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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Sobre as relações UE-Mercosul - Paulo Roberto de Almeida (2013)

Mercosul e União Europeia: questões sobre o seu relacionamento

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, Professor de Economia Política Internacional no Uniceub (www.pralmeida.org).
Respostas a questionário colocado por: Xxxx e Xxxxx  -  Curso de Pós-graduação em Comércio Internacional - XXX-USP (julho 2013)


1-  Qual a sua opinião (pessoal ou profissional) acerca do Mercosul?

O Mercosul – Mercado Comum do Sul – conhece, desde o surgimento de mais uma crise em 2012 (com a expulsão do Paraguai e a aceitação da Venezuela, ambas medidas perfeitamente ilegais), uma fase de relativa decadência institucional, que parece prolongar-se na relativa indiferença, ou incapacidade, por parte de seus protagonistas principais, no sentido de recolocá-lo em suas bases originais, quais sejam, um projeto de integração econômica e de liberalização comercial. Aparentemente, ele já não dispõe mais das reações favoráveis, no seio da sociedade, de que se beneficiava nos primeiros nove anos de sua existência, tendo também deixado de ser o centro das preocupações prioritárias dos responsáveis políticos, mesmo se os discursos oficiais continuam a proclamar seu papel estratégico nas relações regionais. 
As razões desse estado negativo de coisas não são unicamente devidas à suspensão de um de seus membros originais – o Paraguai – e o ingresso em condições altamente controversas de um novo, a Venezuela, fatos recentes – como é, também, a aceitação em condições obscuras, da Bolívia e do Equador –, mas situam-se na mudança de lideranças políticas tanto no Brasil quanto na Argentina, a partir de 2003. Para bem entender como ocorreu a erosão do projeto original, e a deterioração do processo de construção da integração, cabe fazer um pequeno resumo de sua trajetória, para tentar oferecer, depois, uma reflexão sobre o possível futuro do bloco.
O processo de integração no cone sul começou sua trajetória institucional a partir de 1985, com os esquemas bilaterais entre a Argentina e o Brasil. Um tratado bilateral de integração, em 1988, prometia o estabelecimento de um mercado comum em dez anos, por meio de protocolos setoriais de integração, numa visão de complementaridade das duas economias. Em 1990, os presidentes Carlos Menem e Fernando Collor decidiram acelerar o processo, com posterior adesão do Paraguai e do Uruguai: o novo esquema de liberalização, consagrado no tratado de Assunção (de 26 de março de 1991), passou a ser automático, geral e de características fundamentalmente livre-cambistas. Os novos prazos de integração foram reduzidos pela metade e o “mercado comum” deveria ter sido alcançado até o início de 1995. Não é preciso dizer que tal não ocorreu.
A despeito de graves problemas de estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina, em meados daquela década, a liberalização comercial caminhou de forma mais ou menos rápida, abrindo espaço para o aumento do comércio intrarregional. Não obstante a expansão de comércio, dentro e fora do bloco, não foram criadas as condições estruturais para que os dois principais países – Brasil e Argentina – realizassem uma das premissas do tratado constitutivo, qual seja, a da abertura econômica continuada e a inserção de ambos na economia mundial. Ocorreu, contraditoriamente às expectativas dos primeiros anos, uma introversão do comércio, configurando aquela consequência nefasta dos processos de integração, que os economistas chamam de “desvio de comércio” (e de investimentos). Foi registrada uma espécie de “Brasil-dependência” na Argentina, uma vez que esta tinha no seu maior vizinho o destino para mais de um terço de suas exportações totais e um volume praticamente similar nas importações. O Brasil, embora menos dependente do comércio regional, também construiu para si uma espécie de “reserva de mercado ampliada”, o que pode ter arrefecido a busca de novos mercados.
O protocolo de Ouro Preto, assinado no final de 1994 para “completar” o tratado de Assunção, não criou instituições novas (com exceção de uma Comissão de Comércio que jamais conseguiu aprovar um código aduaneiro efetivo), nem estabeleceu mecanismos para facilitar a coordenação das políticas macroeconômicas dos países membros. Não obstante os avanços, não se chegou ao prometido “mercado comum” ou mesmo à união aduaneira completa, mantendo-se várias exceções à Tarifa Externa Comum. Muitos produtos continuaram fora da zona de livre-comércio, como açúcar e automóveis, por exemplo. Na verdade, depois da fase de transição, as orientações de política comerciais dos principais protagonistas jamais voltaram a se guiar pelas promessas de abertura e liberalização, caminhando no sentido contrário ao esperado.
Em 1996, Chile e Bolívia tornaram-se parceiros da “zona de livre-comércio”, mas a associação ao Mercosul dos demais parceiros do Grupo Andino teve de aguardar até os anos 2003-2005. A “ameaça” da Alca – projeto dos EUA para unificar numa mesma zona de livre-comércio todos os países do hemisfério – fez com que o Mercosul desenvolvesse uma estratégia comercial defensiva da qual ele jamais se separaria nos dez anos que se seguiram de processo negociador.
A desvalorização da moeda brasileira em 1999 representou um choque para a Argentina e o início de uma fase crítica para o Mercosul, que se prolongou até os nossos dias. A Argentina entrou em crise no final de 2001, o que coincidiu com o decréscimo nos fluxos de comércio: ela começou a recorrer, de modo frequente, a mecanismos de defesa comercial (salvaguardas unilaterais). O grande diferencial do Mercosul, em relação aos primeiros dez anos de sua existência, situa na mudança de lideranças políticas nos dois grandes países: os dois novos presidentes, Lula no Brasil e Nestor Kirchner na Argentina, não tinham, como não tiveram, nenhum compromisso com o projeto original, de abertura econômica, de liberalização comercial, de inserção no mundo globalizado, mas seguiram, cada um à sua maneira, trajetórias estatizantes, introvertidas, protecionistas, bem mais comprometidas com uma agenda política e social – que pode até ser importante, mas não é central no Mercosul – do que com o cumprimento dos compromissos básicos do bloco. 
A despeito da retomada do crescimento do comércio intrarregional a partir de 2003 permaneceram os desequilíbrios, motivando demandas de proteção por parte da União Industrial Argentina; o processo foi levado a extremos, com recurso a medidas claramente ilegais no âmbito do bloco e até mesmo do ponto de vista do sistema multilateral de comércio. Deve-se reconhecer que a atitude do governo brasileiro revelou-se estranhamente compreensiva com as infrações regulares às normas do bloco.
Em 2004 a Argentina começou a pressionar pela adoção de um instrumento de salvaguardas automáticas, eufemisticamente caracterizado como sendo um “mecanismo de adaptação competitiva”, que ela pretendia implementar de maneira unilateral. Antes, ela já tinha insistido num “gatilho cambial”, o que foi abandonado, em vista da persistente valorização da moeda brasileira a partir de 2003. No início de 2006, os dois países adotaram o projeto argentino para salvaguardas setoriais, recebido com reclamos por parte da indústria brasileira. No plano político, houve a criação de um fundo corretor de assimetrias estruturais – a ser utilizado sobretudo pelos dois sócios menores, mas com maior volume de financiamento por parte do Brasil – e a instituição de um “parlamento” do Mercosul, considerado um aperfeiçoamento institucional. Nem um, nem outro instrumento tocaram, de fato, nas pendências comerciais ou permitiram superar os obstáculos políticos à realização das metas inscritas do tratado de Assunção.
Assistiu-se, retoricamente, a demandas recorrentes pelo estabelecimento de “cadeias produtivas setoriais conjuntas”, iniciativas inviabilizadas na prática pela incapacidade dos governos de cada um dos países de prestar assistência financeira ou empreender investimentos em base a recursos públicos. Mas voltou-se a dar ênfase, naquele período, sobretudo sob impulso político do governo brasileiro, aos projetos de integração física continental, intenção consagrada na criação da “Comunidade Sul-Americana de Nações” (dezembro de 2004), depois convertida em União, pela ação do governo “socialista” da Venezuela. 
A Venezuela, justamente, foi admitida “politicamente” no Mercosul, em dezembro de 2005, tendo os termos de sua incorporação comercial sido consagrados no protocolo de adesão de 2006; ela nunca chegou a completar, porém, os requerimentos estabelecidos neste e em outros instrumentos do Mercosul. Com a diluição da “ameaça” da Alca – inclusive a partir de sua virtual paralisação na terceira cúpula hemisférica, em Mar del Plata, no final de 2005, por atuação conjunta da Argentina, do Brasil e da Venezuela –, os países sul-americanos passaram a construir, com estratégias e objetivos muito diversos, uma nova agenda integracionista para a região, menos voltada para a liberalização comercial e mais orientada para a cooperação política e o estabelecimento de ligações físicas. Esse esforço redundou na Unasul e em diversos outros mecanismos (Calc, e depois Celac, ademais de um conselho de defesa), de importância mais retórica do que efetiva: para todos os efeitos práticos, a América Latina encontra-se fragmentada em diferentes esquemas de integração, indo do livre-comércio ampliado a um retorno do nacionalismo estatizante, o que também diluiu a importância do Mercosul na região.
Com a crescente importância econômica da Ásia Pacífico, alguns países da região – notadamente México, Colômbia, Peru e Chile – voltam-se para diferentes iniciativas voltadas para essa grande bacia oceânica, num cenário que também se caracteriza pela existência de acordos bilaterais de livre comércio entre esses países e os Estados Unidos. A Aliança do Pacífico, formada por aqueles quatro países, se destina, provavelmente, menos a conformar um bloco comercial próprio à região, e mais à inserção conjunta nos esquemas que se desenham na região da Ásia Pacífico.
Os países do Mercosul parecem ter se conformado a um papel menor nesses grandes desenvolvimentos da economia regional e mundial. Em 2012, o bloco atravessou sua maioridade formal de 21 anos enfrentando a maior crise de sua história: usando como pretexto o afastamento do presidente eleito do Paraguai numa crise política puramente interna, Argentina e Brasil suspenderam a participação do país nas reuniões do bloco e procederam à admissão irregular da Venezuela, num gesto altamente controverso, tanto no plano do direito internacional como no das regras próprias do bloco. Permanecem indefinidas as condições sob as quais a Venezuela poderá cumprir os requisitos formais de sua adesão ao bloco, processo não concluído nos quatro anos estabelecidos no protocolo de 2006, quando as condições econômicas no país bolivariano não se tinham deteriorado como na atualidade. O fato é que o bloco ainda não conseguiu retomar sua agenda de integração regional e de inserção na economia mundial e persistem muitas dúvidas de que seja capaz de fazê-lo na presente conjuntura e com as lideranças atuais. Uma última palavra quanto a isso: o bloco não tem nenhum defeito estrutural, em si, e toda a responsabilidade pela sua situação atual cabe inteiramente aos governos dos dois principais países membros.


