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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Refugiados do Afeganistão no Brasil: uma história feliz, depois de 5 meses de espera - Paula Lago (G1-SP)

 Afegão que desde maio tentava voltar para SP consegue visto para a família e chega ao Brasil: 'Muito bom estar em casa de novo'


Após meses de incerteza e medo, Masood, Lina e Sobhan estão na capital paulista e planejam como irão reestruturar a vida e reiniciar do zero.

Por Paula Lago, g1 SP — São Paulo
07/12/2021 05h53  Atualizado há 2 horas

Mesmo usando máscara, é possível perceber o sorriso do afegão Masood Haibibi, de 29 anos, enquanto conversa à vontade na sala de um apartamento no Centro de São Paulo. O comerciante que, em maio, tinha ido até o país natal planejando passar dois meses e viu a estada ser ampliada para cinco meses contra a sua vontade, finalmente, conseguiu o que queria desde o começo do ano: trazer a família para o Brasil.

O g1 acompanha a história da família desde agosto, quando o grupo extremista islâmico Talibã tomou o poder no Afeganistão, obrigando os cidadãos a ficaram trancados em suas casas.

Ele, a mulher, Lina, de 23 anos, e o filho, Sobhan, de 4 anos, desembarcaram no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo, na última sexta-feira (3) após um longo voo de 21 horas. “Estamos cansados ainda, mas muito bem. Meu filho está diferente, mais tranquilo. Lá ele só ficava em casa, aqui pode sair, passeamos pela Avenida Paulista no domingo… Ele e minha esposa adoraram, acharam tudo muito bonito. Sobhan adora brincar, está mais solto. Está muito feliz.”

Para este retorno, que teve direito a faixa de boas-vindas, flores e balões, acontecer, eles contaram com o apoio de muitas pessoas: mais de 50 mil assinaram uma petição da plataforma Change Brasil ao Itamaraty que solicitava a concessão de vistos humanitários a Lina e Sobhan. Masood já tem visto brasileiro, e os da família foram concedidos após cerca de um mês do pedido oficial.

De acordo com o Itamaraty, desde 3 de setembro, quando entrou em vigor a portaria que concede esse tipo de autorização de entrada ao país a “afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação de grave ou iminente instabilidade institucional ou de grave violação de direitos humanos ou do Direito Internacional Humanitário no Afeganistão”, foram concedidos 380 vistos humanitários.

Marcelo Ferraz, especialista em campanhas da Change Brasil, destaca o engajamento das pessoas à causa. “A gente conseguiu fazer com que a história deles se tornasse pública, e a luta deles chegasse ao conhecimento das pessoas.”

Com os passaportes prontos, Masood e família precisavam do dinheiro para as passagens, já que suas contas bancárias foram confiscadas pelo governo talibã. Uma campanha de arrecadação foi criada e reuniu, até o momento, R$ 24 mil, mas o afegão acabou aceitando que uma amiga doasse as passagens para ele e a família virem logo ao Brasil. O valor obtido com a vaquinha será destinado à compra dos bilhetes aéreos para os familiares que estão no Irã à espera de permissão para virem também. “Quando eles conseguirem o visto, vão precisar usar esse dinheiro”, explica.

Covid e talibãs
Masood sentiu na pele dois acontecimentos que terão destaque nas retrospectivas de 2021: primeiro, os pedidos de visto para a esposa e o filho virem morar em São Paulo foram negados pela Embaixada devido ao pico de Covid-19 no Brasil e, depois, em agosto, os talibãs derrubaram o governo e impuseram um novo com uso da força e da violência. O comerciante contou que tiroteios são frequentes.

Ele conta que foram cinco meses de incerteza, angústia e medo até que, em outubro, surgiu a chance de comprar passagens para o Paquistão e, de lá, batalhar pelos vistos e pelas passagens para o Brasil.

“Queria sair o mais rápido possível do Paquistão. Quando você está em um país esperando a hora de sair, quando você não vai ficar lá, é muito difícil tudo. Você tem que pagar hotel, despesas, tudo, todo dia. É muito difícil, se você não tem dinheiro”, conta Masood.

Mas ele acredita que as tensões ficarão em 2021 e que 2022 será um bom ano para a sua família. “Quero reiniciar a vida aqui, é muito difícil quando você vai para um país em que você não tem nada. Tem de começar do zero, conseguir trabalho, minha esposa precisa aprender português o mais rápido possível e precisamos arranjar uma escola para o meu filho. Mas estou feliz e vamos correr para conseguir tudo isso.”

O comerciante conta que vendia tapetes em São Paulo e também trabalhava como técnico em informática em uma empresa, mas agora não sabe se vai conseguir trabalhar com as mesmas coisas. “Vou ter de conseguir um trabalho rápido, para conseguir manter minha família. E podemos contar com amigos”, afirma.

E podem mesmo. Além da ajuda da amiga com as passagens e do apoio de quem colaborou com a vaquinha, Masood tem um “pai” brasileiro: o farmacêutico Ricardo José de Souza conta que adotou informalmente como filho o afegão logo que se conheceram.

É no apartamento dele que a família mora agora e por onde Sobhan corre pelos cômodos com um macaco de pelúcia ou se diverte com um celular. “Quando você tem conexão com um país, fica mais fácil”, afirma Massod. “Agora vamos nos reorganizar. É muito bom estar em casa de novo.”

