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domingo, 27 de dezembro de 2015

Uma vida entre dois seculos: um balanco retrospectivo - Paulo Roberto de Almeida


Uma vida entre dois séculos: um balanço retrospectivo

Paulo Roberto de Almeida

1. Por que um balanço retrospectivo? Por que agora?
Nasci na exata metade do século 20, quando a Guerra Fria recém deslanchava e quando o socialismo marxista aparentava possuir brilhantes perspectivas diante de si, forçando, aliás, comparações humilhantes para com o velho e injusto capitalismo. Era natural, portanto, que, nas leituras e reflexões juvenis, eu me inclinasse em favor dessa promessa de um futuro de justiça social, de desenvolvimento harmônico, de igualdade numa crescente prosperidade. Pouco antes de 1960, Nikita Kruschev, o líder soviético que sucedeu a Stalin (depois de eliminar concorrentes), prometia superar o capitalismo em dez anos e construir uma sociedade comunista acabada até o início dos anos 1980.
Minha crença nos poderes supostamente redentores do socialismo perdurou até o início dos anos 1970, justamente, quando tive a oportunidade de conhecer, pessoal e diretamente, o socialismo real, na chamada “cortina de ferro”. Constatei de imediato a imensa fraude do futuro prometedor do socialismo, um regime já sem qualquer futuro, sem esperança de mudanças substantivas, com promessas apenas de mais repressão, de mais penúria material, mais miséria moral. Muitos dos de minha geração que tinham entretido ilusões semelhantes, fizeram o mesmo tipo de constatação, por caminhos diversos, mesmo sem ter conhecido o socialismo real: a maior parte se rendeu às evidências, mas muitos outros continuaram insistindo nos mitos do passado, contra todas as evidências (mesmo hoje). Data daí minha verdadeira caminhada intelectual, embora eu já fosse um leitor eclético desde muito cedo, lendo todos os tipos de obras políticas e históricas, o que aliás nunca deixei de fazer, ainda hoje, quando percorro invariavelmente todo o espectro da literatura política: do bom, do mau e do feio.
Pois bem, chegamos agora ao final do terceiro lustro do século 21, quando praticamente já não existem mais socialismos no mundo, à exceção de duas fortalezas stalinistas miseráveis, nas antípodas do planeta, além de uma fauna variável de órfãos desse sistema inventado, que nunca entregou o que prometeu (ou que entregou o contrário do que tinha prometido). Eu nunca me inclui nessa fauna de órfãos – integrada em geral por ingênuos e ignorantes, mas também por muitas pessoas desonestas, por terem todas as condições de se render à realidade dos fatos, mas que persistem no engano coletivo –, embora eu seja honesto o suficiente para reconhecer o poderoso impacto de algumas das ideias marxistas no ambiente universitário e em minha própria produção de natureza acadêmica. Quando se é sociólogo de formação, já se é um pouco marxista, o que me parece inevitável na construção da teoria social e na determinação econômica de muitos processos sociais.
Mas eu nunca fui da vertente religiosa do marxismo: ao mesmo tempo em que lia Marx e Lênin, eu também lia Raymond Aron e Roberto Campos e qualquer outro teórico da sociedade que tivesse ideias inteligentes a expor. Tendo acumulado, portanto, algumas décadas de leituras, de reflexões e de viagens ao redor do mundo, por todos os capitalismos e socialismos existentes, das economias mais avançadas às mais atrasadas, é chegada a hora de rever o itinerário intelectual percorrido, detectar algumas constantes e discorrer livremente sobre algumas de minhas peculiaridades (ou bizarrices).