2-  Em sua opinião o Brasil é beneficiado diretamente pelo acordo? Por quê?

De fato, ao se definir não apenas como zona de livre comércio, mas como uma união aduaneira, e ao ter a sua Tarifa Externa Comum em grande medida baseada nos interesses industriais brasileiros, o acordo do Mercosul acaba beneficiando bastante as empresas exportadoras brasileiras, que se beneficiam de uma reserva de mercado nos demais países membros. Mas este é um benefício pelos motivos errados, pois o Mercosul deveria ser um bloco voltado para fora, não para dentro, como é o caso, atualmente. Os demais países se ressentem dessa desigualdade de tratamento e acabam “perfurando” a TEC, adotando alíquotas mais reduzidas – em conformidade com seu perfil mais importador do que exportador, de determinados produtos – o que faz do Mercosul uma união aduaneira altamente esquizofrênica, com uma verdadeira colcha de retalhos na sua plataforma tarifária externa. 


3-  Quanto à possível tentativa de integração entre Mercosul e União Europeia, quais seriam as vantagens e desvantagens para o Brasil?

Todo e qualquer processo de abertura econômica, de liberalização comercial, de rebaixa ou eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias – seja bilateralmente, seja plurilateralmente, seja multilateralmente – sempre é positivo, pois passam a atuar, uma vez concluído o acordo, os fatores positivos vinculados a esse tipo de processo: maior concorrência, economias de escala, oferta ampliada de produtos e serviços a preços rebaixados, harmonização de normas, investimentos recíprocos, enfim, liberdade de mercados, o que sempre beneficia os consumidores e até mesmo as empresas, desde que se reposicionem segundo as novas condições de competição. Entre os dois blocos persistem barreiras irracionais e antieconômicas, como podem ser o protecionismo e o subvencionismo agrícola na UE, e o protecionismo e a introversão industriais no Mercosul. Um acordo que desmantelasse ao menos parte dessas barreiras seria altamente positivo para os consumidores e as empresas dos dois lados.


4-  O Sr. Acredita que a posição atual do Brasil no Comércio Internacional, se deve ao fato de fazer parte do Mercosul, se sim ou não, por que?

Não. O Brasil sempre teve uma participação bastante limitada no comércio internacional, pouco mais de 1% dos fluxos globais. Isso não muda desde décadas, mas indica que o Brasil conseguiu, pelo menos, acompanhar o crescimento do comércio internacional, ao manter, e não reduzir, sua participação relativa. O Mercosul beneficiou em grande medida o Brasil, pois absorve grande parte de sua oferta de manufaturados, menos competitiva nos mercados globais. No resto do comércio, com o mundo, o Brasil vem acentuando sua posição como exportador de matérias primas, mas isso a seus próprios problemas internos, não devido ao Mercosul. O Mercosul garantiu uma boa reserva de mercado ao Brasil, mas sua importância relativa é hoje menor do que era ao final da primeira década, quando a parte do Mercosul tinha alcançado cerca de 15% das exportações; atualmente deve ser menos de 10%.


5-  Qual a sua opinião quanto aos países membros do Mercosul, em especial à Venezuela?

Existiam quatro membros originais, sendo que três deles estavam já bastante integrados do ponto de vista comercial. O Paraguai, a despeito de também manter grande parte de seu comércio nacional com os dois vizinhos maiores, representava um mercado secundário para esses dois, e também mantinha regras de comércio especiais, como economia de “entreposto”, o que sempre dificultou sua integração plena ao bloco. Quanto à Venezuela, se trata de um grande país, com recursos energéticos consideráveis, mas cuja economia foi praticamente destruída por mais de dez anos de total irresponsabilidade econômica (e política) por parte do caudilho Hugo Chávez, o que inviabiliza sua integração “normal” no Mercosul. A Venezuela não consegue cumprir os requisitos do Mercosul, e portanto vai demorar muitos anos ainda, para normalizar seu tecido produtivo e suas relações econômicas externas: ela sofre com todos os tipos de manipulações econômicas e pode, eventualmente, até provocar crises no Mercosul, pela sua incapacidade econômica de assumir compromissos de abertura e de liberalização, e por sua baixa disposição política de se relacionar com alguns países associados ou com os quais o Mercosul já mantem acordos de liberalização comercial (como Israel, por exemplo). Não se percebe, por outro lado, como Argentina e a própria Venezuela poderiam aceitar compromissos de abertura nas negociações entre o Mercosul e a União Europeia.


