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sábado, 23 de junho de 2018

O que se deve fazer para cumprir um programa de governo? - Paulo Roberto de Almeida

O que se deve fazer para cumprir um programa de governo?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: auto-esclarecimento; finalidade: análise da conjuntura]

Introdução
Respondo imediatamente à pergunta do título: em primeiro lugar, ter uma visão clara de quais são os principais problemas do país, e portanto, quais seriam as suas principais prioridades. Para atender ao primeiro quesito é preciso fazer um diagnóstico correto da conjuntura, mas mantendo uma visão de médio e longo prazo, de maneira a construir uma estratégia adequada para enfrentar, de forma persistente e continuada, os principais problemas detectados.
Minha própria percepção sobre a situação atual do Brasil é, obviamente, a da mais grave crise jamais enfrentada pelo país no plano econômico, mas também a de uma crise ainda mais grave no plano moral. A segunda crise talvez seja muito pior do que a primeira, pois ela é mais insidiosa, permanente, e também mais subjetiva, sendo provavelmente derivada do estado mental da maioria dos membros da elite, o que a torna de muito mais difícil resolução.

A grave crise moral de que padece o Brasil
Esta profunda crise moral tem a ver não apenas com o mau funcionamento do sistema político, mas também, e principalmente, com a profunda corrupção e completa degradação dos costumes que todo o sistema da governança pública atravessa, uma situação de declínio ético que contaminou o país, que o intoxica, e que torna quase impossível a obtenção de algum consenso razoável em prol das grandes reformas estruturais de que o Brasil necessita para resolver a primeira crise, a econômica, e retomar níveis razoáveis de crescimento sustentado.
Não me perguntem como resolver essa profunda crise moral que nos atinge a todos, pois eu também não sei. Não basta dizer “Que se vayan todos!”, como fizeram os argentinos em 2001, porque isso não vai acontecer. Não ocorreu por lá, e não vai acontecer por aqui, mesmo que se processe uma renovação limitada do corpo político, que está, repito, profundamente podre, moralmente falando.
Esse problema tem a ver com o nosso velho patrimonialismo – sempre passando por novas formas, do velho patrimonialismo luso-colonial, estudado por Raymundo Faoro, conhecendo certa renovação no quadro dos regimes autoritários do Estado Novo e da ditadura militar, até o patrimonialismo de tipo gangster, na era lulopetista –, mas tem também a ver com vários outros “ismos” nefastos, alguns de extração mais recente, outros de existência permanente em nosso país: o nepotismo, o fisiologismo, o prebendalismo, o corporativismo, o sindicalismo exacerbado, o protecionismo comercial, o intervencionismo econômico, o nacionalismo rastaquera, o patriotismo de fachada, o dirigismo extremo de nossa burocracia atávica, o regulacionismo excessivo das mesmas corporações de ofício e, last but not the least, esse desenvolvimentismo ingênuo, que nos faz concentrar todas as alavancas do crescimento econômico nas mãos, nos pés, no estômago desse ogro famélico, insaciável e desastrado que se chama Estado brasileiro, a fonte segura da maior parte dos nossos males.
Ao colocar o Estado no centro dos nossos males, não me engano nem exagero. A despeito de o Estado ser, infelizmente, o eixo central de toda a nossa organização política e social, e também (e ainda mais infelizmente) econômica, ele é, para o bem e para o mal, a raiz, a fonte, o fulcro de todos os nossos problemas e preocupações. Não nos enganemos: o estado brasileiro atual é o verdadeiro inimigo da nação, de uma sociedade livre, de nossa prosperidade. 
O Estado brasileiro, que no passado foi um impulsionador do desenvolvimento nacional, tornou-se, nitidamente hoje, o principal obstrutor de um processo sustentado de crescimento econômico. Ele o é de diferentes formas: ao extrair, vorazmente, cerca de 2/5 de tudo o que a sociedade produz; ao cercear possibilidades de acumulação e de investimento privado, o que o faz ser também um obstáculo à transformação produtiva; por último, ele é o grande empecilho a um processo real de distribuição do (baixo) crescimento econômico, ao ser, de fato, um instrumento nas mãos de ricos e poderosos, inclusive dos mandarins do próprio Estado, concentrando renda e provocando um aumento contínuo, ou pelo menos a preservação, das desigualdades sociais. Volto a repetir: o Estado, tal como ele funciona hoje, ou como ele não funciona atualmente, é o principal inimigo da nação, e isso precisa ficar bastante claro para todos. 

Reduzir o peso do Estado
Ao dizer isso, não quero ingenuamente fazer uma profissão de fé anarquista, e proclamar a necessidade de destruir o Estado, para tornar a sociedade livre de todas as deformações, vícios, malefícios, deseconomias provocadas pelo Estado, por meio de suas corporações de ofício, por meio das instituições voltadas prioritariamente para si mesmas, por meio dos lobbies particularistas que atuam no, e em direção do Estado, em virtude de toda a promiscuidade mantida entre agentes políticos e corporativos, de um lado, e a classe dos capitalistas, dos industriais e dos banqueiros, de outro, que se apropriam, estes, do Estado, e de seus representantes, para fazê-los funcionar em benefício dos seus próprios interesses, um pouco como aquela imagem de um comitê político atuando em defesa dos negócios da burguesia, de que falava, num famoso manifesto, um antigo filósofo social alemão.
O Estado é, infelizmente, nas sociedades complexas e altamente burocratizadas nas quais vivemos hoje, com graus exacerbados de urbanização e de regulação intervencionista, o único instrumento de que dispomos para evitar a conhecida situação hobbesiana de luta de todos contra todos. Se ele é esse instrumento, não pode ser destruído, certo? Apenas parcialmente correto.
O que nos cabe fazer, em primeiro lugar, nas condições concretas do Brasil, é reduzir drasticamente o tamanho e do peso do Estado a proporções suportáveis pela população trabalhadora, os agentes econômicos primários de produção de riqueza e de criação de empregos, que são os empresários e os microempreendedores – até o nível de carroceiros e de pipoqueiros de esquina –, que são também os que alimentam e cobrem os privilégios de uma rica burocracia de Estado, ademais da classe política predatória e extratora, os equivalentes atuais da antiga aristocracia do Ancien Régime.
Reduzir o tamanho e o peso do Estado sobre a vida dos cidadãos, e sobre as atividades produtivas dos criadores primários de renda e riqueza, já é meio caminho andado para resolver o primeiro e mais grave problema econômico da nação, qual seja, o desequilíbrio dramático das contas públicas e a falência virtual da fiscalidade. Voltamos, portanto, ao primeiro problema apontado ao início deste texto: a grave crise fiscal de que padece o Brasil atualmente, fruto da Grande Destruição da era lulopetista, o mais grave atentado de que já padecemos, sem o perceber, desde a fundação da República. 
Pouca gente está disposta a admitir que o Brasil, de 2003 a 2016, foi vítima de, ainda que administrado por, uma organização criminosa travestida de partido político, que não apenas se revelou totalmente inepta no plano da governança, como também foi, e principalmente, exacerbadamente corrupta no plano dos negócios públicos. Sem reconhecer esta realidade, torna-se difícil propor um programa de reconstrução nacional e de refundação da própria República, que passa pela eliminação da vida pública desses quistos cancerosos do sistema político.

Como construir a governança?
Partindo desse pressuposto, uma primeira tarefa de uma governança responsável seria a de construir uma maioria de apoio ancorada na transparência em relação a um programa de governo declaradamente reformista, que afaste de vez a corrupção dos negócios públicos, como é a expressa vontade da imensa maioria da população. O governo deveria ser em parte político, em parte tecnocrático, pois seria impossível trabalhar sem especialistas, de um lado, e sem representantes dos partidos presentes no Congresso, de outro. 
A reforma política é algo absolutamente necessário, e o Executivo precisaria ter uma visão clara de como ela deve ser feita – reduzir a fragmentação, mudar o sistema eleitoral, cláusulas de barreira, fim dos fundos partidário e eleitoral –, mas também deve ter absoluta consciência de que essa reforma não será feita pelos próprios políticos e partidos, sem uma pressão decisiva por parte da cidadania consciente, o que obviamente será difícil de obter. O governo, então, deverá se concentrar nas reformas econômicas e em diversas outras reformas estruturais – previdenciária, trabalhista, educacional, etc. –, com total transparência sobre o que o Brasil precisa fazer para retomar o crescimento.
Na parte econômica, o restabelecimento do equilíbrio fiscal, a diminuição dos déficits orçamentários e do endividamento público, assim como um amplo programa de privatizações, são absolutamente necessários para que todos os demais objetivos reformistas sejam alcançados. O sentido geral das reformas deve ser o da abertura econômica, o da liberalização comercial – se preciso for unilateral –, amplas liberdades econômicas, com diminuição do regulacionismo intrusivo e uma profunda reforma fiscal no sentido da redução, sim, da redução da carga fiscal total. 
Como não parece haver entendimento preliminar, nem federativo, sobre o caráter dessa reforma, sobre a estrutura do novo sistema tributário, sobre a mudança na arquitetura e na composição da base fiscal – peso e repartição dos impostos, das taxas e contribuições, nos três níveis –, o que se propõe é um programa gradual e progressivo de redução paulatina de alguns pontos percentuais – pode ser meio por cento a cada ano – em cada uma das alíquotas ou valores aplicados em todos os componentes da atual base fiscal, digamos num espaço de cinco a dez anos, período no qual a sociedade e o parlamento engajariam uma discussão ponderada sobre a substância e o perfil da nova estrutura fiscal e tributária, condizente e compatível com as necessidades dos país. O sentido será sempre o da redução da carga sobre o investimento, sobre o trabalho e os lucros, com maior incidência sobre o consumo – mas desonerando os itens de consumo popular –, sobre o patrimônio e as rendas do capital. O Brasil precisa chegar a uma carga fiscal total não superior a 30% do PIB, que seria comensurável com sua atual renda per capita.
Outro aspecto essencial das reformas modernizantes é a privatização de todas – sublinho TODAS – as empresas estatais, que salvo raros casos têm servido principalmente de cofre e de cabide de empregos para políticos inescrupulosos, aqueles expropriadores e rentistas. Não existe nenhum motivo econômico, ou até político, para que grandes empesas públicas, em praticamente todas as áreas, inclusive os bancos estatais, continuem a funcionar sob a gestão ineficiente, e altamente comprometedora de sua higidez, do Estado. Mesmo bancos de “desenvolvimento” podem ser colocados parcialmente sob a responsabilidade de uma gestão pautada por critérios de mercado.
A política econômica externa e, portanto, a política externa igualmente podem ter como foco as mesmas prioridades de reformas estruturais já definidas para a tarefa de modernização doméstica, sendo que a política externa setorial é acessória ao, e em grande medida dependente do, imenso esforço de recuperação da nação, depois de quase duas décadas de descaminhos e contradições no processo de desenvolvimento nacional. 