2. Uma vida de leitor obsessivo, de anotador regular, de escrevinhador errático
O que mais me distingue, justamente, no meio século transcorrido desde que me decidi por uma carreira intelectual, feita basicamente de aulas e de escritos voluntários, é a variedade e a quantidade da produção de textos acumulados desde meados dos anos 1960, o que me habilita agora a um balanço mais ou menos livre da enorme quantidade de escritos em diversos gêneros, tanto inéditos quanto publicados. Quem ousa percorrer minhas listas de trabalhos – todas disponíveis em meu site pessoal – constataria que os trabalhos ditos originais, ou seja, textos acabados, aproximam-se de três mil, ao passo que os publicados, em formato impresso ou digital, já somam mais de 1.200, o que me parece, com 41%, uma boa marca de aproveitamento dos escritos produzidos. Textos apenas esboçados, ou semiescritos, notas diversas, projetos de trabalhos, esquemas de futuros livros, espalhados por dezenas de working files em meu computador, são em número igualmente impressionante, mas estão numa bagunça indescritível.
Não é minha intenção, contudo, oferecer no presente texto mais uma avaliação quantitativa da produção realizada ao longo do período, ou nos últimos anos. Pretendo, sim, efetuar um balanço qualitativo desses escritos, com foco mais em seus méritos próprios do que propriamente em seu autor. Livros e artigos publicados devem ser julgados e avaliados pelo que eles representam de substantivo, independentemente de quem seja seu autor, como aliás recomendava Machado de Assis em relação ao trabalho analítico do crítico literário. Com efeito, o patrono da literatura brasileira dizia que, na avaliação de uma obra, o crítico deveria esquecer, e até mesmo varrer para debaixo do tapete, o autor da obra, ignorar sua existência, e se concentrar exclusivamente na obra em si, sem outras considerações do que o mérito próprio da escrita, suas qualidades (ou falta de), o estilo e a elegância dos argumentos e situações, o caráter dos personagens, enfim, a obra tal qual exposta, em sua natureza e essência puramente literárias.
No meu caso, entretanto, os textos produzidos ao longo desse meio século, em especial os do período recente, estão inextricavelmente ligados à natureza de minhas duas “profissões”, de um lado a carreira diplomática, que constitui a minha ocupação principal desde o final dos anos 1970, de outro as atividades acadêmicas, que exerci de modo regular (por vezes intermitente, em função da carreira justamente) por um período bem mais longo do que esse, praticamente desde sempre. Sobretudo nos últimos vinte e cinco anos, os escritos se concentraram nos temas mais frequentes de minhas tarefas diplomáticas e das aulas e pesquisas na vertente acadêmica: as relações econômicas internacionais, com destaque para a diplomacia econômica brasileira, e as políticas públicas em geral, com ênfase nas políticas macroeconômicas e setoriais no Brasil.
Assim, as eventuais qualidades (ou falta de) desses textos, a coerência (ou não) das ideias defendidas, a pertinência dos argumentos em relação à materialidade dos fatos tratados, sua adequação aos objetos descritos (quais sejam, as políticas dos governos, as posturas diplomáticas, o sucesso ou insucesso relativo de trajetórias de desenvolvimento, etc.), tudo isso se explica, provavelmente, pela personalidade do autor e sua posição especial, talvez bizarra, certamente diferente, no chamado establishment diplomático brasileiro. O que é esse “establishment diplomático”?
Trata-se de uma corporação estatal dotada de bons quadros governamentais, bem formados em função do background familiar e de estudos de qualidade, depois treinados e socializados na academia diplomática, mas que nem sempre dispõe de suficiente experiência na vida prática – ou seja, a das empresas privadas, a dos reais criadores de riqueza social – para construir um discurso diplomático adequado às necessidades do país. Por este simples enunciado percebe-se claramente minha postura crítica em face de minha própria corporação, uma vez que, ao mesmo tempo em que defendo as posturas diplomáticas oficiais, tendo a manter uma visão essencialmente crítica com respeito a essas posições, sempre buscando fazer uma espécie de anatomia da carreira.
