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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Sobre a responsabilidade dos intelectuais - Paulo Roberto de Almeida

A propósito do debate sobre a corrupção dos "intelequituais", lembrei-me de um antigo artigo meu, publicado numa revista "esquerdista" (moderada), que deve ter deixado os seus leitores e colaboradores muito incomodados.

Um ano depois, minhas colaborações a essa revista cessaram, por decisão do comitê editorial.
Não só por esse artigo, mas por várias outras polêmicas, eu havia provocado demais os acadêmicos gramscianos.
O artigo era este aqui:


2103. “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília, 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e histórica sobre a falência do marxismo aplicado, elaborado com base no trabalho 2039: “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do Intelectual”. Revisto em 3/02/2010. Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9275/5252). Relação de Publicados n 952.

O trabalho precedente, citado na ficha acima, é este aqui:

2039. “Um intercâmbio acadêmico sobre a responsabilidade do Intelectual”, Brasília, 21 agosto 2009, 2 p. Intercâmbio com Antonio Ozai sobre Marx e os marxistas, a propósito de seu post “Marx e os marxismos” (Blog do Ozai: http://antonio-ozai.blogspot.com/2009/06/marx-e-os-marxismos.html). Circulado na lista Diplomaticas e postado em meu blog Diplomatizzando (21.08.2009; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2009/08/1302-um-intercambio-academico-sobre.html). Serviu de base à elaboração do trabalho n. 2103: “Sobre a responsabilidade dos intelectuais: devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?”, Brasília, 19 janeiro 2010, 12 p. Argumentos de natureza política e histórica sobre a falência do marxismo aplicado. Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159). 

Transcrevo abaixo esse artigo:


Sobre a responsabilidade dos intelectuais
Devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?

Paulo Roberto de Almeida
Espaço Acadêmico (vol. 9, n. 105, fevereiro 2010, p. 149-159; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9275/5252).


Aproveito para dizer logo o que motiva este meu pequeno ensaio: deveriam intelectuais do século 19, como Marx e Engels, ser considerados culpados (ou inocentes, segundo argumentam alguns) pelo que sucedeu, no século 20, a sociedades tão diversas quanto a Rússia, a China, Cuba ou Coréia do Norte? Ou seja, levam eles alguma culpa pelos milhões de mortos provocados pelos experimentos socialistas em cada um desses países (e em vários outros mais)? Estariam eles na origem do mal?
Interrompo para um breve parênteses: permito-me sugerir aos que acreditam que esses ‘milhões de mortos’ são apenas um ‘pequeno detalhe da história’ e que o socialismo é, a despeito dos ‘poucos erros’ cometidos’, uma boa coisa – posto que seus princípios fundadores, os de uma sociedade sem classes, igualitária, livre do capitalismo, seriam ‘essencialmente positivos’ –, que eles desistam de ler este ensaio aqui mesmo. Pessoas que preferem ignorar fatos concretos do século 20 talvez não devam ser perturbadas em suas crenças; elas tem todo o direito de manter as fantasias de seu mundo imaginário. Não me dirijo a essas pessoas; apenas àquelas que não pretendem esconder a realidade, e que sabem, objetivamente, que os socialismos reais provocaram dezenas de milhões de mortos ao longo do século 20. Fecha parênteses.
Volto a perguntar: podemos concordar com aqueles que pretendem isentar os intelectuais pelas conseqüências práticas que decorrem de suas doutrinas e de seus ensinamentos? Em outros termos, deveríamos aderir ao velho mote que diz que a teoria é uma coisa, mas que a prática é outra, muito diferente daquela? Em suma, vamos concordar com a escusa de que só poderíamos ser considerados culpados por aquilo que fizermos, objetivamente, não existindo a figura da ‘culpa intelectual’?
Levanto estas questões a propósito de um debate, entrecortado, que mantive com um colega acadêmico, que me disse que Marx não era responsável pelos mortos do Gulag, assim como Jesus Cristo não poderia ser considerado responsável pelas cruzadas, pela Inquisição, pelas perseguições aos heréticos, enfim, por todos os crimes cometidos em nome da religião cristã ou da Igreja Católica.
Minha resposta, na época, foi a de que, no primeiro caso, deveríamos, sim, considerar Marx culpado pelos crimes cometidos em nome de sua doutrina, ao longo de um século 20 especialmente mortífero – no qual o fascismo e outras perseguições odiosas também exibem sua cota de responsabilidade por vários milhões de mortos, mas em escala inferior aos do socialismo de cunho marxista – mas que, no segundo caso, as culpas objetivas precisariam ter sua ‘filiação’ traçada aos argumentos usados pelos perpetradores desses crimes. Expliquei-me: se, por acaso, as pregações de Jesus Cristo abrigassem qualquer incitação à morte de “desviantes” – de qualquer tipo –, ele poderia, ou deveria, sim, ser responsabilizado por aqueles perversidades apontadas; mas restaria provar essa vinculação de modo objetivo, com provas documentais (e eu lançava o desafio, a qualquer pessoa, de encontrar nos textos dos evangelhos alguma incitação aos fenômenos descritos acima). Esse era o estado do debate, infelizmente interrompido, não por minha iniciativa, mas que pretendo retomar agora.

Uma visita rápida a Norberto Bobbio
Antes, contudo, de voltar aos meus argumentos, permito-me citar um trecho de um dos ensaios mais conhecidos do famoso jurista italiano: “Quale Socialismo?” (publicado originalmente em MondOperaio, a. 29, n. 5, dez. 1976, p. 55-63), do qual transcrevo (e traduzo do italiano) o seguinte trecho, irônico, para dizer o mínimo:

