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terça-feira, 5 de abril de 2022

Sobre os males atuais e persistentes da nação - Paulo Roberto de Almeida

Sobre os males atuais e persistentes da nação

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

 

 

Em que pese a Grande Destruição de Madame Pasadena — que conseguiu produzir a maior recessão da história econômica do país —, não obstante a megacorrupção do PT e as mentiras do seu chefão mafioso, à margem de uma diplomacia partidária que se dedicou a apoiar as ditaduras mais execráveis da América Latina e em outros continentes, e a despeito do aparelhamento do Estado com militantes partidários e assessores medíocres dos políticos profissionais, parece que o Brasil ainda não afundou o suficiente para suscitar o surgimento de um sentimento de repulsa a todas essas velharias da política que ainda estão no palco das eleições.

Tampouco dispomos de estadistas com capacidade intelectual adequada para fazer um diagnóstico correto do quadro calamitoso que enfrentamos atualmente — que é o resultado involuntariamente combinado da incompetência do lulopetismo arrogante e da total insanidade mental do bolsonarismo alucinado —, assim como para apontar o caminho da superação das dificuldades conjunturais — que dependem de boas soluções técnicas, de natureza econômica— e das barreiras estruturais — que são de natureza sistêmica, exigindo portanto um esforço de longo prazo no caminho de reformas mais consistentes e persistentes.

Temos enormes limitações que são o resultado de uma longa história de não educação da grande massa da população, temos o gigantesco problema da corrupção institucional, pois que agora entranhada e legalizada por um estamento político predatório, que reforma continuamente as práticas patrimonialistas dos predecessores, temos as corporações de Estado — algumas até dispondo de maiores privilégios do que os aristocratas do Ancien Régime, que são os membros da alta magistratura, preservando e ampliando a insegurança jurídica, que afeta o ambiente de negócios — e temos uma nação ainda muito confusa com os sinais contraditórios emitidos por um enxame de candidatos que  pouco dialogam entre si ou com a própria nação, preferindo conciliábulos entre eles próprios. Eles vivem mundo à parte ao do resto da população brasileira, dos 99,9% dos eleitores cativos e compulsórios.

Também temos elites medíocres — os donos do capital e os personagens da política, melífluos e hipócritas — que não dialogam entre si, abertamente, sobre os problemas da nação, mas que preferem jantares discretos com os principais candidatos, unicamente para garantir que nenhum deles irá chutar o pau da barraca apodrecida em que se converteu a nação e também para assegurar as vantagens setoriais defendidas pelos sindicatos de ladrões das associações econômicas mais importantes, sempre com aquela intenção de fazer com que algo mude para que tudo permaneça como está. 

Estes são os dados do grande drama do país, um Prometeu acorrentado por suas próprias contradições, sobretudo por um Estado que já deixou há muito de ser o indutor do crescimento econômico, o que ele foi num passado agora distante de várias décadas, e que se tornou, ao contrário, um obstrutor efetivo e não consciente de um processo de crescimento sustentado, baseado em transformação produtiva e na distribuição social desse crescimento, um impasse que caberia superar o quanto antes. 

Retomo o início: o Brasil ainda não afundou o suficiente — com perdão pelo mau agouro — para ver surgir um novo e legítimo movimento de reformas e de mudanças estruturais. Ainda estamos entregues a um cenário quase “normal” de eleições, nas quais o estamento político se renovará moderadamente e nas quais os principais candidatos fingirão que pretendem realmente cumprir promessas mentirosas e mirabolantes e nas quais os eleitores fingirão que acreditam. 

Se ouso repetir algumas de minhas velhas recomendações de professor de Economia Política, estas seriam as minhas propostas de diretrizes nacionais:

1) manutenção da estabilidade macroeconômica, com fiscalidade responsável, câmbio e juros de mercado na política monetária e cambial, eliminação do atual estupro orçamentário operado por um parlamentarismo deformado e clandestino, por um parlamentarismo que não seja de fachada;

2) microeconomia totalmente competitiva, com eliminação de carteis e monopólios, privatização de TODAS as empresas estatais, desregulação das amarras que são feitas para proteger setores da concorrência aberta;

3) governança de boa qualidade, a partir de uma reforma administrativa que reduza o poder de chantagem exercida sobre a sociedade pelas corporações de Estado, em especial no Judiciário, o mais próximo que temos do Antigo Regime;

4) alta qualidade do capital humano, o que exige uma revolução educacional focada essencialmente no ensino fundamental, com a correção do triângulo invertido do orçamento do setor, atualmente posto a serviço da superestrutura do superior;

5) finalmente, uma abertura econômica radical, com derrubada do protecionismo histórico e renitente e dos entraves aos investimentos diretos estrangeiros. 


Não sei se somos capazes de empreender o caminho da regeneração, mas duzentos anos de muitas promessas, de várias realizações e de ainda múltiplas, inúmeras frustrações já deveriam ter nos ensinado a via do desenvolvimento social inclusivo. Acredito que conseguiremos, pois o simples fato de enunciar os problemas já é um começo de recuperação.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4127: 5 abril 2022, 3 p.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Mini reflexão sobre os “problemas” dos atuais candidatos e das nossas “elites” - Paulo Roberto de Almeida

Mini reflexão sobre os “problemas” dos atuais candidatos e das nossas “elites”

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

  

Começo sendo um pouquinho desrespeitoso, como convém a um contrarianista e adepto do ceticismo sadio (como se aprende lendo Balzac):

O problema do Lula é ser corrupto e mentiroso.

O do Bolsonaro é ser psicopata perverso e totalmente incompetente. 

O do Moro é de ser ligeiramente esquecido sobre as traquinagens que fez enquanto juiz e de ter (ingenuamente ou forma oportunista) confiado no psicopata para levá-lo ao STF.

O do Ciro é o de pretender ser um sabe-tudo, e de insistir nisso.

Tem mais, para os demais candidatos também, pois nunca fui de poupar qualquer candidato, exigente como sou, na minha condição de eleitor alerta e consciente e de ser um cidadão instruído e participante na busca de soluções aos problemas do Brasil (eles são muitos, infinitos).

 

Mas vamos a uma pequena exposição sociológica e histórica sobre os nossos grandes problemas.

Todos os candidatos merecem ser reduzidos em suas respectivas faltas de humildade, ao pretenderem ser o próximo salvador da pátria. Não são! Pelo menos não sozinhos, nunca serão.

O Brasil não será salvo por um paladino solitário, que pretende encarnar todas as virtudes de um presidencialismo imperial, o pior sistema de governo que pode existir (fora da autocracia, claro). E já confesso aqui que sou parlamentarista, mas sem qualquer ilusão: sei que o regime parlamentar, num país como o Brasil, vai redundar (pelo menos numa primeira fase, 10 a 15 anos) na exacerbação das PIORES práticas do nosso estamento político altamente corrupto: patrimonialismo, nepotismo, fisiologismo, prebendalismo, aparelhamento, “emendalismo” doentio, enfim, tudo aquilo que detestamos, mas que continua a persistir no Brasil dada a baixíssima educação política do eleitor brasileiro (para não dizer falta de educação tout court). 

Talvez, quem sabe, mesmo remotamente, o parlamentarismo poderá ajudar a corrigir lentamente todos os problemas brasileiros, que são muitos, mas que resumo em três principais tragédias: a não educação, a corrupção política e a insegurança judicial (que também é reflexo dos privilégios exorbitantes e das ambições individuais da alta magistratura, nossa Nomenklatura, os novos aristocratas do Ancien Régime, que aliás vivem com mais conforto e luxo do que a antiga noblesse de robe, bem mais do que a noblesse d’epée, nossos milicos, que também gastam consigo, e com seus familiares, muito mais do que deveriam).

 

Mas, retomo o PROBLEMA da “salvação” do Brasil, se é que ela ainda existe, isto é, se o Brasil já não foi lançado de uma espiral sem fim para o fundo do poço, um grande torvelinho apontando para um processo de declínio contínuo, uma espécie de “race to the bottom”, no qual parecem querer jogá-lo todos esses representantes das elites dominantes e dirigentes que mandam no país e seus habitantes. 

ELITES: pronto, cheguei na palavra-chave que define o estado presente (o passado também) e o futuro do país. Sem pretender aderir a qualquer teoria das elites — à la Gaetano e Mosca, objetos de minhas leituras juvenis como sociólogo aprendiz —,  não há como recusar o fato elementar de que, à exceção dessas hordas de bárbaros lançados desenfreadamente à conquista de territórios vizinhos, toda nação, qualquer país normalmente constituído, qualquer Estado funcional, é sempre dominado e dirigido por uma elite, mesmo quando a elite é múltipla, dispersa, não coordenada entre si, contraditória em seus desejos setoriais, eventualmente brigona e conducente a rupturas políticas frequentes (como acontecia na Itália das lutas entre guelfos e gibelinos, como bem sabiam Guiccardini e Maquiavel das Istorie Fiorentine). 

 

Certos países, como vocês sabem, são lançados em uma inevitável decadência— aqui mesmo, ao lado, e na longínqua Ásia, em outros tempos — por falhas conjunturais de seus sistemas políticos e por falhas estruturais de seus sistemas econômicos, e SEMPRE por falta de suas elites dirigentes e dominantes, que são as que mandam, mesmo desordenadamente, no país em questão, o que ocorre muito frequentemente, mesmo em países supostamente avançados (e os EUA de Trump, com seus caipiras amestrados e dois partidos atualmente disfuncionais, não me deixam mentir).

Não sei se o Brasil já chegou a esse ponto de um declínio estrutural e longevo, inevitável ainda que imperceptível, ou se ele está apenas resvalando na beira do precipício, mas me parece evidente que suas estruturas econômicas e suas instituições políticas — nos três poderes — já se tornaram disfuncionais e autofágicas. Tudo isso por culpa da tremenda MEDIOCRIDADE de suas elites, tão evidente (quando se ouve qualquer um de seus pretensos representantes, com raras exceções) que dispenso até de oferecer exemplos. 

 

OK, elas já eram medíocres, cegas e ignorantes, ao preservar o tráfico, a escravidão, um regime voltado unicamente aos interesses dos grandes proprietários e dos mandarins do Estado, desde a Independência, como já alertavam antes, e continuaram alertando depois, mentes preclaras, como foram Cairu, Hipólito e Bonifácio (sem conseguir se fazer ouvir pelo que comandavam aos destinos da nova nação que surgia).