O fato de que o Brasil seja um país de sucesso apenas relativo no seu processo de industrialização, de construção de uma base respeitável no tocante às suas forças produtivas – o que certamente se deve à sua classe empresarial, agrícola ou industrial, grande parte dela formada por imigrantes – mas que ele também seja um país de claro insucesso na construção de uma sociedade menos desigual, excessivamente marcado pela corrupção, por outros aspectos de uma institucionalidade falha (o que me parece evidente), essa contradição se deve certamente, mais do que a obstáculos técnicos ou materiais, à baixa qualidade de sua democracia, o que revela uma espécie de falência de suas elites dirigentes, que certamente incluem, pelo menos em parte, os diplomatas.
Que seja exatamente um diplomata a reconhecer esse insucesso relativo do Brasil abre a questão de saber quem é esse diplomata, o que fez na vida, antes de tornar-se diplomata, e o que ele sobretudo fez depois de se tornar diplomata (talvez por acidente). Para tornar este balanço retrospectivo um pouco mais destacado de certo subjetivismo inerente a este gênero de depoimento, conviria talvez falar do personagem como sendo uma terceira pessoa, esperando com isto separar o que sou hoje do itinerário percorrido desde o início de minhas aventuras intelectuais, que se estendem, justamente, de um século a outro, período no qual minha trajetória de vida e o acumular de escritos diversos se confundem com as transformações ocorridas no sistema internacional e no próprio Brasil. Como diria Ortega y Gasset, um homem não pode ser visto separado de suas circunstâncias, e são estas que passo a expor agora, da maneira mais livre possível.

3. No começo, o marxismo e o socialismo, rapidamente revistos
Vindo do caldeirão do marxismo universitário do final dos anos 1960, quando o Brasil vivia o início dos anos de chumbo da ditadura militar, o futuro diplomata – que sequer sonhava com a carreira nessa época, pensando apenas perseguir uma carreira acadêmica, depois de terminar de expulsar os militares do poder, como tantos outros jovens idealistas – teve a boa sorte, e a reflexão preventiva, de não ser preso, como tantos outros colegas de sua geração, embarcados na aventura da oposição armada ao regime. Escolheu auto-exilar-se na Europa, onde buscou o das real existierenden Sozialismus, não por que apreciasse sobremaneira a gerontocracia esclerosada do neoestalinismo soviético, mas porque achava que encontraria ali – mais exatamente na Universidade 17 de Novembro, de Praga, a instituição que acolhia os estudantes do Terceiro Mundo – facilidades para continuar os estudos de Ciências Sociais que havia iniciado, e abandonado logo no segundo ano, na venerável Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, então ainda repleta de “founding fathers” da chamada “escola paulista de sociologia” (que seriam cassados logo em seguida pelo regime militar). Ao me ver desprovido dos professores cujas obras eu já conhecia em grande medida por leituras antecipadas, e ao visualizar os perigos de uma possível captura pela máquina de repressão do regime, preferi o autoexílio, que imaginava ser de duração relativamente curta. Não foi exatamente o caso.
A curta estada – de apenas três meses – no socialismo real, acompanhada da leitura de Kafka e de alguns outros livros sugestivos para a ocasião, convenceu-o, se não definitivamente, pelo menos fortemente, que aquele não era, certamente, o regime que queria para o Brasil. A migração do socialismo surreal para o capitalismo ideal – na Bélgica, mas com incursões em todas as outras democracias da Europa ocidental, amainou o seu leninismo mais prático do que teórico, e o convenceu de que a social democracia era talvez um modelo apropriado para se tentar na terra natal.
Tem início então um longo período de estudos solitários e de reflexões críticas sobre todos os modelos possíveis e factíveis de desenvolvimento econômico e social, com estadas prolongadas em bibliotecas universitárias, apenas entrecortadas por viagens a cada ocasião aberta à sua curiosidade intelectual. Sete anos se passaram nesse trabalho de construção de uma Weltanschauung, uma visão do mundo própria, que se alimentava não apenas das leituras de livros, dos debates teóricas nas academias, mas sobretudo de uma reflexão derivada de um contato direto com as mais diversas realidades. Cadernos e mais cadernos de notas resultaram de tais reflexões, além de um três dissertações acadêmicas, entre elas uma tese de doutorado deixada temporariamente interrompida.