Não gostaria de deixar passar em silêncio uma outra tese...: a tese segundo a qual Marx não deve ser considerado responsável pelas más aplicações da sua teoria (por exemplo, o stalinismo), não mais do que Locke, Montesquieu ou Croce podem ser considerados responsáveis pelas más formas do Estado representativo que temos sob nossos olhos. Me surpreende que um estudioso sério... não leve em consideração que uma opinião desse tipo conduz diretamente à tese, tão cara aos ‘evasores’, da ‘irresponsabilidade dos intelectuais’. Um intelectual pode sustentar qualquer coisa: sempre é inocente.
Nietzsche pode ter escrito perorações longas de um quilometro (somando fragmentos de duas ou três linhas obsessivamente repetidas) em defesa do instinto contra a razão, da vontade de potência contra a democracia pacífica, da moral dos senhores contra a dos escravos, para desmascarar ‘a conjuração universal das manadas, contra os pastores, animais predadores, solitários e cesarísticos’, mas o nazismo não tem nada a ver com isso. Pareto pode ter tratado depreciativamente e diminuído a burguesia do seu tempo por não ter sabido contrapor a violência contrarrevolucionária à violência revolucionária, mas o fascismo está fora de questão. Hegel pode ter escrito que o Estado é tudo e o indivíduo nada (‘Tudo o que o homem é, ele deve ao Estado: apenas neste ele tem a sua essência’), mas aqueles, Gentile à frente, que fizeram dele o precursor do Estado ético da memória fascista, apenas divagaram, e o teórico da ética do Estado, sobretudo agora que tornou-se o pai de Marx, é puro como um anjo.
Marx e seu amigo Engels desmantelaram o Estado representativo, sustentaram que todo Estado, pelo simples fato de ser Estado, é uma ditadura, que a passagem do Estado burguês ao Estado proletário seria simplesmente a passagem de uma ditadura a outra, sempre sustentaram que o importante era que se mudasse o sujeito histórico e tudo teria corrido melhor, independentemente das formas (se entende jurídicas) sob as quais o novo sujeito se teria ‘organizado’, e agora [1976] nos permitimos nos surpreender pelo fato de que os Estados socialistas continuam a ser ditaduras e que seus chefes se proclamam os únicos intérpretes do marxismo-leninismo? Que Marx acreditasse de boa fé que a democracia proletária, pelo simples fato de ser proletária, fosse mais democrática do que a burguesa, e que assim estivesse na origem de um novo Estado que apressasse o processo de extinção do Estado, não nos exime de observar que a única prova que ele teve à sua disposição, as instituições da Comuna de Paris, eram muito fugazes para que se pudesse construir uma teoria sobre elas; a história, até aqui, não lhe deu razão.
Depois, não é de fato verdade que Locke, Montesquieu e Croce tenham sido absolvidos. Por quem? Não, certamente, pelos escritores marxistas. Com as obras anti-Locke, as anti-Montesquieu (existe uma, inclusive, de Althusser) e as anti-Croce, chamados recorrentemente de ideólogos da classe burguesa, de ‘lacaios’ da classe dominante, ou de porta-bandeiras da reação, se poderia preencher toda uma estante de biblioteca. Aquilo que é lícito aos marxistas não deveria ser lícito a escritores não marxistas com respeito a Marx, a Engels ou a Lênin?
Muito cômodo, de fato muito cômodo, separar as obras intelectuais da história que elas geraram e daquela que elas ajudaram a gerar, mesmo pela via indireta, e colocá-las em uma espécie de status naturae incorruptae, em um estado de perpétua inocência, não maculadas pela lama da história. Nós, pequenos, pequeníssimos, somos ou não somos responsáveis pelo que escrevemos? Claro que somos. E por que escreveríamos se não acreditássemos que alguém fosse ler? Nós, portanto, somos responsáveis, e os grandes, que dispõem de uma audiência bem mais vasta e duradoura, não o são?[1]

No mesmo sentido vai a observação crítica do sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, numa conferência proferida na Columbia University, em1994, quando ele advertia que “os intelectuais têm responsabilidade pública. Onde eles se calam, as sociedades perdem seu futuro.[2]

Desvios cristãos e marxistas: similares, semelhantes, comparáveis?
Pois bem, volto agora ao debate supracitado sobre a responsabilidade dos intelectuais sobre eventuais consequências de seus escritos e propostas. Um dos argumentos comumente usados em meios acadêmicos para isentar os teóricos ‘fundacionais’ de qualquer responsabilidade sobre o que fizeram seus seguidores a partir das teses originais, no caso os crimes do socialismo no século 20, é o de que seria preciso diferenciar Marx dos marxismos. Ou seja, Marx, que disse uma vez que não era ‘marxista’, não teria nada a ver com a obra prática de seus seguidores, suas recomendações quanto à derrubada do poder da burguesia e a implantação da ‘ditadura do proletariado’ não seriam absolutamente consideradas uma causa direta dos totalitarismos que se reivindicaram de seu nome no século passado.
A justificativa corre aproximadamente segundo esta linha: da mesma forma que não podemos responsabilizar Jesus Cristo pelo que os cristãos fizeram e fazem em seu nome, também seria absurdo identificar de forma absoluta a teoria de Karl Marx com as práticas, e mesmo as interpretações teóricas, dos seus seguidores. Em outros termos, não podemos ter certeza de que aquilo que foi construído em nome do marxismo seria a expressão verdadeira da obra marxiana. Uma justificativa derivada é a de que, como muitos disputam o legado histórico, a tradição intelectual que a obra original representa, não se poderia, por isso mesmo, vincular os malfeitos práticos que foram cometidos em nome da doutrina ao formulador original das proposições.
A primeira dificuldade, intelectual e prática, desse tipo de argumentação é a própria equiparação de Karl Marx a Jesus Cristo: ela não é apenas simplória e desprovida de qualquer equivalência histórica real, mas é profundamente enganosa quanto ao conteúdo mesmo das mensagens de cada um. Senão vejamos.
Equiparar Cristo e Marx – de maneira totalmente arbitrária e de uma forma completamente anacrônica do ponto de vista da metodologia histórica – para, em seguida, desculpá-los, prévia e automaticamente, de qualquer bobagem, besteiras ou mesmo crimes, que seguidores, discípulos ou quaisquer outros indivíduos posteriores possam ter cometido em nome da doutrina original, é uma operação no mínimo indevida, e no limite desonesta intelectualmente. Cristo, ao que se sabe, é um personagem histórico sobre o qual não temos fontes originais completas e isentas de qualquer dúvida interpretativa, o que obviamente não é o caso de Marx, cidadão com registros históricos disponíveis e obras publicadas em vida. Cristo, de seu lado, não parece ter feito obra teórica ou empírica registrada diretamente, ou seja, ele não foi autor de nenhum manuscrito, a não ser de parábolas, ensinamentos, predicações e outras formas de transmissão oral de princípios, valores, concepções, das quais tomamos conhecimento pelo registro indireto e posterior de quatro evangelistas e alguns comentaristas esparsos, dos quais apenas dois conviveram ou foram contemporâneos do personagem histórico.
Ou seja, no plano teórico, não se poderia imputar diretamente a Jesus Cristo qualquer responsabilidade pelo uso que seguidores fizeram dessas predicações, pois o próprio personagem não guarda conexão direta, pelo menos registrada, com as fontes alegadas da doutrina. Mas, ainda que se fizesse tal vinculação, seria preciso também provar, no plano prático, que os crimes realmente cometidos em nome do cristianismo – que seria o ‘marxismo’ dos cristãos – podem ser vinculados a pregações, normas, projetos e programas que encontrariam sustentação na doutrina original; quais seriam estes?: conversão forçada do ‘gentio’, eliminação de heréticos, perseguição e tortura de ‘dissidentes’, censura ao pensamento e à expressão de outras religiões, proibição de reuniões e movimentos organizados com o fito de disseminar doutrinas julgadas em desacordo com a linha original, interdição de obras expressando opiniões divergentes ou contrarias à ‘boa doutrina’ etc. Quais são as ‘parábolas’ fundadoras desses crimes? Como e de onde citar?: “Cf. Jesus Cristo, apud Marcos, Mateus...”?
O desafio aos que pretendem fazer esse tipo de equiparação é significativo: pode-se, com alguma certeza histórica, imputar a Cristo alguma, uma sequer, das barbaridades que seus discípulos e seguidores fizeram em seu nome, em termos de massacres de heréticos, cruzadas contra os infiéis, perseguição de desviantes? Ainda que não se saiba, ao certo, se os evangelistas foram ou não fiéis às suas prescrições (de resto, esparsas) – que é o que se poderia alegar em defesa de Marx, contra alguns ‘marxistas infiéis’ –, quais seriam, de toda forma, os textos ou recomendações doutrinais que poderiam sustentar aqueles ‘trabalhos práticos’ de cunho repressivo? Ao contrário, as mensagens ‘transmitidas’ parecem padecer de certa ingenuidade  humanitária e, sobretudo, exalam recomendações que poderiam ser julgadas, por qualquer pessoa normal, como excessivamente tolerantes ou ingênuas; aquela coisa de ‘oferecer a outra face’, em lugar de simplesmente aplicar a lei do Talião, ou diretamente passar o adversário na espada, como alguns recomendariam.
Existe, pois, um obstáculo ‘estrutural’ a esse tipo de equiparação que marxistas ‘tolerantes’ pretendem fazer em direção de Marx ou mesmo de Lênin (embora neste caso as desculpas se tornem ainda mais forçadas). Não acredito que qualquer tipo de exegese – do tipo da que se poderia fazer com o Alcorão, por exemplo – chegaria jamais a encontrar alguma filiação genética ou mesmo filosófica entre o comportamento de cristãos intolerantes de séculos posteriores e o conjunto de referências conceituais e prescrições de cunho moral atribuíveis ao personagem original da doutrina cristã. A pretensa similaridade de funções ou de papéis é inepta no plano conceitual e totalmente incabível no plano da prática.