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/12/07/afegao-que-desde-maio-tentava-voltar-para-sp-consegue-visto-para-a-familia-e-chega-ao-brasil-muito-bom-estar-em-casa-de-novo.ghtml

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Casa Stefan Zweig lança o “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil” - Euler de França Belém

 Euler de França Belém 

Casa Stefan Zweig lança o “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil”

Livro cita Ziembinski, Edoardo de Guarnieri, Georges Bernanos, Otto Maria Carpeaux, Frans Krajcberg, Ida Gomes, Berta Loran, Fayga Ostrower, Fritz Oliven, Stefan Zweig

Leitores brasileiros “escalaram” o romance “A Montanha Mágica”, do escritor alemão Thomas Mann (filho de uma brasileira), aprenderam a pensar sobre os tempos modernos com “Massa e Poder”, do filósofo e escritor búlgaro (de expressão alemã) Elias Canetti graças à perícia do tradutor alemão Herbert Moritz Caro e ficaram bem-informados sobre a literatura transnacional devido a competência e ao enciclopedismo do austríaco Otto Maria Carpeaux. O húngaro Paulo Rónai trouxe para o deleite patropi a literatura da Hungria, de outros países e, inclusive, a obra completa do escritor francês Honoré de Balzac. O alemão Anatol Rosenfeld se tornou um crítico notável e um guia cultural seguro, dada sua formação filosófica e literária rigorosa. Stefan Zweig, ao se mudar para o Brasil, notou que se tratava do “país do futuro”. Ante o temer da expansão nazista, se matou no país do fascista Plínio Salgado, em 1942, aos 60 anos. Vários judeus contribuíram para robustecer as artes e a ciência no Brasil.

Stefan Zweig e Lotte, sua mulher: ambos se mataram no Brasil | Foto: Reprodução

Há um livro valioso que conta a história dos que fugiram da serpente nazista para o Brasil, a partir de 1933, quando Adolf Hitler, um austríaco, assumiu o comando da Alemanha, e, surpreendentemente, pela via legal. Trata-se de “Exílio e Literatura — Escritores de Fala Alemã Durante a Época do Nazismo” (Edusp, 291 páginas, tradução de Karola Zimber), de Izabela Maria Furtado Kestler.

Otto Maria Carpeaux: uma ponte da cultura universal que muito beneficiou o leitor brasileiro | Foto: Reprodução

Agora surge um livro que, aparentemente, será igualmente valioso (e mais amplo): “Dicionário dos Refugiados do Nazifascismo no Brasil” (Casa Stefan Zweig, 832 páginas), edição de Israel Beloch, com o apoio de Fábio Koifman, Kristina Michaelis e mais de dez pesquisadores.

Paulo Rónai: judeu, perseguido pelo nazismo, veio para o Brasil | Foto: Reprodução

O livro conta a história de 300 pessoas que, para escapar do nazifascismo, fugiram para o Brasil e aqui se destacaram em vários setores.

Ida Gomes: atriz

A obra lista, entre outros, Fayga Ostrower, Fritz Oliven, Stefan Zweig, Nydia Lícia (atriz), Ida Gomes (Ida Szafran, atriz), Berta Loran (atriz), Edoardo de Guarnieri (músico, pai de Gianfrancesco Guarnieri — este chegou ao Brasil com 2 anos de idade e se tornou ator e diretor), Louis Jouvet, Ziembinski (Zbigniew Marian), Georges Bernanos, Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld, Herbert Caro, Frans Krajcberg, Paulo Rónai.

Herbert Caro: tradutor de Thomas Mann e Elias Canetti | Foto: Reprodução

A obra nasce como referência incontornável. Porque, se havia informação dispersa, agora há informações concentradas sobre os refugiados.

Berta Loran: atriz | Foto: Reprodução

O livro, que já está à venda nas livrarias — por 118 reais —, pode abrir as portas para outras obras sobre o tema. Porque, a rigor, muito mais de 300 judeus — e não judeus — fugiram para o Brasil para escapar do totalitarismo nazista.

domingo, 9 de junho de 2019

O Brasil dos generais e a França dos liberais - livro de Paulo Cesar Gomes

O Brasil dos generais e a França dos liberais: no meio, exilados políticos vigiados

Pesquisador lança livro em que aborda as relações entre os governos: de um lado, a ditadura que expulsava brasileiros e de outro, a democracia que acolhia os exilados, sem deixar de monitorá-los