6-  Vimos recentemente no Jornal Nacional uma reportagem sobre Aliança entre Europa e América do Norte, o chamado Tratado Transatlântico; qual é a chance de o Brasil se beneficiar deste acordo ou o da Aliança do Pacifico, que são acordos que prevê muitos benefícios aos países membros?

O Brasil e o Mercosul, por sua própria introversão econômica, protecionismo exacerbado e estatização crescente, estão à margem desses processos, e poderão se ressentir de que seus parceiros na região sul-americana busquem consolidar vínculos com essas duas regiões, diminuindo, assim, o aceso dos produtos do Brasil e do Mercosul aos mercados desses outros países. De forma geral, o Brasil e o Mercosul estão se tornando irrelevantes em relação aos principais movimentos que se registram no comércio e nos investimentos internacionais. 


7-  Qual é a sua opinião sobre a regra de negociação conjunta do Mercosul? 

Poderia ser útil se os países membros tivessem uma total abertura interna, recíproca, e plena disposição para se abrirem ao mundo. Como eles não conseguiram sequer assegurar a zona de livre comércio plena entre si, como não possuem uma união aduaneira funcional, homogênea, uniforme, e como eles não conseguem coordenar suas políticas macroeconômicas (a cambial, por exemplo) e setoriais, eles não possuem condições mínimas para negociar conjuntamente com outros parceiros. Todos os acordos extra-Mercosul concluídos até aqui são extremamente limitados em seu escopo, alcance e modalidades de abertura, contribuindo de modo muito marginal para a expansão geral do comércio externo do Mercosul ou os intercâmbios individuais dos países membros. Como a regra não dispõe dos pré-requisitos para tornar-se operacional, talvez seja o caso de aboli-la parcialmente. Na verdade, não se trata de uma regra do Mercosul, mas sim de uma norma totalmente política, ou seja, uma decisão adotada pelo Conselho do Mercosul, seu órgão político superior. Sendo uma resolução política, ele poderia ser modificada por outra decisão política, autorizando a negociação isolada de acordos de livre comércio dos seus membros individuais com terceiros países, desde que respeita a cláusula de nação-mais-favorecida, ou seja, que os benefícios estendidos a qualquer terceira parte seja automaticamente estendidos aos demais membros do Mercosul. Em princípio, uma união aduaneira deveria atual de forma conjunta, mas como o Mercosul padece de sérios problemas de descoordenação, uma norma política autorização negociações individuais talvez seja um expediente aceitável. 
No plano prático, sabe-se que a Argentina (e possivelmente a Venezuela) possui uma menor disposição de abertura, comparada ao Brasil, por exemplo. Assim, talvez o Brasil tivesse vantagens em se beneficiar de uma nova “norma” permissiva nesse terreno. 


8-  No atual cenário de globalização e Internacionalização, qual é a importância de fazer parte de Acordos Comerciais continentais e intercontinentais?

Acabo de escrever um livro inteiro sobre essa questão: Integração Regional: uma introdução (São Paulo: Saraiva, 2013). Permito-me remeter a esse livro, no qual essa questão está amplamente debatida.


9-  Quais são os benefícios para o Brasil quando falamos dos Tratados de livre Comércio com Comunidade Andina, Israel e Egito?

Muito limitados, embora o acordo com Israel, um país dotado de alta tecnologia, possa ser potencialmente interessante, e prometedor. Os acordo com países sul-americanos membros da CAN não são muito significativos em relação ao que já existia no âmbito da própria Aladi, ao abrigo da qual foram contraídos esses acordos. Não creio que os acordos com Egito, Índia ou SACU (África meridional) sejam muito significativos, embora sempre possa haver alguma criação de comércio.


10-      Qual é a sua expectativa para o Mercosul, ele ainda deverá existir por quanto tempo.