O que Marx tem a ver com o socialismo do século 20?
Minha tese é muito simples: desculpar Marx pelo que fizeram os marxistas em seu nome não é apenas ilógico, no plano formal, como é totalmente equivocado no plano material, ou seja, no da história concreta da humanidade desde o final do século 19 até os nossos dias. Marx não apenas assinou textos, como recomendou a revolução proletária, a expropriação violenta da burguesia e a implantação de uma ditadura do proletariado como forma de transição para o socialismo, recomendações seguidas fielmente (e até agravadas) por Lênin, que mandou simplesmente eliminar fisicamente todos os que pertenciam à classe inimiga, independentemente de culpa individual.
Deve-se, em primeiro lugar, descartar como ridícula a alegação de que Marx não pode ser responsabilizado pelo que ocorreu muito depois que seus escritos foram elaborados e eventualmente circulados, num contexto – o do século 19 – totalmente diferente daquele que prevaleceu no século 20, dominado por guerras terríveis, deslanchadas por contradições inter-imperialistas, segundo a conhecida interpretação leninista. O equívoco aqui cometido consiste em pretender escusar o arquiteto pela obra mal feita dos engenheiros que lhe seguiram, ou seja, isentar Marx, autor da primeira concepção e do próprio plano das fundações, pela edificação viciada, mas teoricamente justificada, perpetrada por Lênin e seguidores.
Não é possível, simplesmente, escusar Marx pela autoria intelectual da obra prática posterior de seus discípulos, posto que, de forma alguma, ele pretende se isentar, ele próprio, de uma responsabilidade já anunciada desde a 11a. tese sobre Feuerbach. De resto, basta reler Miséria da Filosofia, para constatar o desprezo com que ele trata Proudhon e os ‘socialistas utópicos’; Marx não tinha qualquer respeito ou tolerância com aqueles que ele considerava seus adversários intelectuais; aliás, ele os esmagaria pessoalmente se pudesse. Pode-se também reler os textos dos bakuninistas sobre Marx e todas as diatribes inter-tribais que dividiram, desde essa época, blanquistas, revolucionários profissionais ou simples terroristas.
Marx era um homem de partido, e como tal atuou, desde os tempos da Liga dos Comunistas, passando pela Primeira Internacional e mais adiante, pela Comuna de Paris, até as últimas etapas de sua vida. Desde o Manifesto Comunista (1848) até Lutas de Classe na França (1871) e a Crítica do Programa de Gotha (1875), o trabalho organizacional e as prescrições quanto a medidas imediatas e de médio prazo para a constituição do Estado revolucionário, sob a ditadura do proletariado, ocupam grande espaço em sua obra e são por demais evidentes para serem descartadas como simples recomendações teóricas, sem conexão com o mundo real. As vinculações são tão diretas que a paternidade foi reconhecida em primeira mão por aqueles mesmos que pretendiam representar fielmente o seu pensamento, a começar por Lênin.