São Paulo –  Pesquisador e criador de um site voltado à história da ditadura brasileira, Paulo Cesar Gomes dedicou quatro anos a um trabalho que resultou no livro Liberdade vigiada: as relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês – do golpe à anistia (editora Record), que terá lançamento neste sábado (8), às 16h, na livraria Tapera Taperá, localizada na Galeria Metrópole, na região central de São Paulo. Um desses quatro anos foi em Paris, e o autor lembra que não se trata de um trabalho de história oral, com entrevistas e depoimentos. “Eu trabalhei com documentos oficiais ostensivos e sigilosos tanto da diplomacia francesa quanto da brasileira, além dos acervos dos órgãos de segurança e informações ligados ao Itamaraty (Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores e Centro de Informações do Exterior). Fiz essa escolha porque quis que o cerne do meu trabalho fosse a visão oficial das relações franco-brasileiras durante a ditadura”, explica.
Seu interesse estava relacionado ao fato de que a Europa em geral e Paris em particular concentrou o maior número de brasileiros que tentavam escapar das perseguições do regime instalado em 1964. “Eu queria entender como as relações bilaterais foram influenciadas pelo golpe de Estado e pela instauração de um regime de exceção do Brasil, já que, além da presença de exilados brasileiros, a imprensa francesa, até mesmo a vertente mais conservadora, adotou posições muito duras acerca da tomada do poder pelos militares. Não podemos esquecer que a França é reconhecida como o berço da democracia liberal, além de ter construído a tradição de ser uma terra de asilo”, observa o pesquisador, que também assessorou a Comissão Nacional da Verdade.
Suas pesquisas narram, por exemplo, a atuação do general Aurélio de Lyra Tavares como embaixador do Brasil na França, de 1º de junho de 1970 a 16 de dezembro de 1974. “Foi o período em que se buscou estabelecer regras mais rígidas para o monitoramento de brasileiros opositores ao regime no exterior. Esse período foi também quando as transações comerciais de armamentos militares atingiram seu auge como, por exemplo, a compra dos caças Mirage, que custaram uma fortuna ao Brasil e foram exibidos com grande pompa no desfile de 7 de setembro de 1973”, diz o historiador. Lyra Tavares também foi ministro do Exército e integrante da Junta Militar que governou o país durante seis meses entre 1966 e 1967.
À primeira vista, pode surpreender o fato de a França ter mantido sob observação os brasileiros exilados, por sua tradição liberal. Mas, embora os acolhesse, o país – também interessado em desenvolver relações comerciais – sempre esteve atento às suas atividades políticas, lembra Gomes. Mesmo seus líderes à época, o presidente Charles de Gaulle e o primeiro-ministro, Georges Pompidou, nunca manifestaram-se criticamente em relação à ditadura na nação sul-americana. O mesmo não aconteceu em relação à imprensa francesa, mesmo a conservadora, como aponta o pesquisador.
 Quando se pensa em 1964, lembramos imediatamente dos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria. Por que a França? Qual foi seu interesse?
As relações dos Estados Unidos e da França com o Brasil são muito distintas. O Brasil está na zona de influência estadunidense e, como outros pesquisadores já demonstraram, os Estados Unidos tiveram uma atuação direta no golpe de 1964 e, não sem razão, foram os primeiros a reconhecer o regime que se instaurou após o rompimento constitucional. Assim, o governo dos EUA estava muito bem informado do que ocorria no Brasil. Há inúmeros documentos que comprovam essa configuração histórica. Inicialmente, meu interesse em analisar as relações franco-brasileiras após o golpe estava ligado ao fato de que Paris foi a capital europeia que recebeu o maior número de brasileiros que buscavam escapar das perseguições políticas que vinham sofrendo no Brasil. Eu queria entender como as relações bilaterais foram influenciadas pelo golpe de Estado e pela instauração de um regime de exceção do Brasil, já que, além da presença de exilados brasileiros, a imprensa francesa, até mesmo a vertente mais conservadora, adotou posições muito duras acerca da tomada do poder pelos militares. Não podemos esquecer que a França é reconhecida como o berço da democracia liberal, além de ter construído a tradição de ser uma terra de asilo.
Após a Lei de Acesso à Informação (LAI), promulgada no final de 2011, assim que os documentos sigilosos do Itamaraty, bem como os acervos dos órgãos de informações ligados a esse ministério, foram liberados para o público, fui consultá-los. Na medida em que eu ficava mais familiarizado com o modus operandi do Itamaraty desde os momentos posteriores ao golpe, percebi que as questões eram mais complexas do que eu havia pensado inicialmente. Por esse motivo, resolvi ampliar o objetivo do meu trabalho e comecei a desenvolver uma pesquisa mais aprofundada sobre as relações franco-brasileiras. Decerto, o Brasil não tinha a mesma importância para a França como tinha para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, nosso país não era desprezível no contexto mundial. Havia interesse da França não apenas de reforçar sua influência cultural, que desde a 2ª Guerra vinha decrescendo, mas também havia a intenção de fortalecer as relações comerciais com o Brasil. É preciso lembrar que, ao longo do século 20, a França se especializou na venda de armamentos militares e esse comércio representa, até hoje, uma parcela muito significativa do PIB francês. Nesse sentido, é muito interessante analisar a tensão que começou a se criar entre as denúncias feitas por exilados brasileiros, por religiosos, pela imprensa e por setores da sociedade franceses, até mesmo alguns parlamentares, e a posição oficial do governo francês diante da ditadura. Ao longo de todo o período que analisei, o governo francês fez prevalecer seus interesses comerciais e financeiros e nunca emitiu qualquer crítica oficial ao Brasil. Quando ocorria de haver algum questionamento direto sobre esse posicionamento, a resposta padrão era a de que a França adotava o princípio de não intervir em questões internas de outros países.
De Gaulle reconheceu imediatamente o novo regime brasileiro? E quanto ao primeiro-ministro Pompidou?
Ao contrário dos Estados Unidos, logo após o golpe, os meios governamentais franceses não entenderam muito bem o que estava acontecendo em nosso país. No entanto, assim que Castello Branco foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, a França reconheceu o novo regime. O governo de Jango era visto pelos meios diplomáticos franceses como muito bagunçado e instável. Posso citar, por exemplo, dois conflitos importantes que aconteceram entre os dois países nesse período: o contencioso franco-brasileiro e a chamada “guerra da lagosta”. Assim, ao menos no âmbito das correspondências sigilosas, a queda de Goulart foi muito bem avaliada pelo governo francês, pois, aparentemente, os militares trariam mais ordem ao país.
