O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador resenhas de livros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador resenhas de livros. Mostrar todas as postagens

domingo, 29 de maio de 2022

Antonio Augusto Cançado Trindade: algumas resenhas e minha homenagem ao grande jurista

 Minha homenagem aos colegas, aos intelectuais em geral, consiste, geralmente, numa atenta leitura de suas obras e no oferecimento, sem qualquer pedido externo ou intenção de publicação, de uma ou mais resenhas sobre suas obras. Foi o que fiz em relação às obras do grande amigo, consultor jurídico e eminente juiz de cortes internacionais Antonio Augusto Cançado Trindade. Alguns exemplos aqui abaixo, mas devem ter mais, perdidos em meus arquivos.

Paulo Roberto de Almeida

A Prática do Direito Internacional no Brasil:

uma visão histórica da diplomacia brasileira

 

Antonio Augusto Cançado Trindade:

Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público

(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988)

 

Seqüência dos Volumes (ano de publicação):

1. Índice Geral Analítico (1987)

2. Período 1889-1898 (1988)

3. Período 1899-1918 (1986)

4. Período 1919-1940 (1984)

5. Período 1941-1960 (1984)

6. Período 1961-1981 (1984)

 

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito Internacional Público. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (ambas, aliás, suscitadas por um problema cruelmente atual, o da dívida externa dos países latino-americanos), ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. 

O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema inter-estatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de alguns bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano — dentre os quais destacaríamos o do brasileiro Hildebrando Accioly e o do chileno Fernando Gamboa Serazzi — e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, os especialistas e observadores da já referida tradição ressentiam-se da falta de codificação similar para a prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, vem sendo preenchida pelo extraordinário trabalho solitário do eminente internacionalista Antonio Augusto Cançado Trindade, professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.

A obra que ora se apresenta sob os auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, integra uma série de volumes dedicados ao tema da prática diplomática brasileira, cobrindo diversos períodos, desde o início da República até os dias atuais. Autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, dois outros volumes editados pela Universidade de Brasília — Princípios do Direito Internacional Contemporâneo (1981) e O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Interrnacional (1984, cuja versão original foi agraciada com o Premio Yorke, da Universidade de Cambridge) — o Professor Cançado Trindade realizou, com os vários livros editados até aqui, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do Direito Internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina e do Terceiro Mundo.

Com efeito, apesar da existencia de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos Governos do continente, não havia, até o presente momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional (de que a Convenção sobre o Direito do Mar é um marcante exemp1o) .

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasi1eira do Direito Irternacional Público, este “ciclópico trabalho” — segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo —, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

 

l) Fundamentos do Direito Internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos Internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos Espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações Internacionais; 

6) Condição dos Indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução Pacífica de Controvérsias e Desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos Armados e Neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da Nação-Mais-Favorecida e, em acordo com os novos tempos, Multinacionais e Segurança Econômica Coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do Direito Internacional Público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história de nossa política externa que está sendo contada nessas páginas retiradas de memoranda, telegramas de instruções, discursos em conferências e trechos de relatórios do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente esses 92 anos de prática brasileira do Direito Internacional Público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) de nosso itinerário republicano. 

Fica aliás a sugestão, para um ulterior volume de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática agora repertoriada, de proceder-se a uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Esses materiais também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que agora esta chegando a seu termo. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível — tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para o scholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais — deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911 não foi publicado o Relatório do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do Direito Internacional Público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais de nosso relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando na verdade essa reunião inaugural do sistema panamericano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda brinda-nos, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. 

Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: “Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981), “A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960), “A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940), “Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e “A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma outra resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os quatro volumes substantivos cobrindo o longo período de 1899 a 1981 são precedidos de um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Mas, tendo sido publicado em 1986, o Índice deixou no entanto de fora o período coberto pelo primeiro volume da série, referente aos anos 1889-1898, uma vez que este veio a luz ulteriormente, em 1988. Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão ao Ministério das Relações Exteriores para que inscreva no programa de trabalho da Fundação Alexandre de Gusmão a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Nestes tempos de Internet, parece evidente, também, que esse importante conjunto de documentos passe a figurar na home page do Ministério, como o faz, por exemplo, o State Departement em relação ao “US Foreign Relations Series” ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica (formato Gopher, suscetível de uma rápida transferência via FTP).

