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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Amazonas e 5G: dois temas candentes para o Brasil e para sua política externa - Rubens Barbosa

AMAZONAS E 5G

 

Rubens Barbosa

O Estado de S. Paulo, 12/01/2021


Cada vez mais, todos os países terão de lidar com os impactos sobre sua economia de decisões tomadas no exterior e sobre as quais não têm influência. Novas prioridades globais, como a preocupação com o meio ambiente, a mudança de clima e a desigualdade social terão influência sobre políticas internas dos países.

            Incertezas e desafios internos e externos serão, assim, as realidades para o Brasil em 2021. Além das políticas e reformas estruturais, duas questões serão cruciais para definir projeções mais positivas de crescimento econômico do país na década que se inicia: a ratificação do acordo do Mercosul com a União Europeia (UE) e a decisão sobre a implantação da tecnologia 5G.

A assinatura do acordo de livre comércio com a UE, bem assim sua ratificação ficarão na dependência da percepção externa sobre o cumprimento pelo Brasil dos compromissos assumidos nos acordos de meio ambiente e mudança de clima assinados desde 1992 e sobre a fiscalização e repressão de ilícitos no desmatamento, nas queimadas e no garimpo na Amazônia. Mais recentemente, a UE comunicou aos países membros do Mercosul, como condição para levar adiante o acordo, sua intenção de assinar uma declaração conjunta anexada ao acordo definindo compromissos ambientais e sociais dos dois blocos para reforçar a confiança dos países europeus quanto a posição do Mercosul, em especial do Brasil, sobre a Amazônia. Em 2021, deverão ocorrer duas importantes reuniões relacionadas com o Acordo de Paris sobre mudança de clima em Glasgow na Escócia e sobre Biodiversidade, na China, o que abre oportunidades para o Brasil mostrar os avanços no que se refere à Amazônia. Argentina no primeiro semestre e Brasil no segundo semestre terão de atuar  fortemente junto às lideranças políticas e os parlamentos para fazer com que o acordo possa ser assinado e ratificado.

No tocante à tecnologia 5G, o Brasil está na incomoda posição de ter-se colocado entre os EUA e a China na crescente confrontação estratégica entre as duas maiores economias do mundo e seus dois maiores parceiros comerciais. A disputa entre as duas superpotências pela hegemonia econômica, comercial e tecnológica global continuará pelas próximas décadas e ganhará novas características a partir de janeiro com o governo Biden. Como a confrontação não tem as mesmas características ideológica e bélica da disputa entre EUA e a União Soviética, a  importância da parceria comercial com a China por parte de muitos países fez com que  a UE concluísse as negociações de um significativo acordo de investimento com Beijing, na contramão do que propõem os EUA. Sem tomar partido de um lado ou de outro no tocante à definição da tecnologia 5G, mais da metade das maiores economias globais já adotou a tecnologia chinesa, enquanto há ainda um número elevado de países desse grupo sem decisão formada sobre o assunto. A Alemanha chegou até a passar no Parlamento uma lei de segurança de redes que permite o uso da tecnologia da Huawei em redes 5G em troca de garantias da empresa chinesa sobre a proteção de informações em seus equipamentos. Para o Brasil, a tecnologia 5G será importante, especialmente para permitir a modernização da indústria cujo desenvolvimento ficou afetado pelas dificuldades econômicas internas e pela perda da competitividade. Apenas 10% da indústria brasileira pode ser considerada no estágio da quarta revolução industrial (4.0). As redes particulares propiciadas pela 5G facilitarão o processo de recuperação e atualização da indústria local com beneficio para a economia, o emprego e as exportações nacionais.

            O atual governo terá a responsabilidade de adotar medidas que sejam vistas como adequadas e com resultados concretos na politica ambiental e de mudança de clima para permitir a ratificação do acordo de livre comércio com a UE. Caso contrário, a crescente demanda dos governos, mas agora também do setor privado, em especial grandes companhias e instituições financeiras, e dos consumidores sobre a preservação da Amazônia acarretará medidas contrárias aos interesses nacionais. Restrições às exportações e boicotes de produtos brasileiros e prejuízos pela suspensão de financiamento em projetos de interesse do governo. Uma decisão baseada em considerações ideológicas e geopolíticas, no caso do 5G, terá consequências nefastas para o pais a médio prazo pelo atraso de dois a três anos na utilização de uma tecnologia que vai revolucionar o mundo e pelo custo de milhões de dólares que a mudança da infraestrutura existente acarretaria para as empresas de telecomunicação e para os consumidores. 

Não levar em conta essas realidades será afetar as perspectivas de desenvolvimento econômico, de re-industrialização do país e de avanços na inovação e na tecnologia, agravando ainda mais as condições sociais domésticas e dificultando um posicionamento relevante do Brasil no mundo, o que deveria ser de nosso interesse.

A invasão insurrecional do Congresso em Washington deverá ter forte impacto na política interna de países onde o nacional populismo pode ameaçar as instituições, colocando em risco a democracia. A politica ambiental de Joe Biden deverá ter consequências concretas sobre o Brasil.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do IRICE

 

 

domingo, 20 de outubro de 2019

Temas de política externa: notas para entrevista

Fui convidado para participar de um programa gravado, com o oferecimento prévio de quatro temas principais, como abaixo relatado. Não vou, evidentemente, ler minhas notas, mas sempre tento alinhar alguns pontos de destaque, para aclarar minhas próprias ideias. Como tampouco sei se o programa será veiculado ou não, permito-me desde já deixar registrado o que mais ou menos pretendo falar a respeito dos temas indicados. Se houver outras perguntas, fica para o improviso da hora...


Temas de política externa: notas para entrevista gravada

Paulo Roberto de Almeida


Notas sumárias sobre a nova postura internacional do Brasil, por parte de um diplomata de carreira, mas que se pronuncia em sua qualidade pessoal, como professor de Economia Política dos programas de mestrado e doutorado em Direito do Uniceub.