Durante as primeiras duas décadas de existência do Mercosul, o itinerário do bloco tinha sido marcado por uma característica básica: suas configurações essenciais foram construídas, não tanto a partir da arquitetura institucional ou do funcionamento interno do bloco, mas sim com base nas orientações políticas de seus dois principais membros, a Argentina e o Brasil. De fato, esse foi o elemento definidor do itinerário do Mercosul, desde suas primícias, até 2012, quando o processo foi alterado de forma substantiva, a partir do ingresso irregular da Venezuela, admitida na ausência e contra a opinião do Paraguai, temporariamente suspenso das reuniões do bloco en função de uma crise política interna no país guarani, identificada pelos três outros membros como constituindo uma “ruptura democrática”, no sentido definido pelo Protocolo de Ushuaia de 1998. Tudo leva a crer que esse será o molde formal no qual o Mercosul se desenvolverá – se desenvolvimento houver, no sentido substantivo e cumulativo da palavra – no futuro previsível: a partir das decisões políticas adotadas de forma voluntarista pelos três grandes sócios do bloco. 
Em outros termos, não são tanto os atos constitutivos – Tratado de Assunção, Protocolo de Ouro Preto – ou os instrumentos acessórios – protocolos e acordos setoriais, inclusive sobre solução de controvérsias – ou sequer o conjunto de normas definidoras de suas políticas setoriais – comerciais e outras – que determinarão o curso a ser seguido pelo Mercosul, e sim as políticas internas dos três sócios maiores, com seus reflexos no processo de integração. São estas políticas que se afiguram decisivas, não exatamente para influenciar no que ele deveria, ou no que ele poderia ser, mas para o que o bloco vai ser, concretamente.
Uma análise prospectiva com tais intenções teria de ser bem mais conceitual, e mais institucional, do que propriamente focada nas políticas nacionais, uma vez que é hipoteticamente o perfil geral do edifício integracionista que deveria determinar o curso atual e futuro do bloco. Ocorre, porém, que a presença política e o ativismo dos dirigentes máximos dos países membros são de tal forma relevantes para a definição de suas principais políticas, que a moldura institucional e os principais instrumentos operacionais acabam sendo relegados a segundo plano nas reuniões definidoras das grandes orientações do bloco. Desse ponto de vista, o Mercosul aparece como bem menos institucionalizado – e com menor respeito ao quadro legal – do que outros esquemas de integração, mais ou menos profundos, como podem ser experimentos complexos como o da UE, ou simples zonas de livre comércio, como é o Nafta. 
Não surpreende, assim, que qualquer digressão sobre a evolução futura do Mercosul se apresenta como difícil, senão impossível, pois que altamente dependente do comportamento aleatório – por vezes até errático – das lideranças políticas em cada um dos países, dada a personalização dos sistemas políticos nacionais e do próprio processo de integração. O caráter oscilante da evolução do Mercosul pode inclusive ser determinado por fatores totalmente contingentes, como ocorreu em junho de 2012, na reunião de cúpula de Mendoza, quando o Paraguai foi suspenso pelos três outros membros por suposta “ruptura democrática” – na verdade uma crise política interna – interpretada e sancionada sem que necessariamente tenham sido seguidos os requerimentos do próprio Protocolo de Ushuaia (1998), que determinavam consultas com a parte afetada antes de qualquer aplicação de sanções.
A despeito da adesão de todos a um conjunto mínimo de regras de política comercial, estas vêm sendo alteradas de maneira crescente e arbitrária pelo ativismo político-econômico de cada um dos Estados, na ausência de mecanismos mais aperfeiçoados para uma melhor coordenação das políticas econômicas nacionais, e até de vontade política para tanto. A base de qualquer empreendimento integracionista é a existência de uma vontade comum aos participantes, o mais possível convergente, no sentido de adotar as medidas necessárias, no plano interno, de maneira a viabilizar os requerimentos do processo de desmantelamento de barreiras à formação de um espaço econômico comum. Não é isso, exatamente, que vem ocorrendo no Mercosul atual.
Se, em algum momento, essa comunhão de propósitos existiu entre os membros do Mercosul – e ela foi bem mais evidente na dramática conjuntura de saída dos regimes autoritários militares, em meados dos anos 1980 – e se manifestou nos impulsos sucessivos que levaram do PICE (1986), ao Tratado de Integração Bilateral Brasil-Argentina (1988), logo depois à Ata de Buenos Aires (1990, que decidiu acelerar o processo) e finalmente ao tratado quadrilateral de Assunção (TA-1991), que criou o Mercosul em sua forma atual, essa vontade há muito parece ter deixado de existir. Não é difícil de se chegar a esta conclusão ao se constatar, no decurso da segunda década do bloco, a adoção progressivamente crescente, por parte dos dois membros mais importantes, de medidas unilaterais de caráter exclusivamente nacional que passaram a afetar o quadro regional no que ele tinha de mais relevante: sua conformação jurídica enquanto personalidade de direito internacional sob a forma de uma união aduaneira. Não é difícil imaginar que o ingresso da Venezuela no bloco, em condições particularmente bizarras, venha a contribuir para esse quadro errático no processo decisório e de ambiguidades na implementação das medidas institucionais e de funcionamento do Mercosul.
A disparidade de políticas econômicas nacionais parece ser o elemento central que explica o precário estabelecimento dos pilares essenciais do empreendimento integracionista em sua segunda década de existência. É ela que fundamenta a dúvida de saber se, no futuro de médio prazo, o Mercosul conseguirá, ou não, cumprir os requisitos básicos de seu projeto constitutivo: o acabamento de sua união aduaneira, com vistas a avançar para o prometido mercado comum. A incapacidade dos países em completar o próprio programa estabelecido na origem, para o Mercosul, constitui, atualmente, o elemento central de seu desenvolvimento no futuro de curto e médio prazo, ou seja, a partir da terceira década de sua existência.
Como seria possível interpretar, assim, as vias prováveis de evolução futura do Mercosul, em face dos problemas remanescentes e das tendências sistêmicas que se observam atualmente no bloco, em especial, no que respeita o comportamento dos seus protagonistas mais importantes? Duas linhas de explicações são aqui seguidas: quanto aos procedimentos, e quanto à substância do processo de integração.
No que respeita, em primeiro lugar, os procedimentos, e admitindo-se a premissa estabelecida ao início – que condiciona a evolução do bloco às orientações políticas dos seus maiores sócios, processo aliás vinculado ao alto grau de personalização do processo decisório, típico do presidencialismo altamente instável que vige na região – pode-se vincular o futuro do Mercosul ao que determinarem os presidentes e os mais altos responsáveis econômicos do Brasil, da Argentina e, doravante, da Venezuela. No que tange, em segundo lugar, à substância do processo, cabe enfatizar que, a despeito de toda a retórica política em torno do Mercosul e das iniciativas adotadas pelos governos dos Estados partes no terreno político (e em suas derivações sociais, culturais, educacionais e outras), a essência do processo só pode ser econômica e comercial: enquanto não se avançar nesse terreno, é propriamente um engodo falar-se do reforço ou da ampliação da integração. 
Se estas linhas explicativas guardam consistência com a realidade registrada em sua segunda década de existência, cabe reconhecer que o Mercosul desviou-se significativamente de seus objetivos originais, a ponto de raramente a agenda de reuniões na fase recente ocupar-se do cumprimento das metas estabelecidas no artigo 1o. do TA. O que deveria ser o ponto de partida da integração – o livre comércio pleno e o correto funcionamento da união aduaneira – parecer ter se convertido num objetivo distante, quase ausente dos discursos políticos da atualidade.
Resta saber, portanto, se o futuro imediato (e o mediato também) confirmará a tendência ao esvaziamento do processo econômico real – e sua conversão em um simples foro de questões gerais lidando com a integração superficial de países contíguos –, ou se o Mercosul conseguirá retornar, a partir de sua terceira década, a seu projeto original. Para isso cabe considerar o que ele foi, até aqui, e quais são os problemas e desafios que deveriam fazer parte de uma agenda real de integração: um exercício retrospectivo, focando as políticas desenvolvidas nos últimos anos, pode ajudar a antecipar o que pode – e o que deveria – vir pela frente.
Não é difícil identificar as grandes fases de desenvolvimento do Mercosul: todos reconhecem que, a despeito dos avanços realizados nos primeiros dez anos, os impulsos do Mercosul em direção de uma maior liberalização comercial e para a constituição de um espaço econômico unificado no Cone Sul foram paralisados a partir de 1999, e até retrocederam nos anos seguintes. A união aduaneira sequer consolidou-se sob uma autoridade comum, dotada de aplicação uniforme de suas regras, havendo a coexistência de enorme volume de exclusões à Tarifa Externa Comum. As causas principais foram a instabilidade econômica e as políticas econômicas divergentes, mas também um reduzido compromisso político com a realização das reformas necessárias ao alinhamento da agenda de trabalho do Mercosul com os objetivos do TA.
Chega-se, finalmente, ao momento de reversão do Mercosul, nos anos 1999-2001, quando tanto o Brasil, quanto a Argentina conhecem crises severas no plano cambial, o que determina uma queda significativa nos níveis dos intercâmbios no bloco (já que a conjuntura negativa afeta igualmente os dois sócios menores). Os fluxos serão restabelecidos gradualmente ao longo da segunda década do Mercosul, mas não o impulso liberalizador que deveria caracterizar o processo de integração. Pode-se, aliás, afirmar que essa fase de crise e de mudança de atitudes inaugurou um processo de reversão de fato – ainda que não de direito, mas sua importância diminui – no Mercosul, com um decréscimo político e econômico do impulso conhecido nos primeiros oito anos do processo de integração. 
Durante aquela conjuntura de crise, ainda se tentou compensar o desgaste da relação bilateral – evidente desde o momento da desvalorização cambial involuntária no Brasil (janeiro de 1999) – pela criação de um grupo ad hoc de harmonização de políticas macroeconômicas. De fato, a desvalorização do real e a introdução do regime de flutuação cambial dão a partida a uma grave crise política entre o Brasil e a Argentina, da qual o processo de integração parece jamais ter se recuperado. Medidas protecionistas adotadas antes e depois do episódio, pelo setor privado e pelo governo da Argentina contra produtos brasileiros (têxteis, avícolas, siderúrgicos, calçados, papel, linha branca, reforço de barreiras ditas sanitárias), continuaram durante toda a segunda década, e ameaçam prolongar-se pelo futuro previsível. O Brasil fez diversas vezes apelo ao mecanismo de solução de controvérsias do Mercosul e, num caso, pelo menos, teve de levar o contencioso contra a Argentina à apreciação da OMC. Desde essa fase, o Mercosul jamais voltou a discutir seriamente a questão da coordenação macroeconômica, em especial a questão cambial. 
Os personagens determinantes da fase mais recente foram os presidentes eleitos do Brasil, Lula, e da Argentina, Nestor Kirchner, este inclusive com o apoio explícito do primeiro. Um primeiro encontro bilateral, logo após a eleição do argentino, serviu para o anúncio à mídia de um vago “Consenso de Buenos Aires”, que pretendia substituir o supostamente perverso “Consenso de Washington”, alimentando ambos os presidentes a esperança de que as novas regras – anti-neoliberais – servissem de modelo e inspiração para todo o continente. No entanto, propostas brasileiras para o aprofundamento da coordenação econômica no plano bilateral e para a consolidação da união aduaneira no quadro do Mercosul nunca puderam avançar de modo conveniente, em função, essencialmente, da oposição argentina a qualquer esforço real de liberalização comercial, seja interna, seja no plano regional ou multilateral.
O único entendimento possível, aqui incluindo a Venezuela, foi a oposição comum ao projeto americano da Alca, bem mais por motivos políticos (e até ideológicos), do que com base num cálculo econômico realista no que se refere a ganhos eventuais em termos de acesso a mercados americanos ou em novas oportunidades de atração de investimentos diretos nos setores industriais dos países da América do Sul. A colaboração entre eles foi bem sucedida, uma vez que conseguiram implodir a Alca na reunião de cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005.