A prática diplomática brasileira, inclusive a que foi escrita pelo próprio Cançado Trindade na Consultoria Jurídica do Itamaraty, merece, sem dúvida alguma, ser melhor conhecida no âmbito internacional. Sejamos, literalmente, internacionalistas assumidos!

 

[Brasília: 04.04.96]

[Relação de Trabalhos n° 520]

[1a. versão, Brasília: 29.12.86; Relação de Trabalhos n° s 142 e 144;

publicada, em versão integral, na revista Humanidades

 (Brasília, Ano IV, nº 12, fevereiro-abril 1987, pp. 119-120),

e, em versão resumida no suplemento literário Cultura,

do jornalO Estado de São Paulo

(São Paulo, ano VII, n° 376, 11.07.87, p. 11)]

[Relação de Publicados nº s 035 e 041]

 

 

520. “A Prática do Direito Internacional no Brasil: uma visão histórico-sistemática das bases jurídicas da política externa brasileira no período republicano”, Brasília, 4 abril 1996, 8 p. Resenha revista e ampliada de Antonio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, 1889-1981(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988), com referência a diversas outras obras do autor. Incorporado ao volume Política externa e relações internacionais do Brasil: uma seleção de leituras (Brasília: edição do autor, abril de 1996, 241 p.), consistindo de estudos e resenhas publicados ou inéditos.

 

===============

 

Antônio Augusto Cançado Trindade: 

Os tribunais internacionais contemporâneos

(Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-424-0; Coleção Em Poucas Palavras); publicado no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, Prata da Casa: (Ano 20, n. 83, outubro-novembro-dezembro 2013, p. 35-36; ISSN: 0104–8503). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/12/prata-da-casa-mais-mini-resenhas-de.html)

 

            O autor, eminente jurista mineiro, já foi consultor jurídico do Itamaraty (na redemocratização), presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, e é, atualmente, um dos juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. Autor de uma obra impressionante no campo do Direito Internacional, em várias línguas, em pouco mais de cem páginas ele realiza a proeza de sintetizar os fundamentos e o funcionamento dos diversos tribunais existentes no plano multilateral, nem todos de jurisdição obrigatória, mas possuindo, cada vez mais competência para realizar uma defesa efetiva dos direitos humanos, lutar contra a impunidade e aproximar a comunidade humana do ideal de justiça internacional. Esses órgãos reafirmam a unidade fundamental do direito internacional e o primado do direito sobre a força bruta. Uma síntese admirável, pelo melhor autor possível.

 

“Visita do Professor Cançado Trindade, juiz da CIJ, à Funag-IPRI”, Brasília, 8 setembro 2016, 2 p. Registro da visita de cortesia do Juiz da Corte Internacional de Justiça, Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade, ao presidente da Funag e ao Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI, com entrega de seus últimos livros. Postado com foto e capas de livros no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/visita-do-professor-a-cancado-trindade.html)

=============

A construção do direito internacional do Brasil a partir dos pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty: do Império à República


Cadernos de Política Exterior (Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Funag-MRE; ano II, n. 4, segundo semestre 2016, p. 241-298; ISSN: 2359-5280; link: http://funag.gov.br/loja/download/1186-cadernos-de-politica-exterior-ano-2-volume-4.pdf).

Excertos: 

(...)

O primeiro Consultor na redemocratização foi o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, já autor, a despeito de relativamente jovem, de vasta obra no campo do direito internacional. Segundo Cachapuz de Medeiros, que prefacia o vol. VIII (1985-1990):

 Foi um dos mais dinâmicos, produtivos e eficientes consultores com que o Itamaraty contou. 

Seu legado à “Casa de Rio Branco” constitui uma coleção de mais de duzentos circunstanciados pareceres.” (p. 11)

 

Sua atividade coincidiu também com o processo de reconstitucionalização do Brasil, por meio do Congresso constituinte de 1987-88, o que determinou que ele fosse ouvido nas comissões que se ocuparam dos princípios que regem as relações internacionais do país e o processo de celebração de tratados. Continua ainda o ex-Consultor Cachapuz de Medeiros: 

Valiosa foi igualmente a contribuição do Professor Cançado Trindade na fundamentação jurídica para a adesão do Brasil aos tratados gerais de proteção aos direitos humanos, notadamente os dois Pactos de Direitos humanos das Nações Unidas e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (p. 11-12)

 