1. Discurso do presidente Bolsonaro na ONU
O embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, duas vezes Secretário Geral do Itamaraty e sogro do atual chanceler, tem um livro precioso para se conhecer as posições do Brasil no sistema político multilateral sob a égide da Organização das Nações Unidas: é A Palavra do Brasil nas Nações Unidas, publicado em pelo menos duas edições, talvez três, livremente disponível Biblioteca Digital da Fundação Alexandre de Gusmão, que o editou. Trata-se de uma coletânea de todos os discursos pronunciados por representantes brasileiros, geralmente chanceleres, mas, nas duas últimas décadas, presidentes igualmente, a cada abertura anual dos debates na Assembleia Geral da ONU, e isto desde 1946, quanto o primeiro diplomata a se pronunciar em nome do Brasil foi o embaixador Souza Dantas, o grande salvador de vidas judias quando foi embaixador em Paris e sob a França de Vichy, sob ocupação nazista.
Acessando esse livro no site da Funag, os interessados podem verificar o teor de cada um desses discursos. Posso assegurar, contudo, que não existe qualquer outro parecido, nem próximo ou de longe, ao pronunciado pelo presidente Jair Bolsonaro em setembro passado no plenário da Assembleia Geral. Não se trata apenas do seu conteúdo, a anos-luz de distância dos discursos sóbrios lidos por todos os demais representantes brasileiros, incluindo os presidentes Lula, Dilma e Temer. Trata-se sobretudo do estilo, da maneira pela qual o presidente Bolsonaro se referiu aos temas próprios ao Brasil, mais até do que às questões propriamente internacionais, que geralmente ocupam a maior parte desses pronunciamentos.
Não existe, nem nunca existiu algo do gênero, para espanto de muitos diplomatas, brasileiros e estrangeiros, inclusive porque ele tratou de questões essencialmente internas ao Brasil. Tal verificação é fácil de fazer: basta comparar o que disse o presidente com qualquer outro dos demais 73 discursos feitos por representantes do Brasil naquele foro político internacional. Cabem dúvidas, a esse respeito, sobre como fará o embaixador Seixas Corrêa para resumir o discurso de 2019, se por acaso for preparar uma nova edição de sua excelente coletânea de pronunciamentos oficiais brasileiros. Eles sempre ficaram num tom elevado, de estilo rigorosamente protocolar, com a sobriedade que exige tal tipo de manifestação em nome do país, perante a comunidade internacional. Tais peças são dedicadas a examinar o conjunto da agenda internacional, ou pelo menos os seus mais importantes problemas, assim como a postura que o Brasil adota em relação a tais questões, cabendo muitas vezes um apelo do Brasil ao reforço da cooperação mundial para a solução dos problemas mais relevantes, em termos de paz e segurança, de desenvolvimento e combate à pobreza, de oferecimento de soluções aos desafios da comunidade internacional, como o terrorismo e o meio ambiente.
Infelizmente, não foi nada disso que se ouviu da tribuna da ONU no último mês de setembro. Começou-se por alegações duvidosas de que o governo atual tinha salvado [sic] o Brasil do “socialismo”, uma suposta ameaça que não parecia ter sido detectada por qualquer força política nos anos recentes. Seguiram-se invectivas contra líderes e personalidades de outros países, sem que eles fossem nomeados, mas em tom agressivo e claramente pouco diplomático. Atribuo essas características ao fato de que esse discurso do presidente não deve ter sido preparado, como praticamente todos os anteriores, por diplomatas do próprio corpo profissional do Itamaraty, depois burilado por assessores no palácio presidencial, e ainda refinado por algum mestre da língua portuguesa, antes de ser traduzido para o inglês.
O que se sabe é que ele foi feito por amadores em diplomacia, neófitos que agem como aprendizes na política externa do Brasil, que ali resolveram introduzir as teses mais esdrúxulas de que se tem notícia desde o início da ONU. O único diplomata que participou ativamente de sua elaboração no Palácio do Planalto, o próprio chanceler, é confessadamente admirador de um destrambelhado guru instalado na Virgínia que, reconhecidamente, orienta o governo atual, ou pelo menos o seu presidente e familiares, e que pode ser considerado, por qualquer diplomata iniciante, como uma pessoa absolutamente inepta no terreno das relações internacionais ou em política externa brasileira, quaisquer que sejam suas incompetências e outras más qualidades em outras áreas das ciências humanas e sociais. Quanto ao chanceler, veiculou-se pela imprensa, e não foi desmentido pelo próprio, que, em passagem anterior por Washington, ele teria se reunido com o líder da nova direita americana Steve Bannon, para alegadamente discutir ou comentar sobre o discurso que o presidente faria na ONU. Se tal for verdade, trata-se de mais uma iniciativa absolutamente inédita, e inusitada, nos anais da diplomacia brasileira, pelo menos no que se conhece de nossos registros documentais sobre a preparação desse tipo de discurso. A despeito do que se afirma de forma recorrente, trata-se de algo que contraria nossa tradição de autonomia soberana na determinação da postura nacional em matéria de pronunciamentos à comunidade internacional, sendo que não só o corpo diplomático profissional, mas igualmente os militares devem considerar fato bizarro.

