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sexta-feira, 27 de maio de 2016

Preparacao para a carreira diplomatica: uma tarefa de longo prazo - Paulo Roberto de Almeida

Mais um texto das "antigas", que talvez ainda apresente algum interesse para os candidatos à carreira diplomática.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27/05/2016


A formação e a carreira do diplomata:
uma preparação de longo curso e uma vida nômade

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

            A carreira diplomática tem atraído número crescente de jovens, em decorrência da maior inserção internacional do Brasil e dos avanços da globalização e da regionalização. Os candidatos têm em geral procurado os cursos de graduação em relações internacionais. Cabe indagar se esses cursos fornecem a preparação adequada para o concurso do Itamaraty e, alternativamente, considerando que apenas um número restrito será admitido na carreira, se eles fornecem os instrumentos necessários para lograr uma boa colocação no setor privado, que é ainda o grande “absorvedor” da oferta universitária.
Não é tampouco certo que um curso de graduação em relações internacionais seja a melhor via de acesso à carreira diplomática, uma vez que os requerimentos de entrada são mais amplos, ou mais específicos, do que a grade curricular desses cursos, ainda desiguais e com ênfases distintas nos vários estados: alguns são teóricos, voltados para a pesquisa em política mundial, outros colocam ênfase no comércio internacional e no chamado global business (o que pode ser uma orientação correta, se pensarmos que as relações econômicas internacionais compõem o essencial da agenda contemporânea). Os cursos tradicionais — direito, economia ou administração, com um complemento em línguas — podem ser mais útil ao aspirante à carreira, já que ele poderá se exercer também nas profissões pertinentes. Ele pode, depois, buscar uma especialização em relações internacionais, familiarizando-se com os debates teóricos e com a agenda da política mundial.
            Em todo caso, o candidato à carreira pode não receber num curso de graduação, ou num preparatório de seis ou doze meses, o conhecimento de que necessita para atender aos requisitos do concurso do Instituto Rio Branco. Ele precisa ter sólida formação, feita geralmente de anos de acumulação de cultura humanista e de incontáveis leituras. Mais do que qualquer curso ex-catedra, o importante é o esforço individual do candidato, que será idealmente um auto-didata. Um curso de preparação à carreira pode ajudar, ao transmitir um “conhecimento mastigado” e alguma “segurança psicológica”. Mesmo vindo de família modesta e carente de aperfeiçoamentos no exterior ou em cursos de línguas, o candidato motivado pode suprir lacunas pessoais ou de ambiente social ao construir o seu próprio curso, mediante um sério programa de estudos sistemáticos, feito da bibliografia sugerida pelo IRBr, da leitura diária de um jornal econômico e do acesso constante à Internet (como The Economist, Financial Times, Foreign Affairs e outros).
            Nos últimos anos, o Instituto Rio Branco tem selecionado um em cada oitenta ou cem candidatos: a seleção é portanto rigorosa e a grande maioria deverá buscar uma outra profissão dentro da área, na espera de poder um dia ingressar na carreira. O mercado é basicamente constituído pelo setor privado, e cabe ao jovem ter consciência disso desde o início. Algumas faculdades mantêm cursos com perfil excessivamente acadêmico, feito de matérias teóricas ou de disciplinas voltadas para os grandes equilíbrios geopolíticos do cenário internacional, como se todos os seus egressos fossem passar a vida discutindo as teorias realista ou racionalista de relações internacionais ou resolvendo algum problema no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Essa não é a realidade da agenda mundial, que, mesmo em sua vertente negocial, é feita mais de questões de comércio internacional do que de problemas relativos ao poder mundial.
            Algumas especializações podem responder melhor ao perfil específico para uma inserção nos mercados regionais de trabalho. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, chama naturalmente uma formação centrada nas disciplinas diretamente ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional), para um trabalho no governo, nas organizações internacionais ou no meio acadêmico. Métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria), requerem formações voltadas para o chamado global business, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul), em questões fitossanitárias e no domínio da língua espanhola.
Alguém dotado de conhecimento acadêmico, de uma boa disposição para o auto-aprendizado e de senso prático em algumas das áreas mencionadas tem chances de subir em qualquer profissão, à medida em que sua experiência de vida o colocar em contato com pessoas dotadas de densidade nessas áreas. Nunca se deve chegar num primeiro emprego como se não se necessitasse de treinamento ou de aperfeiçoamento técnico e profissional. Atitudes do tipo “eu sei fazer”, “eu sei tudo”, “deixa comigo”, geralmente conduzem a desastres, ou pelo menos a situações de constrangimento funcional.
A carreira diplomática é única nos seus requisitos de entrada, não apenas em termos da bagagem intelectual acumulada ao longo de anos de estudo, mas também no sentido em que o diplomata deve exibir algumas qualidades de convivência e de interação social que serão importantes no desempenho ulterior. Por isso os exames de ingresso na carreira envolvem disciplinas tradicionais, mas também entrevistas com banca examinadora que julga as aptidões do candidato para aquele tipo de profissão: a maturidade entra em linha de conta nesse contexto, o comportamento social, assim como a própria aparência pessoal.
Meu trabalho como servidor público federal, na carreira de diplomata, teve início em dezembro de 1977, por meio de um concurso direto, o que, aliado ao fato de já possuir mestrado, dispensou-me de frequentar o curso de preparação mantido pelo Instituto Rio Branco. Desde essa época (um quarto de século já), servi no exterior em diversas missões diplomáticas e no Brasil (Ministério das Relações Exteriores, em Brasília), geralmente na área econômica. Em postos, estive nas embaixadas em Berna, Belgrado e Paris, ademais das delegações do Brsil em Genebra e Montevidéu (Aladi). Mais recentemente fui chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento do Itamaraty, de 1996 a 1999, e desde outubro daquele ano até outubro de 2003 fui Ministro Conselheiro na Embaixada em Washington, o mais importante dos postos externos do Ministério das Relações Exteriores. Paralelamente ao exercício regular das atividades profissionais, pude manter, ainda que de maneira alternada, minha carreira acadêmica, o que me habilitou não apenas a ministrar cursos em universidades do Brasil e do exterior, como também a fazer pesquisas e manter uma produção de livros e artigos que hoje compõe a bibliografia especializada no campo das relações internacionais. Uma amostra dessa produção pode ser vista em minha página pessoal: www.pralmeida.org.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 15 de janeiro de 2004