De Gaulle tinha uma visita oficial agendada para o Brasil em razão de um convite feito ainda durante o governo de Goulart. De início, chegou-se a comentar a possibilidade de excluir o Brasil da viagem, que incluía diversos outros países da América Latina. No entanto, quando o governo brasileiro soube, extraoficialmente, dessa possibilidade, tratou de reforçar o convite, que foi prontamente aceito. A visita ocorreu em outubro de 1964. O presidente francês foi recebido com euforia por todos os lugares por onde passou. Há diversos registros iconográficos dessa viagem. O evento acabou simbolizando internacionalmente o reconhecimento do regime militar por uma grande potência mundial, o que foi excelente para a imagem externa do Brasil. Assim, nem o general De Gaulle, nem Pompidou emitiram publicamente qualquer crítica ao novo governo brasileiro. A mesma postura se manteve até o início da década de 1980, com a chegada de (François) Mitterrand ao poder. De todo modo, nem mesmo nesse período chegou a haver uma mudança radical de posicionamento da França com relação ao Brasil.
 Essa colaboração não chega a ser surpreendente, quando imaginamos que a Europa, particularmente a França, ainda que tivesse um governo conservador, era um destino comum dos exilados brasileiros? 
Em um primeiro momento, esse monitoramento dos exilados brasileiros tanto pela ditadura como pelo governo francês pode parecer surpreendente. No entanto, quando se observa o contexto da época com mais atenção, percebemos que a França, embora acolhesse esses indivíduos, sempre esteve atenta às suas atividades políticas. Um dos requisitos para conseguir a carta de residência, por exemplo, era não se envolver em atividades políticas. De todo modo, é possível observar que os militantes que tiveram algum tipo de envolvimento com a luta armada eram observados com muito mais atenção. Assim, o tratamento dado aos primeiros exilados, que eram aqueles que tinham alguma ligação com o governo de Jango, tais como Samuel Wainer, Josué de Castro, Celso Furtado e até mesmo Juscelino Kubitschek, que já tinham projeção internacional, foi muito diferente daqueles que chegaram após 1968, sobretudo depois do golpe do Chile. Seja como for, embora tenha sido possível comprovar articulações pontuais entre os órgãos oficiais brasileiros e franceses, não consegui comprovar que essa colaboração tenha sido sistemática ao longo da ditadura.
 E havia também uma forte mobilização, na Europa, para denunciar os crimes da ditadura. Essas atividades eram monitoradas?
Sim. Essas atividades foram as que provocaram mais preocupação por parte da ditadura. A quantidade de documentos produzidos sobre todas as denúncias contra o Brasil feitas na Europa é assustadora. A imprensa europeia era minuciosamente analisada e tudo que fazia menção, sobretudo negativa, ao Brasil era incluído pela mala diplomática para ser enviado ao SNI. Além disso, as atividades políticas dos exilados eram detidamente vigiadas. Não podemos esquecer do papel fundamental que dom Helder Câmara exerceu nesse contexto. O bispo, que chegou a ter sua candidatura ao Nobel boicotada por pressões do governo brasileiro, buscou direcionar sua trajetória para denunciar no exterior não apenas as violações aos direitos humanos, mas também a extrema desigualdade social do país, característica brasileira muito marcante até os dias atuais.
Havia posições distintas, então, entre a imprensa e o governo francês?
Claramente. A imprensa francesa, até mesmo a mais conservadora, buscou denunciar desde os momentos posteriores ao golpe todos os abusos que eram cometidos pelas autoridades brasileiras. Foram raras as exceções de veículos, em geral pouco relevantes, que tinham uma posição anticomunista e, portanto, de apoio à ditadura. Por esse motivo, em diversas ocasiões, os diplomatas brasileiros, por ordem do SNI, buscaram interceder junto aos editores dos principais jornais franceses para tentar conter o tom das críticas ao Brasil. Nos arquivos do Itamaraty, há diversos exemplos dessa tentativa de censura por parte do governo brasileiro. Houve inclusive alguns embates entre o editor do Le Monde, por exemplo, e funcionários diplomáticos.
Como se dava a participação do Itamaraty? Havia um esquema de vigilância, de arapongas?
Durante algum tempo, chegou-se a pensar que a DSI-MRE e o Ciex eram órgãos autônomos, uma espécie de corpos estranhos apenas alocados no Itamaraty. No entanto, quando analisamos de maneira detalhada e comparativa a documentação produzida por esses órgãos, observamos que todas essas estruturas estavam interligadas. Os órgãos subordinados ao SNI utilizavam as informações produzidas cotidianamente pelo serviço diplomático para alimentar o sistema de espionagem da ditadura. Havia mesmo diretrizes sobre os temas que deveriam ser encaminhados diretamente ao SNI. Apenas recentemente se começou a entender a complexidade e a amplitude do sistema de informações estruturado pela ditadura. Havia a intenção de criar não apenas um instrumento de monitoramento dos chamados subversivos, mas pretendia-se implantar um mecanismo de controle social de maneira mais ampla. Interessava ao SNI não apenas as questões estritamente políticas, mas também tudo que tocasse temas relativos à moral e aos bons costumes.
 No Brasil ainda há grande dificuldade em acessar determinadas informações relacionadas ao período autoritário. E na França?
Eu discordo em parte de que, no Brasil, haja dificuldades de acessar documentos relativos à ditadura. Desde 2011, com o surgimento da LAI, que foi criada no mesmo dia da Comissão Nacional da Verdade, o acesso aos documentos sigilosos da ditadura ficou muito mais fácil. No entanto, é preciso reforçar que os documentos produzidos pelos órgãos de segurança e informações ligados aos ministérios militares, incluindo aqueles produzidos pelos adidos militares no exterior, nunca foram liberados para a consulta pública. Embora a CNV tenha tido muitos problemas e limitações, o órgão foi muito importante para a disponibilização de documentos da ditadura para um público mais amplo, inclusive com um investimento considerável em digitalização. Na França, um dos berços da arquivística, essas questões são muito mais claras. Há um código do patrimônio que estabelece regras muito rígidas para o acesso a documentos sigilosos, incluindo os casos em que é possível haver exceções. Na França, eu tive acesso a todos os documentos que solicitei para consultar. No entanto, ainda há muitos registros que se encontram dentro do prazo de manutenção do sigilo. Por isso, nos próximos anos, é possível que muito mais detalhes do que consegui pesquisar sejam acessados com a liberação paulatina dos acervos concernentes ao Brasil.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Raízes: exposição Ai Weiwei - Oca, parque Ibirapuera, SP