2. Indicação para a OCDE
A demanda brasileira de ingresso na OCDE está atrasada em pelo menos trinta anos, desde pelo menos quando o presidente Collor anunciou sua intenção de ver o Brasil como o último dos países avançados, e não como o primeiro dos países em desenvolvimento. A partir de então, alguns esforços de aproximação foram feitos, sem que, no entanto, algum governo, até a gestão Temer, decidisse pela demanda de entrada na organização de Paris. Registro que, em 1996, encarregado do tema no Itamaraty, ao retornar de Paris, onde me ocupei justamente do tema OCDE e providenciei a entrada do Brasil em diversos comitês, no status de observador, eu escrevi uma tese do Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco, intitulada “Brasil-OCDE: uma interação necessária”, eu proclamava, não a adesão do Brasil à organização, mas a incorporação dos altos padrões de qualidade das normas e protocolos da OCDE às políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, no plano interno. Minha tese foi, então, recusada, talvez porque fosse julgada muito destoante das posturas seguidas então pelo Itamaraty, e que continuaram pelas duas décadas seguintes, sobretudo nas três gestões e meia do lulopetismo. A tese, não publicada, está disponível em minha página em Academia.edu.
Pessoalmente, não considero ser necessária a adesão do Brasil à OCDE, mas sim essa incorporação de padrões e normas da organização às nossas políticas, pois ela é, do aviso de quase todos, um clube de boas práticas, não um clube de ricos ou o templo do neoliberalismo, como equivocadamente se proclama, geralmente nas hostes da esquerda. Quanto à indicação pelos Estados Unidos, tampouco a considero crucial nesse processo, embora o país detenha boa dose de poder decisório na organização, como ocorre por sinal no caso de uma série de outras instituições internacionais, a começar pelas organizações de Bretton Woods, FMI e Banco Mundial. Todos os países membros da organização precisam manifestar o seu apoio para o ingresso de um novo membro, inclusive os Estados Unidos, e considero mais um gesto inusitado o fato de o governo Bolsonaro ter concordo de imediato com a imposição dos EUA de renúncia, pelo Brasil, do seu status preferencial de país em desenvolvimento no contexto do sistema multilateral de comércio, como se observou para total surpresa dos observadores, como do próprio governo brasileiro, quando da visita a Washington do presidente Bolsonaro.
A surpresa surgiu logo após, quando o Secretário de Estados dos EUA enviou, em agosto, uma carta ao Secretário Geral da OCDE declarando que os Estados Unidos apoiavam o ingresso na organização apenas da Argentina e da Bulgária, e que não desejavam, no futuro previsível, qualquer nova ampliação da OCDE. De fato, a administração Trump frustrou a estranha disposição do governo Bolsonaro de estabelecer uma aliança, no caso subordinada, unilateral e claramente em ruptura com nossas tradições diplomáticas, que se imaginava manter com a grande potência hemisférica. Atribuo essas frustrações à total inexperiência do pequeno grupo que assessora o presidente na área externa, amadores ou diplomatas de modesto escalão no serviço exterior. Mas, essa recusa dos Estados Unidos de endossar a nossa candidatura, como ingenuamente se proclamou de forma grandiloquente e triunfalista por ocasião da visita, não é tão grave quanto outras medidas que, independentemente do apoio ou não dos países membros, colocam uma barreira prática, talvez intransponível, ao desejo do Brasil de fazer parte dessa organização. Refiro-me à medida totalmente arbitrária do presidente do STF de proibir compartilhamento de informações entre o antigo COAF e outros órgãos da administração pública encarregados de investigar, processar e julgar crimes de lavagem de dinheiro ou outros delitos financeiros, talvez como detectados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, encarregado de supervisionar transferências bancárias suspeitas, anteriormente subordinado ao ministério da Fazenda, repassado à Justiça e depois deslocado dessas duas esferas. A outra medida, conectada ao mesmo universo, refere-se à decisão do Executivo de dissolver o COAF e de criar uma Unidade de Investigação Financeira no âmbito do Banco Central, medida inusitada no contexto das demais atribuições e encargos do BC e claramente destinada a reduzir a eficácia do novo órgão no combate à corrupção. Essas mudanças já levantaram críticas no âmbito da OCDE, em especial por parte do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi), e podem, na prática, inviabilizar o ingresso do Brasil na organização.

3. Relatório do Human Rights Watch
A Human Rights Watch é uma das mais respeitadas organizações não governamentais no campo dos direitos humanos e das liberdades democráticas, tendo um papel relevante, por seus relatórios anuais e estudos tópicos, na denúncia de graves violações que ocorrem nessas áreas de importância crucial na escala civilizatória, do ponto de vista da observação de altos padrões de respeito nesses campos. Quando servi em Washington, como ministro-conselheiro na embaixada do Brasil, participei de muitos encontros da organização, tomando notas em benefício do governo brasileiro e até respondendo a questões relativas ao Brasil no âmbito de um de seus programas audiovisuais. Considero seus métodos de trabalho inatacáveis e altamente necessários em vista de graves violações que se manifestam a todo momento em diversos quadrantes do globo, como ainda se viu recentemente no caso da Venezuela.
O ex-deputado Bolsonaro, depois candidato, atualmente presidente, supostamente vinculado a normas e princípios constitucionais que protegem direitos humanos e liberdades democráticas, sempre demonstrou respeito muito precário, quando não clara contrariedade nessa área, sendo notórias suas invectivas contra os “direitos humanos de bandidos”, ou contra um suposto “viés esquerdista” da imprensa (em geral), assim como em relação a diversos outros componentes do que ele considera ser uma “agenda anti-família” e anti-religião. Ou seja, já a partir de suas declarações e posicionamentos, já se poderia concluir que seu governo teria posturas claramente contrárias a toda uma agenda avançada naquelas áreas com as quais trabalham não só a Human Rights Watch, mas diversas outras organizações dedicadas aos mesmos temas da agenda social, dos direitos individuais e coletivos vinculados a expressão, às liberdades fundamentais e à defesa dos direitos humanos e da democracia. \
Em visita ao Brasil no mês de outubro de 2019, o diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, afirmou com todas as letras que o presidente Jair Bolsonaro está "atacando frontalmente" os direitos humanos no Brasil, estimulando a polícia a usar de força letal sem justificativa adequada, assim como vem tentando enfraquecer o poder da sociedade civil e da mídia. Segundo o mesmo alto responsável, o presidente atacou os defensores da floresta, deu aval à exploração de madeira ilegal na Amazônia e tem minado os esforços para combater a tortura nos estabelecimentos públicos de segurança. A delegação da URW foi recebida pelo chanceler Ernesto Araújo, mas este, segundo comentários de membros da delegação, a despeito de estar secundado por outros diplomatas não expressou nenhum comentário apropriado aos temas abordados pelos representantes da ONG. O governador do Rio de Janeiro recusou-se a receber a delegação e o ministro da Justiça e Segurança Pública apenas demonstrou disposição em recebê-la quando seus membros já estavam embarcando de volta.