O que fez Lênin para aplicar as ideias de Marx, e as suas...
Os discípulos tentaram seguir fielmente o que Marx escreveu e recomendou e, portanto, a mesma responsabilidade incumbe a todos os demais seguidores do credo, tanto no plano intelectual, como prático. Não é preciso ter lido Solzenitzyn e seu ciclo sobre o Arquipélago do Gulag para constatar aquilo que os próprios comunistas já sabiam desde os tempos de Lênin e Trotsky, pelo menos. Aliás, o próprio Solzenitzyn traça, em seu Lênin em Zurique, um poderoso retrato intelectual, e psicológico, do líder exilado, revelando em termos claros as bases do que viria depois, como obra intelectual e prática.[3]
No terreno das ideias, os vínculos são evidentes. Basta verificar o que se lia nas universidades soviéticas e chinesas ao tempo da construção do socialismo: os pais fundadores, obviamente. Tudo isso é história, agora. Mas o que se pensa que constitui leitura obrigatória, em Havana ou Pyong-Yang?: Adam Smith,[4] John Stuart Mill, Alfred Marshall? Marx e Lênin ainda estão no currículo acadêmico nesses lugares, assim como estiveram anteriormente nas economias precursoras. Dessa forma, Marx deve ser plenamente responsabilizado pelos desastres econômicos do socialismo, que fizeram tantas vítimas, talvez mais, do que os crimes diretos de Stalin e Mao Tsé-Tung. As fomes e privações ocorridas na Ucrânia, nos anos 1930, e na China, na passagem dos anos 1960, foram o resultado direto das concepções econômicas originais, tanto quanto do voluntarismo de Stalin e Mao, provavelmente os ditadores absolutos num século que conheceu vários outros da mesma espécie.
Não se pode, contudo, isentar Lênin das barbaridades stalinistas e maoístas do século 20. Muitos true believers acreditam que Lênin teria sido um líder genial, e que apenas Stalin foi o monstro assassino de velhos bolcheviques e o criador dos primeiros campos de concentração claramente políticos[5]. Na verdade, a raiz de tudo, do Gulag, dos julgamentos fraudulentos, da crueldade inaudita contra os ‘inimigos de classe’, está em Lênin, que deve ser considerado como plenamente responsável pelo maior sistema escravocrata da era moderna, por ele montado, mas incrementado e desenvolvido em dimensões verdadeiramente ‘industriais’ por Stalin.
Lênin, o verdadeiro inventor do terror moderno, apreciava Robespierre e sua ‘justiça expedita’: desde os primeiros dias da revolução de 1917 ordenou à Cheka, a polícia política criada para esmagar a ameaça ‘contra-revolucionária’, que fuzilasse sem hesitação não só os opositores declarados do novo regime, mas também os representantes da classe proprietária em geral, capitalistas, grandes comerciantes e latifundiários, religiosos, enfim, os potenciais ‘inimigos de classe’. Criador do Gulag, em sua primeira emanação, ele justificava assim o trabalho da Cheka: “A Cheka não é uma comissão de investigação nem um tribunal. É um órgão de luta atuando na frente de batalha de uma guerra civil. Não julga o inimigo: abate-o... Nós não estamos lutando contra indivíduos. Estamos exterminando a burguesia como uma classe. A nossa primeira pergunta é: a que classe o indivíduo pertence, quais são suas origens, criação, educação ou profissão? Estas perguntas definem o destino do acusado. Esta é a essência do Terror Vermelho.”[6]
Stalin se encarregou de aplicar sistematicamente as recomendações de Lênin, e o fez de forma completa, começando por incorporar como ‘clientes’ da máquina de terror administrada por ele os seus próprios colegas de partido. A amplitude da repressão, ampliada e desenvolvida no seu mais alto grau no Gulag de Stalin, justifica que apliquemos a este a categoria de genocídio, noção que costuma estar associada apenas aos terríveis experimentos raciais nazistas, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Independentemente de suas funções ‘didáticas’, de intimidação direta e aberta contra a própria população da União Soviética, o Gulag teve um importante papel econômico na história do socialismo naquele país, chegando a representar, a produção de um terço do seu ouro, muito do carvão e da madeira e grandes quantidades de outras matérias-primas. Os prisioneiros passaram a trabalhar em qualquer tipo de indústria, vivendo num país dentro de outro país.[7]
O sistema do Gulag, que chegou a reunir 476 campos em diferentes cantos da URSS, constituía um Estado dentro do Estado, regulando diversos aspectos de um universo concentracionário que não teve precedentes, teve poucos imitadores efetivos (a despeito da terrível eficácia mortífera dos campos de concentração nazistas) e certo número de seguidores, sendo os mais efetivos exemplos os sistemas ‘correcionais’ da Coréia do Norte e de Cuba (o do Khmer Vermelho, no Camboja, era mais o de uma ‘máquina de matar’, como tinha sido o caso mais extremo de todos, o nazista).
De acordo com os próprios dados do sistema,[8] o número de prisioneiros passou de cerca de 200 mil no início dos anos 1930 para 2,5 milhões no momento da morte de Stalin. O turnover, obviamente, foi muito maior: muitos prisioneiros morreram, alguns escaparam (poucos), vários eram incorporados ao Exército Vermelho ou à própria administração dos campos (cruel ironia). As ‘taxas de desaparecimentos’ refletiram também as terríveis condições de vida na URSS: passou-se de 4,8% de mortos em 1932 para 15,3% no ano seguinte, o que indica o impacto da epidemia de fome induzida pela coletivização stalinista da agricultura, que matou 6 ou 7 milhões de cidadãos ‘livres’ igualmente. A taxa de mortos sobe para seu máximo de 25% em 1942, para declinar para menos de 1% nos anos 1950, quando o sistema ‘industrial’ do Gulag já tinha sido instalado em sua plenitude.
No total, 2,7 milhões de cidadãos soviéticos podem ter morrido no sistema do Gulag, o que de todo modo representa apenas uma pequena parte dos desaparecidos durante todo o regime stalinista e uma parte ainda menor dos sacrificados pelo sistema soviético.[9] Os autores do Livro Negro do Comunismo estimam em 20 milhões as vítimas do regime soviético, o que pode ser uma indicação plausível da realidade (outros colocam entre 12 e 15 milhões de mortos). Vários historiadores se aproximam da cifra de 28 milhões de cidadãos soviéticos para o número total de ‘clientes’ de todo o sistema concentracionário soviético, em sua longa história de ‘terror vermelho.[10]
O Gulag foi a face mais visível da tragédia soviética, mas certamente não a única ou exclusiva. O terrível legado do socialismo do século 20 comporta ainda sua modalidade chinesa: com efeito, se outros experimentos centralizadores e concentradores no domínio econômico também produziram pequenas e grandes catástrofes – como os sistemas fascistas do entre guerras, bem como o próprio socialismo soviético, convertido em escravismo moderno desde o início da industrialização forçada de Stalin – ao longo de suas histórias respectivas, poucas aventuras humanas igualaram o monumental fracasso econômico e social que foi o experimento socialista chinês, em sua modalidade específica de maoísmo delirante.
Os historiadores – e os demógrafos – ainda não possuem os números definitivos, mas é provável que a trajetória maoísta tenha provocado algo como 50 a 60 milhões de vítimas, o que faz de Mao Tsé-Tung o campeão absoluto no registro das mortandades provocadas pelo homem ao longo do século 20, bem à frente de Hitler e de Stalin. Entre os mortos de fome e por canibalismo do “grande salto para a frente”, entre o final dos anos 1950 e começo dos 60, passando pelos assassinados e massacrados da revolução cultural, de meados dessa década, e todos os encarcerados e reprimidos do Gulag chinês ao longo de 30 anos, o maoísmo conseguiu drenar como poucas dinastias antigas as veias da sociedade chinesa.[11] Todavia, o Khmer Vermelho, no Camboja, pode ter sido responsável, proporcionalmente à população do país, por uma maior “produtividade” na eliminação de pessoas inocentes.