Estas são as considerações genéricas que julgo serem importantes apresentar numa fase preliminar do debate em torno da reconstrução nacional. Argumentos mais específicos serão apresentados para políticas setoriais em terrenos seletivos, à exceção de questões atinentes às políticas macroeconômicas, para as quais não me julgo competente para formular. Apenas volto ao meu resumo habitual de políticas gerais para um processo de crescimento sustentado, com transformação produtiva e redistribuição de renda via mercados, antes que pela mão assistencialista sempre torta do Estado: macroeconomia estável – fiscal, monetária e cambial –, microeconomia competitiva, governança responsável e transparente, alta qualidade do capital humano e abertura ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros. Vale...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília-Lisboa, em voo; Aeroporto de Lisboa; Beja, 22 junho de 2018

sábado, 27 de fevereiro de 2016

O PT volta a 2001, com sua política economica aloprada. Eu tambem, para critica-la - Paulo Roberto de Almeida

Parece que o PT está retornando a ser oposição. Como expliquei, na minha introdução à transcrição do artigo de Celso Ming no Estadão deste sábado (https://www.facebook.com/paulobooks/posts/1095188903877892 ), eles nunca abandonaram suas loucuras econômicas. Foi apenas um surto de lucidez no chefão que o fez abandonar as receitas alopradas dos seus "economistas" e militontos, e governar, por breves anos, com base nas boas prescrições de política macroeconômica e setoriais da antiga turma tucana. Depois isso se desfez, e a partir de 2006 o governo lulopetista começou a construir a Grande Destruição tremendamente aperfeiçoada quando os Aedes Unicampi tomaram conta inteiramente da economia. Deu no que deu.
Agora, eles querem retornar às origens.
Pois não, eu também. Já advertia, desde 2001, que isso não iria dar certo, como não deu.
Mas o "documento econômico" do PT era apenas um lado da história. Alguns dos Aedes Unicampi, como Guido Mantega, por exemplo, até discordavam desse documento e queriam uma política econômica com outras características, mas igualmente irracionais. Deixei o artigo assinado a quatro mão (e pés) de lado, publicado na revista "teórica" (se não há contradição nos termos) do PT, Teoria e Debate, pois não acreditava que eles pudessem ser ainda piores, ou seja, totalmente sonhadores. Pois foram, e são (alguns até sairam do PT e se converteram em PSolistas, ou oposição de esquerda).
Em todo caso, transcrevo aqui novamente meus alertas de 2001. Infelizmente, os links do Instituto da Cidadania com o original do documento já não funcionam mais, mas devo ter essa "maravilha" em meus arquivos. Seria preciso transcrever na integra, para ver quanta bobagem eles são capazes de escrever. Se fosse só escrever, para fins políticos, nem seria nada. O pior é que eles acreditam nas bobagens que escrevem...
Paulo Roberto de Almeida


O PT e as relações econômicas internacionais  do Brasil
Análise do programa econômico “Um outro Brasil é possível”


Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, a. I, n. 6, nov. de 2001; http://www.espacoacademico.com.br/006/06almeida.htm).
Sumário:

Nota preliminar

1. Introdução: características gerais do programa e metodologia desta análise
2. Características gerais do processo de desenvolvimento brasileiro
3. A política externa alternativa frente a certos impasses da realidade internacional

4. A blindagem internacional do neoliberalismo e a globalização financeira

5. Integração hemisférica “imperialista” e a questão da Alca

6. Soberania dos países da América Latina, os EUA e o Brasil

7. A globalização financeira e a abertura comercial

8. O que seria um modelo de desenvolvimento solidário?: sem mercados?

9. Alguma receita milagrosa para reduzir a vulnerabilidade externa?


(Texto original do “programa econômico do PT” em itálico)

(Comentários de Paulo Roberto de Almeida em texto normal)


Nota: Os argumentos e comentários desenvolvidos no presente trabalho expressam, única e exclusivamente, as opiniões pessoais do autor, não tendo qualquer relação com posições ou políticas de qualquer instituição pública, às quais o autor possa estar vinculado por motivo de sua condição profissional. O autor esclarece, igualmente, que não se encontra filiado, nem nunca esteve, a qualquer agremiação partidária, brasileira ou estrangeira, e que suas reflexões críticas refletem mais sua formação acadêmica, enquanto sociólogo, do que “incorporação de idéias” adquiridas no desempenho de obrigações profissionais enquanto servidor público especializado na diplomacia.

Nota preliminar:
         Os comentários críticos, por vezes acerbos, ao chamado “programa econômico do PT” foram redigidos sem qualquer espírito antagonista, por um observador externo bastante simpático às causas que o PT representa em termos de políticas públicas e de correção das tremendas desigualdades sociais existentes no Brasil. Para que não pairem dúvidas sobre a predisposição do autor em colaborar com um debate de alto nível sobre as propostas aqui contidas (ou outras que o PT apresente e submeta a debate público), esclareço que tenho sido eleitor (eventual ou ocasional, segundo as circunstâncias) dos candidatos do PT nos últimos 20 anos, sem no entanto jamais abdicar de uma postura crítica (ou dotada de um certo ceticismo sadio), como convém a qualquer cidadão consciente, em relação às posições adotadas ou às políticas preconizadas pelo PT para o Brasil.
         Como estou convencido de que o PT será um dia chamado a exercer o poder no Brasil e que, para que tal ocorra, ele deve buscar apresentar políticas econômicas sólidas e totalmente consistentes com uma moderna economia de mercado – como a que existe hoje no Brasil –, tomei a decisão unilateral (uma vez que não sou formalmente filiado ao partido) de apresentar minha contribuição a esse esforço de “PT-education”, isto é, de aperfeiçoamento da qualidade dos programas e propostas submetidas pelo PT à opinião pública e à sociedade brasileira de um modo geral. Trata-se de uma decisão puramente voluntária, consistente com a simpatia acima referida, e que não responde a qualquer demanda de qualquer instância dirigente do PT.
  

1. Introdução: características gerais do programa e metodologia desta análise


O Instituto Cidadania, entidade vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT), tornou público, em 4 de julho de 2001, um programa de propostas econômicas que, embora claramente identificadas como emanando de um grupo de economistas e de líderes políticos de sua corrente majoritária, logo ficou conhecido como “programa econômico do PT”. O documento, “Um outro Brasil é possível”, bem articulado e denotando um raro senso, no PT, no sentido de tentar conciliar os constrangimentos da realidade econômica com medidas suscetíveis de aplicação controlada num futuro programa de governo do partido, foi bem recebido pelos observadores, que viram no texto uma tentativa de aggiornamento por parte de um movimento que, durante vinte anos, exibiu fortes doses de irrealismo econômico e de voluntarismo político militante, ambos identificados com teses socialistas e estatizantes.
O programa  apresenta diversas medidas suscetíveis de aplicação controlada, sem novos choques ou tentativas de superação rápida das dificuldades estruturais da economia brasileira. Ele também representa um sensível progresso em relação ao hipercriticismo econômico praticado no passado, ainda que continue a ostentar o alto grau de indefinição que tem caracterizado desde sempre as críticas da oposição às orientações econômicas do governo (críticas genéricas do tipo: “é preciso de um outro modelo econômico”, “é necessário um projeto nacional de desenvolvimento”, sem nunca explicitar claramente, no entanto, em que consistiriam esses alegados esquemas de reforma global ou reorientação radical de políticas).
A seção III do programa, relativa a “metas e compromissos”, apresenta um elenco de medidas de bom senso, que no entanto carecem de um estudo de factibilidade econômica, sobretudo no sentido de se examinar sua adequação orçamentária e compatibilidade com o balanço de pagamentos. As medidas propostas são aparentemente consistentes, ainda que não de todo coerentes entre si o tempo todo, pois que alguns trade-offs sempre têm de ser operados na administração da política econômica. A despeito desses progressos sensíveis na busca de uma política econômica “razoável” – supostamente suscetível de ser aceita, não pelo chamado mainstream economics, mas pela opinião pública em geral e pelos “capitalistas nacionais” em particular –, o texto apresenta ilusões e equívocos do ponto de vista da política diplomática e das realidades econômicas e políticas do contexto regional e internacional, que justamente constituem o objeto principal desta análise e o ponto central das observações críticas que são aqui formuladas.
Um certo sentido de “injustiça” poderia assim revelar-se, na medida em que não são aqui destacadas, por razões tanto de espaço como de enfoque analítico, as inegáveis contribuições de valor que o texto contém, para um debate de alto nível sobre os rumos do desenvolvimento e os impasses econômicos atuais. As virtudes do documento não são contudo destacadas para não agregar ainda mais aos já extensos comentários feitos aos pontos considerados equivocados nos posicionamentos adotados pelos autores do texto. Outras observações feitas não se prendem necessariamente a temas substantivos, mas referem-se a questões percebidas como pouco claras ou mesmo contraditórias num texto que tem a pretensão de não ser unicamente uma proposta econômica, mas um verdadeiro documento político, quando não “filosófico”.
De fato, o documento é abrangente, diversificado e mesmo “totalizador”. Ainda assim, algumas tentativas de se “distinguir” das políticas atuais – apenas para apresentar uma face diferente “disso que está aí” – contribuem muitas vezes para dar um tom mais retórico do que realista ao documento. Nesse sentido, o texto ganharia se tentasse dar maior concisão e objetividade às medidas propostas, sem as muitas considerações de caráter quase filosófico que apresenta.
Uma explicitação quanto ao “método”, ao início deste esforço analítico, impõe-se como obrigação: o texto será lido e comentado linearmente e topicamente, sem preocupação com seu enfoque global e sem considerações de ordem política mais geral, uma vez que não se pretende “questionar” o direito e a vocação do PT a ter uma política e uma plataforma alternativa de governo. Grande parte das críticas e questionamentos aqui formulados são apresentados em forma de perguntas: elas denotam o que o público bem informado gostaria de saber sobre essas propostas ou que tipo de dúvidas economistas realistas ainda mantêm em relação a um documento que traz substância ao importante debate sobre políticas governamentais.
Finalmente, para fins de controle das citações, cabe remeter ao texto integral do documento, disponível no link: http://brnt5sp228.digiweb.com.br/noticias.asp?id=152. O presidente do PT em exercício no momento da campanha eleitoral para a presidência do partido, José Genoino, a ele referiu-se em termos elogiosos, embora precavidos (artigo no site do PT, ao abrigo da chapa 20): “O documento dos economistas do PT constitui-se numa importante contribuição para o debate partidário que antecede o processo de definição do programa para a candidatura presidencial nas eleições de 2002. Mas, para desfazer confusões criadas pela imprensa, é necessário registrar que não se trata de um documento oficial, já que não foi aprovado por nenhuma instância partidária.”
Vale observar, contudo, que por ocasião da campanha eleitoral para a presidência do PT, entre julho e setembro de 2001, as propostas contidas nesse documento foram objeto de pesadas críticas das diversas chapas que não a do grupo majoritário que terminou elegendo o candidato José Dirceu. Uma aproximação à reflexão desse grupo de economistas, acusado de “flexibilizar” as posições tradicionais do PT em matéria econômica como forma de “ganhar a confiança da burguesia”, pode ser encontrada no artigo coletivo “A Reconstrução da Nação”, assinado por quatro de seus integrantes: Guido Mantega, Paul Singer, Jorge Mattoso e Reinaldo Gonçalves e publicado na revista Teoria & Debate (São Paulo; Fundação Perseu Abramo, ano 13, nº 43, janeiro-março 2000).