4. Embaixada em Washington
Trata-se de algo absolutamente inédito nos anais da diplomacia brasileira, tanto pela forma como o anúncio foi feito, quanto pela natureza da indicação, um filho que recém completou 35 anos, a idade mínima fixada na Constituição para tal cargo, e uma designação que só é vista, de forma similar, em ditaduras personalistas e regimes autoritários de base familiar. Mas vamos nos deter em primeiro lugar quanto à forma, pois o presidente parece ignorar não apenas requisitos mínimos de protocolo diplomático, quanto noções elementares de cortesia no caso específico de uma indicação desse tipo.
Toda e qualquer intenção de se designar um enviado diplomático para ser acreditado em um outro país, com o qual se tem relações diplomáticas normais, deve ser mantida em segredo, até a aceitação da pessoa indicada pelo país receptor. Tal comunicação é usualmente feita através de nota secreta enviada à chancelaria do outro país, informando sobre a intenção de designar tal pessoa como representante, e fazendo-a acompanhar de um currículo relativamente extenso do representante a ser designado. Qual o motivo do segredo? O país pode decidir que não quer aquela pessoa. Ora, o que se teve no governo Bolsonaro, tão pronto o aniversário foi consumado, foi um alarde geral aos quatro ventos. Isso representa, simplesmente, uma quebra de padrão diplomático, em linguagem popular uma grosseria. O presidente Bolsonaro não parece exibir nenhum sentido de política de Estado, de relações internacionais, uma vez que trata a presidência da República como se fosse a sua casa, a sua família, a sua seita. É uma coisa histriônica, sobretudo no plano das relações internacionais.
Em segundo lugar, cabe lembrar que a Constituição proíbe o nepotismo. Nesse caso, seria mais que nepotismo, pois nomear o próprio filho para um cargo de alta relevância seria “filhotismo”. O correto, na verdade, seria não só pedir o agrément (aprovação) em segredo, e se o país aceitar, manter ainda em segredo a mensagem para o Senado, uma vez que os senadores têm o direito de, e podem efetivamente, recusar. No caso da designação do filho do presidente para Washington se incorreu, portanto, não apenas em nepotismo, como também se quebrou o princípio da confidencialidade no processamento desse tipo de designação, seja no plano externo, seja no interno.
Em terceiro lugar, existe o problema da capacidade para o cargo, o que notoriamente não parece ser o caso. O personagem em questão não teria provavelmente sequer condições de passar num concurso para oficial de chancelaria, quanto mais para o de ingresso na carreira diplomática, notoriamente exigente. Não possui domínio da língua, não tem noções mínimas de política internacional, de história, de direito internacional, não tem a mínima experiência de vida para ocupar um tal posto. O fato de ter trabalho num fast food nos EUA não o qualifica minimamente para o cargo; isso é até uma ofensa para os diplomatas do corpo profissional do Itamaraty, que poderiam ter como chefe uma pessoa totalmente inepta e desqualificada para missão de tamanha responsabilidade.
A Comissão de Relações Exteriores do Senado jamais se defrontou com um caso desse tipo, tanto mais inédito por se tratar de nepotismo explícito. Não existem precedentes na carreira, ou fora dela, embora filhos de presidentes ou de ministros tenham exercido chefias de postos. Um – Rodrigues Alves Filho –, foi admitido depois da morte do pai; outro – Afonso Arinos, filho –, sem conexão com as funções eletivas do pai e a despeito delas: como é a norma desde 1946, ele e todos os outros têm de passar no concurso do Instituto Rio Branco. Alguns, educados no exterior, nunca lograram êxito nos exames, notoriamente difíceis, talvez por deficiências no Português. Seria de se presumir que esse candidato seja um exímio conhecedor das relações internacionais, tenha domínio perfeito do inglês e de várias outras matérias, além de uma boa familiaridade com a agenda diplomática brasileira e mundial, que é o que se exige nos concursos de admissão do Itamaraty.
Por último e mais importante lugar, o fato de se declarar amigo da família Trump – o que provavelmente não é verdade – já constitui um motivo de impedimento legítimo. Não se pode enviar para um posto dessa natureza alguém que possui tal tipo de viés de empatia, o que é altamente negativo do ponto de vista das informações que possa prestar ao serviço exterior do Brasil. O cidadão em questão já passeou nos Estados Unidos com o boné da campanha de "Trump 2020" por duas vezes, e em ambas teve palavras de desrespeito absoluto para com os brasileiros imigrantes, primeiro ao declarar que apoiava a construção do muro na fronteira com o México, depois ao dizer que os que se encontram no país trabalhando e remetendo dinheiro para o Brasil constituem “uma vergonha” para o país. Vergonha é ver um suposto representante do povo brasileiro ofender de tal maneira seus compatriotas expatriados.
Que tipo de informação objetiva – que é o mínimo que se espera de um embaixador – poderá oferecer à chancelaria brasileira, contendo uma análise equilibrada das políticas de um governo com o qual está empaticamente identificado? Como seria ele visto na Câmara dos Representantes americana, atualmente dominada por uma maioria de oposição ao presidente? Como vai ser com os diplomatas profissionais, eventualmente seus subordinados, dotados de maior experiência em assuntos internacionais do que ele mesmo? E o que farão os ministros, conselheiros, secretários mais antigos, ao se defrontar com um chefe de posto notoriamente despreparado para tratar dos mais diversos assuntos da agenda bilateral, hemisférica e internacional, financeira, política e cultural, como é o caso dessa embaixada que vale quase por uma chancelaria inteira?
A CREDN-SF tem um imenso desafio pela frente, uma vez que o que está em causa é a própria credibilidade da diplomacia brasileira junto ao país com o qual já tínhamos relações ainda antes da independência, e laços formais desde 1824. O primeiro embaixador do Brasil, designado por Rio Branco em 1905, se chamava Joaquim Nabuco, elevado a essa categoria sem precedentes na diplomacia brasileira justamente para servir em Washington. Outros embaixadores de fora da carreira diplomática que passaram por Washington chamavam-se Oswaldo Aranha, depois chanceler, o banqueiro Walter Moreira Salles, duas vezes embaixador em Washington, o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, e um que tinha sido da carreira e servido em Washington sob Roberto Campos, Marcílio Marques Moreira, depois ministro da Fazenda. Alguma semelhança com o pretenso candidato atual?