Depois elas melhoraram um pouco, ao ter mais filhos educados em boas universidades estrangeiras — não tínhamos, nunca tivemos as nossas, até meados do século XX — e abertos às leituras dos melhores livros. O fato de termos acolhido refugiados, exilados e emigrantes de boa formação também ajudou: depois, os milicos e nacionalistas rastaqueras cortaram a porta de entrada desses imigrantes de qualquer tipo, ricos e pobres, a pretexto de “preservar empregos aos nacionais” e de “salvaguardar a segurança nacional”: IDIOTAS!

Seja como for, certas elites no meio do caminho melhoraram um pouco a administração do país ao se ajustarem ao que Gilberto Amado falava da República Velha: “as eleições eram falsas, mas a representação era verdadeira”, no sentido em que os “eleitos” eram membros de uma elite educada, falando direito, conhecendo as leis e dotadas de um visão cosmopolita (pois eram os únicos que viajavam, falavam Francês, ainda que fosse mais para falar com as meninas do Moulin Rouge do que para se entreter com estadistas da Europa). Depois veio a época da americanização do Brasil, com aquele jeito grosseiro do Tio Sam, mas com muito mais dinheiro do que os antigos banqueiros da City londrina. Era isso a nossa antiga elite imperial e da Velha República; tinha manias francesas, mas o dinheiro era inglês, como ainda registrava Monteiro Lobato em seu Mister Slang e o Brasil, um perfeito retrato do Brasil atrasado e corrupto da Velha República.

O próprio Lobato foi para a América e voltou americanizado, querendo dar aço e petróleo ao Brasil: não conseguiu, mas abriu os caminhos da modernização industrial com que sonhava Mauá e que seria feita pelos milicos nacionalistas e pelos parvenus da indústria, imigrantes ou os velhos barões do café reciclados nas engrenagens do novo modo de produção.

 

Até que fizemos bem, e o Brasil da periferia se tornou uma grande nação industrial — com as distorções do protecionismo renitente e do mercantilismo ideológico — mais até do que certos países da Europa meridional.

Tudo parecia sorrir para aquele otimismo dos “cinquenta anos em cinco” quando as ambições desmedidas de alguns governadores e a paranoia anticomunista dos milicos nos levaram a um novo golpe militar, um dos muitos que se sucediam desde a derrocada da monarquia e o advento da república, justamente por meio de um reles golpe militar. O florianismo — essa coisa do “faremos à bala” — parece que ficou incutido em muitos militares e em vários civis.

O fato é que os milicos donos do poder até que não fizeram mal no plano estritamente material e infraestrutural, mas erraram tremendamente no plano educacional, não por culpa deles inteiramente: eles vinham das boas escolas militares ou da primeira fase das “escolas republicanas”, que era de boa qualidade, mas que só alcançavam as classes médias e as camadas pobres urbanas, excluindo totalmente os desclassificados das favelas, dos subúrbios e os muitos rurícolas (ainda praticamente 50% da população).

Os militares negligenciaram a educação de massa de boa qualidade (como fizeram, por exemplo, as elites coreanas, inclusive a ditadura militar) e investiram pesadamente na superestrutura, a graduação, a pós e a P&D, o que não estava errado, mas era insuficiente e discriminatório, num país que se urbanizava, se industrializava e se democratizava socialmente (sim, a despeito da ditadura, o processo de ascensão social se ampliou e se diversificou durante o regime militar, e mesmo a cultura se ampliou e foi extremamente vibrante durante e apesar da ditadura retrógrada e censória).

 

Volto ao PROBLEMA das elites, pois o nó dos problemas Brasil está, continua sendo, sempre foi, a mediocridade das nossas elites, as oligárquicas, as industriais, as do mais recente agronegócio frondoso, as velhas do establishment militar, os mandarins do Estado, com destaque para a magistratura prebendalista, e até algumas elites acadêmicas, sonhadoras e distantes do povo, como costumam ser, e inclusive algumas novas elites vindas do chamado “sindicalismo alternativo”, que se adaptou rapidamente ao ambiente corrupto criado pelos vínculos estatais (e até derivaram para o sindicalismo mafioso). 

Já nem preciso atacar as elites políticas, pois que, depois dos grandes tribunos da República de 1946 (alguns sobreviveram ao regime militar), o terreno foi invadido pelos representantes do corporativismo persistente, pelos oportunistas do baixo clero, pelos demagogos ignorantes e por toda uma fauna variada que se acomodou nos privilégios e mordomias criadas pelos militares (para domesticar esses “representantes do povo”) e que acabou criando esse estamento político impérvio às necessidades da nação, só interessados em seus ganhos privados a partir da “socialização dos prejuízos”, o que sempre fizeram todas as oligarquias.

O Brasil virou uma plutocracia, mas não de antigas classes privilegiadas, e sim de parvenus continuamente incorporados aos círculos dominantes e dirigentes, como os novos milionários: o “rei do cimento”, o “rei do gado”, o “rei da soja”, os “reis” de qualquer coisa, mas sempre grudados num alvará régio, numa concessão estatal, numa prebenda qualquer do poder público.

 

Mas, qual é o problema principal de nossas elites (e aqui retomo uma ideia do Bolívar Lamounier, que pretendia fazer dela um projeto de pesquisa)? O problema é que que essas elites NÃO FALAM ENTRE SI, além e acima de seus interesses particularistas, e da coordenação de seus interesses setoriais das associações respectivas e das confederações nacionais dos grandes ramos da economia.

Os grandes barões (vários ladrões) dessas entidades não conversam quase nada entre si, sobretudo quando se trata de “comprar” (esse é o termo) o seu senador, o seu deputado, ou quando muito para virem a Brasília reclamar (ou exigir, sob ameaça de desemprego) favores setoriais, que são concedidos isoladamente para aquele setor, mas que depois recaem sobre toda a sociedade (sob a forma de tarifas protetoras, subsídios fiscais, empréstimos e financiamentos dos bancos estatais a juros camaradas).

 

Esse é o PACTO PERVERSO que coíbe, dificulta, obsta ao desenvolvimento social do país, mas que privilegia, protege e promove os interesses e os ganhos da parte alta da “Belíndia” (apud Edmar Lisboa Bacha). Um pacto perverso que junta os donos do capital, os donos do dinheiro, a seus representantes políticos, alguns até representantes da “classe operária”, mas que se acomodaram no compadrio geral do dinheiro fácil.

Pode ser que a exacerbação da extração política do estamento congressual, simbolizado por todas essas emendas abusadas — que nada mais são do que um verdadeiro estupro orçamentário —, convença agora as elites dominantes a rever a sua relação com o estamento político nacional, que se transformou numa “classe em si”, no sentido marxista da palavra, além de tudo, uma classe egoísta, com representantes autistas e depravados.

 

Eu teria muito mais a dizer sobre os PROBLEMAS do Brasil, mas creio que estas considerações são suficientes para dar início a uma segunda série de proposições a respeito de possíveis soluções a nossos problemas mais prementes. Vale pela atenção…

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4031: 1 dezembro 2021, 6 p.

 

sábado, 28 de outubro de 2017

Brasil invertebrado - Ricardo Velez-Rodriguez

BRASIL INVERTEBRADO


Ricardo Vélez-Rodríguez
Blog Rocinante, 28/10/2017
(Um espaço para defesa da Liberdade, da forma incondicional em que Dom Quixote fazia nas suas heroicas empreitadas!)

Faço referência no título deste post à obrinha de Ortega y Gasset intitulada: España invertebrada (1922). Nela, o grande pensador criticava a falta de espírito público vigente na Espanha, às vésperas da Guerra Civil. Cada um no seu canto, com a sua bandeira. A Espanha de então era como o Brasil de hoje, dividido em patotas. Cada um zelando pelos seus interesses individuais, mas sem nenhuma perspectiva de respeito aos direitos dos outros. Era a ausência total do "interesse bem compreendido" apregoado por Tocqueville como condição necessária ao bom funcionamento de uma República.

Pois bem: o vício da privatização do poder para benefício próprio, fenômeno tipicamente ibérico, esse é o nosso mal, neste Brasil que se debate entre patotas. O lema dessa privatização do que é de todos é: "quanto pior melhor"! Fica isso claro no niilismo lulopetralha, que quer que definitivamente o barco afunde, visto que o Chefe já está com a água no pescoço. Mas desse imediatismo suicida não se salvam outros atores. Muitos querem negociar, no Parlamento, levando unicamente em consideração os interesses imediatos, sem pensarem no país e no que seria melhor para o Brasil.

Os vários grupos de esquerda arregimentados ao redor do lulopetismo consideram que como o Partido e os seus dois ex-presidentes, Lula e Dilma, estão já prestando contas à Justiça pelos malfeitos dos seus desgovernos, devem desconhecer, então, a legitimidade do governo Temer que, dentro dos marcos assinalados pela Lei, substituiu o regime lulopetralha. A minha posição é clara: deixem o Temer concluir o seu mandato-tampão, estabelecido à luz do que a Constituição e as leis mandam. Se ele tiver algo a responder perante a Justiça pelo seu desempenho político anterior à chegada ao Planalto, que o faça logo assim que terminar o seu mandato em 2019. 

O que os militantes estão tentando, há meses a fio, é inviabilizar um governo de transição legitimamente constituído, para "pescar em águas turvas". É claro que entre os colaboradores parlamentares de Temer, nem todos são corretos e não poucos tem agido unicamente pensando nos seus benefícios imediatos, sem prestar atenção ao que seria melhor para todos os brasileiros. Agem assim os que aproveitam a próxima curva do caminho para assombrar o enfraquecido presidente com exigências que são mais chantagens de última hora.

Mas o governo Temer tem resistido aos embates, negociando aqui e acolá. Afinal de contas, Michel Temer é um experimentado parlamentar que sabe de cor e salteado os ritos processuais do Congresso e da barganha política. Se algo de errado houver nos seus atos como presidente, que seja julgado conforme o rito legal. Até o presente, pelo visto das sessões do Parlamento dedicadas a apreciar as denúncias do Ministério Público contra o primeiro mandatário, ele tem sido  poupado. Deixem o homem trabalhar neste seu curto mandato, a fim de que complete o trabalho de saneamento da economia, duramente golpeada pela irresponsabilidade criminosa de Lula, Dilma e dos seus colaboradores.