Ai Weiwei: exposição Raiz
A exposição reúne 70 obras que ocupam 8 mil metros quadrados. Com curadoria de Marcello Dantas, trabalhos emblemáticos de Weiwei são expostos ao lado de obras inéditas, resultado de uma imersão do artista na cultura brasileira. Oca. Pq. Ibirapuera. Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portões 1, 2 e 3, 5082-1777. 11h/20h (dom. e fer., 11h/19h; fecha 2ª), com visitas de hora em hora. R$ 20 (vendas pelo site: eventim.com.br/exporaiz). Até 20/1.

Algumas fotos do conjunto da magnífica exposição, dedicada a vários aspectos da carreira pessoal e artística do grande artista chinês, atualmente residindo em Berlim; as fotos foram escolhidas dentre as que tratam da questão dos refugiados e das migrações forçadas:











terça-feira, 20 de março de 2018

Venezuela: os refugiados da fome - Peter Prengaman (The Washington Post)

The Washington Post, March 20, 2018
Northern Brazil overwhelmed by desperate, hungry Venezuelans
Peter Prengaman 
 
Hungry and destitute, tens of thousands of victims of Venezuela’s unrelenting political and economic crisis are trying their luck in Brazil — a country where they do not speak the language, conditions are often poor and there are few border towns to receive them.
 
Many arrive weak from hunger and with no money for a hotel, food or the $9 bus ride to Boa Vista, the capital of the Brazilian state of Roraima, known in Venezuelan circles as a place that offers three meals a day. In dozens of interviews over four days, many said they had not had more than one meal a day for the last year.
 
Some wore baggy clothes, had emaciated faces and complained of medical issues ranging from children with measles to diabetics with no insulin.
 
Kritce Montero tried to shush 6-month-old Hector, who cried from hunger even after breast-feeding while his family and several hundred other Venezuelans waited to be processed at the border.
 
Montero, who said she lost 57 pounds (26 kilograms) the last year from eating just one meal a day, traveled with Hector and her 7-year-old daughter 18 hours by bus from Maturin, a city in northeast Venezuela. After spending the night sleeping on the ground in Pacaraima, a dusty border town in the Amazon, they took another bus 130 miles (210 kilometers) to Boa Vista.
 
“We are desperate. We could no longer buy food,” said 33-year-old Montero, adding it had been months since Hector had any formula or diapers.
 
While in recent years millions of Venezuelans have immigrated, until recently Brazil received relatively few of them. Hundreds of thousands have gone to Colombia, but authorities there and elsewhere in South America are tightening their borders.
 
Portuguese-speaking Brazil has become the latest alternative for Venezuelans. But they are not finding much comfort there.
 
On a recent day, Militza DonQuis, 38, sat under a tree on the side of the main road in Pacaraima. In the two months since she and her husband arrived from Puerto Cabello, they have not been able to find work. With no money, they can’t take the bus to Boa Vista, so they sleep on the ground and scrounge for food during the day.
 
“This is horrible,” said DonQuis through tears, adding that in two months she had been unable to send money home to her children, ages 12 and 14, who she left with a sister.
 
With no money for a bus, Jose Guillen, 48, and wife July Bascelta, 44, decided to begin the journey to Boa Vista at night on foot, setting off with 9-year-old twins Angel and Ashley along a road surrounded by forest.
 
“God will provide,” said Guillen when asked how the family would eat during a trip that can take five days.
 
After walking 4 miles (6 kilometers), a Brazilian driver stopped agreed to give them a lift to Boa Vista, where the situation is arguably more desperate. Thousands of Venezuelans are living in the streets. They sleep in tents and on benches in central squares, have taken over abandoned buildings and cram dozens of people into small apartments.
 
The largest of three shelters in the city, Tancredo, has 700 people despite being equipped for 200. Half-naked children roam the former gymnasium while groups of men and women chat about their hopes for finding work and worry about the families they left in Venezuela.
 
Charlie Ivan Delgado, 30, said he came to Brazil several months ago with hopes of earning enough money so he and his high school sweetheart could finally afford a wedding. But each time he called home to El Tigre, he would hear the situation was getting worse, that their three children, ages 9, 5 and 1, were always hungry. So he decided to abandon wedding plans and bring his family.
 
“Kids in Venezuela today don’t think about playing with their friends or what they might study” in the university, said Delgado, sitting with his children and partner in a tent. “It’s more, ‘What am I going to eat today?”
 
While the shelter offers three meals a day, the family’s prospects are bleak.
 