4. Da academia para a diplomacia, com um pé atrás...
A volta ao Brasil, quase sete anos depois, assistiu à surpresa da troca inesperada da perspectiva acadêmica pela carreira de servidor do Estado (que eu combatia, ainda) na área diplomática, provavelmente a mais intelectualizada de toda a burocracia federal. Foi um impulso, mas também uma maneira de desligar-se dos vínculos antigos, na cidade de origem, e de testar a ficha policial (mais propriamente política) em face de um aparato de segurança que ainda era dominado pela paranoia do comunismo e da subversão. Os primeiros anos na vida diplomática ainda viram o recém servidor do Estado no Serviço Exterior assinar diversos artigos de política e de análise de conjuntura com o mesmo “nom de plume” que tinha usado durante seu período de autoexílio, um cuidado apenas elementar em vista da resistência dos bolsões da ultradireita militar aos ensaios de abertura e de distensão política do regime ditatorial.
A volta à democracia, no Brasil, em 1985, coincidiu com um primeiro retorno dos dois postos inaugurais no exterior, período que foi aproveitado para concluir um doutoramento que tinha ficado interrompido quando da volta ao Brasil, ainda sob o regime militar. A nova condição de “doutor em Ciências Sociais” o habilitou a tornar-se professor da academia diplomática, o prestigioso Instituto Rio Branco, e do mestrado em sociologia da Universidade de Brasília. Tem início aí uma fecunda, prolífica, certamente abundante produção intelectual, nos mais diversos campos da sociologia política, da economia do desenvolvimento, e das relações internacionais, que não mais se interromperia desde então, resultando na elaboração cumulativa de centenas de artigos, duas dezenas de livros, e de várias dezenas de capítulos em livros editados no Brasil ou no exterior. Poucos diplomatas, se algum, conseguem equiparar-se, pelo menos em termos de volume, à produção publicada – ainda maior computando-se os inéditos e os working files – por esse Stakhanov da pena, ou melhor, do computador.
O mais interessante, porém, quando se pensa na independência da escrita, na liberdade de expressão, na autonomia da palavra, e na postura crítica em face das questões de trabalho, é que nada na produção publicada desse escritor compulsivo traz a marca habitual da chamada “langue de bois”, o diplomatês insosso da maior parte dos textos de chancelaria, a postura “chapa branca” dos argumentos defendidos, a adesão a posições oficiais ou a políticas governamentais, de qualquer espécie, época ou partido. Jamais se poderia acusa-lo de dobrar-se às conveniências do estilo diplomático, cheio de palavras elegantes que representam um esforço elegante para circular em torno do nada, senão a propósito da cooperação, do diálogo, da construção de pontes para contemplar mútuos objetivos e interesses recíprocos, tudo em prol do desenvolvimento e da prosperidade dos povos respectivos, enfim, essas platitudes aborrecidas que costumam enfeitar os discursos de chancelaria. Nada, nem um traço dessas baboseiras conceituais, que parecem constituir o ganha-pão dos escrevinhadores oficiais da diplomacia.
Não que o nosso diplomata acidental, eclético à sua maneira, tenha deixado de também produzir textos propriamente oficiais, o que seria praticamente impossível. No curso da carreira, além dos incontáveis telegramas e memorados – com sua linguagem técnica, especializada, contida pela necessária concisão a que se deve atender nos processos decisórios, restrita ao tratamento objetivo dos assuntos em pauta – é preciso também fazer discursos e artigos para os graduados, os barões da Casa. Nessa atividade de ghost-writer, muitos se perdem nos floreios góticos e nas filigranas jurídicas, naquele estilo pomposo que faria a distinção de acadêmicos da periferia, com todo respeito por nossos irmãos “periféricos”. Nunca foi o caso deste personagem, e talvez alguns de seus textos elevados à consideração superior, tenham sofrido cortes num ou noutro gabinete, talvez para podar as sociologices, ou, justamente, para corrigir a linguagem não diplomática, ou insuficientemente burocrática. Aliás, também foram preservados alguns registros de censura a seus próprios textos destinados a publicação, trechos cortados aqui e ali por algum secretário zeloso dos gabinetes, preocupado com observações realistas e sinceras que costumam percorrer os argumentos alinhados.