2. Características gerais do processo de desenvolvimento brasileiro

I. A RECONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E O RESGATE DO SOCIAL

1) Entender com profundidade a interrupção do processo de desenvolvimento e construção da nação impostas pelo neoliberalismo e pelo atual governo não é uma tarefa simples. Muito mais difícil, no entanto, será superar as pesadas heranças e amarras deixadas por este período de nossa história e construir um novo modelo de desenvolvimento para o Brasil. Não aceitamos continuar renunciando a um projeto próprio de Nação e reduzir as ações do Estado ao simples abrir espaços para o avanço do mercado, como faz o atual governo.

PRA: A interrupção do processo de desenvolvimento não foi necessariamente imposta pelo neoliberalismo, já que a crise do desenvolvimento brasileiro precede a plena aplicação do modelo neoliberal no Brasil. Esse processo já vinha sendo desenhado na última fase do regime militar e conheceu novos desdobramentos ainda antes da era Collor. Na verdade, o que de fato caracteriza a crise do processo de desenvolvimento no Brasil é menos sua face neoliberal do que seu caráter errático nas últimas duas décadas, e uma tendência nítida à desaceleração do impulso de crescimento no período recente. Esse caráter errático, por sua vez, é menos dependente de uma política econômica deliberadamente orientada para a recessão ortodoxa do que o resultado de choques adversos internos (medidas “corretivas” de corte anti-liberal, precisamente, para tentar debelar a espiral inflacionária) e externos (petróleo, dívida, crises financeiras).


2) Nosso compromisso é construir um modelo que seja capaz de superar a miséria e a extrema desigualdade que hoje vitimam a sociedade brasileira. Um modelo articulador da vontade popular comprometida com um projeto democrático capaz de resgatar o destino nacional, a cidadania e o primado da soberania.

PRA: A promessa de um novo modelo de desenvolvimento e de um projeto próprio de Nação é mais afirmada do que realmente apresentada e, críticas ao suposto modelo neoliberal à parte, não há no documento nenhuma exposição detalhada sobre os componentes desse modelo ou projeto oferecido mas não exposto, assim como persiste uma notável ausência de medidas concretas de política econômica suscetíveis de, nos termos do programa, “superar a miséria e a extrema desigualdade que hoje vitimam a sociedade brasileira”. A invectiva moral, com fundo ético, pode constituir uma história edificante, mas não é, nem pode ser, um substituto à análise econômica e a propostas concretas de política econômica e de ações governamentais.
         Um projeto econômico alternativo não precisa necessariamente ser grandiloqüente ou enveredar pela retórica do “destino nacional” e do “primado da soberania”. Quanto mais simples, conciso, direto, e despojado de adjetivos ele for, e mais focado for na eficiência, transparência e credibilidade das medidas propostas, de caráter econômico, mais legitimidade ele terá em amplos segmentos da população, e não apenas naqueles setores já identificados com o discurso oposicionista. Nesse sentido, um documento econômico do PT ganharia muito em ser mais enxuto, em linguagem direta, afirmando com clareza os objetivos econômicos pretendidos.


3) Queremos lembrar que o Estado-Nação é formado essencialmente pelo território, povo e soberania e é nessa perspectiva que queremos resgatar os espaços perdidos de soberania e o espírito de serviço público, com um Estado desprivatizado e apropriado plenamente pela cidadania.

PRA: A definição do Estado-nação contendo a noção de soberania é suscetível de dúvidas, pois se tem dois elementos objetivos ao lado de um conceito algo impressionista, ou pelo menos passível de interpretações variadas. Existe uma única definição de soberania?: ela quer dizer apropriação estatal dos recursos naturais ou toda criança na escola?; deve ser a nacionalização majoritária da base produtiva nacional ou o comprometimento com um processo integracionista regional ampliado que implica quase que de forma axiomática perda de soberania?
         Com o conceito de soberania parece ocorrer o mesmo que com a noção de “interesse nacional”: à parte generalidades abstratas, não haverá uma visão uniformemente partilhada pelos diversos setores sociais da Nação sobre o que exatamente corresponde ao interesse nacional ou como melhor defender a soberania brasileira. Dessa forma, conviria voltar à definição tradicional de um Estado-Nação, ou seja: território, povo e Estado. A soberania é um atributo intrínseco ao Estado e não pode ser, assim, um dos elementos constitutivos desse mesmo Estado nacional, que se pretende definir.


4)      No mundo contemporâneo este pragmatismo capitulacionista tem encontrado sua expressão maior na assim chamada Terceira Via.
PRA: O pragmatismo da Terceira Via não parece ser o “inimigo principal” no momento, inclusive porque será a via a ser trilhada pelo partido dentro de mais algum tempo de evolução política e ideológica, por mais que se queira evitar essa revisão “bernsteiniana” da social-democracia petista. Por que estigmatizar a chamada Terceira Via como capitulacionista?: apenas porque ela renunciou a eliminar o capitalismo e porque não se pronuncia de forma decisiva como contrária à globalização capitalista? A invectiva serve apenas para demarcar-se da social-democracia européia e como o objetivo de apresentar um discurso “não comprometido pela conciliação” para certos setores do PT? Trata-se de um discurso interno ou externo? Um PT não-capitulacionista deveria propor, exatamente, que via político-democrática à sociedade brasileira?: uma que seja resolutamente socialista, ou a que se imporá na prática como social-democrática com tinturas radicais?


3. A política externa alternativa frente a certos impasses da realidade internacional

5) Nossa alternativa prevê, finalmente, presença soberana no mundo e alianças internacionais capazes de resistir à atual relação mundial de forças e, na medida do possível, alterá-la.

PRA: Essa afirmação constitui todo um postulado de política externa que supõe que: (a) a atual relação mundial de forças – supostamente a da globalização capitalista – é não apenas nefasta como oposta aos interesses nacionais do Brasil, que portanto deveria lutar para alterá-la; (b) a diplomacia brasileira vai tentar construir alianças que sigam esse objetivo mais afirmado do que demonstrado, supondo existirem outros Estados no cenário internacional interessados no rompimento dessa relação de forças, o que é um exercício quase aleatório de política externa. Presença soberana no mundo não depende apenas de discurso, mas dos chamados excedentes de poder, em outros termos, poder militar e talão de cheques. Sem dispor de um ou de outro, o discurso pode ser meramente uma afirmação principista da vontade, sem condições efetivas de implementação no mundo realmente existente. Fazendo o caminho inverso, pode-se perguntar se existem muitos outros países no mundo aguardando o Brasil mudar de governo, adotar uma política não neoliberal e propor uma aliança tática ou estratégica para essa luta pela mudança na correlação de forças. Os países não agem geralmente motivados por princípios gerais, mas por interesses imediatos e concretos, entre eles o de ganhos diretamente mensuráveis em termos de comércio ou presença política, não em termos abstratos de mudança na correlação de forças.


6) O Brasil caminhará em direção a uma alternativa ao neoliberalismo que, necessariamente, terá que vir acompanhada de uma disputa de hegemonia com a cultura da mercantilização excessiva propagada pela globalização capitalista. É esta que articula valores, relações sociais, controles institucionais e que determina atitudes, comportamentos e projetos individualistas, oportunistas e consumistas inclusive entre os próprios excluídos e oprimidos.

PRA: Novamente excesso de retórica e de adjetivos sobre uma situação pouco clara à maioria dos leitores; linguagem empolada, à la jovem Marx, não necessariamente contribui para a clareza de propósitos. Insinua-se um certo profetismo (“O Brasil caminhará…”) e um certo voluntarismo (“disputa de hegemonia com a cultura da mercantilização…”) que ultrapassa em muito a modesta capacidade transformadora de um partido no poder, qualquer que seja ele.


7) Além do avanço das lutas populares e de uma participação ativa da sociedade civil, será também necessário construir alianças com outras forças políticas do país e um amplo leque de apoio internacional. A consolidação de processos semelhantes nos países que começam a construir alternativas ao modelo neoliberal na América Latina e no nível global terá um papel decisivo. Não estamos sozinhos e nem podemos optar pelo isolamento econômico, político e cultural. Nossa perspectiva é universalista em seus objetivos e reivindica uma inserção ativa e soberana do Brasil na economia internacional. Para tanto devemos construir uma política alternativa de regionalização, que passa pelo fortalecimento e aprofundamento do Mercosul, entendido como espaço de conjugação de políticas ativas de desenvolvimento. Um Mercosul revigorado e ampliado deve ser importante instrumento de articulação de forças na América Latina, especialmente na América do Sul, ao mesmo tempo em que se buscam alianças com grandes potências emergentes como a Índia, China, África do Sul ou Rússia.

PRA: Trata-se da manifestação mais clara, no documento, de uma “política externa alternativa”. Notar como algo de III Internacional (involuntário, por certo) manifesta-se subrepticiamente no texto e nas propostas: romper o cerco capitalista (hoje seria a correlação de forças da globalização), amplo leque de apoio internacional (“povos coloniais e semi-coloniais”?), “alianças com grandes potências emergentes como a Índia, China...” (Sun-Yat-Sen, Kuo-Mintang?), como se, mais uma vez, essa nova correlação de forças alternativa estivesse esperando o Brasil para ser finalmente ativada. Em política externa, os países ganham mais exercendo fortes doses de realismo com poucas tinturas de Idealpolitik, como descobriram às suas expensas Trotsky e o próprio Lênin.
         No que se refere ao Mercosul, percebe-se uma tendência, ainda involuntária, a utilizá-lo como arma de uma atuação anti-globalizadora (o que seria “construir uma política alternativa de regionalização”?) e como instrumento de desenvolvimento, o que de certa forma ultrapassa suas virtudes meramente comerciais e de competitividade.
         Uma política externa “voluntarística”, como a que é exposta no documento, tem poucas chances de converter-se em realidade, tanto porque a “articulação de forças” e a “política de alianças” não se fazem com base na retórica principista e na simples declaração de intenções, mas com base em interesses concretos dos países envolvidos. Um eventual “chamado do Brasil” a uma nova aliança para “construir alternativas ao modelo neoliberal na América Latina e no nível global” ou para a “conjugação de políticas ativas de desenvolvimento”, como se afirma no texto, pode cair no vazio, se não vir secundado por propostas concretas de ação que se encaixem na agenda de discussões nos foros internacionais; caso contrário será uma espécie de “peregrinação” dos já convertidos, que são manifestamente muito poucos.