The soccer referee has only been able to officiate a handful of games in rural areas outside Boa Vista, the kids are not in school and it’s hard to imagine how the family might leave the shelter.
 
“It’s like Tarzan being in New York,” said Delgado.
 
Brazilian authorities estimate 40,000 Venezuelans are living in Boa Vista, accounting for over 12 percent of the population in a city that was already poor and unable to offer many opportunities to its residents.
 
Most have arrived in the last several months, putting intense pressure on the public health system, the jails and volunteer organizations and churches that are carrying the largest burden when it comes to keeping Venezuelans fed.
 
Police say Venezuelans are sometimes working for as little as $7 a day in everything from construction to yard work, putting downward pressure on wages. For many, even offering to work for less isn’t enough: Several interviewed said many employers have told them flat out they won’t hire Venezuelans.
 
Milene da Souza, one of a group of volunteers who periodically serve food, said many Brazilians were increasingly angry at the situation.
 
“Brazil has many of its own problems,” she said. “Roraima has its own problems.”
 
Last month, fears of a backlash intensified when an arsonist set fire to two Boa Vista houses filled with Venezuelan immigrants, injuring dozens, several severely. A man originally from neighboring Guiana has been arrested, and police have said he was motivated by anger at Venezuelans in the city.
 
On the Plaza Simon Bolivar, named after the South American independence leader who was the inspiration for late Venezuelan President Hugo Chavez’ ”socialist revolution,” throngs are camping in tents or simply sleeping on the grass. When trucks pull up with food, hundreds run toward them, elbowing each other in a mad scramble to get a meal before they run out. Tempers flare as men accuse women and children of using their advantage to get extra portions.
 
Roraima’s governor has declared a state of emergency to free up funds for overwhelmed public hospitals, where health officials estimate that 8 in 10 patients are Venezuelan. Last month, President Michel Temer canceled activities during Carnival to make an emergency trip to Boa Vista.
 
But residents say the federal government’s plans, which include building a field hospital in Pacaraima and relocating a few thousand immigrants to bigger cities, are not enough. Between Jan. 1 and March 7 of this year, 27,755 Venezuelans crossed into Brazil from Pacaraima. Authorities estimate at least 80,000 are currently in Brazil, most of them in Roraima state.
 
Brazil, Latin America’s largest nation, has one of the region’s most inclusive immigration policies. Venezuelans are allowed to enter with just a national identification card, a lifeline for many who say that getting a passport in Venezuela has become impossible. Many immigrants who don’t have identification cards but can show a birth certificate are allowed in if they request and are granted refugee status.
 
Being designated “refugees” can be problematic because such immigrants can’t return to Venezuela; President Nicolas Maduro has called them “traitors” of the state.
 
Many say that as long as Maduro is in power they have no reason to return.
 
Despite skyrocketing inflation and a collapse of many businesses, Maduro has refused to allow humanitarian aid to enter Venezuela. He denies there is a crisis and says international relief would lead to foreign intervention.
 
“Maduro’s solution is that we just eat each other,” said Diana Merida sarcastically while washing her clothes in a Boa Vista river. The 34-year-old from Maturin said she recently sent $3 home to her 16-year-old daughter and 11-year-old son, which would allow them to buy some rice.
 
While it took her three days of selling coffee to earn that, it was more than she could earn in a month as a saleswoman in a clothes store back home.
 
On the Plaza Simon Bolivar, Kritce Montero sits with baby Hector, who now has on a diaper and has spent the last two days gobbling up formula, all donated by volunteers.
 
It’s been two days since the family crossed the border in Pacaraima. The first night they slept under a tree in the plaza, but then the second night somebody offered them a tent because of the baby.
 
“At least here, I’m able to feed my kids,” said Montero. “Even if I’m living under a bridge, I would feel OK if my kids have food.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Venezuela: aumenta o numero de refugiados economicos na Colombia

E o Brasil estaria preparado para administrar eventuais levas de refugiados econômicos venezuelanos -- e possivelmente de uma não descartada guerra civil -- em sua fronteira norte, em Roraima?


Colômbia cogita criar campos de refugiados para venezuelanos

Governo se inspira na Turquia; até 30 mil já cruzariam fronteira por dia
POR JANAÍNA FIGUEIREDO, CORRESPONDENTE