No Itamaraty desses tempos de discursos finamente costurados, e de exposição de diplomatas aos grandes órgãos da imprensa, sobretudo no Rio de Janeiro, costumava-se dizer que “você só assina artigos quando não mais os escreve”; ou seja, aos nègres da carreira, aos secretários com bom manejo da pena se atribuía o encargo de redigir as peças literárias ou os discursos diplomáticos que depois passavam a figurar sob o nome e a responsabilidade do chanceler ou de algum barão da Casa. Não era o caso do diplomata em causa: não apenas assinava o que tinha escrito, como também tinha a surpresa de ver cortados ou mudados determinados parágrafos de seus textos antes de sua publicação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com seu primeiro livro sobre o Mercosul, podado em parte por conter algumas considerações não politicamente corretas sobre o ingresso do Paraguai no bloco comercial. Mas isso é pouco relevante numa trajetória feita de muitos outros escritos ainda mais polêmicos, a ponto de o diplomata ter de recorrer, em mais de uma ocasião e em plena “democracia”, a novos “noms de plume” e a outros subterfúgios do gênero, para escapar de uma censura não menos real por ser mais disfarçada, ou discreta do que aquela grosseira e paranoica do regime militar. O expediente se repetiria, com frequência ainda maior, durante o reinado dos companheiros, quando o “pensamento único” se abateu não só sobre o Itamaraty, mas igualmente sobre todas as demais agências do Estado. Mas este é um episódio bem mais recente, e ainda não encerrado de todo, para ser avaliado com o distanciamento necessário a uma reflexão ponderada sobre as ironias políticas da vida pública.

5. A preservação da independência intelectual na burocracia estatal
Uma das grandes etapas da carreira do personagem em questão, das mais gratificantes no plano intelectual, ocorreu em Washington, a capital da maior biblioteca pública do planeta – e possivelmente da galáxia – a Library of Congress, capaz de contentar qualquer pesquisador sobre qualquer assunto humanamente concebível. Na Library of Congress nosso diplomata pode encontrar todos os livros de que tinha ouvido falar alguma vez na vida e que nunca tinha tido o prazer de encontrar antes. Como por exemplo, este aqui: Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881), escrito por um diplomata monárquico português da segunda metade do século 19, Frederico Francisco de la Figanière, que expunha quatro regras simples do trabalho diplomático, quais sejam, nominalmente: 1) agradar; 2) ser leal; 3) antepor a palavra à pena; e 4) ter concisão e ordem no redigir (muito útil esta última). O livrinho, anacrônico como se imagina, com sua linguagem empolada, permitiu a confecção de um texto alternativo bem mais heterodoxo, as “dez regras modernas de diplomacia” (http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/800RegrasDiplom.html) que se converteram em um sucesso imediato entre os candidatos à carreira, a despeito de oferecer uma visão da carreira e do trabalho diplomático em muitos aspectos numa linha contrária, e até oposta, ao que se espera de um diplomata conformado e obediente.