De negativo tenho a destacar a figura do ex-procurador Rodrigo Janot, que cedeu à tentação da mosca azul do poder e partiu com tudo para cima de Michel Temer, a fim de conquistar benefícios políticos e pavimentar a sua entrada ulterior na política partidária. Não podia o senhor Janot ter feito isso, investido como estava de altos poderes na Procuradoria Geral da República. O episódio da denúncia montada contra Temer à sombra da procuradoria, que negociou previamente com os criminosos empresários Joesley e Wesley (dois gangsteres de filme de velho oeste, mais do que dois honestos cidadãos), é de todo modo inaceitável. Janot achou que os brasileiros somos otários e que se sairia bem com a sua ópera bufa. Amargará as consequências que a opinião pública lhe obrigará a engolir nos próximos anos. A lei existe e é para todos, inclusive para Janot e comparsas!

Escreveu bem, a respeito das aventuras estratégicas de Janot, o sociólogo Demétrio Magnoli no seu artigo intitulado: "A Lava-Jato perecerá se não for contido o espírito jacobino" (Folha de S. Paulo, 24/06/2017), quando frisou: "Janot, nosso Ropbespierre carnavalesco, subscreveu o enunciado (de que o Terror é nada mais que justiça imediata, severa, inflexível), ao associar-se com o corruptor geral da República numa trama politicamente motivada. Já o Supremo Tribunal Federal, ao validar o prêmio escandaloso concedido ao delator, desperdiçou a primeira oportunidade para dissociar a palavra Justiça da palavra Terror". Segundo Magnoli, "Dois fatos são indisputáveis: 1 - antes de delatar oficialmente, Joesley foi instruído por um procurador e um delegado da Polícia Federal; 2 - como prêmio pela entrega das gravações, obteve imunidade judicial absoluta. Nas suas argumentações, os Ministros do Supremo Tribunal Federal esconderam-se atrás do biombo dos sofismas para não enfrentar tais flagrantes ilegalidades".

Uma segunda apreciação crítica das investidas da Procuradoria e do Ministério Público, tinha sido elaborada pelo sociólogo Luiz Werneck Viana na entrevista concedida no ano passado a Wilson Tosta, do jornal O Estado de S. Paulo (20/12/2016), sob o sugestivo título: "Tenentes de toga comandam essa balbúrdia jurídica". Nas suas declarações, Werneck Vianna reconhecia que há uma inteligência (a das corporações jurídicas, como o Ministério Público e o Judiciário) a comandar a crise política que assola o País. "Essa balbúrdia - frisava o entrevistado - é comandada e manipulada com perícia. Procuradores e juízes são tenentes de toga, uma comparação com os tenentes de 1920, mas, diferentemente dos revolucionários fardados,  não tem programa além de uma reforma moral do país".

O certo é que essa investida moralizante insere-se no contexto da regeneração dos positivistas do século XIX, que pretendiam enxotar a representação de interesses como imoral, a fim de deixar unicamente no cenário os legítimos representantes dos interesses sagrados do governo, a nomenclatura cabocla e os seus mandantes, iluminados pela ciência social. Todos sabemos aonde conduzem essas nebulosas elucubrações: a "ditadura científica" dos "puros", que o Brasil já conheceu nos ciclos castilhista, getuliano e do ciclo militar. Tratar-se-ia de jogar a água suja da banheira junto com a criança. Isso a sociedade brasileira não quer. 

O que reivindicamos os cidadãos nestes momentos é que haja uma reforma política que reestruture a nossa representação deformada pelas intervenções autoritárias. Uma das intervenções mais desastradas foi a efetivada pelo ditador Getúlio Vargas, que popularizou o slogan de que as eleições são para conscientizar, não para melhorar a representação. Outra intervenção desastrada foi a protagonizada pelo famigerado "Pacote de Abril" do general Geisel, que deformou a representação dando mais representatividade aos Estados atrasados que dependiam dos favores da União, tendo deixado sub-representados os Estados que representavam o Brasil moderno.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A reconstrucao do Brasil, com a ajuda da globalizacao: livro de Jose Fucs - Paulo Roberto de Almeida


A reconstrução do Brasil, com a ajuda da globalização

Paulo Roberto de Almeida

Tenho em mãos este livro: José Fucs, A Reconstrução do Brasil: os grandes desafios do País para alcançar o desenvolvimento sustentável, a estabilidade política e o bem-estar social (São Paulo: O Estado de S. Paulo, 2017, 149 p.), que foi elaborado a partir das muitas reportagens feitas pelo repórter especial do Estadão entre setembro de 2016 e janeiro deste ano, às quais foram acrescidos alguns editoriais do jornal, feitos justamente a propósito de temas especiais levantados nas matérias sobre inúmeros problemas do Brasil nesta fase de transição para uma nova situação que ainda não sabemos exatamente do que será feita. Partimos da suposição de que esse futuro será melhor do que a atual fase de crise econômica, política, social (e profundamente moral), na verdade a maior recessão já enfrentada pelo Brasil em toda a sua história econômica, um legado maldito do governo companheiro anterior.
Como é meu hábito, e vício profissional enquanto diplomata, busquei no livro quais seriam os problemas detectáveis neste série de reportagens que teriam origem no cenário internacional ou que poderiam ser atribuídos a questões externas ao Brasil. Para minha frustração, não encontro nenhum: simplesmente não existem, nos diversos problemas focados por José Fucs, com base em pesquisas extensas, leituras intensas e conversas com especialistas em cada uma das áreas selecionada, qualquer um que possa ser vinculado a algum obstáculo internacional, a alguma característica negativa do sistema de comércio mundial, alguma defecção de investidores estrangeiros, sabotagem dos centros financeiros, má vontade de organismos internacionais; simplesmente não consigo detectar qualquer restrição externa ao Brasil enquanto economia emergente. Na verdade, existe sim, uma questão, que é a da questão da abertura comercial (objeto de um editorial do jornal publicado em 8/12/2016, com base numa das matérias feitas por Fucs), mas que não constitui de fato um problema, e sim trata-se de uma solução, ou seja, é algo que o Brasil precisa fazer em seu próprio benefício, não para fazer favor a qualquer exportador externo, ou atender a acordos comerciais.
Todos os demais problemas detectados, e objeto de uma quinzena de capítulos, segundo as matérias publicadas, são problemas perfeitamente brasileiros, totalmente construídos no Brasil, inteiramente made in Brazil, a 150%, se ouso dizer. Listo aqui, pela ordem: a reforma das reformas (a tal de Constituição cidadã, que é propriamente esquizofrênica do ponto de vista econômico), o ajuste fiscal, a batalha contra os privilégios, o rombo recorde da Previdência, a flexibilização do trabalho (parcialmente empreendida recentemente), a luta contra a burocracia, o cerco à roubalheira, o peso colossal dos tributos, um ambiente mais amigável para os negócios, o peso absurdo do protecionismo comercial (incorporado sob o conceito de “renascimento na arena global”, e que foi justamente objeto do editorial mencionado acima), o desmonte do Leviatã, os desafios da retomada do crescimento, a descentralização do poder e a modernização dos sindicatos (uma tarefa que eu mesmo julgo impossível, pois eles se converteram em “máquinas de extração de dinheiro” e em obstrutores das reformas).
Segundo depreendo do conjunto das matérias preparadas e muito bem editadas por José Fucs, a totalidade dos problemas e a integralidade das reformas necessárias são devidas única e exclusivamente a nós mesmos, erros, equívocos, deformações de nossas políticas públicas e de funcionamento das instituições, questões que cabem apenas ao Brasil e aos brasileiros resolver, para superar o atual quadro pavoroso feito de milhões de desempregados, o crescimento medíocre ou inexistente, as desigualdades sociais e regionais persistentes e a infraestrutura deficiente. O mundo, a globalização, o sistema internacional, como constatado pela experiência de crescimento de países emergentes, na própria região e especialmente na Ásia Pacífico, são absolutamente favoráveis à retomada de um processo sustentado (e sustentável) de crescimento no Brasil. Sob qualquer critério que se examine, cabe reconhecer uma massa colossal de liquidez ávida de aplicação, sob a forma de investimentos diretos ou de capitais de empréstimos, a permanência de um protecionismo comercial setorial ou limitado ((com a possível exceção da área agrícola), um ambiente cada vez mais favorável à interdependência entre economias abertas e propensas a aceitar os novos requerimentos dos intercâmbios globais (que não se limitam a tarifas ou acesso a mercados, mas passam por regras e padrões em serviços, propriedade intelectual e normas relativas a investimentos e fluxos de capitais). O mundo, enfim, está aberto a quem é aberto e participante, o que talvez não seja o caso atual do Brasil.
A recente decisão tomada pelo governo Temer, no sentido de solicitar adesão (ou acessão) à OCDE, pode ajudar nesse processo de reformas e retomada do processo de crescimento, desde que o Brasil não adote, como antes no caso do Mercosul, uma atitude defensiva, restritiva ou de abertura limitada. Se TODAS as medidas dependem mesmo do Brasil, cabe ler este livro, ou reler as matérias publicadas, estabelecer uma lista de reformas, e começar a empreender a difícil tarefa de converter o Brasil num país normal, o que ele absolutamente não é, atualmente. Devemos ser gratos a José Fucs por ter começado essa missão, pela listagem absolutamente clara dos problemas: ele já deu a sua contribuição. Cabe a nós, agora, isto é, a cidadania ativa, para não mencionar os altos responsáveis governamentais, empreender a tarefa de empreender o dever de casa, conscienciosamente. Allons enfants...


Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 20 de setembro de 2017

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Dez obras para melhor entender os problemas do Brasil - Paulo Roberto de Almeida (Spotniks)

Meu artigo sobre os livros que considero relevantes acaba de ser publicado pelo blog Spotniks, e no momento em que leio (21:33 do dia 6/06/2016) já se registram 2.314 compartilhamentos.
Meu artigo anterior no mesmo blog, "Dez Grandes Derrotados da Nossa História (ou como o Brasil poderia ter dado certo, mas não deu)", teve aproximadamente 10 mil compartilhamentos.
Espero que este supere, mas acho que não: livros não tem o appeal de pessoas de carne e osso.
Paulo Roberto de Almeida 


Dez obras para melhor entender os problemas do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
 [Colaboração a Spotniks, seleção de obras relevantes sobre o Brasil; publicado em 6/06/2016, link: http://spotniks.com/dez-obras-que-voce-precisa-ler-para-entender-melhor-os-problemas-do-brasil/]

Gustave Flaubert, escritor perfeccionista, que viveu para produzir pelo menos uma obra duradoura – ele fez várias – tinha a mania de penetrar na psicologia de seus personagens para deles tentar fazer uma síntese dos sentimentos humanos, como em Salammbô, por exemplo. A propósito do seu mais célebre personagem, num romance que descreveu, à la Balzac, como sendo de “costumes de província”, Flaubert teria dito, a um interlocutor que o interrogava sobre as características dessa mulher que foi julgada nos tribunais (sic!) como muito ousada para a época: “Madame Bovary, c’est moi!”.
Talvez eu possa dizer algo semelhante a respeito dos livros, eternos objetos do meu desejo, que sempre me cercaram, desde a infância, passada em biblioteca pública, atravessando uma adolescência de muitas leituras, e chegando agora à idade madura, invariavelmente rodeado por livros. À la Flaubert, eu diria: “Livros? É comigo mesmo!”
De fato, eu me fiz nos livros, pelos livros e para os livros, em especial em obras sobre o Brasil e os seus problemas econômicos e sociais. Toda a minha vida pode ser resumida numa longuíssima, interminável sessão de leituras, e de anotações em cima dessas leituras, sempre com uma mesma obsessão, quase doentia: tentar entender por que o Brasil é o que é, qual a natureza exata dos seus problemas, e o que se pode fazer para solucioná-los. Foi para responder a essas questões – que não eram puramente teóricas, mas eminentemente práticas, uma vez que eu vinha de uma família muito modesta, tive de trabalhar desde muito cedo, e só pude ascender profissionalmente e socialmente graças a esses trampolins impressos – que eu me politizei precocemente, lendo, ainda na adolescência, livros de mestres universitários que eu encontraria mais tarde, na bibliografia do curso superior, vários anos depois.
Quando parti para um exílio semiforçado na Europa, nos anos de chumbo da ditadura militar, arrastei comigo uma pequena biblioteca de “problemas brasileiros” que deve ter intrigado mais de um guarda aduaneiro, nas diversas fronteiras que atravessei até me fixar estavelmente na Bélgica para ali continuar meus estudos interrompidos no segundo ano de Ciências Sociais na USP. Parece bizarro, mas vários “clássicos” do pensamento político e dos estudos históricos brasileiros eu li primeiro em francês, tal como disponíveis na biblioteca do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. Maîtres et Esclaves, o grande Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, ou Les Terres de Canudos, ou seja, Os Sertões, de Euclides da Cunha, ficaram em minha memória desde o início dos anos 1970, antes que eu pudesse retomar essas obras nas suas edições originais, na volta ao Brasil sete anos depois.
Da mesma forma, lendo sobre o Brasil em todas as línguas disponíveis, revisei minha interpretação da história política brasileira, até então fortemente marcada pela historiografia marxista (que era de rigor na nossa tradição universitária), pela leitura de Thomas Skidmore, Politics in Brazil 1930-1964: An Experiment in Democracy (na primeira edição da Oxford University Press, de 1967, que retirei da biblioteca central da ULB), vários anos antes de conhecer sua edição brasileira, Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-64). Também percorri toda a produção acumulada dos brasilianistas, primeiro em francês, depois em inglês, o que está refletido no livro O Brasil dos brasilianistas, que editei com meu amigo Marshall Eakin (Envisaging Brazil, na edição americana).
No Brasil e no exterior, em qualquer tempo e lugar, básica e fundamentalmente, li tudo o que eu encontrava de obras sobre o Brasil e seus problemas, leituras sempre entremeadas de muita história econômica e de sociologia política. Acredito, assim, estar habilitado a indicar aos meus leitores, alguns títulos que, efetivamente, considero como importantes para conhecer o Brasil e seus problemas, sempre nessa perspectiva histórica que muito me marcou, mesmo se nunca fui historiador de formação, ainda que faça da história o centro de minhas atenções analíticas e didáticas. Vejamos o que eu poderia indicar aos que gostariam de entender um pouco do Brasil e dos problemas que ele precisaria enfrentar, se é que pretendemos de fato resolvê-los. Minhas escolhas, aqui limitadas a apenas “dez obras”, entendidas num conceito amplo, são estas:

1) Hipólito da Costa: o primeiro pensador da nacionalidade

Considero o “braziliense” – nascido na Colônia do Sacramento (Uruguai), criado no Rio Grande do Sul, educado em Coimbra, enviado pelo Conde de Linhares aos Estados Unidos aos 24 anos, e refugiado desde 1805 em Londres, para fugir, por ser maçom, da Inquisição portuguesa, editor do Correio Braziliense desde 1808 até 1822 – um dos maiores pensadores da nação, ainda que partidário de um grande império luso-brasileiro, que ele defendeu no momento crucial da nossa independência. Sobre ele existem duas biografias primorosas, que concorreram entre si para ganhar os favores da intelectualidade brasileira no final dos anos 1950: a de Mecenas Dourado: Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense” (Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957), e a de Carlos Rizzini: Hipólito da Costa e o Correio Braziliense (São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, Brasiliana Grande Formato n. 13). Não sei se Hipólito mereceria uma outra biografia, sobretudo depois que todos os números do Correio Braziliense foram republicados em edição fac-similar por iniciativa de Alberto Dines pela Imprensa Oficial de São Paulo, em colaboração com o jornal Correio Braziliense, em 2002, com muitos estudos sobre sua vida, obra e pensamento, inclusive um meu, no volume XXX: “Hipólito da Costa e o nascimento do pensamento econômico brasileiro” (link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/834HipolCostaPensamEconBr3.pdf).
Antonio F. Costella, um outro estudioso do grande brasileiro emigrado, publicou no Observatório da Imprensa uma pequena cronologia da vida e obra de Hipólito (ver : http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/alm030620032.htm); o mesmo site publicou a maior parte dos estudos feitos para o último volume da edição fac-similar, entre eles o de Istvan Jancsó e de Andréa Slemian sobre a curiosa posição de Hipólito no momento da independência: “Correio Braziliense, um caso de patriotismo imperial” (neste link: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/alm290720032.htm). De fato, Hipólito e o Correio se empenharam, como escrevem esses autores, na “defesa da unidade da Monarquia e, sempre no interior dela, à valorização da coesão de suas partes da América”. A postura de Hipólito tinha profundas razões políticas, pelo menos desde 1815, quando o Brasil é declarado Reino Unido, mas mesmo antes, nas negociações com os britânicos em torno dos dois tratados de 1810, por exemplo, o de amizade e defesa e o de comércio e navegação, o “braziliense” explicava detalhadamente como deveriam negociar os representantes lusos, sempre em defesa dos interesses brasileiros, como eu analiso em meu ensaio citado acima. A esse respeito, recomendo ler o ensaio de Rubens Ricupero sobre esses tratados, neste livro: Luis Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (orgs.), A Abertura dos Portos (São Paulo: Editora Senac-SP, 2007).
Hipólito foi o primeiro e um dos maiores pensadores dos problemas brazilienses (caracterização que ele defendia desde o primeiro número do Correio), e por isso mesmo recomendo começar o estudo dos problemas brasileiros pela leitura atenta do seu “armazém literário”, se disponível online. Existe também a possibilidade de se recorrer a um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro: Barbosa Lima Sobrinho, que escreveu uma Antologia do Correio Braziliense (Rio de Janeiro: Cátedra, 1977). Ao ser comemorado o bicentenário da primeira edição do Correio, em 2008, Lilia Diniz publicou uma excelente síntese dos trabalhos efetuados pelo Observatório da Imprensa em torno do grande pensador brasileiro, que também recomendo ler: “200 anos da imprensa brasileira: Correio Braziliense e Hipólito da Costa” (edição 489, 11/06/2008; link: http://observatoriodaimprensa.com.br/e-noticias/200_anos_da_imprensa_brasileira_correio_braziliense_e_hipolito_da_costa/). Em suma, em se tratando dos problemas brasileiros, melhor começar pelo começo...

2) Mauá: o primeiro capitalista brasileiro (que faliu por causa do estado)
Existem duas grandes biografias desse grande brasileiro, que a exemplo de Hipólito também teve uma “educação inglesa”, ambos pelo lado prático, e que também enfrentou inúmeras dificuldades nas tentativas respectivas de encaminhar problemas da nação e de seu desenvolvimento. A primeira é do membro da Academia Brasileira de Letras Alberto de Faria, que ao adquirir a casa que tinha sido construída pelo grande empresário do Império (1813-1889) em Petrópolis, no início do século XX, resolveu investigar a vida daquele homem que tinha deixado um grande escrito, sua “Exposição aos Credores” (1878), e muitas empresas espalhadas pelo Brasil e no Uruguai, a maior parte em situação falimentar, depois que enfrentou problemas com ministros da monarquia. Ele escreveu, então, uma obra irregular (pois feita de pesquisas ao longo de alguns anos e escritos parcialmente divulgados em palestras e conferências), mas que ainda se mantém como um testemunho importante sobre o grande empresário: Mauá: Irineo Evangelista de Souza, Barão e Visconde de Mauá, 1813-1889 (Rio de Janeiro: Paulo, Ponguetti & Cia, 1926). Valeria uma reedição, talvez pela própria Academia.
A segunda biografia, mais pesquisada, e saborosa, é a de Jorge Caldeira: Mauá: Empresário do Império (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), uma cuidadosa reconstrução da vida e dos empreendimentos do homem mais rico do Brasil durante o Segundo Império, com um patrimônio provavelmente equivalente a todo um orçamento anual da monarquia. A despeito de bastante criticado na sua metodologia historiográfica pelos especialistas do período, a simpática narrativa de Caldeira se sustenta em função da interpretação que ele privilegiou na descrição dos inúmeros obstáculos encontrados por Irineu em suas tentativas de fazer o Brasil resolver seus problemas de crescimento e riqueza pela via pragmática de um capitalismo estilo britânico, e que se chocava com o falso aristocratismo dos dirigentes do Império. Como ele escreve, Mauá conseguiu criar duas dezenas de empresas (bancos e indústrias) em seis países diferentes, cuja gestão era feita, no início, por meio de cartas despachadas em navios a vela, ainda que alguns desses investimentos dependessem dos movimentos erráticos do câmbio, que no Brasil estavam ligados aos volumes anuais da produção de café e seus preços de mercado.
Uma visão mais circunspecta de seu insucesso empresarial revela que, ao contrário do que disseram vários dos seus biógrafos, Mauá não foi vítima apenas de percalços colocados pelo governo, mas da mudança de circunstâncias sob as quais ele trabalhava, e que talvez tenham dependido excessivamente de negócios contratados ou alicerçados em políticas governamentais, o que transparece em uma análise mais empiricamente embasada efetuada por David Izecksohn Neto e Paulo Emílio Matos Martins no trabalho: “Mauá e Cia.: a autocrítica do maior empreendedor brasileiro do século XIX” (Trabalho apresentado ao XXIX EnAnpad, Associação dos Programas de Pós-Graduação em Administração; Brasília, 18-21/09/2005). Qualquer que seja a hipótese correta para a sua falência, fica claro que o ambiente de negócios no Brasil sempre foi, em qualquer época, extremamente difícil, justamente devido ao forte papel regulador exercido intrusivamente pelo estado em todas as esferas de atividade.
Nesse sentido, não apenas o itinerário empresarial de Mauá deve continuar a ser estudado por economistas e historiadores, mas eles também deveriam analisar não só sua trajetória no confronto com as medidas econômicas do governo imperial, mas também em relação às medidas de quaisquer governos em quaisquer épocas, ou seja, o impacto da mão pesada do estado sobre as atividades de mercado. O Brasil, por exemplo, vai demorar a se recuperar da Grande Destruição lulopetista – da qual tratei recentemente em um artigo escrito para uma palestra na Yale School of Management: The Great Destruction in Brazil: How to Downgrade an Entire Country in Less Than Four Years”, Mundorama (n. 102, 1/02/2016, link: http://www.mundorama.net/2016/02/01/the-great-destruction-in-brazil-how-to-downgrade-an-entire-country-in-less-than-four-years-by-paulo-roberto-de-almeida/) – mas cabe registrar que, no auge das medidas insanas que nos conduziram ao desastre atual, empresários de todos os ramos viviam implorando ao governo por “políticas setoriais” que induzissem suas respectivas áreas de atividade. Seriam êmulos de Mauá?
Em face dessas demandas, o estado, pelos seus mandarins amestrados e seus tecnocratas bem intencionados, se esforça, então, para atender aos reclamos dos empresários, mas o preço a pagar é esse mesmo que estamos vendo agora: falência das contas públicas. Isso sem esquecer que vários dos “crimes econômicos” do lulopetismo (como Pasadena, por exemplo, ou a Sete Brasil) foram deliberadamente construídos para produzir o que já estamos assistindo: milhões desviados em favor de capitalistas promíscuos, que repartem algumas migalhas com os mafiosos da política (de vários partidos, com destaque, obviamente, para os neobolcheviques petistas).
Uma diferença, porém: Mauá pode até ter sido levado ao insucesso quando, depois do protecionismo e das concessões garantidas pela monarquia, mudanças nas políticas setoriais fizeram com que ele tivesse de enfrentar uma concorrência bem mais acirrada do que nos tempos de exclusividade. Mas ele nunca teve de enfrentar o tipo de quadrilha cleptocrática tão completamente instalada no coração do estado quanto a que foi administrada pelos companheiros entre 2003 e 2016. Vivam as diferenças!