O Globo, 29/08/2017


BUENOS AIRES — Entre Colômbia e Venezuela existem sete postos de fronteira oficiais e cerca de 512 passagens informais, cada vez mais utilizadas por venezuelanos que decidem abandonar seu país em busca de melhor qualidade de vida e fuga da repressão em terras colombianas. Nas últimas semanas, desde que o governo do presidente Nicolás Maduro instalou sua polêmica e questionada Assembleia Nacional Constituinte (ANC), a emigração para a Colômbia intensificou-se de forma expressiva e atualmente, segundo ONGs e dirigentes políticos colombianos, chega a até 30 mil pessoas por dia.
BUENOS AIRES — Entre Colômbia e Venezuela existem sete postos de fronteira oficiais e cerca de 512 passagens informais, cada vez mais utilizadas por venezuelanos que decidem abandonar seu país em busca de melhor qualidade de vida e fuga da repressão em terras colombianas. Nas últimas semanas, desde que o governo do presidente Nicolás Maduro instalou sua polêmica e questionada Assembleia Nacional Constituinte (ANC), a emigração para a Colômbia intensificou-se de forma expressiva e atualmente, segundo ONGs e dirigentes políticos colombianos, chega a até 30 mil pessoas por dia.
Em muitos casos, famílias inteiras entram na Colômbia com pouquíssimos recursos e acabam dormindo nas ruas e praças. A situação é delicada e o governo de Juan Manuel Santos já cogita, publicamente, criar campos de refugiados, inspirados na experiência da Turquia com os sírios. Um dos que mencionaram esta possibilidade foi o conselheiro de Segurança da Presidência, Juan Carlos Restrepo, que esteve este ano na Turquia visitando os locais. Em entrevista ao site “El Colombiano”, Restrepo afirmou que seu governo está “preparados para abordar essa opção, como última alternativa”.
O cenário ainda não é visto como tão dramático por Jozef Merkx, representante na Colômbia do Alto Comissionado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Ao GLOBO, Merkx assegurou que “não é momento de falar em campos de refugiados”.
— Não vemos essa necessidade. Monitoramos as fronteiras e não observamos uma avalanche de venezuelanos. Em muitos casos, as pessoas compram coisas na Colômbia e voltam ao seu país. Acreditamos que existem outras maneiras de ajudar, e o governo Santos está lidando muito bem com a situação.
Mas nem todos são tão cautelosos como Merkx. De acordo com a Associação de Venezuelanos na Colômbia, atualmente cerca de 1,5 milhão de cidadãos venezuelanos vivem no país. A grande maioria, disse o presidente da associação, Daniel Pages, chegou nos últimos anos. Os compatriotas que a cada dia atravessam a fronteira poderiam superar 30 mil, segundo ele.
— Antes, emigrávamos para melhorar a qualidade de vida. Hoje, emigramos para comer e sentir-nos seguros. Falar num campo de refugiados é uma necessidade, porque os venezuelanos estão espalhados por todos os lados — diz, relatando que há famílias de quatro pessoas que migram com US$ 30 no bolso: — As pessoas estão morando nas ruas, praças e rodoviárias. É muito triste e só vai piorar.

A mesma posição foi defendida pelo senador Jorge Hernando Pedraza Gutiérrez, do Partido Conservador:
— Temos de conscientizar a comunidade internacional sobre este drama, porque a Colômbia não tem recursos para financiar os programas que serão necessários, em matéria de saúde, educação e moradia.
O governo Santos já autorizou os venezuelanos detentores da Permissão Especial de Permanência (PEP, de 90 dias, prorrogáveis por até dois anos) a terem acesso ao sistema nacional de Saúde. Mas, de acordo com Pedraza Gutiérrez, são necessários planos mais abrangentes que considerem mercado de trabalho e segurança.
ESPERANÇA TROCA DE LADO
Muitos venezuelanos que emigram à Colômbia são filhos e netos de colombianos. Calcula-se que, entre as décadas de 1970 e 1980, em torno de cinco milhões de colombianos tenham migrado à Venezuela, na época um país mais estável economicamente, favorecido pelos altos preços do petróleo. Já a Colômbia enfrentava uma guerra interna sangrenta e gravíssimos problemas de segurança. Hoje, os papéis se inverteram, e a esperança de um futuro melhor está do lado colombiano.
Embora os campos de refugiados sejam “a última opção” do governo Santos, já estão sobre a mesa. A tensão bilateral é cada vez maior e, nos últimos dias, elevou-se pela denúncia da Colômbia sobre a presença de agentes da Guarda Nacional Bolivariana (GNB) em seu território, durante recentes exercícios militares venezuelanos.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A nova lei dos imigrantes - Wagner Rocha d'Angelis

Em conexão com esta próxima palestra-debate no IPRI, dia 19 de maio, às 15:00 hs:

tenho o prazer de transcrever o artigo do eminente advogado Wagner Rocha d'Angelis sobre assunto dos estrangeiros no Brasil.
Paulo Roberto de Almeida

A NOVA LEI MIGRATÓRIA E A GARANTIA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS AOS IMIGRANTES
 
Wagner Rocha D’Angelis  (*)
 
Um dos entulhos legislativos do regime militar brasileiro está indo para a lata de lixo da história. No dia 18 de abril de 2017 o plenário do Senado aprovou o projeto que revoga o Estatuto do Estrangeiro [Lei n° 6.815/1980] e instaura a nova Lei deMigração [Projeto de Lei 2.516/2015, originário do PLS n° 688/2013]. O texto em si, ainda passível de vetos quando da devida sanção presidencial, já é uma vitória democrática, considerando-se que o Brasil é um país que muito deve aos imigrantes que aqui se fixaram ao longo do tempo.  
 
Esclareça-se que a Lei n° 6815/1980, também conhecida como Estatuto do Estrangeiro, encontra-se defasada da realidade jurídica nacional, contrariando os tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário, bem como os princípios democráticos e garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988. 
 
Muito embora o novo diploma ainda possa deixar a desejar para alguns movimentos sociais, a primeira mudança positiva já começa no título da lei. Vale lembrar que palavra estrangeiro, em sua origem, significa estranho, a inspirar repulsa e hostilidade. E este é o tratamento dado aos imigrantes pelo vetusto e anacrônico Estatuto do Estrangeiro, de 1980, com base na doutrina da segurança nacional, perante a qual todo imigrante representa uma ameaça à ordem interna.
 