O que isso tem a ver com a responsabilidade dos intelectuais?
A compilação acima, de algumas estatísticas (apenas), sobre as experiências de exterminação de simples cidadãos – muitos, inclusive, comunistas sinceros, talvez sinceros demais – não precisaria ser feita se os cenáculos freqüentados pelos assim chamados intelectuais não fossem caracterizadas por dois comportamentos típicos de uma atitude ao mesmo tempo defensiva e evasiva: por um lado, se tenta diminuir o impacto desses terríveis processos de eliminação de cidadãos – ou seja, a violação repetida, continuada, extensiva, dos direitos humanos de milhões de pessoas; e, por outro, se assiste ao continuado esforço de rejeitar as economias de mercado e as democracias burguesas, edulcorando (ou melhor, deformando) a verdadeira história do socialismo no século 20 (provavelmente ainda agora, no século 21). As duas reações devem ser entendidas, no contexto desta discussão, como uma tentativa de desculpar os ‘pais fundadores’ da doutrina, alegando os costumeiros desvios.
Não por outra razão o marxismo se encontra hoje em crise, e ela não é, simplesmente, derivada de diferenças de interpretação teórica em torno do “que Marx verdadeiramente quis dizer”, e sim em decorrência desse vínculo estrutural entre a sua doutrina e suas consequências práticas no século que se passou. Uma nova, e breve, visita, a Norberto Bobbio pode resumir a questão:

A crise atual não deriva de um erro de previsão, mas da constatação incontrovertível de um fato real: a falência catastrófica da primeira tentativa de realizar uma sociedade comunista em nome de Marx e do marxismo, ou então de Marx na companhia de Engels, seguido de Lênin e depois de Stalin no decurso de uma sucessão interpretada como uma filiação, ou derivação do mesmo pai. A comparação entre as igrejas tradicionais e a igreja comunista foi feita tantas vezes que parece uma banalidade ou uma perversidade entre adversários irredutíveis. Mas mesmo sob esse aspecto, isto é, sob o aspecto da verdade fundamentada num princípio de autoridade e de sucessivas autorizações de outras autoridades, é surpreendente. Existem aqueles que, em face de fatos reais, tremendamente perturbadores como Auschwitz, chegaram a falar da ‘falência de Deus’ (...). Por que, em face do gulag stalinista não se deveria falar da falência de Marx?[12]

Em outros termos, com base no registro de enormes violências cometidas pelos socialismos reais, em nome de Marx e Lênin, ao longo do século 20, que todos os supostos intelectuais conhecem, ou pelo menos deveriam necessariamente conhecer, parece, por um lado, inexplicável, e por outro lado, inaceitável, que os mesmos personagens que frequentam as mesmas academias que todos frequentamos, pretendam não apenas diminuir, minimizar, ou claramente ignorar a dimensão desses crimes, como pretendam, sem qualquer espírito crítico, sustentar as mesmas teses e propostas de organização da sociedade que provocaram as situações descritas acima.
Pode-se honestamente considerar a continuada defesa de equívocos históricos e políticos por parte desses acadêmicos como sendo derivada de um insuficiente conhecimento da história, ou, então, provocada por uma ignorância metodológica fundamental quanto ao modo de funcionamento econômico das sociedades – equívocos, diga-se de passagem, que a ‘economia política’ distorcida do marxismo contribui para alimentar – mas é mais difícil aceitar, obviamente, a postura daqueles que preferem deliberadamente ignorar essas evidências amplamente conhecidas e registradas nos melhores livros de história. No mínimo, se trata de miopia voluntária, no limite de um tipo de atitude intelectualmente desonesta e inaceitável.
Pode-se considerar, igualmente, que os ‘marxistas’ brasileiros – as aspas se devem a que poucos, atualmente, parecem ter lido Marx, como se depreende dos escritos primários que circulam em certos periódicos – jamais conheceram os socialismos reais (aliás, em rápido desaparecimento, a ponto, talvez, de justificar a criação de algum museu de antiguidades nessa área, para ajudar no esclarecimento dos mais jovens).[13] De fato, os acadêmicos mais jovens jamais tiveram contato direto com as realidades descritas aqui, posto que não conheceram qualquer tipo de socialismo e não podem, por isso mesmo, sequer imaginar que, por trás das belas consignas revolucionárias (emolduradas por alguns ícones tão falsos quanto desconhecidos, como o de Ché Guevara), se esconde um dos empreendimentos mais nefastos já conhecido na história da humanidade
Estes argumentos não se referem apenas à dimensão dos desastres econômicos e dos sofrimentos sociais infligidos a populações inteiras por uma ou duas gerações (e se supõe que isso seja por demais conhecido de todos, em vista das estantes vazias dos empórios socialistas). Deve-se mencionar, principalmente, os crimes cometidos contra os direitos humanos mais elementares, ou ainda aqueles situados no plano das misérias morais do socialismo: um regime de mentiras, de fraudes, de delações organizadas, de regimes policialescos e de mediocridades intelectuais como jamais ocorreu em muitas, talvez a maioria, das ditaduras ditas de direita denunciadas pelos mesmos acadêmicos que pretendem ainda defender a causa do socialismo marxista.
Em relação a esses regimes, que por boa parte do século 20 se estenderam a territórios e populações imensas durante praticamente três gerações, pode-se parafrasear a conhecida frase marxiana do 18 Brumário: doravante, se espera apenas que a história jamais se repita, sequer como farsa.
Não é correto que a ignorância do processo histórico possa ser invocada em defesa dos que continuam a exibir equívocos monumentais do tipo aqui discutido; em todo caso, um procedimento básico se aplica aos que fazem da academia o centro de suas atividades: a honestidade intelectual é a primeira exigência de quem trabalha com o registro dos fatos históricos e sua interpretação no plano das ciências humanas. Espero apenas que esta não seja mais uma frase vazia...