A consequência mais evidente derivada da ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina – no caso, os já mencionados Lula e Kirchner – foi representada pelo nítido afastamento desses países (e, no mesmo movimento, do Mercosul) dos objetivos econômicos basilares do TA, em especial a liberalização comercial recíproca e a continuidade da abertura econômica no plano global. Em seu lugar, reingressaram na agenda velhas receitas substitutivas e industrializantes, sob forte dirigismo estatal e protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não apenas um desvio em relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas igualmente um retorno de quase meio século na história econômica desses países.
Esse movimento regressista foi bem mais forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no Brasil, que não atravessou uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo país platino no início do novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade das novas lideranças do Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida liderança política no continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro formal do Mercosul – o que se observou foi uma espécie de fuga para a frente, em direção de objetivos sociais e políticos não concebidos originalmente como partes essenciais do processo de integração: tratou-se nitidamente de um efeito substituição.
Os governos dos países membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul.
O governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos órgãos para o Mercosul – Instituto Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção social”, etc. – mesmo quando os objetivos primários do TA, que são o livre comércio e a união aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto pelas crescentes restrições adotadas no plano interno, quanto pelo protecionismo ampliado no plano externo. A Argentina foi bem mais enfática, e explícita, nos mecanismos defensivos do seu mercado interno, sob o olhar complacente do governo brasileiro, mesmo contra os interesses de seus exportadores em geral, dos industriais em particular. A despeito de todas as políticas defensivas da Argentina, e do fato que elas foram e continuam sendo ilegais e abusivas, os fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem ainda o grosso do comércio intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os exportadores do Brasil, cujos superávits com o vizinho permanecem significativos.
A acumulação de saldos comerciais e a volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não impediram que a parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul diminuísse em relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial no caso do Brasil. A Argentina se mantém ainda na condição que já foi várias vezes caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça em diminuir, mas recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no limite antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva, não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo).
Mas é também um fato que a parte do Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em dez pontos percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação do bloco, tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos tenham voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles passaram a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro. Isto significa que o Mercosul continua a ser significativo no plano microeconômico – ou seja, representa um importante mercado para empresas individuais – mas já pode não ser macroeconomicamente relevante para o Brasil quanto foi nos primeiros nove anos.
Pode-se agora adentrar no campo prospectivo e tentar antecipar o que poderá ocorrer – e, talvez até, o que deveria ocorrer – no Mercosul, com apoio na experiência acumulada do próprio bloco, nas tendências detectadas anteriormente e, também, no conhecimento das políticas em curso nos países membros. Independentemente, porém, do perfil econômico de médio e de longo prazo do Mercosul, e das características políticas e institucionais que ele poderia assumir, em decorrência das ações futuras dos governos dos Estados partes, um aspecto parece seguro, qualquer que seja seu itinerário no horizonte previsível: o Mercosul não corre qualquer risco de desaparecer pela vontade deliberada de seus membros. Nenhum dos líderes políticos, atuais ou futuros, parece pronto a descartá-lo como projeto, ou estaria disposto a assumir o ônus de decretar seu fracasso e inadequação, apenas por ineficiência relativa de seus mecanismos ou devido ao aumento das irracionalidades econômicas dos últimos anos.
Depois de vários anos de restrições ilegais à importação de produtos brasileiros em seu mercado, a Argentina caminha no sentido, não de desmantelar, mas de “aperfeiçoar” os mecanismos defensivos e protecionistas: ademais do recurso habitual a salvaguardas e antidumping, o governo argentino tem apelado para licenciamentos não automáticos e outros expedientes restritivos ao acesso de produtos brasileiros aos mercados locais. Ocasionalmente, se faz recurso a algum tipo de retaliação, mediante a aplicação similar de restrições nas fronteiras, numa demonstração pouco usual de “machismo comercial”. Quando os estoques de produtos barrados aumentam dos dois lados da fronteira, uma reunião política desarma o potencial de conflitos durante algum tempo, até a próxima contenção ilegal. Eventualmente, os supremos mandatários dos dois países se reúnem, anunciam algum “plano estratégico”, e prometem que, no futuro, “tudo vai ser diferente”.
Em outros termos, não existem muitas perspectivas de que os grandes parceiros do Mercosul, na vigência dos instintos protecionistas existentes atualmente, se reconciliem no liberalismo comercial “neoliberal” dos anos 1990, o que não permite, portanto, prenunciar a retomada da construção do projetado mercado comum bilateral – e menos ainda plurilateral – prometido desde os anos 1980. Não é, por outro lado, previsível – e, de certa forma, é praticamente impossível – que o acesso de novos membros plenos ao esquema do Mercosul, sobretudo em se tratando dos “bolivarianos”, como a Venezuela, a Bolívia ou o Equador, venha a resultar em livre comércio ampliado. Ao contrário: o que se prevê é mais comércio administrado, mais regulações intrusivas na atividade empresarial, mais inserção social e distribuição de benefícios estatais, em uma palavra: maior controle dos mercados, de maneira a permitir um espaço econômico equilibrado, dotado de salvaguardas necessárias ao fluxo responsável de bens e serviços, sem que os benefícios sejam concentrados em algum parceiro, dotado de vantagens indevidas em função de “assimetrias estruturais”.  
Se não existe liberalização ampliada dos intercâmbios no Mercosul, mas apenas comércio administrado ou monitorado pelas autoridades econômicas – sempre preocupadas em corrigir os desequilíbrios –, não existem motivos suficientes ou os requisitos necessários para a chamada coordenação de políticas macroeconômicas ou a harmonização de políticas setoriais. Isso afasta ainda mais os países de um saudável processo de reformas que eles deveriam de toda forma empreender, apenas para manter condições de competitividade de molde a prepará-los para enfrentar concorrentes externos. Isso, obviamente, no caso de os parceiros do Mercosul pretenderem praticar o regionalismo aberto, o que talvez não seja o caso. Não se pode, por outro lado, culpar a falta de institucionalização no Mercosul por essas carências detectadas na liberalização recíproca, uma vez que são as próprias políticas nacionais que obstaculizam o bom funcionamento da zona de livre comércio ou a plena implementação da união aduaneira.  
Em última instância, o que está em jogo, em cada um dos países, são os instintos soberanistas de cada um dos parceiros, sentimentos bastante exacerbados nos dois grandes sócios do empreendimento integracionista. O retraimento na defesa dos mercados nacionais e a proteção dos produtores locais ainda são iniciativas mais fortes, e de forte apelo político, do que as dolorosas decisões pela abertura e pelo desmantelamento de barreiras, ainda que apenas e tão somente no bloco, exclusivamente. Compreende-se que a ausência de reformas dificulte a abertura, o que por sua vez reforça a tendência à inércia: reformar a estrutura fiscal, renunciar a tributos, eliminar controles que servem aos instintos burocráticos das corporações estatais, modificar os direitos sindicais que produzem reservas de mercado (e, de fato, desempregos setoriais), alterar a paridade do câmbio ou deixá-lo flutuar sem controles, todas essas medidas são extremamente difíceis de serem tomadas, e não é provável que Brasil e Argentina consigam se entender sobre uma plataforma comum de reformas internas e sobre uma agenda partilhada de retomada do processo de integração.  
Na verdade, os dois países – e outros países na região – não deixam de fazer ajustes, cada vez que circunstâncias inesperadas alteram as condições do jogo econômico num ou noutro país. Mas essas medidas são adotadas de forma ad hoc, sem obedecer a uma visão compartilhada de quais medidas são favoráveis, ou não, ao processo de integração, o que afasta ainda mais a perspectiva de uma coordenação de políticas entre os dois grandes parceiros do Mercosul. Uma simples listagem de todas as medidas de política fiscal, tributária, cambial, comercial ou industrial adotadas em cada um dos países permitiria que se chegasse à constatação que sua orientação se deu, não num sentido integracionista, mas objetivamente com propósitos restritivos ou protecionistas: de fato, o grau de proteção efetiva aumentou, não diminui, desde 1995, e não apenas para terceiros países, mas internamente ao Mercosul igualmente.
Para não dar a impressão de imobilismo, ou até de retrocesso, se adota nova estratégia de “fuga para a frente”, deslocando os objetivos do processo para a ampliação do bloco, não para a sua consolidação ou aprofundamento. Não se vê, aliás, em que medida, e com quais objetivos, o ingresso de novos membros em condições facilitadas – ou seja, sem passar pela  adoção obrigatória da TEC – possa reforçar o Mercosul, em lugar de debilitá-lo. Aparentemente, o Mercosul está se transformando numa Aladi sub-regional, quase um simples cartório de registro de atos de natureza diversa, de implementação relativamente vaga e de obrigações muito tênues. Tampouco se imagina como a extrema flexibilidade na implementação das disposições essenciais do Mercosul possa contribuir para o outro objetivo alegadamente importante, que é a redução das “assimetrias estruturais” entre os membros. Cada vez que a qualquer um dos membros é permitido seguir uma implementação “flexível” das normas comuns, o que se tem é um reforço de assimetrias, não sua atenuação, inclusive devido ao fato de que as “assimetrias” mais relevantes são aquelas derivadas de políticas econômicas, não de supostas dotações diferentes de fatores (que são elementos sistêmicos, ou seja, presentes em qualquer relação comercial, em todas as demais partes do mundo). 
Uma análise realista do “estado da arte” no Mercosul poderia, por exemplo, chegar à conclusão de que o projetado mercado comum, ou sequer a união aduaneira proclamada são factíveis, de fato, cabendo, então, dar lugar a uma discussão sobre os meios e os procedimentos aplicáveis a um processo ordenado de construção de uma simples zona de livre comércio, formato que é, de longe, um dos mais comuns – junto com os simples esquemas de preferências tarifárias – dos experimentos de integração conhecidos no sistema multilateral de comércio. Seria um reconhecimento de que a arquitetura concebida no momento da redemocratização dos países do Cone Sul foi ambiciosa demais para as capacidades organizacionais dos parceiros nesse tipo de empreendimento, cabendo, assim, reconhecer as virtudes mais modestas dos esforços de cooperação focados em metas realistas de liberalização comercial de escopo mais limitado ou de alcance não tão profundo. 
Se o Mercosul quiser ser bem sucedido ele tem de voltar ao básico, e cumprir o acordado no artigo 1o. do TA, ou então começar por assumir a responsabilidade de efetuar uma reforma profunda de seus instrumentos constitutivos. A reprodução mimética de um esquema do tipo europeu sempre foi uma quimera do ponto de vista prático, e não existem soluções institucionais indolores que consigam fazer do Mercosul um edifício integracionista para o qual lhe carecem fundações apropriadas.
Um bom começo de um processo de reformas seria um diagnóstico realista dos impedimentos sistêmicos ou contingentes ao acabamento da união aduaneira, a partir do qual se poderia prescrever uma arquitetura institucional com a qual as autoridades políticas dos atuais parceiros poderiam concordar em dar o seu apoio. Nenhuma solução “cooperativa” em torno de um processo de integração elude, porém, a necessidade de reformas internas em cada um dos países participantes. E um compromisso inquebrantável com o respeito à legalidade democrática e aos bons princípios do Estado de direito seria uma condição essencial para o sucesso de todo e qualquer esquema integracionista que se empreenda na região.  