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20/10/2019

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Democracia e Politica Externa: consideracoes sobre o caso brasileiro - Paulo Roberto de Almeida


Democracia e Política Externa: considerações sobre o caso brasileiro

Paulo Roberto de Almeida
Para participação em mesa redonda sobre o tema no IV Simpósio Internacional de Ciências Sociais: Ciências Sociais e Democracia Hoje: controvérsias, paradoxos e alternativas (dias 11, 12 e 13 de novembro, no auditório da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia).

(Atenção: draft paper, not yet finished, not to be cited)
 
1. Democracia e política externa: considerações iniciais
A temática é bastante específica: democracia e política externa, no sentido estrito do tema. Em outros termos, não se trata de examinar conexões entre regimes políticos e as relações interestatais no sistema internacional, nem de saber como este funciona no plano de sua organização política em função de critérios mais ou menos democráticos, isto é, representação eleita, debates de tipo parlamentar, controle e responsabilização dos poderes, etc. O objetivo é o de considerar como países membros da comunidade internacional refletem, ou não, princípios ou valores democráticos em sua política externa, uma das mais importantes políticas públicas de qualquer Estado contemporâneo. Ao empreender este tipo de exercício, seria natural dedicar maior atenção ao caso do Brasil, tanto no plano histórico quanto no atual governo, com ênfase nas difíceis e ambíguas relações que o seu partido hegemônico, o PT, mantém com o princípio democrático, a começar pelas relações entre Estado e partido, uma relação clássica no campo do marxismo-leninismo, corrente à qual o PT estaria ideologicamente associado, como uma variante anacrônica do neobolchevismo.
Uma pergunta inicial, dentro da temática proposta, poderia ser assim formulada: pode um país que se pretende democrático apoiar ditaduras reconhecidas? Registre-se que não se está falando, neste caso, das relações diplomáticas interestatais, que países de diferentes regimes políticos mantém entre si, desde que respeitados padrões mínimos de comportamento, que estão basicamente expressos na Convenção de Viena de 1961 sobre Relações Diplomáticas e, de modo mais amplo, na Carta ONU (1945). Trata-se de apoio político, financeiro e até moral, que um país pretensamente democrático possa conceder a regimes que nitidamente não se pautam pelos mesmos valores e princípios.
É o caso do Brasil atual, sem qualquer hipocrisia na afirmação: o governo do PT apoia ditaduras reconhecidas, e parece não ver nenhum problema nisso. Para ser mais concreto ainda: o governo do PT tem um caso de amor explícito com Cuba, derivado, provavelmente, de coisas não reveladas e não sabidas pela maior parte dos simples mortais, que somos nós. Ele também tem manifestas simpatias por outras ditaduras, mas o seu caso de amor com Cuba é mais longo, mais durável, mais consistente, simbolizado inclusive nos milhões de dólares transferidos para a mais longeva ditadura do continente e uma das mais antigas do planeta, só superada pela da família Kim, da infeliz Coreia do Norte. Mas, como o tema proposto é o da democracia e suas conexões com a política externa, cabem considerações iniciais sobre essa relação altamente ambígua, tanto no plano metodológico ou conceitual, quanto do ponto de vista da prática, antes de se ilustrar essas conexões com exemplos retirados de nossa própria experiência.
Política externa é universal, existe em todos os tipos de regime, das mais variadas cores e sabores. Existe nas tiranias impecáveis, nos despotismos mais cruéis, e também, claro, nas democracias de mercado, que são aqueles que realizam uma melhor aproximação entre os objetivos da política externa e os valores desses regimes, ou seja, uma maior compatibilidade entre meios e fins. Nos demais regimes, a política externa pode ser convergente ou não com os princípios do direito internacional contemporâneo – que são, por definição democráticos, pelo menos tendencialmente –, mas ela não precisa espelhar perfeitamente as características internas, ou domésticas, do sistema político (que pode ser “perfeitamente” antidemocrático). Até as menores tribos de caçadores e coletores da floresta possuem uma política externa – que é a forma de se relacionar com as tribos vizinhas, pela guerra ou em relativa concórdia – sem necessariamente exibirem qualquer sistema político digno desse nome, ou formalizado em regras impessoais, como costuma ocorrer nas comunidades mais complexas.
Não pretendo traçar um roteiro sistemático, sequer científico das relações ambíguas, contraditórias, frustrantes, que mantêm os dois termos da mesa redonda: democracia e política externa. O próprio subtítulo deste simpósio internacional aponta para a difícil interface entre as ciências sociais – no âmbito das quais se situa o estudo da política externa – e a democracia: controvérsias, paradoxos e alternativas. Os dois primeiros termos podem ser compreendidos em suas próprias definições formais, e são incontroversos, tão claras são as controvérsias e os paradoxos dos regimes democráticos em sua natural complexidade e variedade. Mas o terceiro termo me parece mais dúbio: eu não vejo alternativas à democracia, nenhuma alternativa, mas é evidente que subsiste, se manifesta, ou existe simplesmente, uma imensa decalagem entre os sistemas políticos realmente existentes, que se auto-intitulam “democracias”, e sua efetividade concreta, para ficar num outro termo controverso.
Quase todos os países do mundo, quase todos membros da ONU, pretendem ser democracias, até a China comunista, ou a Coreia do Norte. Mas é claro que a qualidade democrática de alguns regimes deixa muito a desejar, e não apenas aqueles que são ditaduras de fato – como os já citados – mas também grandes democracias de baixa qualidade, como parece ser o caso do Brasil, ou da Índia, para ficar nos exemplos mais conhecidos. Levando em conta essas defasagens de fato entre intenção e realidade, e mais precisamente entre a retórica democrática e a prática da política externa, o que poderia ser dito da relação sutil entre os dois elementos dessa equação ambígua?
Poder-se-ia parafrasear Clausewitz e dizer que a política externa representa a continuidade da política interna por outras vias ou por outros meios, mas esse tipo de argumento é bastante frágil, tanto em sua acepção puramente formal – ou seja, enquanto correspondência, ou reflexo, da política doméstica nas relações exteriores do país – quanto no entendimento de que a política externa deva refletir exatamente o caráter do Estado e o agenciamento de forças políticas que nele se estabelecem (de maneira temporária, nas democracias, de forma mais ou menos permanente, nas ditaduras). Na verdade, não há uma perfeita correspondência entre essas duas políticas, que podem se desenvolver de forma independente uma da outra, por canais e procedimentos próprios, como tampouco há, na forma e no conteúdo, uma “osmose”, ou imbricação estrutural, entre, de um lado, o “caráter” da política externa, e a “natureza” do regime político, no nosso caso, um regime formalmente democrático, dotado de instituições republicanas mais ou menos “clássicas”, ou comuns aos sistemas presidencialistas desse tipo.
A ONU é, tal como expresso em sua própria estrutura institucional, uma total contradição entre o princípio da representação democrática e a realidade da supremacia oligárquica, fenômenos contraditórios refletidos na composição e nos processos decisórios da Assembleia Geral de um lado e do Conselho de Segurança de outro. Já discuti essa questão em meu capítulo sobre os artigos 18 e 19 da Carta da ONU, ao qual remeto para não ter de me estender novamente sobre essas questões aqui: “Artigos 18 e 19”, in Leonardo Nemer Caldeira Brant (org.) Comentário à Carta das Nações Unidas (Belo Horizonte: Cedin, 2008, p. 323-346).
Para que a discussão não se perca em considerações da caráter puramente abstrato, ou em argumentos muito vagos quanto a elementos concretos desse complexo relacionamento que se pretende examinar, o restante deste texto se concentrará num exame do caso brasileiro em perspectiva histórica, ou seja, cobrindo tanto os períodos autoritários, ou ditatoriais, quanto as fases democráticas, eventualmente interrompidas ou aparentemente consolidadas, como pode ser o caso desde 1985.

