibérica, que continuou imprimindo sua marca – como na Inquisição, por exemplo – até meados do século XIX, senão até tempos mais recentes. 

Centenários, ou datas redondas, oferecem uma oportunidade de refletir sobre o que fizemos em nosso passado, sobre o estado presente das coisas e sobre o que nos resta fazer para completar os projetos dos grandes estadistas da nação. Em 1922, começamos com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, um empreendimento vagamente afiliado ao futurismo que então agitava os círculos intelectuais europeus, e continuamos com as comemorações oficiais da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, uma iniciativa que procurava emular as exposições universais que estavam voga desde a Grande Exposição do Palácio de Cristal, em Londres, em 1851. Dom Pedro II compareceu em 1876 à Exposição da Filadélfia, que também comemorava o primeiro centenário da nação americana, quando foi apresentado ao telefone e o trouxe precocemente ao Brasil, pelo menos para uso dos poucos “mandarins” do Estado. Do lado menos oficial, tivemos a fundação do Partido Comunista do Brasil (seção brasileira da III Internacional), nosso mais conhecido Partidão, ou PCB, assim como as primeiras revoltas tenentistas, que desembocariam na Revolução “Liberal” de 1930.

No Sesquicentenário da Independência, em 1972, tivemos a republicação dos Arquivos Diplomáticos da Independência, organizados pelo Itamaraty e publicados entre 1922 e 1926, assim como um bizarro “passeio” dos ossos do primeiro imperador por várias “províncias” brasileiras, como uma espécie de resgate histórico da nossa “lusitanidade”. Ela ainda permanece, como aventado por um projetado novo “passeio” do coração do mesmo imperador, o que certamente será incluído em mais um exemplo de nossas bizarrices. Um dos grandes intelectuais brasileiros, justamente especialista em identificar algumas dessas excentricidades – como representado pela figura de Macunaíma –, traçou um diagnóstico algo melancólico daquele impulso frustrado para a modernidade que ele e seus demais colegas da intelectualidade tinham procurado imprimir com a iniciativa da Semana de Arte Moderna em 1922. Dois anos depois, constatando que o Brasil ainda não tinha deslanchado para o futuro, Mário de Andrade confessou num poema-revelação, bizarramente chamado “O poeta come amendoim”, ele escreveu, de forma talvez decepcionante, o seguinte: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. 

O livro de Arnaldo Godoy, pela riqueza de informações fundamentadas em fontes primárias, pela densidade de seus argumentos e interpretações, nos demonstra que o Brasil carrega, em seu projeto de nação, um tanto de ideias generosas – as dos intelectuais aqui examinados – e um tanto de fatalismo, que é o peso do Estado central. Este já deixou há muto de ser aquele agente do crescimento e dos grandes empreendimentos nacionais para se converter num freio, talvez até um obstáculo, a um processo de crescimento sustentado, e muito menos um promotor do desenvolvimento social e cultural. Da “altura” destes 200 anos, e baseando-nos nas reflexões de Arnaldo Godoy, podemos traçar um modesto balanço, e talvez até um diagnóstico mais preciso, de nossas insuficiências acumuladas até aqui, como reveladas nas instituições e experiências formuladas e implementadas quando do “primeiro Estado brasileiro”, para concebermos novos projetos para o decorrer do terceiro centenário. 

Arnaldo Godoy está perfeitamente credenciado para, tendo já aplicado o seu bisturi analítico ao “primeiro Estado”, orientar-nos na superação dos entraves burocráticos, jurídicos e políticos, do atual Leviatã inzoneiro, o Estado que, aparentemente moderno, preservou os traços essenciais do patrimonialismo que, segundo Raymundo Faoro, deita raízes na era medieval portuguesa. Um novo exercício de análise do “segundo” Estado – seria o das Regências, o do Regresso, o do Segundo Reinado? – e dos diversos Estados sucessivos – da República Velha, da “curta” era Vargas (que vai dos anos 1930 até praticamente a ditadura militar), da República dos bacharéis de 1946, das duas décadas de tecnocracia autoritária –, até chegarmos ao estado melancólico da “Nova República”, ameaçada em seus fundamentos doutrinais e até burocráticos pela divisão política da nação por dois projetos populistas que nos remetem ao lugar comum dos populismos latino-americanos, considerando todos esses “Estados” incompletos que tivemos nos últimos dois séculos, uma nova arrancada explicativa e interpretativa deste grande intelectual que é Arnaldo Godoy poderia nos ajudar a prever alguns dos desenvolvimentos possíveis de um futuro Estado brasileiro do terceiro centenário. 