Paulo Roberto de Almeida

Hartford, 13 de julho de 2013.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Raymond Aron: uma influencia decisiva em minha formacao - Paulo Roberto de Almeida

Recebi, no começo deste ano, uma consulta para um trabalho acadêmico, sobre a importância de Raymond Aron para o meu trabalho ou minhas reflexões de relações internacionais. Respondi ao questionário, e ainda recentemente consultei sobre o aproveitamento de minhas respostas para tal trabalho, mas ainda não obtive resposta.
Como acredito que Raymond Aron deve ter influenciado dezenas, centenas, talvez milhares de outros pesquisadores e estudiosos do mesmo campo, resolvi postar aqui minhas respostas a um questionário, que talvez interessem alguém, se isso tem alguma validade.
Comecei a ler Raymond Aron por meio de seus artigos no L'Express ou no Le Figaro, traduzidos e publicados no Estadão. Mais tarde, já na Europa, adquiri praticamente todos os seus livros, e lembro-me inclusive de ter emprestado um desses livros a um colega da ULB, que nunca me devolveu...
Estou com raiva até hoje.
Em todo caso, aqui vão minhas respostas às perguntas formuladas.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 4 de outubro de 2018

Raymond Aron: uma influência decisiva em minha formação

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de fevereiro de 2018
 [Objetivo: Respostas a consulta de acadêmicofinalidade:influência de Raymond Aron no meu trabalho intelectual.]