Brasília, 19 janeiro 2010.
Revisto: 3/02/2010.


[1] Cf. “Quale socialismo?”, In: Norberto Bobbio, Etica e Politica: scritti di impegno civile (Milano: Arnoldo Mondadori, 2009), p. 1306-1308; existe edição brasileira dessa obra: Qual Socialismo? (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).
[2] Cf. Ralf Dahrendorf, Após 1989: Moral, Revolução e Sociedade Civil (São Paulo: Paz e Terra, 1995), conferência: “A responsabilidade pública dos intelectuais: contra o novo medo do esclarecimento” (27.11.1994); esclarecimento talvez deva ser traduzido como Iluminismo.
[3] Cf. Alexander Solzenitzyn, Lénine à Zurich (Paris: Seuil, 1975).
[4] Caberia, aliás, corrigir o título do último livro de Giovanni Arrighi: Adam Smith vai a Pequim; deve ser o contrário, posto que não ocorreu nenhuma mudança na postura do filósofo escocês, nem sua obra foi corrigida; os chineses é que caminharam em direção da Escócia.
[5] Os primeiros campos de concentração, para maior precisão, foram feitos pelos ingleses na guerra dos Boers, na África do Sul, mas tinham, em princípio, utilidade militar-estratégica.
[6] Citado por Paul Johnson, Tempos Modernos: o mundo dos anos 20 aos 80 (2ª ed.; Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1998), p. 35.
[7] Ver o livro de Anne Applebaum: Gulag: uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004).
[8] Segundo estatísticas da própria NKVD, que foi sucessora da Cheka e antecessora do KGB, informações consolidadas num apêndice ao livro de Applebaum, op. cit.
[9] Um número provavelmente maior foi sacrificado na fome epidêmica, em grande parte induzida por Stalin, no curso do violento processo de “deskulakização” conduzida na Ucrânia no início dos anos 1930; ocorreram cenas de canibalismo que depois seriam repetidas no “grande salto para a frente” da China (1958-1962).
[10] Ver Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre noir du communisme. Crimes, terreur, répression (Paris: Robert Laffont, 1997).
[11] Uma tentativa de balanço, não definitiva até abertura dos arquivos do regime comunista chinês e até trabalhos mais acurados dos demógrafos profissionais, do custo humano do experimento comunista na China foi efetuada por Jean-Louis Margolin, no capítulo “Chine: une longue marche dans la nuit”, In: Courtois, Le Livre noir du communisme, op. cit.
[12] Cf. Bobbio, Etica e Política, op. cit., p. 1374; ensaio: “Invito a rileggere Marx” (1993).
[13] Um exemplo da penúria de idéias – e também do excesso de impropérios – desferidos a propósito de uma simples resenha de um desses livros quer sequer mereceriam figurar numa biblioteca que poderia ser hipoteticamente classificada na estante do marxismo, pode ser encontrado em um artigo do autor que seguiu-se à resenha em questão: “Marxistas totalmente contornáveis” [Resenha de Jorge Nóvoa (org.): Incontornável Marx (Salvador/São Paulo: Unesp/UFBA, 2007)], Espaço Acadêmico (ano 7, n. 84, maio 2008, disponível: http://www.espacoacademico.com.br/084/84res_pra.htm); “Manifesto Comunista, ou quase...:  dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque de nervos (a propósito de uma simples resenha)”, Espaço Acadêmico (ano 8, n. 85, junho de 2008; disponível: http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.htm).

terça-feira, 18 de março de 2014

Reflexoes ao leu: sobre as responsabilidades das grandes potencias, e dos candidatos a se-lo...

Grandes potências -- já sabemos quais são -- e aspirantes a sê-lo -- como a Alemanha, por exemplo -- precisam ter posições claras, e adotar atitudes consequentes, quando a ocasião se apresenta.
Como no caso da Ucrânia, por exemplo, ou da Crimeia, para ser mais específico.
Não dá para ficar em cima do muro e só soltar notas singelas, recomendando diálogo entre as partes e soluções pacíficas para alguma contenda existente. Ou ficar esperando até que a comunidade internacional resolva o problema, na ONU ou fora ela.
Potências médias também são chamadas a tomar posição, expressar o que pensam, e propor saídas para certos problemas.
Como na Venezuela, por exemplo...
Não se pode é ficar calado...
Como diria o tio do Homem Aranha, quanto maior o poder, maior a responsabilidade.
A menos que não se tenha poder, ou se recusar a usá-lo, por qualquer motivo.
Pois é...
Paulo Roberto de Almeida

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

RAP: Esgotar todos os recursos verbais antes que se consiga atingir um numero razoavel de mortos...