Do “nascimento do Estado brasileiro” aos primeiros “projetos para o Brasil”, Arnaldo Godoy conduziu, com mão firme e uma bibliografia adequada, uma compreensão refinada de nossas origens enquanto novo Estado independente no hemisfério americano do início do século XIX. Resta agora apontar os caminhos para o Estado democrático avançado nas próximas etapas de nosso desenvolvimento histórico.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4163: 29 maio 2022, 6 p.


domingo, 28 de agosto de 2022

Arnaldo Godoy: Construtores da Nação, de Paulo Roberto de Almeida : excertos do prefácio no Conjur

 Arnaldo Godoy me fez uma bela homenagem:

https://www.conjur.com.br/2022-ago-28/embargos-culturais-construtores-nacao-paulo-roberto-almeida

A LVM Editora, de São Paulo, publicou semana passada "Construtores da Nação", de autoria do diplomata Paulo Roberto Almeida. O autor retoma uma certa tradição no Itamaraty, um ambiente de scholars, a exemplo de José Guilherme Merquior, Roberto Campos, Sérgio Paulo Rouanet, entre outros. Tive o privilégio de ler o livro ainda na sua forma mimeo, porque a mim coube a honra do prefácio. É desse pequeno texto introdutório que destaco as observações seguintes, firme no propósito de compartilhar com o leitor inteligente esse belíssimo livro.

Renomado pesquisador de nossa historiografia diplomática ("Formação da Diplomacia Econômica do Brasil" é o meu predileto), Paulo Roberto tem também se interessado pelas várias nuances que substancializam um pensamento brasileiro, orientado para compreensão de Brasil, menos como metafísica, ainda que muito como uma ideia. O seu livro sobre os "Construtores da Nação", que define como um "ensaio de síntese histórica e de exposição argumentativa" é um "tour de force" em torno de ideias e pensadores que tentam explicar nossa condição. 

O livro enfrenta quatro grandes temas: o Estado, a Ordem, o Progresso e a Democracia. É um enfrentamento aos tempos presentes. Vivenciamos a democracia corroída, o progresso em forma de retrocesso, a ordem pautada pelo deboche e o Estado com um butim. O que fazer? Teorizar é também uma forma de militância. Paulo Roberto, nesse sentido, é um militante. 

O livro pode ser lido como um hopscocht (jogo de amarelinhas). Não há necessidade de uma leitura linear e cronológica. Os pensadores se complementam, se contradizem e se sustentam, independentemente de qualquer sequência pautada pelo tempo. O livro apresenta camadas horizontais que se sobrepõem, e apresenta também camadas verticais que se justapõem. 

Construtores da Nação pode ser compreendido como um curso sobre o pensamento brasileiro, na tradição de Antonio Paim (História das Ideias no Brasil), de João Cruz Costa (História das Ideias no Brasil), de Vamireh Chacon (História das Ideias Socialistas no Brasil), de Paulo Mercadante (A Consciência Conservadora no Brasil) ede Fernando Azevedo (A Cultura Brasileira), autores que sempre se interessaram por grandes sínteses. Pode ser lido como um manual, a exemplo de Mariza Veloso e Angélica Madeira (Leituras Brasileiras). Pode ser lido também como um guia de leitura, como se lê Nelson Werneck Sodré (O que se deve ler para conhecer o Brasil). 

"Construtores da Nação” é um livro de história econômica, de história de nossa política externa, de historiografia crítica, de história política e de história sociológica. O autor quebra os limites entre várias disciplinas. Do ponto de vista historiográfico, é também um livro de profecias em forma de hipóteses, o chamado “what if” dos autores de expressão inglesa. É o caso, por exemplo, da reflexão em forma de lamento, que o leitor constata quando Paulo Roberto critica a sucessão de Getúlio, em 1945, que se fez em torno de um inexpressivo e hesitante general. A ascensão de Osvaldo Aranha, naquele momento, insiste Paulo Roberto, teria radicalmente alterado o rumo de nossa história.

O político gaúcho encanta o autor. Paulo Roberto havia colaborado com Stanley Hilton na construção da biografia (definitiva, penso) de Osvaldo Aranha. Faltava alguém, naquele Jeep, em Natal, quando Roosevelt (o segundo) e Getúlio discutiam os rumos da guerra. O leitor tem toda uma trama levantada, que depõe contra o caudilho. Foi com Paulo Roberto que compreendi as verdadeiras razões pelas quais Osvaldo Aranha fora despachado para Washington. 

Percebe-se em Paulo Roberto um quase fetichismo (perdoe-me o autor) com Rui Barbosa e com o Barão que simboliza o Itamaraty. A referência ao pequeno incidente que fez do cônsul de Liverpool a estrela de máxima grandeza de nossa história diplomática é um dos pontos altos do livro. O leitor se surpreende com a amizade entre Paranhos (pai) e Caxias, e com a ida do Juca para um confortável posto, do ponto de vista financeiro, de custas e emolumentos. Paulo Roberto refere-se a Álvaro Lins como o biógrafo oficial, com o que todos concordamos. Álvaro Lins foi embaixador brasileiro em Portugal, nos tempos de Juscelino. Há também referências à biografia de Luís Vianna Filho (que também biografou Eça e Rui) e aos trabalhos de Luís Cláudio Villafañe Santos. Paulo Roberto agora está listado na hagiografia do Paranhos (filho). 

Em "Construtores da Nação" há todo um panorama que fixa o pano de fundo e ao mesmo as bases de nossa condição brasileira. É um livro sobre pensadores brasileiros, que pensaram o Brasil, na compreensão de um brasileiro que também pensa o Brasil, com independência e firmeza de convicções. Em tempos de crise (e parece-me que a crise é de todos os tempos) fundamental que pensemos a crise em que estamos, na perspectiva daqueles que de certo modo sempre nos ensinaram como vencê-las, ou pelo menos como suporta-las. 

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 é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.