De 22 de maio de 1985 a 12 de março de 1990, Cançado Trindade assinou alentados pareceres, praticamente todos recheados de notas de rodapé, milhares delas, referenciando obras relevantes de cada uma das áreas examinadas especificamente, o que praticamente nunca tinha sido visto nos textos dos antigos consultores, que se contentavam em citar, no corpo do texto, um ou outro tratadista mais conhecido. Em outros termos, Cançado Trindade elevou a arte da consultoria jurídica à condição de scholarly work, de trabalho científico no pleno conceito da expressão, representando assim, uma acumulação inédita de citações eruditas nos trabalhos da chancelaria brasileira, sem esquecer suas reflexões de alto conteúdo intelectual, que honram não só a inteligência da Consultoria Jurídica como também ajudaram a construir, ou a reforçar, a própria credibilidade e reconhecida excelência do Itamaraty. 

Esse aparato remissivo não compila apenas a doutrina ou a teoria jurídica nos campos tocados pelo bisturi analítico extremamente sofisticado de Cançado Trindade, ou densos estudos de ciência do direito, mas referencia igualmente, e precisamente, documentos  pertinentes das instituições multilaterais e muitos materiais da própria chancelaria brasileira, o que converte cada parecer seu num instrumento de trabalho (para os diplomatas) e de pesquisa (para os acadêmicos) utilíssimo para quem aprecia, ou para quem necessita, valer-se desse manancial de conhecimento prático para instruir obrigações funcionais ou outros deveres intelectuais. Sem qualquer objetivo encomiástico, mas ao contrário, apenas como reconhecimento objetivo, a gestão de Cançado Trindade à frente da Consultoria Jurídica do Itamaraty foi excepcional em todas as dimensões e sentidos desse termo. Sua colaboração se completa, mas não termina, pela utilíssima compilação da prática brasileira do direito internacional público, objeto de vários volumes do seu Repertório, analisado mais abaixo.

(...)

8. O Repertório da prática brasileira do direito internacional público: obra única

Finalmente, uma resenha bibliográfica como a que aqui se apresenta em torno das publicações da Funag em matéria de direito internacional não estaria completa sem uma menção substantiva à principal contribuição de um dos maiores internacionalistas jurídicos do Brasil e do mundo, o Professor Antônio Augusto Cançado Trindade. A própria existência da Funag, enquanto maior editora brasileira de livros de relações internacionais – e a maior provedora, a título gratuito, de materiais de estudo para candidatos à carreira diplomática, e de pesquisa para estudantes e professores da área – tem como marca inaugural, entre 1984 e 1987, a publicação dos cinco volumes do Repertório, republicados em nova e revista edição em 2012[1], por ocasião dos 40 anos da Funag e centenário da morte do Barão do Rio Branco. O Barão foi devidamente e competentemente homenageado, pela Funag, com a republicação de suas obras completas[2] e por uma obra coletiva feita a partir do seminário em sua homenagem[3]). A importância substantiva do Repertório de Cançado Trindade para o estudo e a pesquisa em torno da tradição jurídica da diplomacia brasileira merece, tanto quanto as obras do Barão, uma avaliação pormenorizada de seu conteúdo, no que ele pode esclarecer quanto à evolução da prática brasileira nessa construção coletiva que é o direito internacional no e do Brasil, no contexto regional e internacional.

A América Latina sempre exibiu, sabidamente, boa tradição em matéria de Direito Internacional Público, podendo-se fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (aliás bastante adequadas a um problema recorrente dos países latino-americanos, o da dívida externa), ao instituto do asilo diplomático ou a outros conceitos na mesma vertente. A diplomacia brasileira, por sua vez, adquiriu, a partir de suas raízes lusitanas, uma prática negociadora relativamente precoce (como evidenciado no trabalho de Alexandre de Gusmão), experiência diplomática alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema interestatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, a comunidade pesquisadora ou praticante se ressentia até o início dos anos 1980 da falta de uma sistematização da prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, foi preenchida desde essa época, pelo extraordinário trabalho de compilação efetuado pelo eminente internacionalista Cançado Trindade, então professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e primeiro consultor jurídico do Itamaraty na redemocratização.[4]

Cabe apenas lamentar, que passados todos estes anos, o Brasil continue a ser o único país latino-americano a contar com uma ferramenta desse tipo para os estudos especializados e a consulta da memória jurídica da prática dos Estados em matéria de direito internacional público. Já autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, muitos livros publicados em várias línguas, o Professor Cançado Trindade realizou, com o Repertório, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do direito internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina.