Este é, em qualquer hipótese, o espírito iconoclasta, desafiador e até provocador, que marcam a maior parte dos escritos desse diplomata não convencional, numa Casa que costuma afirmar que a sua melhor tradição é saber renovar-se com continuidade, mas que exibe, mais exatamente, certos traços mais encontráveis nos ambientes militares e no inner sanctum do Vaticano: a hierarquia e a disciplina. Nosso diplomata não respeita nem a hierarquia, nem se pauta pela disciplina, sempre quando o que está em jogo é, não o cumprimento de instruções de chancelaria – o que convém acatar e seguir, por mais que se discorde delas –, mas a formulação tentativa do processo decisório, quando o que se espera não é exatamente a subserviência às posições superiores, mas o exercício da inteligência, o manejo da fundamentação empírica, a argumentação racional em torno da adequação entre meios e fins, mais do que o acatamento servil de alguma opinião mais elevada na hierarquia.
Como ele próprio costuma dizer: “não deixo o cérebro em casa quando vou trabalhar, nem o deposito na portaria no momento de adentrar nos locais de trabalho”. Dito: cérebros ativos são feitos para pensar, e não para se conformar com o conforto das posições estabelecidas, aquilo que Flaubert chamava de “platitude des idées reçues”, ou seja, o senso comum, geralmente torto, daqueles que se recusam a usar a inteligência e que se contentam em reproduzir aquilo que recebem já pronto. Assim é que o diplomata em questão nunca deixou de levantar o dedinho cada vez que uma proposta mal pensada, mas elaborada e mal sustentada vinha servir de base para instruções que lhe pareciam contrárias ao interesse nacional (sim, tão difícil de ser definido quando as preferências em matéria de times de futebol ou opções gastronômicas).
O tal de “interesse nacional” é muitas vezes concebido simplesmente em termos de patriotismo rastaquera ou nacionalismo rústico, duas “bêtes noires” que o nosso diplomata nunca deixou de combater, pelo simplismo evidente, pelas inconsistências lógicas, pela simples falta de eficácia na vida prática. Diplomatas acidentais servem para isso mesmo: contestar “idées reçues”, inovar conceitualmente, desafiar posições arraigadas, sob risco de se chocar com as verdades reveladas, os maus hábitos do passado, o conforto da inércia e a não disposição em pensar, coisas que nosso diplomata abomina num grau apenas inferior à desonestidade intelectual e a ignorância ilustrada (que é diferente da ignorância ingênua daqueles que não deram estudar e se informar).

6. Um contrarianista numa Casa conformista
Estas são, resumindo, as linhas mestras do pensamento e das atitudes do diplomata acidental, uma mistura de Dom Quixote da pena e daquele personagem do cartunista francês Sempé, o homenzinho solitário que está sempre no movimento inverso ao das grandes manifestações de opinião, indo a contrário senso do que se espera dos integrantes da manada. A despeito do custo pessoal, e funcional, dessas tomadas de posição a contrario senso da maior parte da burocracia diplomática, nosso diplomata não se arrepende, em nenhum momento, de defender ideias próprias, e de ousar expressar publicamente suas opiniões, mesmo quando isso pode ocasionar algum “desajuste administrativo”, ou mesmo um corte nas perspectivas de carreira. Mais importante do que ser passivo, ou conformista, é obter satisfação em dizer tudo o que se pensa, assumir plena responsabilidade por tudo o que se escreve e publica, ao  defender certas ideias que não estão em conformidade com o espírito da época, o chamado Zeitgeist (que, na maior parte das vezes, é apenas a expressão beócia de servilismo funcional).
Olhando em retrospecto, Raymond Aron, na França, Roberto Campos no Brasil, tantos dissidentes no ambiente soviético e muitos outros destoantes em vários regimes, também se sentiram isolados em determinadas épocas, alguns nem mesmo tendo o prazer de ver suas posições confirmadas e legitimadas pouco mais adiante, no itinerário sempre torto da História. O próprio dos homens livres é exercer o livre arbítrio, pensar com sua própria cabeça, usando a lógica, velando pela plena adesão de seus argumentos aos dados da realidade, e ousar sustentar suas ideias mesmo num ambiente hostil ou conformista. Esta satisfação compensa quaisquer désagrements temporários ou ocasionais. Vale !

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 22 de setembro de 2015; Anápolis, 26 de dezembro de 2015