8) Não se deve perder a perspectiva de que a globalização monopolista e excludente em curso se processa em múltiplos planos e modifica aspectos relevantes das sociedades nacionais. Não há fronteiras para as mercadorias e para o capital que se concentram em poucos países. No entanto os povos, especialmente os mais pobres, continuam condenados a viver no território de seus países. Por isso, a questão social é indissociável da questão nacional. As soluções sociais são necessariamente nacionais e exigem um projeto de nação e uma inserção ativa na economia internacional, além de uma luta contínua por uma ordem mundial mais eqüitativa e democrática.

PRA: Adotemos, por hipótese, o ponto de vista do trabalhador rural chinês deslocado para uma cidade da costa, ou o do imigrante mexicano atraído pela “miragem” ao norte do Rio Grande: a globalização monopolista está de fato alterando modos de vida e aspectos relevantes de suas sociedades nacionais respectivas. Mas é importante observar que esses trabalhadores “marginais” não estão buscando fugir da “globalização capitalista”, qualquer que seja o entendimento que se tenha dessa realidade (deve-se perguntar preliminarmente, por exemplo: existe alguma globalização que não seja capitalista?; encontra-se em curso um modo alternativo de globalização, que seria “socialista”?).
         Ao contrário do que parecem acreditar os redatores do documento, esses trabalhadores estão tentando escapar tão simplesmente da miséria pré-capitalista não globalizada. Como se disse em relação a outros povos e outras épocas, eles estão “votando com os pés”. O projeto de nação de cada um deles é simplesmente ter um pouco mais de bem estar imediato e oferecer um futuro menos precário, para não dizer, desesperador, a seus filhos.
         Em outros termos, os objetivos grandiloqüentes da vanguarda intelectual da classe trabalhadora podem não corresponder aos objetivos mais prosaicos dessa mesma classe, que sequer trabalhadora é, pois lhe faltam provavelmente meios elementares de integrar o “exército industrial de reserva”; eles ainda nem chegaram ao lumpenproletariat, para voltar a Marx, e de fato estão no lumpesinato. A globalização capitalista parece ser, desse outro ponto de vista, um grande projeto (não nacional ou social, mas) individual de milhões de chineses, indianos, mexicanos, esses candidatos ao lumpen urbano.
         O debate sobre a interação entre a “questão social” e a “questão nacional” é importante e o documento aponta com razão que as “soluções sociais” [ao problema da globalização] “são necessariamente nacionais”, mas ele é excessivamente genérico e principista ao afirmar que essas soluções “exigem um projeto de nação e uma inserção ativa na economia internacional, além de uma luta contínua por uma ordem mundial mais eqüitativa e democrática”.
         Se existe acordo em que as soluções aos efeitos eventualmente nefastos da globalização se dão necessariamente no plano nacional, o que significa a exigência de um “projeto de nação”, que é mais afirmado do que explicitado? Em que consistiria, por outro lado, “uma luta contínua por uma ordem mundial mais eqüitativa e democrática”? Significa que a diplomacia do Brasil passaria a percorrer os foros mundiais “exigindo” uma ordem mundial eqüitativa? Além desta palavra de ordem genérica, que outra medida concreta seria preciso propor: a redistribuição dos recursos mundiais segundo o velho princípio “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”? E se os que detêm a “capacidade” não estão dispostos a atender as “necessidades” dos demais? O Brasil teria alguma outra idéia brilhante para construir essa “ordem mundial mais eqüitativa e democrática”?



4. A blindagem internacional do neoliberalismo e a globalização financeira


II. CONDICIONANTES HISTÓRICOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO

2.1. A blindagem internacional do neoliberalismo globalizado.
9) O atual modelo de desenvolvimento é a versão local de um conjunto de políticas de progressiva liberalização dos fluxos de capitais no plano internacional e desregulação das economias domésticas, postas em prática desde início dos anos 80, após a desestruturação da ordem de Bretton Woods. Isto significa que os graus de liberdade na formulação de políticas alternativas estarão fortemente condicionados pelo contexto internacional e pela trajetória das economias centrais, em especial a norte-americana.

PRA: A liberalização do movimento de capitais não conforma um modelo de desenvolvimento. No máximo, essa tendência apresenta-se como uma resultante, não um requisito, do abandono das paridades fixas.
         A ordem pós-Bretton Woods tampouco é uma face diversa de um suposto modelo de desenvolvimento. Uma coisa precisaria ficar clara desde já: os países desenvolvidos não têm, obviamente, um problema de desenvolvimento. Eles têm problemas diversos de administração do jogo econômico, mas não há uma meta sistêmica a ser alcançada, qual um Santo Graal desenvolvimentista colocado adiante de suas possibilidades materiais.
         Esta busca incessante é, por certo, uma obsessão propriamente nossa (e de outros países em igual situação), que temos obviamente um problema de desenvolvimento, derivado de um déficit social crônico, estrutural e histórico, realçado justamente pela existência de patamares concretos de maior nível de vida e de bem-estar em determinados países avançados. O efeito comparatista é evidente, mas ele não pode ser projetado contrario senso, para simular propósitos de políticas públicas que nunca foram os das elites dirigentes dos países mais avançados.
         Dizer, por outro lado, que “os graus de liberdade na formulação de políticas alternativas estarão fortemente condicionados pelo contexto internacional e pela trajetória das economias centrais, em especial a norte-americana”, significa renunciar, ipso facto, a ter uma política econômica própria num eventual governo de oposição, uma vez que parece claro que esse contexto internacional não parece próximo de mudar no sentido desejado pelos redatores do documento (isto é, um cenário sem dominação hegemônica). Ora, parece evidente que existe sempre uma margem de liberdade deixada às políticas nacionais, mesmo em situações de dominação hegemônica e essa liberdade pode ser usada tanto para aprofundar o chamado “neoliberalismo”, como políticas alternativas que esperam ainda por definição.


10) As políticas liberais foram acompanhadas de uma nova institucionalidade internacional. Além do Banco Mundial e do FMI, a Organização Mundial do Comércio (OMC) ocupou um papel de destaque em pressionar e monitorar a liberalização comercial e garantir as práticas monopolistas das grandes corporações transnacionais.

PRA: A incompreensão revelada nesta frase quanto ao papel (e os limites políticos) da OMC é propriamente abismal. A OMC sequer consegue cumprir a contento seu mandato de administrar seus poucos acordos de comércio de bens e serviços (que representam na prática uma espécie mercantilismo moderno) e nunca chegou perto de garantir práticas monopolistas de grandes corporações, pois não tem nenhum papel no que se refere a regulação de investimentos ou normas de competição (as empresas não fazem parte do universo regulatório da OMC, que se dirige a políticas nacionais).
         A acusação é, portanto, totalmente descabida, apenas explicável na medida em que o autor da frase desconhece como funciona a OMC, qual seu mandato precípuo e quais seus limites objetivos em face do jogo político de países membros e partes contratantes ao GATT. A OMC, num certo sentido, é um exercício de anti-mercado comercial, assim como o FMI é um exercício de anti-monetarismo e o BIRD um exercício de regulação estatal dos fluxos de financiamento (ambos são postos em movimento justamente quando os mercados não funcionam bem). A OMC é o que se poderia esperar de mais próximo de práticas anti-monopolistas. Acreditar que a OMC defende a liberalização irrestrita dos mercados é tomar a aparência pela realidade: ela apenas administra o grau diminuto de liberdade de competição que os países membros decidem por bem acordar-lhe em instrumentos multilaterais e decisões emanadas de rodadas negociadoras.


11) As dezenas de paraísos fiscais e a ausência de mecanismos de regulação e controle sobre o sistema financeiro promovem uma fragilização dos bancos centrais, especialmente dos países periféricos, ante os movimentos especulativos do grande capital financeiro internacional.

PRA: O autor parece desconhecer o imenso aparato regulatório dos sistemas bancários nacionais, as normas de Basiléia de medidas prudenciais e a agenda em discussão nas instituições financeiras internacionais quanto aos movimentos de capitais. A própria liberdade de movimento de capitais não significa ausência de norma, trata-se de uma norma “a favor” da liberalização desses fluxos, contra outra hipoteticamente mais restritiva. Movimentos especulativos não se fazem na ausência de normas, eles simplesmente se beneficiam de certas “normas” impostas pela própria fragilidade de países ou economias que enfrentam temporariamente fortes desequilíbrios internos ou externos.


5. Integração hemisférica “imperialista” e a questão da Alca



12) Na América Latina as pressões para implantação e até antecipação da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas - e o avanço do processo de dolarização de algumas economias da região vão desenhando um cenário de perda crescente de poder de decisão dos estados locais e controle progressivo dos EUA sobre a economia regional. É fundamental desenvolver, no plano interno, a consciência de que a implantação da ALCA representa a fragilização de nosso sistema produtivo através do reforço à especialização em atividades tradicionais e limitações à diversificação do parque produtivo em direção aos setores com maior conteúdo tecnológico. Ademais, representará uma significativa desnacionalização dos Serviços, incluindo setores chave na construção da cultura e identidades nacionais, tais como a Educação e a Comunicação.

PRA: A “demonização” da Alca representa o caminho mais seguro para a camisa de força do maniqueismo em política externa, que se revelará dificilmente administrável (ou até fatídico) caso o PT assuma o poder em janeiro de 2003, numa conjuntura em que o Brasil e os EUA já terão assumido a co-presidência do processo negociador (desde outubro de 2002, em plena eleição presidencial) e a partir da qual, supostamente, o Brasil precisará exercer sua liderança na condução desse processo num sentido presumivelmente mais favorável a seus interesses. A denúncia in abstracto significa que o Brasil já renuncia a exercer essa liderança, mete a sua viola no saco e vai cantar em outras paragens, supostamente na companhia de China, Índia e Rússia, deixando o Mercosul e outros parceiros sul-americanos entregues à sua própria sorte e aos desígnios do Império. Trata-se sem dúvida alguma de uma receita garantida para um grande desastre diplomático: a auto-retirada de campo de uma potência média no concerto regional e internacional. Depois do pragmatismo responsável, teremos a política externa do avestruz?


13) O debate acerca dos impactos da ALCA tem se centrado invariavelmente na questão do acesso aos mercados, tema relevante, mas não necessariamente o mais importante, nem o que produzirá efeitos mais danosos. Nas demais questões o problema da assimetria entre os participantes do acordo deverá aparecer ainda mais acentuado do que no âmbito restrito da questão comercial.