Com efeito, apesar da existência de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos governos do continente, não havia, até aquele momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional, com o reforço progressivo dos países emergentes.

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, este “ciclópico trabalho” – segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo –, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

l) Fundamentos do direito internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações internacionais; 

6) Condição dos indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução pacífica de controvérsias e desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos armados e neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da nação-mais-favorecida e multinacionais e segurança econômica coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do direito internacional público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história da política externa brasileira que é contada nessas páginas retiradas de memoranda, de telegramas de instruções, de discursos em conferências e de trechos dos relatórios anuais do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente os 92 anos dessa edição da prática brasileira do direito internacional público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) do itinerário republicano nacional. 

Poder-se-ia talvez sugerir, num volume ulterior de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática ali repertoriada, uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Os materiais ali coletados também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que infelizmente ainda carece de atualização e complementação cronológica. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível – tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para oscholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais – deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911, como se sabe, o Barão não cuidou de preparar e publicar os tradicionais relatórios anuais do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do direito internacional público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais do relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando, incidentalmente, essa reunião inaugural do sistema pan-americano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda nos brinda, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: 

“Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981); 

“A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960); 

“A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940); 

“Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e 

“A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). 

 

Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os volumes substantivos, cobrindo o longo período de 1899 a 1981, são complementados por um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão para que a Funag inscreva no seu programa de trabalho a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Os volumes, sobretudo a edição revista e atualizada nos textos de expediente, publicada em 2012, já constam da Biblioteca Digital da Fundação (ver: http://funag.gov.br/loja/), como por sinal já fazem, por exemplo, para seus materiais o Departamento de Estado em relação ao US Foreign Relations Series ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica.

 



[1] Cançado Trindade, Antônio Augusto. Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público; vol. I: período 1889-1898; vol. II: período 1899-1918; vol. III: período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V: período 1961-1981Índice Geral Analítico. 2a. ed.: Brasília: Funag, 2012.

[2] Gomes Pereira, Manoel (ed.). Coleção Barão do Rio Branco. Brasília: Funag, 2012, 9 vols.

[3] Ver Gomes Pereira, Manoel (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012.

[4] Ver Cançado Trindade, Antônio Augusto, Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, de 1889-1981, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, em 6 volumes, de 1984 a 1988; a sequência exata do ano de publicação de cada um dos volumes foi esta: período 1961-1981: 1984; período 1941-1960: 1984; período 1919-1940: 1984; período 1899-1918: 1986; Índice Geral Analítico: 1987; período 1889-1898: 1988.






domingo, 9 de janeiro de 2022

Dez anos atrás, dois livros sobre os 90 anos da Semana de Arte Moderna - Sergio Leo

 A Semana de 22, e além

Livros de Raul Bopp e do jornalista Marcos Augusto Gonçalves revivem a Semana de Arte Moderna

"Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)", de Raul Bopp

"1922: A semana que não terminou", de Marcos Augusto Gonçalves

Entre favores de poderosos, viagens instrutivas à Europa e saraus elegantes, pariu-se o modernismo brasileiro. Uma de suas erupções, a Antropofagia de Oswald de Andrade, foi concebida por amigos em torno de um prato de pernas de rã deglutidas com goles de Chablis gelado, num jantar ciceroneado pelo gordo provocador e sua mulher de então, Tarsila do Amaral. Das rãs a Hans Staden, Oswald começou falando delirantemente da evolução das espécies e terminou liderando um movimento de poucos desdobramentos práticos e muitas ideias fascinantes.

A importância dos batráquios na concepção do Movimento Antropofágico é contada em tons ligeiros por Raul Bopp, em um dos livros que, como rojões no Réveillon, pipocaram no começo deste ano, em comemoração aos noventa anos da Semana de Arte Moderna de 22, evento singular em que intelectuais se revoltaram contra os antigos modelos estéticos trazidos da Europa e defenderam, para o Brasil, novos modelos fortemente influenciados… pela Europa vanguardista — como nota Marcos Augusto Gonçalves em outro livro lançado neste ano, 1922: A semana que não terminou.

O livro de Gonçalves é um bom contraponto ao simpático livrinho de Bopp, editado pela José Olympio, Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928)A semana… é jornalístico, mas detalhado, documentado e profundo o suficiente para contentar a qualquer acadêmico; Movimentos… é descosido, impreciso, impressionista, mas repleto de detalhes divertidos capazes de prender até quem nem tenha tanto interesse assim no modernismo brasileiro. É um exaustivo inventário de uma parte importante da intelligentsia brasileira, num momento chave de nossa formação cultural.