Respostas de Paulo Roberto de Almeida às questões recebidas:

I.      Como se deu o seu primeiro contato com Raymond Aron ou com a sua obra? Em quais circunstâncias?

PRA: Meu primeiro contato com a obra e o pensamento de Raymond Aron se deu ainda em meados dos anos 1960, jovem adolescente frequentando o “colegial” (ou seja, a segunda etapa do secundário, ou curso médio, depois do ginasial, no então chamado “clássico”, em contraposição ao “científico”, preparatório ao terceiro ciclo de estudos), mas já leitor de obras típicas dos cursos universitários em humanidades. Estudando de noite e trabalhando de dia, eu comprava o jornal “reacionário” O Estado de S. Paulo todos os fins de semana, especialmente aos domingos, interessado nos suplementos culturais do sábado, e nos grandes artigos internacionais do domingo. Minha atenção para os temas internacionais tinha sido despertada pouco tempo antes por uma palestra do cientista político e editorialista do Estadão Oliveiros da Silva Ferreira, feita ainda no ginásio (em 1964 ou 1965), sobre a crise dos foguetes soviéticos em Cuba e o contexto geral da Guerra Fria. A partir desse momento, passei a comprar o Estadão nas bancas, todo fim de semana, e passava as tardes lendo e estudando os grandes artigos traduzidos de grandes intelectuais internacionais. Entre eles se encontrava obviamente Raymond Aron, e ao que me lembre eram artigos traduzidos do semanário L’Express ou de outros periódicos publicados na França. Nessa época, eram poucas as revistas brasileiras sobre temas internacionais, e eu ignorava obviamente a existência da Revista Brasileira de Política Internacional, publicada no Rio de Janeiro desde 1958, mas que não circulava nos circuitos comerciais de varejo. Foi nas páginas do Estadão de domingo, portanto, que eu tomei contato, pela primeira vez, com os artigos eruditos de Raymond Aron e de Roberto Campos, duas leituras obrigatórias, ainda que com grandes restrições de caráter ideológico, uma vez que eu me considerava um aderente precoce da doutrina marxista, e portanto “inimigo” do pensamento de “direita” representado pelos dois intelectuais. Este foi o meu primeiro contato com as ideias “direitistas” de Raymond Aron, intelectual que nunca deixei de ler, mesmo tentando me contrapor, como também era o caso em relação a Roberto Campos, aos seus argumentos enquadrados no pensamento geopolítico da Guerra Fria, durante a qual eu mantinha um posicionamento anticapitalista, mesmo sem necessariamente aderir ao comunismo de tipo soviético, que sempre desprezei. 

II.    Em sua opinião, qual a influência do pensamento de Aron tendo em vista as temáticas intelectuais às quais ele se dedicou?

PRA: Posso dizer que essa influência foi enorme, mesmo a contragosto, se ouso dizer, uma vez que, numa primeira fase, o marxismo juvenil, de certo modo ingênuo, me levava a considerar que o lado correto era o do intelectual esquerdista Jean-Paul Sartre, não o de Raymond Aron, classificado entre os partidários da “direita”. Pouco antes de sair do Brasil, no final de 1970, em direção à Europa, eu já considerava indispensável ler suas obras, que conhecia de nome, mas que ainda não havia lido nem em francês – língua que eu dominava mal – nem em eventuais traduções em português, que ignorava existir. Sabia de seus livros resultantes das aulas na Sorbonne desde meados dos anos 1950, mas não tinha tido ainda oportunidade de ler.
Estimo que sua influência foi apenas parcialmente importante, no conjunto da academia até o final dos anos 1960, ou até mais além, uma vez que as humanidades no Brasil sempre estiveram bem mais vinculadas ao pensamento marxista do que às teses e argumentos “atlantistas” ou “liberais” de intelectuais como Raymond Aron ou, no caso, brasileiro, Roberto Campos, Eugênio Gudin, ou outros. Ainda se achava basicamente correta a postura de “estar errado com Jean-Paul Sartre, em lugar de acertar com Raymond Aron”, e 1968 era considerado um passo na direção correta, a de recusar a sociedade burguesa e construir uma sociedade solidária; esta não estava alinhada com as posturas do comunismo tradicional, mas sim com a Escola de Frankfurt, com Herbert Marcuse, com Wilhelm Reich e outros teóricos libertários. 
Na época “áurea” da Guerra Fria, Raymond Aron estava estritamente alinhado com os esquemas atlantistas da OTAN e dos EUA, então envolvidos na guerra do Vietnã, e portanto condenados por toda a esquerda mundial, da qual, uma parte pelo menos apoiava a “revolução cultural” da China de Mao, considerada uma etapa superior de construção do comunismo, acima do burocratismo do sistema soviético. Nesse contexto, Aron era cultivado apenas num pequeno circulo de iniciados, uma vez que a maior parte dos acadêmicos se alinhava com as posições “progressistas” da esquerda ocidental. 

III.  Aron ainda pode ser considerado, em termos intelectuais, autor atual e influente?

PRA: Absolutamente: todas as suas obras, sejam as de filosofia da história, ou as de sociologia industrial, e ainda as de geopolítica no contexto das doutrinas realistas, são pertinentes e indispensáveis a um debate intelectual da mais alta qualidade sobre os problemas sociais, políticos e geopolíticos das sociedades contemporâneas, mesmo no pós-Guerra Fria, uma vez que as características e tendências fundamentais da geopolítica mundial, e das sociedades industriais permanecem válidas mesmo após o declínio irresistível dos projetos socialistas de cunho marxista-leninista. Aron preserva uma lucidez impressionante em relação ao simples debate entre liberais e socialistas de cunho reformista (lassalianos, fabianos, ou seja II Internacional), e mantém coerência em relação às escolhas fundamentais que devem ser feitas no plano interno (democracia de mercado) e no contexto internacional (defesa dos valores ocidentais, contra propostas autoritárias de ordenamento político e social). 

IV.   Quando aluno, Aron aparecia como bibliografia nos cursos de graduação e/ou pós-graduação que você frequentou? Como professor, você utiliza ou utilizou obras de Aron como bibliografia em cursos de graduação e/ou pós-graduação? Nos dois casos, quais obras?

PRA: Frequentando cursos de Ciências Sociais no Brasil (USP) e no exterior (ULB, em Bruxelas), não me lembro de ter sido recomendado expressamente a ler Raymond Aron, mas como ele era um referência indispensável nos debates políticos da época, fui levado a buscar voluntariamente seus livros sobre a sociedade industrial, e seus debates com os intelectuais marxistas. Nessa época, início dos anos 1970, ainda procurava me alinhar mais com os autores marxistas (sobretudo da Europa ocidental), mas nunca deixei de ler Raymond Aron, como o contraponto necessário aos argumentos dessa linha. Junto com Aron, lia Karl Popper e outros “liberais”, embora tendesse a aderir bem mais às teses anticapitalistas dos socialistas franceses e ingleses, tipo Nikos Poulantzas, Christopher Hill, Perry Anderson e outros. Aron era o antagonista preferido de toda essa tropa de marxistas acadêmicos, aos quais eu aderia residualmente, sem deixar de me referir a Aron (ou Alain Peyrefitte, por exemplo) em sua contestação às principais teses dos esquerdistas. Aos poucos, Aron deixou de ser o “inimigo ideológico” para se converter no “adversário político”, mais adiante convertido em “interlocutor indispensável”, nas reflexões sobre as vias abertas às sociedades do Ocidente e as do Terceiro Mundo.

V.     Durante sua segunda visita ao Brasil, em 1980, Aron foi a figura central do simpósio “Raymond Aron na UnB”. Em relação ao homenageado, em sua opinião e tendo em vista o contexto da época, quais as principais motivações para o convite? Em que medida, tais motivações teriam estado ligadas ao contexto político nacional (início do processo de redemocratização) e ao contexto internacional, ainda marcado pela tensão bipolar entre os EUA e a URSS - para além das questões propriamente intelectuais?