Segurança coletiva

Maria Luiza Viotti
O Globo - 16/02/2012
A defesa do diálogo e da solução pacífica de controvérsias é uma das tradições - no discurso e na prática - da política externa brasileira. Para o Brasil, o uso da força pela comunidade internacional deve ser sempre o último recurso, depois de esgotadas todas as possibilidades da diplomacia e de uma solução negociada. Ações militares implicam elevados custos em vidas humanas, além de outras graves consequências, políticas e econômicas.
Temos insistido em que a ONU priorize ações preventivas e esforços de mediação. Aplaudimos a iniciativa do secretário-geral Ban Ki-moon de estabelecer 2012 como o ano da prevenção.
Como afirmou a presidente Dilma Rousseff em seu discurso na abertura da Assembleia Geral, "o mundo sofre, hoje, as dolorosas consequências de intervenções que agravaram os conflitos, possibilitando a infiltração do terrorismo onde ele não existia, inaugurando novos ciclos de violência, multiplicando os números de vítimas civis. Muito se fala sobre a responsabilidade de proteger, pouco se fala sobre a responsabilidade ao proteger. São conceitos que precisam amadurecer juntos".
O conceito da "responsabilidade de proteger" acaba de completar dez anos desde sua primeira formulação. Foi desenvolvido com o propósito legítimo de evitar que populações sejam vítimas de genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e contra a humanidade.
A recente intervenção armada na Líbia, com a justificativa de proteção de civis, demonstrou a necessidade de aperfeiçoá-lo. Causaram preocupação a extensão da força empregada, a incapacidade de se combinar e calibrar a ação militar com a diplomacia, a interpretação questionável do mandato conferido pelo Conselho de Segurança e a falta de acompanhamento pelo próprio Conselho das ações empreendidas em nome de todos os membros da ONU. Invocou-se a "responsabilidade de proteger", mas faltou "responsabilidade ao proteger".
O Brasil apresentou, em novembro, ao Conselho de Segurança, o conceito de "responsabilidade ao proteger" com os seguintes elementos: a valorização da prevenção e dos meios pacíficos de solução de controvérsias; a excepcionalidade do emprego de meios coercitivos, especialmente o uso da força; a obrigação de que a ação militar não cause danos maiores do que aqueles que tenciona evitar; a observância rigorosa dos mandatos; a importância da proporcionalidade e de limites para o emprego da força, nas circunstâncias excepcionais em que for necessário contemplar o seu uso; e a necessidade de monitoramento e avaliação da implementação das resoluções.
A proposta brasileira tem recebido apoio de muitos países, ONGs e acadêmicos. A missão do Brasil junto à ONU já realizou um amplo debate com embaixadores de 25 países de todas as regiões do mundo e estudiosos do tema. A percepção compartilhada pela grande maioria foi a de que a iniciativa brasileira deu início a uma discussão que se tornou crucial após o episódio da Líbia. Em seminário recente organizado pela Stanley Foundation, com as principais autoridades mundiais no assunto, a iniciativa brasileira foi um dos elementos centrais dos debates, tendo sido bem acolhida e objeto de menção muito positiva por parte do secretário-geral da ONU.
Encorajado pela receptividade ao conceito da "responsabilidade ao proteger", o Brasil deverá organizar um debate na ONU a ser presidido pelo ministro Antonio de Aguiar Patriota.
O apelo político à prevenção, à moderação e à ação criteriosa no exercício da segurança coletiva, por meio da "responsabilidade ao proteger", segue a tradição da diplomacia brasileira. Temos credibilidade para promover esse debate na ONU porque nosso discurso em favor da paz é amparado por atuação que vai além da retórica e valoriza, na prática, a diplomacia e o diálogo. Pretendemos, de forma franca e construtiva, levar adiante esse debate indispensável, com o objetivo de contribuir para o aperfeiçoamento da ação da ONU e para sua maior eficácia na promoção da paz e da segurança internacionais.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Republica Mafiosa do Brasil (25): ate quando?

Não, não estou perguntando até quando irá a república mafiosa do brasil. Pelo andar da carruagem, não tem prazo de validade, e promete estender os seus malfeitos até onde a vista alcança e mais além.
Eu estava me perguntando até onde iria esta série de posts sob a rubrica geral da república mafiosa do brasil (tudo em minúsculas, comme il faut).
Sinceramente não sei. Eu a comecei esperando terminar em poucos números, menos de dez, digamos, apenas para refletir meu estado de espírito ao ver tantas patifarias sendo cometidas nos mais altos escalões da república, do estado, da máquina na qual se incrustram moluscos sanguessugas da nação.
Até coloquei um post de comentários pessoais, fazendo uma aposta segundo a qual alguns dos personagens da última leva de corrupção da grossa seriam demitidos no ato, ou se demitiriam de vergonha. Qual o que! Para que esperar algum gesto de decência dessa gente.
O editorial abaixo do Estadão coloca, como sempre, os ponts nos iis.
Paulo Roberto de Almeida

Republiquetização do País
Editorial - O Estado de S.Paulo
14 de setembro de 2010

Não é por acaso que o Gabinete Civil da Presidência da República tem estado envolvido em quase todos os grandes escândalos do governo Lula. A começar pelo mensalão, operado por José Dirceu, até a recentíssima denúncia de descarado tráfico de influência por parte da ministra Erenice Guerra e seus familiares, boa parte de todo o malfeito, do ilegal, da pura e simples corrupção que eclode no governo federal tem o dedo do Palácio do Planalto. O dedo de Luiz Inácio Lula da Silva, o grande responsável pelo desenvolvimento econômico dos últimos oito anos; pela incorporação de milhões de cidadãos antes marginalizados ao mercado de consumo; pela ascensão do País à condição de, vá lá, player importante na diplomacia mundial. Se tudo de bom que se faz no governo é de responsabilidade do "cara", por que apenas o que de errado se faz no governo não tem dono?

Por muito menos do que se tem revelado ultimamente de lambanças com as instituições do Estado e com o dinheiro público um presidente da República foi forçado a renunciar há menos de 20 anos.

Mas com Lula é diferente. Embriagado por índices de popularidade sem precedentes na história republicana, inebriado pela vassalagem despudorada que lhe prestam áulicos, aderentes e aduladores das mais insuspeitadas origens e dos mais suspeitosos interesses, Sua Excelência se imagina pairando acima do bem e do mal, sem a menor preocupação de manter um mínimo de coerência com sua própria história política e um mínimo de respeito pelo decoro exigido pelo cargo para o qual foi eleito.

Sempre que os desmandos flagrados pela Imprensa ameaçam colocar em risco seus interesses políticos e eleitorais, Lula recorre sem a menor cerimônia à mesma "explicação" esfarrapada: culpa da oposição - na qual inclui a própria Imprensa. A propósito das violações de sigilo comprovadamente cometidas recentemente pela Receita Federal - não importa contra quem - não passou pela cabeça de Sua Excelência, nem que fosse apenas para tranquilizar os contribuintes, a ideia de admitir a gravidade do ocorrido e se comprometer com a correção desses desvios. Preferiu a habitual encenação palanqueira: "Nosso adversário, candidato da turma do contra, que torce o nariz contra tudo o que o povo brasileiro conquistou nos últimos anos, resolveu partir para ataques pessoais e para a baixaria." Não há maior baixaria do que um chefe de Estado usar o horário eleitoral de seu partido político para atacar, em termos pouco republicanos, aqueles que lhe fazem oposição. E faltou alguém lembrar ao indignado defensor dos indefesos que entre "tudo que o povo brasileiro conquistou nos últimos anos" estão a Constituição de 1988, o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal, entre outras iniciativas fundamentais para a promoção social e o desenvolvimento econômico do País, contra as quais os então oposicionistas Lula e PT fizeram campanha e também votaram no Congresso.