PRA: O acesso a mercados não costuma, normalmente, conduzir a efeitos danosos, a menos que o autor considere que expansão de comércio pode fazer mal à saúde econômica de um determinado país. O “problema da assimetria” é algo inadministrável pelo Brasil pelas próximas décadas pelo menos e poderá apenas ser resolvido paulatinamente, à medida de nosso próprio esforço de desenvolvimento: assimetrias sempre existirão no cenário internacional, inclusive e sobretudo nos processos de integração ou de interdependência econômica. A Comunidade (União) Européia sempre conviveu com assimetrias e países gigantes e outros ridiculamente pequenos e não se pode dizer que seu mercado comum elimina os perigos do livre comércio.


14) O conjunto de acordos visa criar um espaço homogêneo para operação do capital no espaço americano, a partir da convergência da regulamentação num conjunto de questões chave tais como: desregulamentação dos fluxos de capital; proteção de investimentos estrangeiros; compras governamentais; abertura do setor serviços; propriedade intelectual e acesso a mercados.

PRA: A “desregulamentação dos fluxos de capital” não faz parte da agenda negociadora da Alca e os demais elementos costumam fazer parte do “menu” prato feito dos acordos de livre comércio (acesso a mercados não é um objetivo em si, é um método da liberalização); quem não desejar, não precisa se habilitar a fazer parte. O conceito de “espaço homogêneo para operação do capital” é uma terminologia mandeliana pouco compreensível para os militantes não versados em economia política marxista.


15) A assimetria será indiscutível e beneficiará os EUA, país no qual o capital já consolidou formas de operação mais avançadas, seja do ponto de vista tecnológico, da organização, ou mesmo da magnitude.

PRA: A assimetria também existe em relação a diversos setores e a muitas empresas americanas em setores ou ramos da produção manufatureira, agrícola ou de serviços nos quais o Brasil apresenta, por exemplo, imensas vantagens comparativas e competitivas: basta pensar no suco de laranja, no complexo soja, no açúcar, nos produtos siderúrgicos, nos calçados, nos têxteis, em muitos produtos naturais e agrícolas processados, em determinados serviços intensivos em mão-de-obra, nos jatos regionais (para usar um exemplo krugmaniano) e em diversas outras áreas nas quais a competitividade não é uma razão do tamanho absoluto da economia, da relativa abundância de capital ou da densidade tecnológica. Se tal assimetria fosse “indiscutível” o Congresso dos EUA seria formado por um bando de néscios, assessorados por uma coorte de economistas estúpidos, lutando contra o próprio interesse nacional do Império.
         Como regra de princípio, por um simples raciocínio marxista, o capital nunca consolida nada de estável, ele está sempre avançando para formas mais elaboradas de exploração dos recursos naturais e humanos em prol de maior acumulação e mais-valia. Ele está sobretudo em busca da otimização de lucros, como aquela que pode ser conseguida em espaços ainda insuficientemente abertos à sua sanha exploradora, geralmente economias de baixo custo relativo de mão-de-obra e grande potencial de expansão dos mercados (como a brasileira, por sinal). O raciocínio expresso acima não apenas é anti-marxista, como anti-capitalista, o que é de certa forma compreensível partindo de quem partiu, mas ele não pode ser usado (sem constituir um atentado à lógica formal e substantiva e à experiência histórica) como um argumento “contra” os interesses do próprio capitalismo. E se o argumento fosse correto, apenas os anti-capitalistas declarados seriam contra a Alca, o que não é manifestamente verdade.


16) As tarifas já são reduzidas nos EUA e, mais que isto, bem menores do que as do nosso país… Na mão contrária, as importações oriundas do EUA pagam no Brasil uma tarifa média de 12,8%. (…) De qualquer modo a comparação das tarifas não deixa dúvidas sobre os potenciais beneficiários do processo.

PRA: Há aqui uma incompreensão sobre o papel econômico da tarifa, que incide sobre ganhos de bem estar do país aplicador, não necessariamente daquele supostamente “penalizado”.


17) A questão central, portanto, (diz) respeito à proteção não tarifária. Há nos países desenvolvidos e em especial nos EUA normas sanitárias, de respeito ao consumidor, e ao meio ambiente, bastante rígidas sustentadas em aparatos fiscalizadores bastantes eficazes e que podem operar como poderosas barreiras não tarifárias às nossas exortações. Essa é, aliás, uma característica que diz respeito não só ao comércio, mas ao conjunto de atividades que serão liberalizadas criando, na prática dificuldades de acesso de nossas exportações e serviços ao mercado norte-americano.

PRA: Mas, se os EUA estão justamente lutando para elevar essas normas em nossos países, como explicar esse fenômeno? Eles estão pretendendo alimentar competidores mais eficientes e não suscetíveis de serem barrados na entrada?


18) Para enfrentar a iniciativa da ALCA e propor formas alternativas de integração continental necessita-se de uma ampla coalizão nacional de forças e de um complexo processo de alianças no continente. Esse esforço de alianças anti-ALCA envolve inclusive forças progressistas no interior dos Estados Unidos.

PRA: O cenário que se observa no continente é, ao contrário, de um amplo acolhimento à iniciativa da Alca, com a maior parte dos países clamando pelo acordo de livre comércio com os EUA, inclusive nossos sócios do Mercosul. A única coalizão nacional anti-Alca (e anti-Nafta) existe nos próprios EUA, e congrega um brancaleônico aglomerado de ecologistas, militantes dos direitos humanos, novos defensores dos consumidores, velhos sindicalistas do rust-belt, políticos oportunistas (e demagogos do protecionismo e do subvencionismo agrícolas), assim como anti-globalizadores de todos os matizes e credos. Dificilmente se poderia chamar os proponentes do perdão da dívida dos países pobres de progressistas, eles são quando muito péssimos economistas com altas doses de assistencialismo inconseqüente. Assistir a sindicalistas do Norte se opor ao movimento do capital (em direção das paragens mais baratas ao sul do Rio Grande) é até compreensível, pois eles estão defendendo os empregos de seus constituintes e suas próprias funções. Ver, porém, sindicalistas do Sul entoar a mesma ladainha, poderia nos induzir à conclusão de que um país como o Brasil pode se dar ao luxo de recusar empregos e de ter renda ampliada.


19) O Mercosul, que poderia vir a ser uma importante alternativa no plano regional, vive uma grave crise, não apenas pela convivência difícil entre dois regimes cambiais quase antagônicos, mas, em especial, pela falta de iniciativas no plano econômico político, cultural e social que permitam consolidar um pólo de resistência articulado no contexto de crise econômica, social e política dos diversos países latino americanos. Seria imprescindível um efetivo relançamento do Mercosul, que permitisse articular outros países além dos já participantes, como por exemplo a Venezuela, através de projetos comuns de desenvolvimento nas áreas produtiva, e de pesquisa científica e tecnológica.

PRA: O Mercosul – que não é alternativa, pois que já é uma realidade – não está em crise por falta de iniciativas. Ao contrário, são determinadas “iniciativas” nacionais que o colocaram em crise. Bastaria, para corrigir o estado atual de “surrealismo aduaneiro”, que se cumprisse com o estipulado no artigo 1º do Tratado de Assunção para que ele fosse automaticamente relançado, sem qualquer necessidade de novas iniciativas. A crise não foi criada pelos regimes cambiais antagônicos, da mesma forma como a Europa conviveu com regimes cambiais diferentes ao longo de sua história, sem qualquer atentado prático ao processo integracionista. O câmbio é um elemento adicional, não a essência do processo integracionista subregional.
         Se o Mercosul for um “pólo de resistência” (isto quer dizer um bastião anti-imperialista?), ele deixaria de cumprir a função para a qual foi criado e não produziria nada de eminentemente favorável ao crescimento econômico e à modernização de seus países membros. Ele não tem como função precípua (ainda que seus elementos declarativos possam dizer o contrário) levar o desenvolvimento aos povos dos países membros; desenvolvimento é um tarefa nacional, propriamente interna, e nenhum acordo de livre comércio tem essa virtude tão ampla. Em seus objetivos últimos de mercado comum, ele até poderá contribuir, cum grano salis, para o processo desenvolvimentista, mas ele não se substitui a políticas públicas de tipo desenvolvimentista.
         Quanto à Venezuela, caberia não esperar muito de seu aporte econômico ou tecnológico: trata-se do próximo país candidato a uma crise financeira, econômica e social (o que depende em grande medida do preço do petróleo).


6. Soberania dos países da América Latina, os EUA e o Brasil


20) No plano militar, iniciativas como o Plano Colômbia vão demonstrando o absoluto desprezo pelo princípio de autodeterminação dos povos e a submissão da ONU, em especial do seu Conselho de Segurança, à vontade política e aos interesses estratégicos do Departamento de Estado dos EUA. O Plano Colômbia tem efeitos desestabilizantes sobre toda a região andina. Já intervém na situação interna do Equador; ameaça Peru e Venezuela. Busca isolar o Brasil e pode representar a militarização da região amazônica com forte presença das forças armadas dos EUA.

PRA: O Departamento de Estado tem muito pouco a fazer (para não dizer que “não apita nada”) na condução do Plano Colômbia e o Conselho de Segurança da ONU tem menos ainda que ver com essa questão. O Plano não foi feito para isolar o Brasil; ao contrário, os EUA procuraram envolver o Brasil numa solução “cooperativa” e de real parceria (ainda que “assimétrica”, pela própria desproporção de meios e recursos) na administração da “maçã podre” colombiana. Tentaram várias vezes na administração Clinton, sem o conseguir; agora, na era do unilateralismo arrogante da potência imperial a “oferta” não está mais na mesa.


21) Estamos, portanto atravessando um período histórico no qual o governo dos EUA se coloca como avalista em última instância de todas as mudanças importantes no plano político e econômico internacional, em especial na América Latina. Teremos que tensionar e promover rupturas parciais com toda esta blindagem internacional que sustenta o neoliberalismo globalizado.

PRA: O voluntarismo em política externa nunca foi bom conselheiro, muito menos pode atuar como diretriz diplomática. Países sérios e respeitados como o Brasil, no plano regional, quando não no plano internacional, não costumam sair por aí “tensionando” ou provocando “rupturas parciais” no que quer que seja, ainda que seja contra o “neoliberalismo globalizado” (alguém poderia explicar onde exatamente apontar os canhões para romper sua blindagem?).
         O que os EUA não são e não pretendem ser, justamente, é “avalista de mudanças”, sejam elas econômicas ou políticas. Todo poder imperial é, por definição, partidário do status quo, e não é diferente com os EUA. Eles desejam simplesmente a paz dos quintais, para um mais tranqüilo exercício de sua hegemonia e para o maior benefício de suas empresas. O Império, na verdade, liga muito pouco para a América Latina, em que pese sua retórica “pró-hispânica” e hemisphere-friendly. A América Latina, por sua vez, pretende efetivamente “tensionar” e “promover rupturas parciais” na blindagem do capitalismo neoglobalizado, mas é apenas para melhor exportar seus produtos e excedentes demográficos para o coração do Império, não para provocar sua derrocada. Onde estão os grandes movimentos de opinião contra o imperialismo e a exploração capitalista no continente latino-americano? Onde as massas estão se mobilizando para protestar contra a hegemonia americana?