PRA: Nessa fase, início dos anos 1980, eu já tinha ingressado na carreira diplomática (desde 1977) e me encontrava em postos no exterior, de 1979 a 1984, entre Berna e Belgrado, e tinha retomado minha tese de doutoramento em sociologia política, iniciada em 1976, mas interrompida em 1977 na volta ao Brasil. Posso dizer que Aron foi decisivo no plano puramente bibliográfico, pois passei todos esses anos lendo uma enorme bibliografia em história e sociologia, para completar uma tese sobre as revoluções burguesas, mas num sentido totalmente contrário ao que tinha quando fiz o projeto e iniciei os trabalhos entre 1976 e 1977. Não só Aron, mas Weber, Fernando Braudel, Barrington Moore Jr., Albert Hirschman, os revisionistas históricos sobre as revoluções burguesas, influenciaram minha conversão do marxismo acadêmico a uma análise mais realista dos processos políticos e sociais que levaram as sociedades do Ocidente moderno a sistemas políticos pluralistas e abertos. Aron, entre vários outros, foi essencial nessa revisão interpretativa sobre a natureza do poder político e suas relações com a base social e econômica no processo de modernização contemporânea.
Não tomei conhecimento da vinda de Raymond Aron ao Brasil senão depois de 1985, ao retomar ao Brasil e começar a dar aulas na UnB e no Instituto Rio Branco (a academia diplomática do Itamaraty) de sociologia política, exatamente. Aron era, não preciso dizer, uma referência indispensável, junto com Weber, Marx e outros teóricos, na construção das aulas e nas reflexões sobre nossa transição democrática pós-regime militar. Foi nesse momento que abandonei completamente os esquemas marxistas de reflexão em favor de uma visão mais eclética, inevitavelmente influenciada por intelectuais como Raymond Aron.

VI.   Também à época de sua segunda visita, a Editora da UnB traduziu e publicou a principal obra de Aron dedicada ao tema das relações internacionais, Paz e Guerra entre as nações, além de diversos outros títulos de autores tidos como conservadores ou liberais. Em sua opinião, qual a importância deste esforço editorial tendo em vista o ambiente intelectual brasileiro da época?

PRA: O esforço empreendido no âmbito da UnB, sobretudo por um dos integrantes do Conselho Editorial da Editora da UnB, o diplomata Carlos Henrique Cardim, foi absolutamente magnífico, no sentido de trazer ao Brasil as mais importantes obras do pensamento político e de relações internacionais, até então inacessíveis ao público local, em especial os cientistas sociais brasileiros. Simplesmente não se tinha acesso a essas obras, a não ser trazidas do exterior pelos próprios acadêmicos que estudavam fora, mas os estudantes estavam praticamente excluídos desse universo. De repente, no espaço de poucos anos – primeira metade dos anos 1980 – todas essas obras ficaram disponíveis, com traduções de qualidade, feitas por diplomatas e professores. Se quisermos mensurar esse aporte em termos de PIB intelectual, pode-se dizer que a riqueza intelectual trazida por essas edições situou-se na faixa de 10 a 20% de acréscimos bibliográficos, senão mais. Mas não só as edições: a própria presença de eminentes intelectuais trazidos para debates pessoais com acadêmicos brasileiros representou um empreendimento intelectual até hoje inigualado nas proporções que essas iniciativas da UnB representaram à época e nos anos subsequentes. A série “[Fulano] na UnB” ofereceu uma apresentação sintética do pensamento de cada um dos intelectuais trazidos ao Brasil, que pode ser considerada inédita no plano mundial, uma vez que não existe depoimentos do gênero dos que foram feitos na UnB nas edições estrangeiras.

VII.  O livro ‘Paz e Guerra entre as nações’ foi adotado pelo MEC como leitura obrigatória nos cursos de graduação em relações internacionais a partir dos anos 2000. Como você avalia a influência desta obra em particular para o campo das RI? Aron pode ser considerado um autor original ou influente a partir das reflexões contidas no livro?

PRA: Os poucos geopolíticos existentes no Brasil, mas muitos outros professores de relações internacionais, são obrigados a recorrer ao pensamento de Aron, pois ele é incontornável no debate a respeito das grandes questões da guerra e da paz no plano mundial. A bibliografia necessariamente parte de Morgenthau e vai diretamente a Aron, como referência indispensável na discussão da temática geopolítica. O seu realismo “frio”, construído a partir de uma potência de primeiro plano, mas diminuída depois dos conflitos napoleônicos (clausewitzianos) e sobretudo com a ascensão da Alemanha, oferece um contraponto necessário à bipolaridade da era nuclear capitaneada pelos EUA e pela União Soviética. Nesse contexto bipolar, a França foi a nação que escolheu ter uma defesa própria, independente do campo ocidental, e com isso representa um tipo de soberanismo geopolítico talvez adequado a um país como o Brasil, também cioso de sua autonomia em relação aos blocos então existentes.

VIII.      Ainda no campo dos estudos das relações internacionais, Aron alinha-se à tradição dos pensadores realistas. Poderíamos vislumbrar afinidades eletivas entre o pensamento reinante no Itamaraty, cuja origem remete a Paulino Soares de Sousa, o Visconde de Uruguai - leitor sistemático de Tocqueville, e as posições liberais que Aron sustentou ao longo do século XX?

PRA: Aron era o que eu chamo de “realista flexível”, ou seja, consciente de que o equilíbrio entre grandes potências e potências médias, ainda que fortes (como a França), não poderia ser estudado e considerado apenas com base em premissas teóricas, mas sobretudo com base num itinerário específico no plano das experiências concretas. Essa era, também, a perspectiva de Tocqueville, que estudou os Estados Unidos em sua dimensão própria, ainda que contrapondo suas estruturas políticas e sociais às de sua França e Europa aristocráticas – ainda que transformadas, ambas, pelas grandes rupturas da revolução e da era napoleônica – e podia assim fazer uma análise original da formação política e social americana, apontando-a como o futuro da Europa igualmente (no que estava enganado). Aron tinha plena consciência do quantum de liberdade que os homens e as sociedades dispõem para determinar o seu futuro, e não alimentava nenhum determinismo fatalístico quanto a isso. Sua compreensão da doutrina marxista, e também da weberiana, o habilitava a distinguir os imponderáveis da história.
Nisso, ele foi totalmente distinto dos demais intelectuais franceses (ou de quaisquer outros países) de gabinete, pois temperava suas leituras dos clássicos e contemporâneos com uma reflexão original sobre os itinerários concretos das sociedades. Importante nessa originalidade teórico-prática foi a sua estada na Alemanha no início dos anos 1930, quando assistiu à ascensão do nazismo, constatando a deriva de algumas sociedades para o populismo, a demagogia, o autoritarismo e outras falácias e tragédias, o que o colocou à frente de todos os demais intelectuais puramente acadêmicos. Sua estada em Londres, durante a guerra, também foi importante ao dar uma dimensão eclética ao seu pensamento, absolutamente original no contexto francês. 
Não estou habilitado a avaliar, por não conhecer, essa influência de Tocqueville nas concepções do grande diplomata que foi Paulino Soares de Souza, certamente um dos maiores diplomatas do Império, junto com Miguel da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco. Todos eles foram realistas flexíveis, podendo ser considerados, nesse sentido, “aronianos avant la lettre”, como também o foi o filho do Visconde, o Barão do Rio Branco, menos doutrinário do que Rui Barbosa, por exemplo. Nenhum deles têm sucessores claros no século XX, a não ser parcialmente: Oswaldo Aranha, um realista sem qualquer elaboração doutrinal (a não ser um estrategista instintivo), San Tiago Dantas, um pensador original, infelizmente desaparecido precocemente, e talvez Roberto Campos, um realista da tecnocracia planejadora antes de se converter em um liberal pragmático; pode-se agregar o nome de José Guilherme Merquior, mas este bem mais no terreno teórico do que prático. Todos eles passaram a integrar plenamente minhas reflexões de natureza política, econômica e geopolítica, e meus escritos.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 18 de fevereiro de 2018