Bopp, participante do movimento, é um caso nada incomum de escritor que marcou lugar na literatura brasileira com apenas uma de suas obras. O épico Cobra Norato, poema mergulhado no sincretismo das lendas amazônicas e no projeto modernista de levar aos livros a fala brasileira, é sua contribuição à “luta para desafogar o ambiente dos canastrões, que ditavam as regras do bom gosto”. Seu livro sobre a Semana, publicado inicialmente em 1966, começa com o percurso dos movimentos de arte contemporâneos (dele), em um resumo fortemente influenciado pelas ideias do futurismo italiano (“a visão que o homem moderno forma … funde-se em valores dinâmicos”, “a arte moderna veio … seguindo os caminhos da máquina”). Futurismo seria, aliás, a palavra usada — e depois renegada — por Oswald de Andrade e colegas. Razoavelmente honesto, o resumo de Bopp derrapa ao falar do dadaísmo, “composto, em parte, de subartistas apátridas”, na visão míope do escritor. Mas cumpre a função de mostrar que, enquanto fervia a cena artística europeia, concentrada em Paris, o “velho conformismo” amarrava a expressão artística em formas que nada tinham a ver com a crescente metrópole industrial.

Os “futuristas” brasileiros vão recorrer, porém, não à incipiente burguesia industrial, mas ao velho baronato do café, na figura de Paulo Prado, de linhagem aristocrática (para padrões locais) e esclarecida. Um mecenas como até hoje faz falta no cenário da riqueza nacional. Marcos Augusto Gonçalves, um dos melhores jornalistas da Folha, relata em detalhes os saraus da turma quatrocentona paulista, que reuniram e alimentaram a rebeldia de 22, e documenta como o “terremoto” modernista foi uma “rumorosa acomodação de atritos e fissuras nos limites de um mesmo grande campo”.

O projeto modernista, vitorioso, afinal, teve como trilho o esforço da nova elite paulista para assegurar a própria valorização histórica e cimentar a hegemonia intelectual na República nascente, onde a política já mudava de mãos. O discurso hiperbólico dos “futuristas” corria sem atritos pelas estradas de uma São Paulo que, no centenário da Independência, promovia também o revisionismo histórico capaz de fazer dos bandeirantes o modelo de herói nacional.

Em Raul Bopp, a memória afetiva torna leves os detalhes pitorescos do agrupamento de intelectuais e porraloucas bem instruídos transformados pela Semana em pioneiros da verdadeira Virada Cultural paulista. Em Marcos Augusto Gonçalves, o que dá leveza ao pantagruélico esforço de digestão bibliográfica é o texto jornalístico, amoroso nas descrições e carinhoso com os personagens (cada figura de importância no movimento ganha pelo menos um capítulo, todos com poucas páginas).

Pelo texto colorido de detalhes, Gonçalves põe o leitor no Teatro Municipal, nos dias nervosos da Semana. O livro traz uma reprodução do catálogo da mostra e Gonçalves se desdobra em minudências nada cansativas sobre as cerca de cem obras de arte expostas para as distintas famílias e a patuleia que participou do ao evento. O esforço do pesquisador traz, para a história, personagens esquecidos, como Ferrignac, que teria sido autor de misteriosa obra dadaísta (Gonçalvez se pergunta se havia dadaísmo de fato, ou se o termo entrou na descrição para inglês ou paulista ver). O livro desencava depoimentos como o de Menotti Del Picchia revelando que algumas obras foram “besuntadas” às pressas para dar volume à mostra e protestar, assim, contra um “meloso e decrépito academicismo”. Com outros exemplos, como o de Yan de Almeida Prado, nota-se que nem todo modernista era militante da causa; alguns, como esquerdistas dos anos 80 em convescotes da Libelu, se achegaram ao grupo por causa das festas.