3) Joaquim Nabuco: O abolicionismo
A obra é o resultado das primeiras derrotas de Nabuco – haveria outras – no seu empenho em modernizar o Brasil, a despeito de todo o atraso intelectual das elites, inclusive a sua própria, a dos senhores de engenho do Nordeste, que mandaram no Brasil desde o descobrimento até meados do século XIX, aproximadamente, quando foram suplantados por uma outra elite, a dos plantadores de café do Sudeste. Escrita em Londres, em 1883, onde ele se “refugiou” na legação do Barão de Penedo depois de perder as eleições para reconduzi-lo a um novo mandato de deputado por Pernambuco, a obra é um marco do pensamento político brasileiro, não porque nela ele defendesse o abolicionismo – o que muitos outros membros da elite ilustrada também faziam – mas porque ele preconizava a reforma agrária e a educação dos miseráveis, os libertos do regime escravo, mas também todos os brasileiros pobres, geralmente do campo.
A famosa Lei de Terras de 1850 representou o contrário do que o seu nome indica: ao contrário do Homestead Act dos Estados Unidos, adotado em plena guerra civil pelo presidente Lincoln – e que garantia a posse de uma propriedade de 160 hectares a quem a cultivasse por cinco anos, aumentando o fluxo de imigrantes europeus e criando uma grande classe de pequenos proprietários rurais –, a lei brasileira só admitia a posse de terras da União mediante compra liquidada no ato, o que era uma clara estratégia da elite agrária no sentido de substituir o tráfico de escravos proibido pelo decreto do mesmo ano pela importação de novos servos de gleba europeus postos a serviço da grande propriedade comercial de exportação. Nabuco queria justamente criar uma classe de camponeses tal como vinha observando na experiência dos EUA ou da Austrália, e mais do que isso, garantir que eles tivessem uma formação adequada em termos de ensino, para que eles constituíssem, não necessariamente cidadãos, mas bons súditos de um regime monárquico.
Como muitos outros, Nabuco foi um dos grandes derrotados da nossa história – como já tive oportunidade de examinar neste artigo: “Dez grandes derrotados da nossa história (ou, como o Brasil poderia ter dado certo mas não deu)”, Spotniks (14/02/2016; link: http://spotniks.com/dez-grandes-derrotados-da-nossa-historia-ou-como-o-brasil-poderia-ter-dado-certo-mas-nao-deu/) – e não apenas nessa questão: sua campanha pela laicização do Estado imperial também não logrou sucesso, pelo menos até o surgimento da República jacobina. Considerando-se porém a atual penetração da agenda religiosa – não mais apenas da Igreja Católica, mas sobretudo pelas seitas evangélicas, e as muitas “empresas religiosas” que se multiplicam em todos os lados – nos assuntos do Estado, pode-se afirmar que o Nabuco anticlerical continua a ser um grande derrotado. Mais ainda: sua agenda pela universalização do ensino fundamental foi cumprida apenas pelo lado quantitativo (e ainda assim parcialmente, pois a evasão é contínua, a partir dos últimos anos do básico e dos primeiros do secundário), uma vez que do lado qualitativo a miséria educacional continua a crescer, agora influenciada por esse grande idiota, convertido em “patrono”, da educação brasileira, Paulo Freire, aliás um pernambucano como Nabuco. Em todo caso, a leitura do seu livro de 1883 pode nos ajudar a entender quando é que começamos a errar no tratamento dos problemas brasileiros.
O historiador econômico brasilianista Nathaniel Leff achava que o Brasil começou a não dar certo justamente a partir do segundo império, ou seja, a coisa vem de longe, de muito longe. Não acredito muito nessa tese, pois o Brasil já era muito diferente dos Estados Unidos desde o período colonial, sobretudo na educação, o que explica nossos índices historicamente baixos de produtividade. A coisa é complicada...