22) Neste sentido, será decisivo utilizar o peso internacional do Brasil para mobilizar e articular forças dos povos que lutam por sua identidade e independência. E, ainda, fortalecer o movimento em defesa da taxa Tobin e pela constituição de um fundo internacional de combate à pobreza, pelo fim dos paraísos fiscais, pela criação de novos mecanismos de controle do fluxo internacional de capitais e pelo estabelecimento de mecanismos de autodefesa contra o capital externo especulativo. A campanha internacional pelo cancelamento das dívidas externas dos países pobres, aqueles classificados como menos desenvolvidos pela UNCTAD, deve ser acompanhada pela perspectiva de renegociação das dívidas públicas externas dos demais países do Terceiro Mundo e devem ter destaque na política internacional do novo governo.

PRA: O peso internacional do Brasil é na verdade muito relativo: ele tem uma certa capacidade de liderança diplomática, aliás desproporcional à força de sua economia e à importância de seu comércio exterior (o tamanho do PIB não se traduz necessariamente em alavancas externas de poder, se não for acompanhado pela disponibilidade de recursos financeiros, pelos aportes tecnológicos ou pela abertura unilateral de seus mercados a parceiros menos desenvolvidos). Os povos lutam sobretudo pelo seu bem-estar e segurança; a identidade e independência seguem depois numa escala pragmática de prioridades.
         A Taxa Tobin seria uma espécie de CPMF internacional, o que não resolveria substancialmente a natureza do problema, qual seja, a liberdade que tem os capitais de circularem mais ou menos livremente. Uma taxa desse tipo – supondo-se que possa ser aplicada universalmente, e que não existam “free-riders”, que costumam ser os próprios países em desenvolvimento – apenas aumentaria o custo das operações, o que não necessariamente é do interesse daqueles países que, colocados em situação de desequilíbrio temporário, tenham de importar doses mesmo moderadas de “capitais especulativos”. Não se trata, porém, de penalizar tomadores de capitais (por definição voluntários) e sim de diminuir a compartimentação “política” dos mercados financeiros, esta sim criadora de desequilíbrios e de penúrias induzidas (e portanto do aumento do custo do capital, algo que presumivelmente não é do interesse de países tomadores como o Brasil). Melhor lastrear sua segurança na não-dependência de capitais forâneos e na adição de medidas tópicas – quarentena, taxação dos capitais de curto prazo em bases nacionais – ao arsenal de medidas regulatórias já à disposição dos Estados nacionais nos mercados financeiros.
         O Brasil não teria nenhuma objeção à constituição de um fundo internacional de combate à pobreza, desde que deixasse de ser um tomador voluntário de capitais e passasse ele mesmo a ser aquilo que Lênin e Rosa Luxemburgo chamavam de “país imperialista”, isto é, “exportador de capitais”. Antes disso, qualquer fundo desse tipo vai retirar-lhe recursos escassos (ainda que em benefício de países mais pobres do que ele) e vai exigir igualmente que ele se torne um provedor de ajuda ao desenvolvimento, ou seja, estaríamos desviando recursos escassos de nossos pobres miseráveis, para outros mais pobres e miseráveis do  que nós, provavelmente na África. Como fica então o combate à pobreza no interior do país e nas grandes metrópoles do Brasil?
          O fim dos paraísos fiscais não é algo que esteja ao alcance do Brasil apenas, mas é um tema que vem sendo debatido no âmbito da OCDE, com relativo sucesso até aqui, não em termos de eliminação dos centros off-shore, mas de controle mais estrito sobre suas atividades, tanto em termos de informações fiscais, como de supressão de fluxos criminosos.
         A criação de novos mecanismos de controle do fluxo internacional de capitais caminha no sentido inverso ao da liberalização ampliada, que é própria do movimento da globalização nas últimas décadas. Não parece haver factibilidade na aplicação de receitas supostamente keynesianas, elaboradas aliás numa conjuntura específica do sistema financeiro internacional (quando a Grã-Bretanha passava o bastão hegemônico ao novo império universal), ao contexto atual de flutuação generalizada de moedas, que dita, precisamente, a liberalização ampliada desses fluxos, como forma de se lograr “câmaras de compensação” a desequilíbrios econômicos acumulados pelos sistemas nacionais. Não é um processo que seja fácil de reverter, ainda que as crises financeiras da última década tenham deixado a impressão que se poderia colocar o gênio dentro da garrafa outra vez. Ele está solto e vai continuar livre, mesmo se pruridos políticos da Terceira Via comandem uma certa “legitimidade” no discurso anti-liberalização de capitais.
         O “estabelecimento de mecanismos de autodefesa contra o capital externo especulativo” é bem vindo e os controles devem ser aplicados sem dó nem piedade, para o maior bem estar dos povos e das economias nacionais, desde que eles não sejam apresentados como a panacéia para a cura de outros males de que padecem as economias dependentes de aportes de capitais externos. Todo e qualquer país é suscetível de aplicar tais medidas, e o Brasil já possui um imposto regulatório para lidar com tal fenômeno: basta não precisar de capital externo, para poder taxar pesadamente, e impunemente (para si mesmo), qualquer intruso de curto prazo.
         A “campanha internacional pelo cancelamento das dívidas externas dos países pobres” é uma causa nobre, mas é preciso ter consciência de que o Brasil é credor de vários desses países pobres, e estaria assim aplicando um “calote” em si mesmo. O Brasil negocia continuamente, no âmbito do Clube de Paris, o abatimento dessas dívidas, hoje reguladas pelo mecanismo chamado “HIPC”, aplicado pelo FMI e Banco Mundial (outros esquemas existem no âmbito do BID). É preciso advertir os propugnadores desse tipo de medida que ela tem um custo para o Brasil, tanto de redução direta de seus créditos externos, como o chamado “custo-oportunidade”, ao incidir sobre as condições e o preço de suas próprias operações voluntárias de empréstimos externos.
         A “renegociação das dívidas públicas externas dos demais países do Terceiro Mundo” interessaria supostamente o Brasil, desde que houvesse condições de estabelecer um foro comum, com critérios presumivelmente uniformes, para a maior parte desses países, o que está longe de ser o caso atualmente. Não parece mais existir mais um “problema” de dívida externa, a não ser para aqueles “super-pobres”, afogados em dívidas ainda mais terríveis no plano social do que financeiro, que não têm mesmo condições de sequer começar a pensar em algum dia liquidar esses débitos impagáveis. Isso o mercado já descontou, e se trata aqui de mera operação contábil a cargo dos tesouros dos principais países desenvolvidos, bem como dos organismos financeiros multilaterais. Mas, quando se coloca na balança países do tipo e do porte do Brasil, as condições do mercado sofreriam um certo impacto negativo (não necessariamente negativas para os credores) para os tomadores como o Brasil, que veriam o custo de suas operações – tanto as emissões soberanas como os lançamentos comerciais – subir de imediato. Será que interessaria ao Brasil patrocinar esse tipo de repercussão e impacto em suas contas externas, ou estaria ao alcance de sua diplomacia promover um movimento nesse sentido? Parece existir aqui uma alta dose de wishful thinking, quando não de desconhecimento quanto às condições reais sob as quais operam os mercados. Pode-se protestar contra esses “mercados”, achá-los obscenos e escandalosos, mas não está ao alcance de qualquer líder político responsável ignorar como eles funcionam e que tipo de impacto podem ter para o seu próprio país.


7. A globalização financeira e a abertura comercial


2.2. A herança brasileira do neoliberalismo tardio.
(…)
23) Além disso, a abertura financeira restringiu fortemente a autonomia da política macroeconômica doméstica. A liberalização dos fluxos de capitais sujeitou a taxa de juros doméstica às regras de formação dos mercados financeiros globais. Ou seja, não é mais possível atualmente ter uma taxa de juros doméstica de curto prazo distinta daquela paga nos títulos brasileiros negociados nos mercados externos, sob pena de provocar uma maciça fuga de capitais.

PRA: É o tal “gênio da garrafa”: difícil agora voltar atrás. Alguém ainda acredita que seria possível insular o Brasil das condições reinantes nos mercados financeiros externos? Uma política de não abertura financeira tornaria a política macroeconômica mais sólida? Esse argumento precisaria ser provado.
         Existe, por certo, uma certa correlação entre as taxas de juros internas e as condições gerais de equilíbrio da economia brasileira, na qual os elementos internos são por vezes mais relevantes do que os externos (dado o pequeno impacto do comércio exterior e dos investimentos diretos na atividade econômica doméstica).
         De forma geral, é inegável que a economia brasileira exibe uma evidente fragilidade do ponto de vista das transações correntes e, portanto, da dependência de capitais externos. Não se trata-se de problema criado pelo governo FHC e é também certo que essa dependência não será resolvida com duas ou três medidas de caráter financeiro. O ajuste de balanço de pagamentos exigirá um penoso e longo esforço de correção de nossos desequilíbrios econômicos mais renitentes. Isso à condição de se rezar pela velha teoria dos desequilíbrios de transações correntes, uma vez que a “nova teoria” não vê esse gap como apresentando uma importância crucial em termos de política econômica.
         Não resta dúvida, porém, que se trata de um indicador valorizado pelos chamados mercados financeiros, tanto que é utilizado com um certo rigor pelas agências de avaliação de risco. Ainda assim, não é um critério absoluto, pois alguns países se permitem o luxo de serem mais desequilibrados do que outros, dependendo da consistência de suas outras políticas.


24) Outro elemento constitutivo da inserção externa no âmbito do modelo liberal foi a abertura comercial. Pela sua forma e velocidade, esta abertura terminou por produzir uma regressão expressiva do setor produtivo doméstico e uma precarização do nosso comércio exterior.

PRA: Não foi a abertura comercial, que esteve longe de ser “unilateral e sem reciprocidade”, que conduziu à deterioração externa (ainda menos com impacto negativo no setor produtivo doméstico, que expandiu-se no período, medido em termos de produtividade por trabalhador), e sim o problema cambial (ou seja, valorização do câmbio, por problemas exclusivamente monetários e de ausência de ajuste fiscal), aliado a outros desequilíbrios tradicionais da balança de pagamentos, que agravou o perfil da dependência financeira externa. Em PPP (paridade de poder de compra) a situação parece menos crítica do que à taxa nominal.
         O que a abertura comercial produziu, certamente, foi um aumento extraordinário dos índices de produtividade do setor produtivo nacional, que, sem o desafio da abertura, teria permanecido em baixos níveis de agregação de valor à produção nacional. O salto nos índices de produtividade, significativo nos anos 90, foi inteiramente devido à abertura comercial. A precarização do comércio exterior não deve ser medida apenas pelo saldo final, mas pela capacidade ou não do comércio de exportação diversificar sua pauta e incrementar valor; a esse título, a abertura foi totalmente positiva, pois em sua ausência a precarização do comércio exterior teria sido ainda mais agravada. A contraprova fatual é dada pelo fato de que, outros países (o México ou o Chile, por exemplo) que realizaram aberturas comerciais ainda mais radicais do que o Brasil, incrementaram suas pautas exportadoras e melhoraram sua inserção internacional. O comércio exterior está longe de corresponder a essa visão mercantilista exibida no documento, sendo mais bem, nunca é demais lembrar, uma via de duas mãos.