2. Democracia e política externa na história do Brasil: o Império
(...)

Ler a íntegra neste link: https://www.academia.edu/s/956b56c726
 (em revisão, não acabado)

quarta-feira, 12 de março de 2014

Temas de política externa: 9. Oriente Medio - Paulo Roberto de Almeida

Temas de Política Externa

Paulo Roberto de Almeida
Reflexões para desenvolvimento futuro

9. Oriente Médio
Uma das mais famosas frases do início do presente milênio foi certamente aquela do primeiro ministro da Defesa do presidente George Bush, Donald Rumsfeld, que, numa tradução livre, dizia mais ou menos o seguinte:
“Existem conhecimentos conhecidos. Estes são aquelas coisas que sabemos que sabemos. Existem desconhecimentos conhecidos. Isto quer dizer, existem coisas que sabemos que não sabemos. Mas também existem os desconhecimentos desconhecidos. Estão são coisas que nós não sabemos que não sabemos.”
Profundo, não é mesmo? Mas ele pelo menos tinha a sinceridade de revelar a sua própria ignorância, aliás sobre coisas que ele próprio desconhecia. Enfim, ele abriu todo um novo departamento de filosofia, que seria melhor deixar entregue a sábios da academia, antes do que a responsáveis pelas forças armadas de um país, e o seu emprego no terreno: já pensaram mandar tropas combater coisas desconhecidas que elas próprias desconhecem que desconhecem? Complicado, não é mesmo?
Enfim, esta era um pouco a situação do Brasil quando, na diplomacia do nunca antes, seus promotores resolveram se lançar em busca da paz no Oriente Médio, confiando apenas nas coisas que nós conhecíamos, isto é, a tradicional amizade entre judeus e árabes nas nossas pacíficas comunidades imigradas, convivendo nos melhores termos desde dezenas de anos, e dando – como se poderia dizer? – um exemplo mundial de tolerância e de entendimento, baseados na convivência mutuamente proveitosa, para ambas as comunidades. Eles sabem o que sabem, e nem sabem o que não sabem...
Enfim, parece que faltou à diplomacia sindical calçar as sandálias da humildade e confessar que não sabia o que não sabia, e talvez até o que sabia que não sabia, em lugar de tentar fazer a paz apenas na base da vontade política e do apelo a uma boa conversa entre duas almas gêmeas. O Brasil não é um novato na região, mas é verdade que nunca participou dos complicados esquemas de poder e de influência geopolítica, ademais dos extremamente complicados problemas políticos e de segurança que foram sendo criados após décadas de dominação colonial, golpes e contragolpes, guerras e ocupações, ações terroristas e de repressão estatal, um pouco em todas as partes. Estivemos envolvidos muito episodicamente – na missão de paz do Sinai, após a guerra do canal de Suez, por exemplo, e nas barganhas comerciais em torno do petróleo e de produtos brasileiros, inclusive armas, quando a ocasião se apresentou –, mas sem aquele grau de conhecimento direto, o tratamento de dossiês especializados e, sobretudo, sem a capacidade de influência que possuem ali vendedores de armas e financistas, vale dizer, as grandes potências.
Houve um tempo, em todo caso, em que a diplomacia sindical quis ir além das nossas modestas capacidades epistemológicas, sem nunca confessar que não sabíamos o que não sabíamos (pode ter sido ingenuidade, claro, mas pode ter sido também por cenas explícitas de megalomania). O Brasil pode ter algum papel, sempre modesto, a desempenhar no cenário geopolítico ultracomplicado do Oriente Médio, desde que, modestamente, calce as sandálias da humildade e forme especialistas na região, estude com afinco os problemas locais e procure sempre adotar uma postura cooperativa, ouvindo os dois (ou mais) lados. Preferências ideológicas anacrônicas, espúrias alianças partidárias, interesses políticos pouco transparentes e outras inclinações inconfessáveis podem sempre atrapalhar, e bastante, essa postura de equilíbrio que se requer no trato de questões complicadíssimas numa região explosiva.
O Itamaraty, aliás, sempre se pautou pelo equilíbrio e discrição no tratamento dos assuntos da região e no encaminhamento de temas das relações bilaterais e regionais que se apresentaram ocasionalmente ao Brasil, diretamente, ou de modo mais amplo nos foros multilaterais, quando alguma questão afeta à região era levantada. O programa nuclear iraniano, por exemplo, não era um assunto que estivéssemos acompanhando desde o início, ou para o qual estivéssemos técnica e politicamente preparados: tudo foi feito com base naquele entusiasmo dos neófitos que se julgam preparados para o que der e vier, com base num incorrigível otimismo e na inocência dos ingênuos. Pode-se também explorar a hipótese das amizades repentinas por certos apreciadores de futebol. Pode ser; caminhos nunca antes trilhados são sempre insondáveis...
Quando sabemos o que não sabemos sempre é mais fácil tomar decisões com base num engajamento muito modesto, sempre pensando nos custos e benefícios de um maior envolvimento com questões que não nos dizem respeito diretamente. A coisa só se complica mesmo quando não sabemos o que não sabemos, e pretendemos saber. Sempre pode surgir uma pedra no meio do caminho...