Nesse debruçar-se sobre os personagens está um dos segredos do encanto no livro de Gonçalves. Mário de Andrade é descrito com riqueza, após surgir, a princípio, como figurante na polêmica exposição de Anita Malfati desancada de maneira boçal por Monteiro Lobato, num momento infeliz do escritor iconoclasta — de credenciais irrepreensíveis quando se tratava de combater o academicismo bolorento na literatura. (Sempre lamento que as preferências de Lobato em pintura não sejam mencionadas nem por Gonçalves, nem pela maioria dos que citam o famosos artigo “Paranoia ou Mistificação”, com que o escritor avacalhou a semente expressionista trazida pela pintora ao cenário brasileiro. No artigo em que apedreja as “cubices” de Anita, Lobato, revelando sua falta de olho em matéria de arte, cita como artistas exemplares pintores hoje relegados à periferia da história, como o “mimoso poeta das manhãs” Paul Chabas e o “gênio rembrandtesco” Frank Brangwin, pintores chegados ao rococó e popularíssimos na época).

No livro de Gonçalves, aos poucos, com Mário, com Oswald de Andrade e outros responsáveis pelo movimento, as histórias pessoais se desenrolam e se misturam aos eventos que passam pela Semana de Arte Moderna e vão além. Gonçalves leva ao leitor as dúvidas do pesquisador, no emaranhado de versões que contam essa história. O autor fala das dúvidas sobre o folclórico chinelo com que Villa-Lobos teria regido a execução de suas obras (provavelmente um pé enfaixado, por ataque de gota); compartilha as indicações de que pode ter sido armação teatral o começo da brutal vaia lançada na segunda noite como saudação contra Oswald e Mário (a primeira noite do evento, até com aplausos, teria frustrado os modernistas que esperavam choque e espanto da burguesia local); corrige os que atribuem a Mário, como resposta aos apupos, a leitura da “Ode ao Burguês”.

Gonçalves conta como Mário, o tímido intelectual atemorizado pela plateia agressiva, resistiu, como descreveria depois, “enceguecido pelo entusiasmo dos outros”; e descreve polifonicamente a vaia a Oswald, de acordo com as diferentes visões do próprio Oswald e de testemunhas do embate. O gosto pelo detalhe e pela documentação nunca tem, em 1922: A semana que não terminou, o sabor rançoso que deixa a leitura de pesquisas burocráticas: são cenas vivas e personagens divertidos que compõem uma história difícil de largar. O autor consegue uma unidade no relato que falta ao livrinho de Bopp, também com histórias que conseguem ser pitorescas e exemplares, mas a meio caminho entre o depoimento e o ensaio. Há uma tentativa, em Bopp, de resumir e classificar as correntes “modernistas”, que tem o mérito de traçar movimentos em todo o país, não só em Sampa. Cecília Meireles e Murilo Mendes, por exemplo, são etiquetados como “espiritualistas”. Há trechos, felizmente curtos, com cheiro de relatório de mestre-escola.

Por Bopp e Gonçalves, fica claro que Menotti Del Pichia e Di Cavalcantitiveram atuação fundamental na Semana. Di foi quem deu partida à ideia, atestam os autores. Historinhas paralelas pontuam e recompensam a leitura. Fica-se sabendo, por Bopp, que o futurista Marinetti passou por São Paulo e mal foi notado; lemos justificativas para sua tese de que Brasília não vingaria porque tem o “mau olhado dos deuses”; e conhecemos as experiências jornalísticas do autor, como a interessante Agência Nacional, primeiro esforço de uma agência de notícias brasileira, que reuniu simpatizantes da Coluna Prestes e recebia livros até do integralista Plínio Salgado.

O mais interessante entre os relatos pessoais de Bopp, porém, é a narrativa sobre a criação e desenvolvimento do Movimento Antropofágico, que ele acompanhou sem engajar-se inteiramente, como cronista atento. O Clube da Antropofagia, na casa de Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald, tinha “feição britânica”, com “criados de luva branca”. Lamentavelmente, para Bopp, a antropofagia não desenvolveu seus achados e teses, como a revisão da história do Brasil a partir de constatações como a de que o país é fruto de imensa grilagem; sem invasão de terras, o Tratado de Tordesilhas teria feito do Brasil um Chile oriental mais gordinho.

São os dois livros uma leitura sem arrependimentos e fonte de consulta permanente. O filão não é esgotado, mas especialmente o leitor do livro de Marcos Augusto Gonçalves descobrirá, se não estava interessado na Semana de Arte Moderna de 22, por que deveria se interessar. Quem sabe, a partir dos achados e recolhidos de Gonçalves, outros autores encontrem ganchos para explicar o ambiente literário nacional contemporâneo, que às vezes repete como farsa o gosto pelos saraus exclusivos da burguesia que se imagina ousada e aprecia chocar-se com o mau comportamento de seus escribas indisciplinados. Quem sabe, o detalhamento da Semana, com obras como essas duas, dê novas luzes para iluminar o percurso criativo do que chamamos cultura brasileira.

::: Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928) ::: Raul Bopp :::
::: José Olympio2012182 páginas:::
::: compre na Livraria Cultura :::

::: 1922: A semana que não terminou::: Marcos Augusto Gonçalves :::
::: Companhia das Letras2012368 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::

Sergio Leo

Repórter especial e colunista do Valor Econômico. Em 2009, seu livro de contos Mentiras do Rio ganhou o Prêmio Sesc de Literatura.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Prata da Casa: resenhas de livros de diplomatas (8-2=6) - Revista da ADB

Foi finalmente publicado o número 100 da Revista da ADB, que até agora, e nos últimos 15 anos, contou com minhas colaborações exclusivas na seção Prata da Casa, de livros de diplomatas.
Disse até agora porque não sei se continuarei colaborando.
Neste número foram publicadas seis resenhas das oito que eu havia preparado, e as duas que ficaram de fora se referiam, por acaso, aos meus próprios livros. Não posso me impedir de apresentar meus livros, pois me enquadro nessa categoria dos diplomatas autores, ainda que isso possa descontentar alguns, certos alguns.
Esta é a capa do número 100: não sei se a matéria sobre "saúde mental" constitui algum recado sutil sobre casos concretos ou se é apenas um subsídio para o estudo do estado geral dos diplomatas.
A revista pode ser acessada neste link:
https://adb.org.br/wp-content/uploads/pdf/revista-adb-100.pdf  


Eis as resenhas publicadas: 





As resenhas que ficaram de fora são estas, cujo texto reproduzo abaixo:
(7) Almeida, Paulo Roberto de: Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018) (Curitiba: Appris, 2019, 247 p.; ISBN: 978-85-473-2798-9); 
(8) Almeida, Paulo Roberto de: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (Boa Vista: Editora da UFRR, 2019, 165 p., ISBN: 978-85-8288-201-6: livro impresso; ISBN: 978-85-8288-202-3: livro eletrônico). 


(7) Almeida, Paulo Roberto de:
       Contra a corrente: Ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018) (Curitiba: Appris, 2019, 247 p.; ISBN: 978-85-473-2798-9)

Este livro reúne ensaios sobre diferentes temas da diplomacia brasileira escritos entre 2014 e 2018, divididos em duas partes: a primeira cobre o período final do regime lulopetista, sendo que 13º artigo desse primeiro bloco se dedica a  um “Epitáfio do lulopetismo diplomático”; a segunda parte se refere aos dois anos e meio do governo Temer, mas cobre também a campanha presidencial de 2018, e contém, por sinal, um capítulo sobre “Como retomar uma política externa profissional”, depois de algumas bizarrices do período lulopetista; um dos capítulos nessa parte trata do “poder do Itamaraty: o conhecimento como base”. Um apêndice traz um depoimento pessoal: “Auge e declínio do lulopetismo diplomático”, período no qual o autor não teve nenhum cargo na SERE. O título foi escolhido depois que o autor deixou a direção do IPRI, exercida de agosto de 2016 a março de 2019.

(8) Almeida, Paulo Roberto de:
       Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty
       (Boa Vista: Editora da UFRR, 2019, 165 p., ISBN: 978-85-8288-201-6: livro impresso; ISBN: 978-85-8288-202-3: livro eletrônico)

O livro não estava planejado, e sequer deveria existir, a não ser pelo fato de que ele foi composto inteiramente a partir das novas orientações da diplomacia brasileira, depois que seu autor foi exonerado do cargo de diretor do IPRI. Uma simples menção aos títulos dos capítulos permite desvendar o espírito com o qual o livro foi redigido, aliás rapidamente: Miséria da diplomacia, ou sistema de contradições filosóficas; O Ocidente e seus salvadores: um debate de ideias; O marxismo cultural: um útil espantalho?; A destruição da inteligência no Itamaraty: dialética da obscuridade; O globalismo e seus descontentes: notas de um contrarianista e A revolução cultural na diplomacia brasileira: um exercício demolidor. Ou seja, todo o livro pode ser considerado um longo comentário sobre a atual diplomacia, com a peculiaridade de que o arquivo em pdf está livremente disponível no site da Editora.