25) O ajuste neoliberal impôs um baixo dinamismo econômico, uma instabilidade permanente da economia e um profundo processo de exclusão social.

PRA           O teste da realidade é um poderoso argumento contra-fatual: qual o país da atualidade que realizou um ajuste não-neoliberal, ou que não realizou ajuste nenhum, e que apresenta alto dinamismo econômico, estabilidade permanente da economia e um profundo processo de inclusão social? A China, a Índia, a Rússia, os EUA? Quais são os elementos constitutivos de um ajuste não-neoliberal?: não-abertura econômica, não-liberalização comercial, não-privatização, ausência de reforma da previdência, ativas políticas setoriais, transferências maciças entre estratos e grupos sociais, entre regiões do mesmo país, proteção seletiva, agressiva política comercial? Como e em quais países tais políticas vêm sendo aplicadas de maneira consistente e conseqüente, de molde a criar aqueles impactos favoráveis detectados no argumento em análise?
         Essas perguntas servem apenas para demonstrar que o ajuste fiscal, compreendido em seu sentido amplo (isto é, estabilização da economia), não é incompatível com a melhoria dos indicadores sociais e, de fato, com o aumento de gastos públicos no setor social, como aliás ocorreu no Brasil do anos 90. A tabela abaixo revela alguns desses números de progresso social.

Indicadores de bem-estar social no Brasil, 1990-2000


1990
2000
População (milhões)
144,0
170,6
Esperança de vida no nascimento (anos)
65
68 (1)
Mortalidade infantil (por 1000 nascimentos)
48
35 (1)
Analfabetos (% da população)
20,0
13,7 (2)
Crianças fora da escola (% entre 7-14 anos)
13,4 (3)
4,3 (1)
Distrib. livros didáticos (milhões de alunos)
5,5 (4)
33,5
Casas dispondo de eletricidade (milhões)
27,3
39,5
Venda anual de refrigeradores (milhões)
0,4
3,3
Venda anual de apar. de televisão  (milhões)
2,3
5,2
Computadores ligados à Internet (milhões)
1,5 (5)
7,0 (1)
Inflação anual (%)
1.620,97
5,97
Fonte: IBGE; (1) 1999; (2) 1998; (3) 1992; (4) 1995; (5) 1997;

         Pretender que esses números (que podem ser complementados por vários outros relativos ao consumo de diversos itens da cesta alimentar e de bens duráveis das camadas mais modestas da população) revelam, como pretende o texto, um “profundo processo de exclusão social” seria distorcer sobremaneira a realidade factual e empírica dos anos de estabilização macroeconômica. O que é um fato é que a estabilização não trouxe consigo uma melhoria do índice de Gini, isto é, a distribuição da renda continuou desigual e concentrada.
         No que se refere à instabilidade do crescimento, ela é um fato no período em observação (vigência do Plano Real), mas isso se deve em grande medida às crises financeiras externas, potencializadas pela pouca margem de manobra dada às autoridades econômicas justamente em função do processo de estabilização em curso. Não foi o ajuste que trouxe instabilidade – ele pode ter provocado baixo crescimento, é verdade – mas sim as turbulências financeiras externas, que apenas agregaram ao alto grau de dependência financeira do Brasil.


26) Agregue-se que a farta liquidez internacional que prevaleceu nos anos iniciais de vigência do Plano Real não deve manter-se nos próximos anos. A ocorrência de novas turbulências financeiras e restrições no financiamento externo são muito prováveis no próximo período histórico. A desaceleração das economias americana e européia e a crise econômica japonesa têm um papel relevante na definição desta tendência e caso se consolide pode dificultar também a evolução das exportações brasileiras.

PRA: O argumento contra-fatual (aliás hipotético, pois que não verificado, mas apenas aventado) não pode obviamente beneficiar-se de elementos conjunturais que extravasem a consistência intrínseca das políticas estruturais que se pensa poder implementar (ou no caso testar). Seria um contra-senso lógico e uma covardia teórica. Assim, utilizar o argumento da eventual recessão nos países desenvolvidos como “prova contrária” à atual política econômica do Governo FHC não apresenta legitimidade política e não tem validade conceitual. Esta é uma questão puramente metodológica, sem impacto no debate político, obviamente, mas prende-se à honestidade do diálogo socrático.
         Por outro lado, o argumento cai no profetismo sem sentido: o mercado de capitais pode tanto revelar-se extremamente benéfico ao Brasil, como totalmente adverso, sem que nenhum dos elementos que o farão comportar-se de uma ou outra forma seja controlável seja pelo governo, seja pelas forças de oposição. O Brasil nesse particular, é totalmente dependente, para o bem ou para mal, de conjunturas externas que superam nossa capacidade de intervir.


8. O que seria um modelo de desenvolvimento solidário?: sem mercados?


2.3. Crise e fragmentação social.

27) A degradação da qualidade do ensino público em um país no qual a média de escolaridade da população é de apenas 6,6 anos, a precariedade do sistema de saneamento básico e o retrocesso das políticas de assistência social vão promovendo um rebaixamento do nível e qualidade de vida, em especial nas grandes cidades.

PRA: Há aqui um certo confronto com outros indicadores e estatísticas sociais, que se traduzem em números algo mais favoráveis para o panorama de correção de certas insuficiências estruturais do cenário social brasileiro e que seria honesto reconhecer. A pintura extremamente negativa pode não ser honesta com a realidade.
         Nos anos 90, justamente, a média de escolaridade aumentou de maneira consistente, o saneamento básico foi estendido a milhões de lares brasileiros e as política de assistência social têm sido desenvolvidas com uma certa consistência, seja no plano escolar, seja no da saúde pública. Afirmar o contrário, seria extrema desonestidade intelectual. Reconhecer que milhões de brasileiros permanecem não assistidos é um fato, mas atribuir tal situação a uma perversidade inerente a um suposto modelo “neoliberal” seria uma distorção da realidade.


III. COMPROMISSOS E METAS BÁSICAS DE UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E SOLIDÁRIO

28) A distribuição de renda e riqueza para a conformação de um amplo mercado de consumo de massas e políticas sociais básicas e universais são os eixos do novo modelo de desenvolvimento.

PRA: Não deveria ser o crescimento com equidade social o eixo de uma política ou de um modelo de desenvolvimento? O fato de atuar sobre o estoque, em lugar do fluxo de riqueza, não imporia limites estruturais a um tal modelo de desenvolvimento?


Os principais compromissos do novo modelo são:
a) Crescimento econômico sustentado, e ampliação do emprego formal.
29) Voltar a crescer é uma exigência e uma possibilidade histórica para o Brasil. Com as mudanças profundas das políticas públicas e centrando o dinamismo do mercado interno na expansão do consumo de massas poderemos retomar o crescimento sustentado. Um padrão de crescimento dessa natureza gera menos pressões sobre a balança comercial, dado o baixo componente importado da maior parte dos bens e serviços básicos, sendo, portanto menos vulnerável às restrições externas existentes.

PRA: Por que o mercado interno seria melhor do que o mercado externo em termos de demanda agregada? Aliás, como se faz mesmo para distinguir mercado interno do mercado externo para estimular o dinamismo da atividade produtiva interna? Este último não seria aliás mais interessante, em termos sobretudo de balanço de transações correntes?
         O preconceito contra o mercado externo, aliás contra os mercados em geral, constitui uma das mais persistentes manifestações de infantilismo econômico de nossas esquerdas. Elas são incapazes de reconhecer qualquer virtude no mercado, a não ser quando ele vem temperado ou controlado de perto pelo Estado ou pelas “camadas sociais”. Foi esse tipo de preconceito contra os mercados em geral – do qual as lideranças chinesas souberam libertar-se oportunamente – que conduziu o socialismo de tipo soviético ao desastre social no decorrer do brevíssimo século XX que ele conheceu (menos de 70 anos de existência efetiva, dos quais pelos menos 30 anos em tentativas de reformas econômicas, como evidenciado pelas diversas experiências a partir dos anos 1950).


b)Recuperação da infra-estrutura básica.
30) Com essa perspectiva, será necessário alterar o marco regulatório das agências reguladoras nacionais e estabelecer um imposto sobre o lucro extraordinário das empresas privatizadas para financiar os novos investimentos em infra-estrutura.

PRA: Como se faz, do ponto de vista constitucional e legal, para distinguir uma empresa privatizada de uma não-privatizada? Como se faz para taxar o lucro extraordinário? Qual é mesmo a definição legal de lucro extraordinário? É possível dar tratamento diferente a empresas supostamente iguais do ponto de vista da lei? O princípio gattiano do tratamento nacional pode ser alegremente ignorado? Não estaria havendo aqui um atentado não apenas à lei, mas ao bom senso?
         A ignorância da ordem jurídica não é apenas aberrante ou danosa do ponto de vista da implementação, ela também traz conseqüências sérias do ponto de vista da continuidade das políticas públicas, como evidenciado na extensa história de controvérsias nos tribunais, a propósito de “direitos”, abertas pelos diversos planos econômicos dos governos Sarney, Collor e Itamar.


31) Para garantir o cumprimento das metas de interesse público e a retomada dos investimentos nos setores privatizados, será necessário ademais, recuperar o poder de fiscalização e controle públicos. Isto ocorrerá pela instituição e ampliação do controle social através do acesso a informações estatísticas e resultados das empresas pelos conselhos de usuários e conselhos setoriais.

PRA: Será uma espécie de autogestão capitalista? Ou as empresas se prestarão voluntariamente a esse tipo de controle externo? O estado pensa instituir um novo serviço de fiscalização para adequar a atividade das empresas a certas metas de interesse público (qual é mesmo a definição de interesse público?) e  de investimento?: o estado vai dizer ao capitalista como ele deve investir o seu dinheiro?

k) Universalização do ensino básico e aumento da escolaridade.
32) Não aceitamos a concepção neoliberal de que a educação é na sua essência uma forma de adestramento da força de trabalho.

PRA: Em que cartilha neoliberal está escrito tal barbaridade? Quem tem o copyright dessa concepção utilitarista do ensino?


IV. A CONSISTENCIA DO NOVO MODELO

4.1. Um novo contrato social pelas mudanças.
33) Mas os empresários produtivos de qualquer porte estarão contemplados com a ampliação do mercado de consumo de massas e com a desarticulação da lógica financeira e especulativa que caracterizam o atual modelo econômico. Crescer a partir do mercado interno significa dar segurança e previsibilidade para o capital produtivo.