4) Monteiro Lobato: Mr. Slang e o Brasil
Já me referi, no mesmo trabalho citado acima, a esse pequeno opúsculo perdido no meio da imensa obra – infantil e adulta – do mais célebre publicista da primeira República e da era Vargas, o homem que prenunciou um presidente negro nos Estados Unidos (não exatamente num sentido “progressista”), que lutou pelo “petróleo é nosso” (mas não com o nacionalismo obtuso dos realizadores do slogan), e que sempre afirmou que um país “se faz com homens e livros” (uma frase talvez oportunista, uma vez que foi editor durante boa parte da sua vida). Todo o livro trata dos problemas do Brasil, tal como existiam nos anos 1920, e que parecem ter continuidade nos dias que correm. Como diria Nelson Rodrigues, o subdesenvolvimento não se improvisa. Na mesma época, Mario de Andrade, aliás “inimigo” de Lobato, um crítico acerbo da Semana da Arte, escreveu um poema no qual dizia que “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (“O Poeta Come Amendoim”).
Mister Slang era um inglês imaginário, morador da Tijuca, com o qual o “autor”, um “homem comum”, se entretinha para tratar desses problemas do Brasil. Resultado de crônicas publicadas na imprensa carioca em 1926 (O Jornal, de Assis Chateaubriand), quando acabava o governo tumultuado de Artur Bernardes, um mineiro, e começava o de Washington Luiz, um paulista, publicada em forma de livro em 1927 (apenas 135 p.), a obra utiliza-se de um estratagema tão velho quanto as Cartas Persas de Montesquieu, no sentido de recorrer a um estrangeiro para falar das idiossincrasias do próprio país. Não deixava de ser um subterfúgio para falar mal do governo corrente.
Mas cabe não esconder, desde já, que Lobato foi de certa forma beneficiado por essas crônicas a favor da “paulistização” do país – isto é, o seu progresso impulsionado a partir da economia mais vibrante –, já que antes do final do governo, e instalado na capital federal desde 1925, foi nomeado adido comercial junto ao Consulado do Brasil em Nova York em 1928. Residindo alguns anos na mais importante cidade americana, ali reforçou a admiração que já exibia pela produção industrial em série, à la Henry Ford, pelo rádio e pelo telefone, e tantas outras inovações que reputava indispensáveis ao Brasil essencialmente agrícola (e ainda muito atrasado) de sua época.
Independentemente, porém, das motivações dessas crônicas, e de seu papel na própria promoção “comercial” do autor no mercado intelectual e editorial brasileiro, cabe refletir sobre os problemas levantados pelo inglês da Tijuca, todos eles apontando para a modernidade, para as reformas compatíveis com os progressos da tecnologia, quando não para o progresso moral na condução política dos assuntos públicos (como a simples instituição do voto secreto, por exemplo). As críticas de Lobato à capital da República – e ele concordava com o presidente Artur Bernardes na corrupção do Rio e na necessidade de transferência da capital para o interior de Goiás – eram encobertas pelas declarações do inglês quanto ao parasitismo da “cidade maravilhosa”, e Lobato parafraseava sua famosa condenação das saúvas, ao dizer que “ou o Brasil dá cabo desse [sic] Rio de Janeiro, ou o Rio de Janeiro dá cabo do Brasil”.
Não se pretende dizer aqui que o trabalho de Lobato – que se esconde atrás de um inglês imaginário para expressar suas próprias ideias sobre o que caberia reformar no país do seu tempo – seja um retrato perfeito de problemas estruturais que até agora permanecem não resolvidos, ou que as ideias do inglês, de Lobato, fossem, ou sejam, as mais apropriadas para resolver esses problemas, antes ou atualmente. Provavelmente, a maior parte dos problemas atuais – os da política corrupta, os da economia errática, os da enorme, extraordinária em seu tempo, miséria material do povo e, sobretudo, os do espantoso baixo nível educacional, que está na origem da medíocre produtividade do trabalho – não será resolvida com base nas percepções de um inglês déplacé na Tijuca, ou nos “repentes” de Lobato (ele tinha muitos), inadequados então e também agora. Mas, uma das primeiras condições para tentar, ao menos, oferecer soluções a problemas desse tipo, seria começar por fazer um diagnóstico preciso dos problemas do país. E isso Lobato podia fazer, ainda que tivesse mudado ao longo do tempo suas prescrições para os problemas do país: primeiro o Jeca Tatu eternamente doente, depois as saúvas, ou a falta de aço e petróleo, enfim, tudo aquilo que acorrentava o Brasil ao atraso.
Além das críticas mais frequentes às insuficiências materiais do país, o que mais enfastiava o inglês da Tijuca era a incapacidade dos brasileiros pensarem com suas próprias cabeças, sempre predispostos a adotar esta ou aquela postura de seus jornais de preferência ou a de algum político de destaque. A falta de ideias próprias dos brasileiros seria, para Mr. Slang, uma das razões do atraso do Brasil, o que obviamente era um argumento do próprio Lobato. São apenas 21 crônicas, todas criticando as inadequações da república “carcomida”, como revelado nas constantes revoltas dos jovens militares. Ele já tratava de questões como a necessidade de estabilização monetária – efetivamente tratada por Washington Luiz e seu primeiro ministro da Fazenda, Getúlio Vargas, mas que não chegou a completar o processo, trocando o mil-réis por uma nova moeda, o que só seria feito pelo próprio Vargas, em 1942 –, de questões políticas (num contexto de revoluções tenentistas e da própria coluna Prestes), do peso dos tributos sobre a produção nacional – o que já tinha sido a causa da falência de sua primeira editora – e até do protecionismo comercial, que ele queria substituir por uma sadia concorrência.
A burocracia estatal é também criticada pelo “inglês”, mas a sua causa seria a “miséria do funcionalismo público”, um aspecto que parece ter sido amplamente corrigido desde então, a ponto de os servidores públicos terem se convertido em mandarins privilegiados, com salários cinco ou seis vezes superiores aos equivalentes funcionais do setor privado. A ineficiência do serviço público é um desses disfarces do patrimonialismo, chamado por Lobato de “parasitismo camuflado”. As Forças Armadas tampouco escapam de suas críticas, por serem igualmente ineficientes, ao deixarem de usar aviões, por exemplo. O provimento de serviços públicos, em especial nas vias de comunicações e transportes, era lastimável (o que não é propriamente uma novidade): Mr. Slang, quer dizer, Lobato, recomenda aqui o reforço da importação de cérebros, ou seja, o estimulo a fluxos imigratórios mais intensos. A corrupção do antigo governo federal (sob Artur Bernardes) era contrastada com a operosidade de São Paulo, motor da nova economia industrial que despontava. Com isso, Lobato obteve a sua mencionada remoção para Nova York, para servir de adido comercial segundo as novas orientações da política econômica externa traçadas pelo chanceler Otávio Mangabeira.
Essa modalidade da troca de “conversa fiada” com um estrangeiro, amplamente usada por Lobato, sempre foi um bom recurso dos reformistas sinceros que não querem romper inteiramente com o governo em vigor. Em todo caso, as ambiguidades políticas do escritor paulista não podem obscurecer o sentido de suas críticas, todas elas ainda plenamente válidas nos dias que correm. Se o voto de cabresto e o escrutínio aberto foram banidos da legislação eleitoral, a corrupção política segue tão vibrante quanto na República Velha. Gilberto Amado, um tribuno dessa República, depois diplomata e grande internacionalista, dizia que, nessa época, “as eleições podiam ser falsas, mas a representação era verdadeira”, no sentido em que o voto “a bico de pena” servia para eleger próceres cosmopolitas, perfeitamente educados, membros das melhores “elites”.
O que mudou na vida política do país? Eu diria que as eleições, atualmente, são amplamente verdadeiras, mas que a representação é perfeitamente falsa, no sentido em que não temos mais os tribunos educados de antigamente, mas apenas um baixo clero totalmente representativo de uma classe política comprometida unicamente com seus próprios interesses pecuniários. A representação, aliás, tornou-se altamente corporativa, com suas bancadas de sindicalistas, ruralistas, evangélicos, advogados, e até políticos profissionais, representantes deles mesmos e das corporações que os elegem. O Brasil parecer ter retornado ao regime eleitoral de 1934, típico do fascismo disfarçado. Não sei se Lobato concordaria comigo, mas Mr. Slang certamente estaria pronto a assentir...

5) Fernando de Azevedo: A Cultura Brasileira
Foi, sem qualquer exagero, o mais importante representante da cultura nacional, o homem que emergiu antes mesmo da criação do Ministério da Educação em 1930, por um “inquérito” sobre a educação nacional feito em 1926, fundador da “Brasiliana” em 1931, que fez parte do grupo que redigiu um “manifesto dos pioneiros da escola nova” em 1932, pedindo mudanças na educação brasileira, e que se bateu por ela, durante toda a sua vida, sendo ainda um dos redatores de um novo “manifesto dos educadores”, em 1959, batalhando incansavelmente pela educação até a sua morte, em 1974. No entanto, este livro, publicado pelo IBGE, em 1943, quase não foi escrito, pois ele deveria ser, na origem, uma introdução geral ao Recenseamento do Brasil feito em 1940, tarefa que Fernando de Azevedo hesitou em aceitar, pela vastidão do empreendimento.
Recusando o cargo de presidente da Comissão Censitária Nacional, ainda assim Fernando de Azevedo teve de ceder aos apelos dos amigos para fazer um “retrato de corpo inteiro do Brasil, uma síntese ou um quadro de conjunto de nossa cultura e civilização”, como ele explicou na terceira edição da obra, publicada em três volumes, em versão revista e ampliada, em 1958, pelas Edições Melhoramentos. Ainda bem que ele acedeu em meio à ofensiva. Uma quarta edição, publicada pela mesma editora em 1964, consolida os três volumes, transformando-os em três partes de um único e grosso volume de 803 páginas, e alcança ainda mencionar a mensagem de João Goulart ao Congresso Nacional, em 1963.
A obra é mais perfeita síntese da inteligência nacional, feita por um grande intelectual dos anos 1930, um dos mestres da inteligência que figurou entre os mais importantes reformadores do ensino brasileiro, junto com Anísio Teixeira, mas que traz em seu subtítulo apenas “Introdução ao estudo da cultura no Brasil”. As três partes cobrem, respectivamente, os “fatores da cultura” (país e raça, trabalho, formações urbanas, evolução social e política e a psicologia do povo brasileiro), a “cultura” (instituições e crenças religiosas, vida intelectual, profissões liberais, vida literária, e cultura científica e artística), e, enfim, a “transmissão da cultura” (educação colonial, origens das instituições escolares, descentralização e dualidade dos sistemas, renovação e unificação do sistema educativo, e o ensino geral e os ensinos especiais). Constitui, portanto, um quadro completo do Brasil, desde suas origens coloniais até meados do século XX, sem deixar de lado algumas características que ainda hoje marcam nosso errático desenvolvimento.
Logo na primeira parte, ele cita uma conferência feita em 1954, em São Paulo, pelo professor Yale Brozen, da Northwestern University, a propósito do “roteiro da industrialização do Brasil”, segundo quem, “a legislação protecionista que presumivelmente tem por finalidade apressar a industrialização, pode, na verdade, retardá-la, quer porque, eliminando a competição, a produtividade diminui (...), quer por se tornarem mais lentos, em consequência da proteção do governo, o aumento da renda nacional e a velocidade da formação do capital” (Folha da Manhã, 15/09/1954). Esta é uma crítica que, se feita entre 2011 e 2015, poderia ser aplicada à mal chamada “Nova Matriz Econômica” do último governo lulopetista, tanto mais que Azevedo completava, ainda citando o professor Brozen: “Sendo este [o capital], o principal ingrediente para a industrialização, além de um grupo de empresários, ativos e realizadores, tudo o que reduz o capital disponível, atrasa a marcha da industrialização”. Mais ainda: “Se é exato que, sendo estes os seus principais fatores, num regime capitalista, devem ter, uns e outros, a liberdade de entrar em qualquer área, não importando a sua origem, nacional ou estrangeira, e se os imigrantes, entre nós, como se verifica nos Estados Unidos, fornecem uma proporção maior de empresários que a população nacional, as restrições à imigração e à aplicação de capitais estrangeiros, como a proteção tarifária, podem retardar o processo de industrialização no país” (p. 119 da edição de 1964). Como se vê, não só de cultura se ocupava a magnífica obra de Fernando de Azevedo.
Aliás, ele dizia em seu citado prefácio à 3a. edição, que sua obra de introdução à cultura brasileira, “[n]ão é mais do que o preâmbulo da que está por escrever e, pela extensão do campo que teria de cobrir, como pela variedade de seus setores, não poderia ser confiada senão a um grupo numeroso de especialistas, capazes de exaurir, cada um por sua parte, os problemas desse vasto domínio de estudos” (p. 24). Essa nova síntese nunca foi feita e, no entanto, a obra ciclópica de Fernando de Azevedo se sustenta até hoje, como um roteiro detalhado (das insuficiências) do desenvolvimento brasileiro, nos mais de 400 anos de história (em seu sentido amplo) percorridos pelo autor.