Enquanto os aliados de Lula e de Sarney - a quadrilha que dilapidou o patrimônio público do Amapá - vão para a cadeia por conta das evidências contra eles levantadas pela Polícia Federal; enquanto os aliados de Lula - toda a cúpula executiva e legislativa, prefeito e vereadores, do município sul-mato-grossense de Dourados - pelo mesmo motivo vão para o mesmo lugar; enquanto na Receita Federal - não importa se por motivos políticos ou apenas (!) por corrupção - se viola o sigilo fiscal de cidadãos e as autoridades responsáveis tentam jogar a sujeira para debaixo do tapete; enquanto mais uma maracutaia petista é flagrada no Gabinete Civil da Presidência; enquanto, enfim, a mamata se generaliza e o presidente da República continua fingindo não ter nada a ver com a banda podre de seu governo, a população brasileira, pelo menos quase 80% dela, aplaude e reverencia a imagem que comprou do primeiro mandatário, o "cara" responsável, em última instância, pela republiquetização do País.

Está errado o povo? A resposta a essa pergunta será dada em algum momento, no futuro. De pronto, a explicação que ocorre é a de que, talvez, o povo de Lula seja constituído de consumidores, não de cidadãos.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Brics e emergentes: uma visao menos complacente

TRIBUNA
¿Quién pide cuentas a los emergentes?
VICENTE PALACIO
El País, 03/07/2010

La reciente cumbre del G-20 en Toronto ha venido a confirmar la dificultad del llamado ascenso pacífico de las nuevas potencias. Esta idea, acuñada por los ideólogos chinos, se ha extendido a los otros BRIC, Brasil e India, aunque menos a la vieja Rusia. La bricmanía de Goldman Sachs ha hecho el resto, señalándoles como el destino prioritario para los inversores, los mismos, por cierto, que hoy especulan contra el euro. Pero los poderes emergentes siempre han entrado en la historia como elefantes en cacharrería, y esta vez no es una excepción. Ahora, los países más débiles -y los ambiciosos como Irán- se pegan a sus talones, mirando de reojo a Washington. Y con Europa asoma un conflicto sobre valores civilizatorios en asuntos como la reducción de emisiones de CO2, el libre uso de Internet o la cooperación con regímenes autoritarios.
En realidad, ninguno de los BRIC tiene ya nada de "emergente": tras sostener desde hace una década el despilfarro del Occidente rico, y a pesar de sufrir castigos ocasionales, este sistema viciado les ha proporcionado enormes reservas y ha multiplicado su inversión y su comercio. ¿Qué problema tenemos hoy? Que estos cuatro gigantes económicos aún son, en relación a la gobernanza global, enanos políticos, y hasta, probablemente, un poco gorrones. Agazapados tras el desgaste moral de norteamericanos y europeos, ninguno de ellos quiere pagar la factura que corresponde a su peso, escudándose tras sus enormes retos internos. Se puede comprender la simpatía en favor del grupo como tal: al fin y al cabo, juntos serían capaces de propiciar un cambio de un orden injusto. Pero la cuestión es: ¿un cambio hacia dónde? Con una mayor representación en el FMI o en el Banco Mundial, o con la regulación del sistema financiero, no se pone fin a los males del mundo; tan solo se establece una base más coherente para negociar las políticas, y Toronto nos ha mostrado que lo que falta es precisamente coordinación. Cuando a los BRIC se les mira de cerca y por separado, surgen serias dudas sobre si realmente quieren cambiar las cosas -o sea, el vínculo actual entre ciudadanos y gobernantes, multinacionales y gobiernos, medio ambiente y crecimiento- más de lo que le gustaría a Obama o a la baronesa Ashton.
El déficit de responsabilidad que padece el actual sistema internacional se refleja no solo en la negligencia de los ricos, sino también en el modo en que los BRIC se saltan normas internacionales en cooperación al desarrollo o en impacto medioambiental; en cómo en Naciones Unidas bloquean sanciones contra regímenes que arrollan derechos elementales o en cómo se relacionan con sus vecinos desde Georgia a Pakistán, desde Taiwan a Venezuela.
El mismo doble rasero que mantiene a norteamericanos y europeos sobrerrepresentados en el FMI o el Banco Mundial absuelve el dudoso comportamiento de los cuatro. A pesar del anuncio chino de flexibilidad cambiaria, su infravalorado yuan va a continuar erosionando durante un tiempo la economía global; lo mismo hará el programa nuclear indio con el Tratado de No Proliferación. Pocos se preguntan cuánto gastan los BRIC en misiones de mantenimiento de la paz; tampoco se sabe bien a qué juega Brasil en energía nuclear, ni qué beneficios reportaría al mundo tenerle como miembro permanente del Consejo de Seguridad y con derecho de veto.
Curiosamente, en sus encuentros de Ekaterinburgo y Río de Janeiro, no se vio a los manifestantes denunciar, por ejemplo, el encarcelamiento de activistas en China o Rusia, o la gestión de la biosfera del Amazonas. Hasta ahora, ser miembro de este club ha salido gratis. Sin embargo, la algarada altermundista en las calles de Toronto -antes reservadas al G-8 o al foro de Davos- podría resultar una premonición de lo que les espera a los BRIC en el inmediato futuro: un escrutinio implacable por la sociedad civil globalizada, tal vez incluso represalias. Suele decirse que todo el planeta debería poder votar a las elecciones presidenciales de EE UU; ahora quizá pidamos lo mismo para los demás.
Parece claro que las estrategias para salir de la crisis -ajustes fiscales, impuestos a la banca- no pueden ser las mismas para todos. Sin embargo, resulta preocupante la poca voluntad de los BRIC para someter a estándares internacionales sus desequilibrios económicos, sus carencias sociales, o su gigantesca banca, que figura ya en los puestos de cabeza mundiales.
De nuevo, en Toronto se ha pasado por alto un pequeño detalle: que la especulación a través de los derivados financieros se retroalimentaba con la inversión hacia los mercados emergentes: ¿acaso los BRIC no jugaban en el mismo casino? Lo importante ahora es no incurrir más en las malas prácticas del pasado, y no otorgar cheques en blanco a nadie. Precisamente cuando en EE UU y Europa se avanza hacia una mayor transparencia, ex ricos y ex emergentes deben promover una responsabilidad compartida en lo regional y lo global, al tiempo que se reforman los organismos multilaterales. No hay otro camino para evitar una eclosión multipolar, para poder llegar a resultados en la próxima cita de noviembre en Corea del Sur, y más allá. Lo mejor sería que el club BRIC pase a la historia cuanto antes, y una actitud constructiva en el G-20 sirva de ejemplo para los que vienen detrás: Suráfrica, Turquía, México.

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