PRA: Por que o preconceito contra o mercado externo? Ele é pior, menos lucrativo ou rentável do que o interno? (Remeto aos comentários sob o número 29, acima, a respeito dos mercados.)

4.2. O social como eixo do desenvolvimento.
34) As dívidas financeiras não são as únicas dívidas do Estado, a dívida social é parte essencial desta equação e precisa ser resgatada.

PRA: O Estado mantém uma contabilidade precisa (ou deveria manter) sobre suas dívidas financeiras. A contabilidade da dívida social é, para dizer o mínimo, precária: ela envolve uma definição precisa do que seja contrato social, obrigações e direitos, que precisam receber uma expressão monetária, isto é, orçamentária. Este é o ponto crucial da questão: a boa gestão orçamentária e da gestão dos recursos públicos.

4.3. A nova dinâmica econômica.
35) Embora as condições internacionais, em especial a livre mobilidade dos capitais, a onda de inovações tecnológicas, e os novos padrões do investimento não permitam a reprodução integral do nacional-desenvolvimentismo, alguns de seus elementos podem e devem ser recuperados. Assim, em contraposição ao modelo fundado nas aberturas comandadas pelo mercado e na desregulação radical da economia doméstica, propomos um modelo de crescimento cujo eixo central será a ampliação do mercado interno, fundado na ampliação do consumo de massas e na universalização dos serviços públicos essenciais e, numa integração internacional realizada a partir de uma nova regulação da economia.

PRA:          Mais uma vez, o preconceito contra o mercado externo, sem qualquer justificativa econômica ou racionalidade instrumental, do ponto de vista produtivo.

 (a) o papel do Estado
36) O novo estilo de desenvolvimento implicará a necessidade de produzir formas de coordenação pública e privada que: (…) 3) induzam as empresas dos setores mais dinâmicos e de alta tecnologia a buscar maior equilíbrio nos seus balanços comerciais setoriais, de modo a não pressionar o balanço de pagamentos.

PRA: As empresas vão ser “induzidas” a escolher formas e atividades produtivas não agressivas ao balanço de pagamentos? Seria uma espécie de planejamento indicativo?


37) O Estado não pode limitar as suas ações a administrar o curto prazo e as questões emergenciais, mas deve pautar-se por uma visão estratégica de longo prazo, articulando interesses e coordenando investimentos públicos e privados que desemboquem no crescimento sustentado. Isso implica em reativar o planejamento econômico, para assegurar um horizonte mais longo para os investimentos. Para tanto será preciso implantar políticas ativas setoriais e regionais concebidas a partir de uma política industrial, agrícola e tecnológica.

PRA: Políticas setoriais, necessariamente seletivas, costumam ter um efeito distorcivo sobre o funcionamento do mecanismo econômico. Como lidar com os efeitos indesejados dessas políticas?


b) a nova dinâmica do investimento
38) O alto grau de desnacionalização ocorrido na última década levaria qualquer ciclo de crescimento comandado prioritariamente pelo investimento privado a depender fundamentalmente da entrada ou do reinvestimento do capital estrangeiro. Para evitar que isto leve a uma grande instabilidade, ou mesmo a um crescimento medíocre do investimento como vem ocorrendo nesta década, o Estado deverá mobilizar todos os instrumentos disponíveis com o intuito de ampliar o seu papel de coordenador e indutor da ampliação do investimento. Desse ponto de vista caberia definir claramente o papel e as tarefas das empresas multinacionais, das privadas nacionais e das empresas estatais e do gasto público, nas metas a serem alcançadas. A criação de externalidades e o aumento geral de eficiência do sistema e a expansão concomitante do investimento, do consumo de massas e das exportações, só serão possíveis se for criada uma nova capacidade de coordenação pública.

PRA: O governo vai chamar em assembléia as empresas privadas, nacionais e multinacionais, e dizer-lhes como melhor elas poderiam orientar seus investimentos? O capitalista vai se submeter a essa tal de coordenação pública?
         Num sistema de economia de mercado, como o brasileiro, com o reconhecimento da legitimidade da propriedade privada e da liberdade de aplicação de capitais, torna-se difícil conciliar “papel coordenador do Estado” com essa liberdade de investimento atribuída constitucionalmente ao capitalista. Ou se pretende que ele seja verdadeiramente soberano em suas decisões de investimento, ou se circula o aviso de que, doravante, o Estado passará a “auxiliar” o capitalista na sua tomada de decisão. Se este não estiver de acordo, talvez tome a decisão de “exportar” seu capital (legal ou fraudulentamente) para outro país ou, no caso, do estrangeiro, sequer considerar o Brasil como terra de eleição para seu investimento. Eles podem finalmente preferir conservar o controle sobre sua própria “dinâmica de investimento”, preferindo que, em lugar de “nova”, ela responda a velhos e tradicionais critérios decisórios.


9. Alguma receita milagrosa para reduzir a vulnerabilidade externa?



4.4. A macroeconomia do novo modelo.
 (a) redução da vulnerabilidade externa
39) A redução da vulnerabilidade externa possui duas dimensões distintas, a financeira e a comercial. De um lado é necessário reduzir a dependência do país dos fluxos de capitais externos, sobretudo os de natureza especulativa. De outro, é preciso diminuir de forma rápida e continuada o déficit em Transações Correntes através da obtenção de saldos comerciais crescentes e melhoras na conta de serviços.

PRA: Absolutamente necessário e meritório. Para tal seria preciso, antes, não depender mais de capitais especulativos, e ser dinâmico o suficiente no comércio exterior para diminuir os déficits em transações correntes. Mas, a opção preferencial pelo mercado interno pode dificultar esse empreendimento a todos os títulos necessário e imprescindível a essa correção de desequilíbrio.


40) Com relação à abertura financeira, é necessário desestimular os fluxos de capitais de maior volatilidade, e reorientar o IDE. Para acelerar a incorporação de novas tecnologias, e melhorar a inserção comercial, a política econômica deverá privilegiar a reorientação do IDE, corrigindo as distorções do passado recente, tais como o caráter prioritariamente patrimonial e o direcionamento para a produção de bens e serviços não comercializáveis.

PRA: O governo também vai dizer ao capitalista estrangeiro como ele deve aplicar o seu dinheiro no país?: talvez nessas condições ele prefira não aparecer…

41) Ou seja, ao IDE, conjuntamente com o capital privado nacional, caberá melhorar a qualidade da integração comercial e financeira com o exterior, no marco de uma política de seletividade que favoreça o aumento das exportações, a substituição de importações, a expansão e integração de nossa indústria de bens de capital e o fortalecimento de nossa capacidade endógena de desenvolvimento tecnológico.

PRA: Se o IDE não desejar se conformar a essa cartilha de boas intenções, como vai fazer o governo? Persegui-lo, colocá-lo em casa de correção, dar bons conselhos?



PRA: Como é que vai se fazer com a Tarifa Externa Comum do Mercosul? Fingir que não existe, ignorar solenemente, denunciar o Tratado de Assunção? Isso vai ser feito de comum acordo com os sócios do Mercosul?: eles estão informados desse novo manual de política comercial do governo brasileiro, estarão de acordo com as suas orientações básicas? Qual a legalidade gattiana de medidas não tarifárias seletivas? Invoca qual artigo do GATT?


43) Em resumo, a redução da vulnerabilidade externa será conseguida estimulando-se a reorientação do IDE e, principalmente, através do estímulo ao crescimento das exportações e substituição de importações cujo efeito em médio prazo será a supressão do déficit comercial e sua substituição por um superávit. O fomento ao turismo e a reconstrução de uma frota para reduzir os gastos com frete serão complementares a este imenso esforço de redução do déficit em transações correntes do país.

PRA: Meritório, mas seria necessário precisar melhor o que se pretende fazer, pois os limites, mercosulianos ou gattianos, a esse tipo de manipulação de políticas comerciais, industriais ou de investimentos são muito estreitos.


44) A dívida externa privatizada não contará mais com os diversos mecanismos de estatização e socialização dos riscos e prejuízos. A dívida externa pública, de cerca de U$ 90 bilhões, será objeto de um grande esforço de renegociação, no sentido de permitir um alívio nas contas públicas para acelerar os programas de investimentos e políticas sociais. A implantação de mecanismo de proteção contra a entrada de capitais especulativos será parte deste processo de superação da fragilidade externa. Somente estes resultados permitirão que o país supere a vulnerabilidade e perca a condição de refém do mercado financeiro globalizado.

PRA: Quais são exatamente esses mecanismos de estatização e socialização dos riscos e prejuízos da dívida externa privatizada? Alguma descrição mais precisa? Uma dívida pública de apenas U$ 90 bilhões não requer um tão grande esforço de renegociação, mas ela seria possível, factível, benéfica ao País? Se tem idéia do que representa tal projeto nas relações financeiras externas do País? Não precisa implantar mecanismo nenhum contra os capitais especulativos: eles já existem, basta serem acionados quando preciso, necessário ou desejável. O Brasil só é refém do “mercado financeiro globalizado” porque não consegue viver com seus próprios recursos, ou melhor, converter-se de importador líquido de capitais, em exportador de capitais, como ele será um dia, mais próximo do que parece.


(b) reversão da fragilidade fiscal
45) Por fim, cabe considerar que a redução da fragilidade externa deverá promover uma redução das taxas de juros cobradas nos financiamentos externos, com efeitos positivos sobre a taxa de juros doméstica de curto prazo que influencia o custo de financiamento da dívida pública. Desta forma, estar-se-ia reduzindo a carga de juros, o elemento central de pressão sobre o crescimento da divida pública, reduzindo a imprevisibilidade da sua trajetória.

PRA: Absolutamente correto, mas aqui aplica-se a regra do Garrincha: a parte contrária sabe dessa nossa intenção de reduzir os juros que ela pretenderia cobrar de nós? Se ela não concordar com as nossas taxas, aí vamos dizer que não queremos o seu dinheiro? Os juros baixos vêm antes ou depois de reduzida a fragilidade externa?


V. A CARTA DE RESPONSABILIDADE ECONÔMICA E SOCIAL

46) O Brasil está sendo mais uma vez monitorado por um organismo multilateral que é o FMI. As Cartas de Intenções do governo FHC com esta instituição estabelecem metas macroeconômicas que são monitoradas pelas equipes do fundo, dentro da perspectiva monetarista e ortodoxa que marca a atuação deste organismo. Toda uma blindagem institucional está sendo construída para assegurar o sentido do ajuste estrutural estabelecidos pelos compromissos do governo brasileiro com o sistema financeiro internacional.

PRA: Os rumores a esse respeito são altamente exagerados.

Fim dos comentários

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com)

Washington, 819: 14.10.01; rev.1: 19.10.01


Ver: Íntegra do programa econômico do Instituto da Cidadania