Hartford, 12/03/2014 

Temas de politica externa 3: Perspectivas da nova governança internacional: desafios para o Brasil - Paulo Roberto de Almeida

3. Perspectivas da nova governança internacional: desafios para o Brasil
Paulo Roberto de Almeida 

Governança é um termo equivocado, em primeiro lugar porque não se trata propriamente de governança, em segundo lugar porque não é exatamente nova, e em terceiro lugar porque não é, verdadeiramente, internacional. Em todas as épocas, quase todos os homens, e as mulheres também, são atacados pela miopia do conjunturalismo, e pelo mal do exclusivismo societal.
Todas as sociedades, e o mundo com elas, estão mudando o tempo todo, e as interpretações sobre tudo isso também mudam. Os habitantes da Europa pós-romana não tinham consciência de que estavam vivendo na Idade Média, ou de que eles fossem “medievais”. Os habitantes da Itália do século XIV não tinham ideia de que estavam entrando no “Renascimento”, e os “modernos” nunca souberam quando entraram e, pior, quando saíram dessa tal de Era Moderna. Alguns, em geral os marxistas, acreditam que foi só na revolução francesa, e que a partir daí vivemos numa coisa chamada Era Contemporânea. Que seja: eu me considero muito satisfeito por ser contemporâneo de mim mesmo, e sempre achei o futurismo um pouco ingênuo (sem falar de algumas tendências notoriamente fascistas, mais passons...).
A tribo dos historiadores, sempre eles, ainda não se entendeu sobre quando começou, e quando acabou, o século XX, e talvez nem mesmo o século XIX. Parece que este último começou em 1815, na derrota de Napoleão – que tinha a sua própria noção de governança – e terminou com os canhões de agosto de 1914, num dos episódios mais insensatos da governança da belíssima Belle Époque. E parece que o século XX começou em 1918 – o marxista Hobsbawm prefere que seja em 1917 – e terminou em 1989, com a queda do muro de Berlim, ou em 1991, com o colapso da União Soviética, vocês escolhem.
 A implosão daquele formidável império escravocrata representou, para um czar contemporâneo, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. Concordo com ele, mas com essa pequena diferença de que acho que se tratou da melhor e da mais positiva “catástrofe” jamais ocorrida na história da humanidade: ela permitiu, pela primeira vez em três gerações – ou seja, nos 75 anos de “construção do socialismo”, defendido até o fim por Hobsbawm e, ainda hoje, por vários outros aloprados – libertar dois terços da população mundial da opressão dos engenheiros sociais para começar, finalmente, a construção de um novo tipo de governança internacional, como pretendia George Bush (pai), em 1992, ao falar de uma “nova ordem internacional.” Pois bem, sabemos do que veio depois, na China (Praça da “Paz Celestial”) ou na própria Rússia, para demonstrar como são efêmeras, e enganosas, essas proclamações de “novas ordens” ou de uma “nova governança internacional”.
Pois bem, não existe tal coisa, mas existem arranjos circunstanciais, no mais das vezes temporários, sobre determinadas regras que devem presidir às relações entre os Estados, garantindo um mínimo de convivência entre os mais poderosos entre eles, para evitar que eles se entredevorem em guerras totais e conflitos monumentais. Assim foi com as guerras de religião que resultaram nos tratados de Westfália; assim foi com as guerras napoleônicas, que redundaram nos acordos de Viena; assim foi com a Primeira Guerra Mundial – era para ser apenas a última das guerras europeias, e foi chamada de Grande Guerra até 1939 – que terminou com a humilhação da Alemanha no tratado de Versalhes; assim foi na Segunda Grande Guerra – esta sim, mundial – e que terminou, não em San Francisco, mas em Ialta e Potsdam, no máximo em Dumbarton Oaks, quando foram traçados os contornos da “nova governança internacional” que resistiria aos anos da Guerra Fria, até 1989, ou 1991, justamente.
Bem, não houve aqui nenhuma grande catástrofe mundial, apenas uma feliz primavera dos povos (da Europa oriental), mas ela foi geopoliticamente importante, sem nenhuma dúvida. Mas, espíritos nostálgicos estão sempre querendo restabelecer as glórias de tempos passados, da mãe Rússia, da nova Roma, do novo Império do Meio. Essa tal de “nova governança internacional”, como vemos, não existe; o que existem são arranjos temporários, e circunstanciais, para acomodar os interesses dos Estados mais poderosos, os únicos capazes de moldar, de influenciar, ou de compor a agenda internacional que passa a ser debatida – jamais resolvida – em foros de cooperação do tipo da ONU e suas agências especializadas, que minimizam os conflitos e até conseguem, de vez em quando, administrar alguns (mas apenas quando isso convém às grandes potências).
Sim, para este aprendiz de historiador, não haverá mais guerras globais, não acontecerão novos, futuros, eventos catastróficos, contrapondo diretamente essas grandes potências da atualidade, uma vez que elas não podem se permitir o mútuo aniquilamento num conflito nuclear. O que haverá, como já chamei em um trabalho anterior, será, já é, uma “Guerra Fria econômica”, uma competição – não por novas fontes de matérias primas e produtos estratégicos, uma vez que o sistema comercial multilateral é suficientemente aberto para permitir acomodações – por vantagens econômicas temporárias e circunstanciais, uma vez que as governanças econômicas nacionais – estas, sim, bem reais – precisam acomodar as necessidades de emprego, de renda, de prosperidade, para os seus próprios povos, embora também existam elites predatórias que estão bem mais ocupadas em explorar o seu próprio povo (sim, existe, e é mais comum e frequente do que se pensa).