A nova Lei de Migração, em contrapartida, trata o imigrante como um sujeito de direitos, e não como um forasteiro indesejável. Além disso, a legislação migratória finalmente adequa-se à Constituição Federal, que determina tratamento igualitário a brasileiros e às pessoas vindas de fora. Assim sendo, a lei novidadeira institui o repúdio à xenofobia, ao racismo e a outras formas de discriminação, além de garantir o acesso às políticas públicas. No mesmo diapasão, a legislação alçada à sansão presidencial restou compatibilizada com Estatuto de Roma, de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional. 
 
Outro ponto que deve ser destacado é que a nova lei se pauta pelo princípio da não criminalização da migração, o que, na prática, significa garantir a esses estrangeiros o acesso a serviços de educação, saúde, assistência jurídica e seguridade social. Por acréscimo, o texto legal dispõe que o estrangeiro não deva ser deportado ou repatriado se houver razões no país de origem que coloquem sua vida e integridade pessoal em risco.
 
Outrossim, o imigrante terá direito irrestrito à reunião, desde que para fins pacíficos, e à associação, inclusive sindical. Cotejando-se os dois textos, o antigo e o novo, nesta matéria, aponte-se que Lei n° 6.815/1980, ainda vigente, proíbe qualquer tipo de exercício de atividade política e garante o direito de associação somente para fins culturais, religiosos e desportivos. Ademais, a nova lei desburocratiza os procedimentos de regularização migratória. Medida esta que se constitui em inegável avanço, uma vez que é necessário oferecer condições concretas para que os imigrantes obtenham a documentação necessária, e não apenas dificultar a sua obtenção. 
 
Vale consignar, igualmente, que a regularização dos imigrantes se arroga como um dos modos de se combater a exploração de mão de obra barata, e inerentes condições de trabalho degradantes, a que são submetidos boa parte dos mais de 700 mil imigrantes que atualmente vivem no Brasil. 
 
Outro avanço de grande efeito interno diz respeito à previsão de anistia na forma de concessão de residência permanente a imigrantes que tenham entrado no território brasileiro anteriormente a 6 de julho de 2016, independentemente de sua situação migratória, desde que assim requeiram até um ano após o início de vigência da lei. Outra atualização de cunho altamente democrática diz respeito à permissão de se transformar os vistos de visita e cortesia em visto de residência, mediante requerimento e registro, desde que satisfeitos os requisitos previstos em regulamento, algo que até então era vedado na lei que deixará de viger. 
 
A nova lei, também, garante a acolhida humanitária, que passa a ser um princípio da política migratória brasileira. Registre-se que até o momento esse tipo de entrada se dá através da concessão do visto humanitário por meio de resolução normativa, de caráter excepcional, como procederam o Ministério da Justiça e o Ministério de Relações Exteriores, em 2012, para receber haitianos que entravam no Brasil fugindo das consequências do terremoto de 2010, e que, portanto, não se encaixavam no rol de situações que garantem o direito de refúgio. Em 2013, o visto humanitário foi estendido aos imigrantes sírios, possibilitando-lhes entrar no país com pedido de refúgio, também excepcionalmente.
 
Entretanto, o direito ao voto ainda não está garantido aos imigrantes, pois para isso é necessário modificar não apenas a legislação migratória atual, mas a própria Constituição Federal, que restringe o sufrágio a brasileiros natos e naturalizados e aos portugueses com, no mínimo, três anos de residência ininterrupta no Brasil.
 
Situação polêmica no seio da sociedade brasileira diz respeito ao fato de que em meio à tendência mundial de combate ao terrorismo e ao narcotráfico, que tem levado inúmeros países a aprovar medidas restritivas e protetivas em suas fronteiras, no Brasil acaba-se de aprovar uma lei que avança na garantia de Direitos Humanos aos imigrantes. Neste ponto, cabe observar que uma legislação migratória restritiva não impede as pessoas de cruzarem as fronteiras e não determina quantas pessoas deixarão de entrar no território, mas quais poderão ser detectadas em situação irregular.
 
De qualquer forma, não descuidou a nova Lei de Migração de aspectos de preservação da soberania nacional, mas agora idealizada em correlação com outros vetores igualmente importantes, como o respeito aos direitos fundamentais dos estrangeiros que adentram o território nacional. Neste particular, anota-se que a lei tipifica como crime a ação de traficantes que promovem a entrada ilegal de estrangeiros em território nacional ou de brasileiros em país estrangeiro, fixando como punição ao tráfico de pessoas a reclusão de dois a cinco anos, além de multa, passível de sofrer agravamento se ocorrer violência. E, ainda, estabelece que a residência poderá ser negada se a pessoa interessada tiver sido expulsa do Brasil anteriormente, se tiver praticado ato de terrorismo ou estiver respondendo a crime passível de extradição, entre outros.
 
No mais, a nova lei traz como desafio a questão de que vários de seus artigos precisarão ser regulamentados para se tornarem eficazes, cujo prazo será de 180 dias a partir da sua publicação. Isso significa que a partir do momento em que a nova Lei de Migração entrar em vigência, ainda demandará outros esforços para que as regulamentações sejam realizadas, o que exigirá novas atitudes proativas em favor do avanço humanitário ditado pela nova legislação e em prol do combate à xenofobia.  
 
Oxalá o novo texto legal sirva de estímulo e exemplo à imperiosa necessidade da qual o mundo parece estar carente: o máximo respeito à dignidade humana e ampla eficácia dos direitos humanos e sociais contemplados em inúmeras normas internacionais. 
 
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(*) WAGNER ROCHA D’ANGELIS – Advogado, historiógrafo e professor universitário. Mestre e Doutor em Direito. Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL).
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Curitiba, 12 de maio de 2017.