6) Raymundo Faoro: Os Donos do Poder
O jurista gaúcho sempre recusou que sua tese representasse uma interpretação weberiana do desenvolvimento político nacional, mas é certo que foi assim como foram recebidos os dois prolixos volumes publicados pela Globo Editora em Porto Alegre, no final dos anos 1950, quando também apareciam outras grandes obras do pensamento nacional, entre elas Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, uma história “keynesiana” (ou cepaliana) do desenvolvimento econômico do país. Weberiana ou não, esta recomposição das origens do patrimonialismo brasileiro com base em antigas, antiquíssimas tradições portuguesas dos “códigos” promulgados pelos soberanos – primeiro as ordenações alfonsinas, depois manuelinas, logo após filipinas – e o que mais surgiu na era pombalina do despotismo pouco esclarecido português, tudo isso marcou indelevelmente a formação do nosso estamento burocrático. Desde os antigos magistrados e tribunos do Império aos atuais mandarins da república, tais foram os homens que de fato mandavam no Brasil, ou mandaram, até o aparecimento dos atuais lulopetistas, os militantes do partido da reforma que se revelaram, ao fim e ao cabo, os predadores mais selvagens da riqueza nacional. Faoro por certo não esperava por isto.
Por uma das ironias da história – mas ele não viveu o suficiente para constatar essa tragédia, como o fez, por exemplo Hélio Bicudo –, Faoro foi, com outros grandes intelectuais anti-estamentais (como Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo), um dos fundadores do PT, na esperança de que se estava enterrando o poder do “estamento burocrático”, para inaugurar a era da soberania popular nos assuntos da República. Eu me pergunto o que ele estaria pensando hoje, ao contemplar as revelações da Operação Lava Jato contra o partido que era julgado o redentor da nação, isto é, a salvação do país pelas suas anti-elites, o “contra-estamento” burocrático. Acredito que, assim como fez em relação a Collor, ele teria apoiado Bicudo e Miguel Reale Jr. no pedido de abertura de um processo de impeachment contra o sistema cleptocrático implantado pelo PT.
Independentemente destas considerações totalmente contemporâneas, creio que sua tese merece ser lida e refletida, como o melhor estudo que se fez até hoje sobre a formação do “patronato político” brasileiro. Os donos do poder já não são, em contraste com os estamentos sociais examinados em sua obra, os representantes da velha elite, de extração fundiária ou diretamente estatal; ele são os representantes da “República Sindical” tão temida pelos militares de 1964, que não hesitaram em interromper o curso da República de 1946 para impedir a deriva do poder para um formato peronista que eles tanto temiam e que combatiam desde 1935. Eles talvez tivessem razão: o fascismo sindical é uma espécie de deriva genética do comunismo, a ser igualmente combatido.
Estamos mais imunes, hoje, às promessas do populismo esquerdista quanto se deveria estar contra as ilusões da tecnocracia de direita, tal como encarnada pelo regime militar que durou 21 anos? Talvez, mas cabe recordar que a obra de Faoro foi redigida no contexto da república de 1946, que prometia muito e que finalmente se estiolou nas revoltas dos militares anti-varguistas, de um lado, e nos protestos dos trabalhistas e dos reformistas radicais, de outro, para finalmente se esboroar na inépcia administrativa de Goulart e seus acólitos, entre 1961 e 1964, até desembocar no golpe desse ano. Faoro foi um opositor do regime de 1964, sobretudo quando este enveredou claramente pela via do autoritarismo, a partir de 1965. Ele teria ainda muitas coisas a nos ensinar a partir de sua tese, que permanece inteiramente válida do ponto de vista da formação política e institucional da nação. Recomendo sua leitura atenta: os livros são terrivelmente chatos, talvez “alemães” em seu estilo e formatação, mas altamente enriquecedores de nossa pobre cultura política e jurídica. Passando os olhos pelos tribunais “superiores”, é de se lamentar que não tenhamos, hoje em dia, mais “Faoros”, em espírito, no STF.
 O que fazer? Já não se fazem mais juristas com antigamente, substituídos pelos inúmeros bacharéis egressos das faculdades “Tabajara” de Direito, que envergonham a cultura jurídica do país, com suas teses “achadas na rua” e um “coletivismo” instintivo que ofende à inteligência e ao léxico oficial. Acho que Faoro também seria bastante reservado quanto à OAB dos tempos companheiros. O tempora, o mores...

7) Marcelo de Paiva Abreu (org.): A Ordem do Progresso
Um entre muitos outros livros de síntese da história econômica do Brasil, esta obra coletiva tinha sido publicada pela primeira vez em 1990, para comemorar os primeiros “cem anos de política econômica republicana, 1889-1989”, segundo seu subtítulo original. Por suas qualidades intrínsecas, ela converteu-se, desde que lançada, em um “clássico” do gênero. Depois de mais de duas décadas de bons e leais serviços prestados à comunidade acadêmica, ela foi ampliada cronologicamente e relançada em 2014 com novo subtítulo e maior extensão, para cobrir tanto o Império quanto a República, já antecipando, portanto, toda a vida independente do país: “dois séculos de política econômica no Brasil”. Sempre coordenado pelo professor de Economia Brasileira da PUC-Rio, Marcelo de Paiva Abreu, autor de vasta obra sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, o livro passou de onze a treze colaboradores, aptos a seguir tanto as trepidações do Império (bastante na esfera cambial), quanto os muitos trancos e barrancos do período republicano, sobretudo nas transações externas e na inflação. Em ambos períodos, políticas econômicas erráticas e iniciativas contraditórias ajudam a explicar porque o Brasil foi caracterizado (ou condenado) por Stefan Zweig, em 1941, como o “país do futuro”. Esse futuro chegou várias vezes, mas foi sob a forma de acelerações inflacionárias recorrentes e um recorde mundial em troca de moedas, nada menos do que oito em três gerações, sendo seis delas em menos de oito anos.
Trata-se de um bom instrumento de trabalho, uma vez que além das análises cronológicas lineares, existem anexos com séries estatísticas, tabelas e gráficos para cada subperíodo, sem mencionar as listas dos presidentes, dos ministros da Fazenda e do Planejamento ao longo do tempo. Quando lançado pela primeira vez, a República atravessava o que parecia então a “maior crise da história econômica do Brasil independente”, segundo a introdução de Marcelo de Paiva Abreu, datada de agosto de 1989. Uma afirmação arriscada, já que ela terá de ser refeita numa futura reimpressão dessa edição, publicada quando ainda não se tinham manifestado os sinais daquela que já pode ser considerada a pior crise de toda a nossa história, mas que ainda não desvelou todas as suas consequências em termos de emprego, endividamento e desorganização completa das contas públicas. Em 2022, ao se completarem dois séculos de políticas econômicas, teremos retrocedido pelo menos dez anos em termos de renda per capita.
Uma outra obra que completa esta é aquela organizada por Fábio Giambiagi et alii: Economia Brasileira Contemporânea, 1945-2010 (Rio de Janeiro: Elsevier, 2011), também em nova edição, uma vez que a original se estendia unicamente a 2004. Apenas a primeira parte segue uma ordem analítica cronológica, segundo uma periodização clássica, enquanto a segunda observa um corte temático, cobrindo os grandes problemas da economia brasileira: crescimento, financiamento, restrições de poupança, pobreza e desigualdade de renda e a “escassez” de educação. Também como no primeiro caso, a análise é complementada por inúmeros quadros, gráficos e figuras, além de tabelas com séries estatísticas completas para todo o período. Giambiagi é autor ou co-organizador de mais de duas dezenas de obras, sempre tratando da economia brasileira, o que o converte, junto com Marcelo de Paiva Abreu, em uma presença constante, praticamente obrigatória, na bibliografia especializada.
Existem muitas outras obras, individuais ou coletivas, de história econômica ou de análise conjuntural da economia brasileira, mas quem quiser se tornar um expert nos problemas econômicos brasileiros de todas as épocas ficará plenamente abastecido de informações e análises por meio dessas duas grandes obras de qualidade. Talvez se possa complementar a visão brasileira mediante a consulta de alguns observadores estrangeiros, entre os quais cabe destacar o brasilianista recentemente falecido Werner Baer, autor de um clássico sobre a economia brasileira (com várias edições em inglês e em português), e Albert Fishlow, com muitos títulos, entre os quais eu destacaria este: Desenvolvimento no Brasil e na América Latina: uma perspectiva histórica (São Paulo: Paz e Terra, 2004). Finalmente, no campo memorialístico, impossível não mencionar um dos grandes protagonistas da história econômica do Brasil durante toda a segunda metade do século XX, o diplomata e economista Roberto Campos, que registrou fatos objetivos e suas ações nas mais de 1.400 páginas de suas memórias: A Lanterna na Popa (Rio de Janeiro: Topbooks, 1994).

8) Antonio Paim: Momentos Decisivos da História do Brasil
Países não são exatamente condomínios, onde vizinhos se conhecem e podem se reunir para discutir benfeitorias na propriedade comum. Nações não costumam reunir-se em assembleia, de tempos em tempos, para debater tranquilamente qual caminho adotar em face de ofertas igualmente interessantes quanto às melhores políticas para guiar o seu processo de desenvolvimento, frente às quais cabe decidir sobre as de menor custo relativo e de maior retorno possível. Isso só acontece em momentos de ruptura, guerras, revoluções, golpes, quando uma nova elite sobe ao poder, e precisa adotar condições mínimas de governabilidade, para assentar as bases mais ou menos aceitáveis de sua legitimidade política (ou não). Existem também fases menos felizes, quando um país pode sair de um tipo de dominação racional-legal, para usar a terminologia weberiana, para descambar numa administração de tipo carismática, que nos remete aos piores exemplos da tradição latino-americana de caudilhos e golpes de estado; por sinal, a Argentina só decaiu durante praticamente 80 anos seguidos porque em 1930 se derrocou uma república “oligárquica” para inaugurar um ciclo de governos autoritários, e depois populistas, supostamente identificados com a “soberania” do país e “projetos nacionais” de desenvolvimento, geralmente alinhados ao protecionismo e à industrialização substitutiva, como o Brasil, aliás.
Pois bem, sem fazer qualquer história virtual do Brasil, Antonio Paim, um dos grandes pensadores da nacionalidade, examina no seu livro, Momentos Decisivos da História do Brasil (São Paulo: Martins Fontes, 2000), três momentos decisivos de nossa história, quando poderíamos, teoricamente, ter “escolhido” um caminho melhor, mas falhamos, terrivelmente – ou nossas elites falharam –, em adotar aquela via que poderia ter nos levado a um estágio mais elevado de desenvolvimento econômico e social, a um sistema político mais representativo e a uma organização institucional menos conspurcada pelo patrimonialismo tradicional. Não tenho certeza de que o Brasil, como nação, tenha tido essas chances, essas janelas abertas às suas elites, para debater, de forma consciente e deliberada, essas vias “progressistas”, mas cabe mencionar as “teses” de Antonio Paim, para verificar, o que perdemos como oportunidades históricas.
A primeira, ainda na fase colonial, foi o fato de ter constituído precocemente uma economia florescente, ligada ao açúcar e outras atividades paralelas, que poderia ter sido a base de um desenvolvimento ulterior mais estruturado. Tendo sido mais rico do que as colônias inglesas na América do Norte nos séculos XVI a XVII, em grande parte devido aos cristãos novos, os judeus portugueses convertidos forçadamente que se tornaram os grande financistas do comércio internacional do açúcar, a chance perdida se explica pelo papel da Contra Reforma e da Inquisição na repressão desses “capitalistas mercantis”, o que bloqueou, portanto, a possibilidade de uma economia vinculada de maneira mais “decisiva” – o termo se aplica – aos mercados internacionais.
A segunda oportunidade perdida foi no século XIX, com a nação independente e já na fase de construir seu estado nacional, quando Paim acredita que as elites trataram de assegurar a unidade nacional, com certo sucesso até (comparativamente à completa desagregação da hispano-América, por exemplo), mas a um alto custo, perdendo, no mesmo movimento, a iniciativa de consolidar um sistema representativo eficiente. O Regresso, nos anos 1840, e, mais tarde, as teses positivistas, inspiradas em Comte, “conspiraram” para manter o Brasil um sistema político pouco funcional tanto para fins da “ordem”, quanto do “progresso”. As frequentes intervenções militares desde o início da República se encarregam de eliminar a possibilidade de constituição de uma “moral social de tipo consensual”, que nunca tivemos entre nós, nas palavras de Paim.
A terceira, em pleno século XX, foi a consolidação, que ele chama de “estruturação”, do Estado patrimonial, sob Getúlio Vargas, e o abandono do sistema representativo. Nessa terceira parte de sua obra, Paim é bastante crítico daquilo que ele chama de “lixo historiográfico”, a maior parte de extração pretensamente marxista, que produziu alguns delírios sobre o “caráter da revolução brasileira” pelos representantes dessa corrente. Já na queda da monarquia, o Brasil perdeu a oportunidade de constituir um “Estado liberal de Direito”, enveredando depois pelas “oligarquia dos estados”, mais até que a chamada “política dos governadores”. Mas, o castilhista Getúlio Vargas conseguiu implantar um Estado nacional unitário, ao mesmo tempo em que fixou o patrimonialismo, no conceito weberiano da palavra, realidade já estudada por Simon Schwartzman. O feito de Vargas, resumido por Paim, foi “retomar o projeto formulado no Império, de constituição do Estado Nacional, abdicando de dar-lhe a feição democrático-representativa e dele fazendo um autêntico Estado patrimonial. O projeto Vargas seria retomado pela Revolução de 64” (p. 217-18).
O último capítulo do livro de Paim tem por título, de forma otimista, “Como sair do patrimonialismo”, mas não devemos esquecer que o livro deve ter sido terminado em 1999 para ser publicado no ano seguinte. Apoiando-se na experiência das privatizações daquela década, ele concorda com Roberto Campos em que “o problema reside na adequada formulação das políticas” (p. 315), e não só econômicas. Quinze anos depois, no entanto, no livro que ele organizou e publicou, com colaborações de Paulo Kramer e de Ricardo Vélez-Rodríguez, O patrimonialismo brasileiro em foco (Campinas: Vide Editorial, 2015), ele tem de constatar, tristemente, a “sobrevivência da estatização brasileira”, e se pergunta como enfrentá-la (capítulo II, p. 35-43). Se formos ainda mais pessimistas, não há como discordar do mesmo Ricardo Vélez-Rodríguez, em seu livro A Grande Mentira: Lula e o patrimonialismo petista (Campinas: Vide Editorial, 2015), em que o patrimonialismo tradicional brasileiro foi transmutado, pelas mãos e pés dos companheiros, em um patrimonialismo de tipo criminoso. Como é mesmo que dizia Lavoisier? Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. A despeito de basicamente político, este último livro possui um importante capítulo sobre as “desgraças do intervencionismo no Brasil”, que também começa pelas desgraças de Mauá, aliás recorrendo ao livro de Jorge Caldeira.

9) Revista Conjuntura Econômica (1947 até hoje) 
A verdade é que, até 1947, o Brasil sequer conseguia identificar seus problemas, simplesmente pela falta de dados confiáveis. Parece incrível, mas o Brasil não tinha indicadores econômicos ou outros dados metodologicamente sólidos que pudessem sustentar diagnósticos fiáveis sobre a atividade econômica e, portanto, a formulação de políticas adequadas nos planos macroeconômico ou setoriais. Antes dos primeiros levantamentos metodologicamente sólidos que começaram a ser feitos apenas no pós-guerra pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, os poucos dados econômicos disponíveis eram aqueles disponibilizados pelos censos irregulares conduzidos a grandes intervalos a partir de 1872, e alguns outros levantamentos setoriais organizados por associações de classe ou por alguns ministérios mais focados nas atividades produtivas (Agricultura, Fazenda para as aduanas, etc.).
A partir daquele ano, a revista Conjuntura Econômica, editada pelo IBRE-FGV, passou a divulgar séries estatísticas relativamente completas sobre o nível de atividade econômica, preços, fluxos monetários e de balanço de pagamentos, e os grandes dados das contas nacionais, que passaram a ser coletados, a partir de 1938, pelo IBGE, junto com outras informações demográficas e civis. Ao lado da Conjuntura Econômica, o IBRE também passou a publicar a Revista Brasileira de Economia, de caráter diretamente acadêmico, e contendo, numa primeira fase, muitos artigos traduzidos de economistas estrangeiros, uma vez que a produção universitária nessa área ainda era relativamente modesta. Progressivamente, o campo foi se sofisticando e se diversificando, mas a revista mensal do IBRE, junto com as bases de dados em suporte informático que a ela se agregou posteriormente continuam a representar o instrumento de trabalho primário da maior parte dos economistas que trabalham com dados empíricos para suas análises de conjuntura, ou mesmo de séries históricas mais amplas.
Outros indicadores econômicos foram sendo construídos desde então, com destaque para os do Banco Central e os do Ipea (mas aqui baseados, em geral, nos dados primários do IBGE), embora as séries da Conjuntura continuem a ser imprescindíveis para qualquer estudioso dos problemas do Brasil. A revista, na verdade, só ocupa as suas últimas páginas com séries estatísticas, pois todo o resto vem preenchido com matérias de capa, pesquisas de maior amplitude cronológica e temática, bem como artigos de opinião e entrevistas dos e com os melhores economistas do país e do exterior. Trata-se, certamente, da revista mais fiável do panorama editorial brasileiro.

10) O Estado de São Paulo, esse velho jornal reacionário...

Nem só de livros ou revistas é feita esta lista das melhores fontes de informação sobre os problemas brasileiros, especialmente no terreno econômico. Eu, por exemplo, aprendi economia ainda adolescente, lendo o jornal que eu considerava um “inimigo de classe”, na minha visão marxista simplória da primeira adolescência. Tendo alcançado um grau razoável de politização com o golpe militar de 1964, comecei a devorar o único jornal completo, sob todos os pontos de vista, inclusive e sobretudo nos planos cultural e de política internacional. Mas eu enfrentava com certo ardor oposicionista tanto os editoriais circunspectos do jornal da família Mesquita, quanto os artigos regulares do meu “inimigo de classe particular”, e diplomata e economista, então ministro do Planejamento Roberto Campos. Sempre tentei rebater sua lógica elitista, conservadora, ou alinhada aos interesses do “império”, mas confesso que nunca consegui, e bem mais tarde aprendi a admirar o mais lógico, erudito e bem humorado dos nossos homens públicos e, a partir de 1977, meu colega diplomata, um dos poucos personagens da vida política do país a que se pode dar, tranquilamente, o epíteto de estadista.
Durante muitos anos, a informação econômica de qualidade que eu encontrava no Estadão podia ser complementada pelos representantes da imprensa especializada, ou seja, edições regionais do Jornal do Commercio, tal como existentes no Nordeste, no Rio de Janeiro ou no Rio Grande do Sul, mais adiante complementados pela Gazeta Mercantil. Todos eles desapareceram, restando atualmente apenas o Valor Econômico. Mas considero, pessoalmente, que para alguém que queira se informar sobre a realidade nacional e internacional mediante um único veículo, a opção incontornável continua a ser o velho jornal reacionário. No plano internacional, eu recomendaria The Economist, cujos números do século XIX eu costumava ler na biblioteca do Instituto de Sociologia da Universidade de Bruxelas. A revista liberal britânica informou sobre o golpe contra a monarquia e a instauração da República no Brasil com quase um mês de atraso, mas como no caso do Estadão, a qualidade das matérias sempre superou amplamente o timing de sua veiculação.

Ao fim e ao cabo, nesta seleção necessariamente limitada de leituras sobre os problemas brasileiros, eu gostaria de insistir quanto à necessidade de se reler as obras dos grandes brasilianistas dos anos 1960 e 70, estudiosos como Skidmore e Baer, já citados, mas também Stanley Hilton, Joseph Love, Robert Levine, John W. F. Dulles e muitos outros nos campos da história, da política, da antropologia, da sociologia, ou  mesmo da literatura e das artes, muitos dos quais devidamente resenhados na obra que editei com Marshall Eakin, O Brasil dos Brasilianistas (São Paulo: Paz e Terra, 2001). Sobre os brasileiros, eles possuem a qualidade de não serem animados pelas nossas paixões políticas, ainda que possam exibir, tanto quanto nós, determinadas preferências ideológicas, o que é praticamente impossível eludir nas ciências sociais
Por último, mas deveria vir primeiro, quem quiser conhecer o que se produziu no Brasil, em matéria intelectual, em todas as épocas, não pode dispensar uma leitura completa dos muitos volumes da História da Inteligência Brasileira, do critico literário Wilson Martins, um desses gigantes da síntese historiográfica que fazem falta tanto no cenário acadêmico quanto na divulgação grande público de qualidade: nesse seus volumes cronologicamente organizados figuram praticamente todos os grandes autores da nacionalidade, literatos e cientistas sociais, escritores e filósofos, poetas e homens públicos que pensaram o país e seus problemas.
Estes são alguns dos livros (e veículos da imprensa) com os quais convivi, dos quais me alimentei, nos quais fui buscar fontes de reflexão e de inspiração para os meus próprios trabalhos, ao longo de uma vida inteira dedicada aos livros, a todos os livros, às leituras, mesmo altamente erráticas, até mesmo dispersivas, a partir dos quais eu desenvolvi a minha própria arte da “escrevinhação”, uma atividade totalmente livre, puramente intelectual (ou  seja, sem qualquer objetivo social ou material), sem qualquer compromisso com editores ou até mesmo com o público. Cervantes, logo ao início da maior obra da inteligência humana até hoje elaborada, arriscou dizer que o cérebro do seu herói, de tanto ler livros de cavalaria, secou de tal maneira que ele veio a perder o juízo. Ainda não me ocorreu tal fatalidade, mas tampouco pretendo sair enfrentando gigantes e vilões pelas estradas da vida. Contento-me com a minha biblioteca e com todas as demais que se me cruzarem pelo caminho...

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 31 de maio de 2016

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