Por todos os argumentos alinhados acima considero um pouco bizantino qualquer debate sobre as perspectivas da “nova governança internacional” e os seus “desafios para o Brasil”. Cada um, segundo sua formação, informação e deformação ideológica terá a sua interpretação do que seja essa tal de “nova governança internacional”, terá a sua noção das perspectivas dessa coisa no futuro próximo, e terá as suas recomendações a fazer no que considera serem os “desafios para o Brasil” nesse imbróglio de palavras, ideias, conceitos e opiniões. Eu, como não sou muito afeito a debates bizantinos, prefiro deixar em paz as tais de perspectivas da “nova governança internacional” e me concentrar nos desafios brasileiros para o próprio Brasil.
Sim, sou um otimista incurável, e considero que o mundo nunca foi tão bom quanto é hoje, para o Brasil e para quaisquer outros países da chamada comunidade internacional. A globalização – ou melhor, sua terceira onda, enfim liberta da praga do tal de socialismo internacional – oferece as melhores oportunidades para o pleno desenvolvimento das vantagens ricardianas de cada nação e permite aproveitar muitas chances de capacitação técnica, tecnológica, científica e educacional para o integral desenvolvimento dos seus povos, à condição que eles sejam livres e abertos a seus influxos inovadores (e desafiadores, para ficar no tema). A China, por exemplo, o Império do Meio, ofereceu pelo menos um terço da taxa de crescimento do PIB para o Brasil na última década, ao empurrar os preços das matérias primas para alturas nunca antes conhecidas na história econômica mundial; de certa forma, o Brasil surfou na bonança da economia mundial durante esses anos todos, uma vez que raramente enfrentou os desafios de fazer reformas adaptativas às novas condições da economia mundial. Sim, acho que os nossos pecados começam por aí mesmo.
Como diz um velho preceito, fica difícil ajudar alguém que não quer ajudar-se a si mesmo, e o Brasil tem falhado miseravelmente nessa missão. Todos os nossos problemas, à diferença do que andam proclamando por aí – crise mundial, tsunami financeiro, concorrência desleal e outras bobagens – são exclusivamente “made in Brazil”, nenhum deles é causado por qualquer ameaça externa, exploração estrangeira ou cupidez de especuladores internacionais. Senão vejamos.
Insuficiência de infraestrutura? O mundo tem dinheiro sobrando para investir, bastando marcos regulatórios adequados e estabilidade de regras. Baixa capacidade de inovação? O mundo está aberto ao comércio de tecnologia, mas mais importante do que o intercâmbio de produtos é o comércio de ideias, razão pela qual nossas universidades deveriam não só serem mais abertas à internacionalização, como sobretudo abertas à osmose com o mundo empresarial. Corrupção? É coisa nossa, de vez em quando envolvendo algum capitalista estrangeiro, mas apenas porque aqui existem pessoas dispostas a meter a mão em algum dinheiro que só pode entrar regulado por algum governo maroto. Má qualidade da educação? Só tenho uma resposta, e um único culpado: o idiota do Paulo Freire, que aliás é “patrono da educação brasileira”.
Vejamos outras mazelas “made in Brazil”. Déficit habitacional, caos nos transportes urbanos, desastres ambientais e humanos provocados por ocupações irregulares, criminalidade ascendente, deterioração do simples sentido da ordem e do respeito ao patrimônio público – evidentes nessas manifestações espontâneas ou organizadas que terminam em depredações – e a inflação renitente que insiste em podar, todo ano, uma parte do poder de compra do brasileiro? Tudo isso não tem nada a ver com o ambiente externo ou ameaças vindas de fora. São males genuinamente nossos, fabricados, entretidos, mantidos e aumentados aqui mesmo, em parte pela chamada “pressão das massas” e os desejos de “inclusão social”, mas muito mais pela imprevidência, despreparo e incompetência das políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, que deveriam se ocupar justamente desses problemas prioritários do Brasil.
Ou seja, o Brasil não tem um problema, sequer desafios, de governança internacional, mas ele tem muitos problemas brasileiros, que só poderão ter respostas aqui dentro. Com isso não quero dizer que o Brasil deva esquecer o ambiente externo, desprezar a tal de “nova governança internacional” e passar os próximos dez anos tentando resolver os seus problemas internos. Mas acredito que o Brasil já daria uma imensa contribuição à ordem internacional se respondesse pelo seu exemplo com boas e eficazes soluções para os problemas da boa governança econômica – estabilidade macroeconômica, competição microeconômica, abertura ao comércio internacional e aos investimentos diretos estrangeiros – e também para os problemas de governança política e social: boa gestão pública, sem muita corrupção e barganhas indecorosas, instituições independentes (sem o predomínio de uma sobre as demais), boa qualidade da educação pública, da infraestrutura, gastos sociais que não signifiquem simplesmente um subsídio ao consumo dos mais pobres (mas que os capacitem para ganhar sua renda e seu sustento nos mercados, em lugar da assistência pública), enfim, uma série de ações que são tão evidentes aos olhos e mentes dos estadistas sensatos que nem seria preciso ficar aqui repetindo o manual da boa governança. Acredito que um bom diagnóstico de situação já represente um bom começo para a formulação e execução de políticas que caminhem no sentido da boa governança interna.
Quanto à governança internacional, acredito que os bons exemplos podem também começar aqui dentro: defesa da democracia, dos direitos humanos, não ingerência nos assuntos internos de outros povos (mas também solidariedade em relação a certas situações de opressão e de desrespeito notório aos direitos humanos), enfim, todos esses valores que nunca juramos na escola mas que seria bom que começássemos a defender, inclusive lá fora. Já seria uma excelente contribuição para a boa governança internacional. Oxalá.


12/03/2014