Seja diplomata, por sua propria conta e risco - Paulo Roberto de Almeida (uma parodia de 2003)

Um outro texto que jamais foi publicado, e talvez não devesse, mas integra a série séria (se ouso dizer) dos divertissements diplomáticos.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de maio de 2016


Aprenda diplomacia por sua própria conta (e risco), em apenas um dia

Paulo Roberto de Almeida

Confesso que tenho começado a me preocupar com o curso futuro das profissões baseadas em regime de guildas ou corporações de ofício, como é caso da minha própria, a casta diplomática, fundada, assim como o estamento vizinho dos economistas, em um sistema de seleção altamente especializado e exclusivo, que abre as portas para uma reserva de mercado destinada apenas aos iniciados nos segredos da “arte”.
Digo isto por uma razão muito simples. Ao percorrer as estantes de economia das grandes livrarias de Washington, o que faço com bastante freqüência, deparo cada vez mais com livros – no mais das vezes “livrinhos”, mas em alguns casos “livrões – voltados para a educação do público em geral, dando todas as regras e instrumentos para um bom début na profissão que antes se julgava fechada e restrita a uma tribo bissexta de indivíduos fanatizados por equações matemáticas e curvas de utilidade marginal, à imagem desses nerds – o nosso popular “cdf” – que se vêem nos filmes americanos para adolescentes. Pois não é que depois da voga dos livros espirituais e de auto-ajuda – a interminável sucessão de How to Do…? –, começaram a surgir guias rápidos para a nobre profissão de economista? Vejamos alguns títulos que eu já encontrei nas estantes:
-       The Complete Idiot’s Guide to Economics;
-       The Complete MBA for Dummies;
-       Economics in One Lesson;
-       One Day MBA in Management;
-       The Instant Economist;
-       Economics: A Self-Teaching Guide.
Tudo isso me cheira a dumping social e a concorrência desleal contra os true economists. De minha parte, comprei um outro tipo de manual, The Armchair Economist: Economics and Everday Life (Steven E. Landsburg), uma elegante discussão sobre os fundamentos da análise econômica que não usa sequer uma única equação, mas entendo que ele não se aplica aos nossos propósitos. Comecei a imaginar, então, como se poderia ter guias equivalentes para a outrora refinada e aristocrática profissão de diplomata:
-       An Idiot’s Guide to Diplomacy
-       The Complete Kit for Being a Good Diplomat
-       Diplomacy in One Lesson
-       Teach Yourself Diplomacy in One Day
-       Diplomacy for Dummies
-       The Instant Diplomat
Estaremos condenados a enfrentar uma horda de amadores, fazendo pressão sobre os nossos (já parcos) salários e retirando o caráter mais ou menos elitista (no bom sentido da palavra) de nossa profissão? Não; não precisa se preocupar: ainda não surgiram esses livros, muito embora eu mesmo tenha pensado em escrever, com base em minha experiência pregressa de negociador e de “pensador” desses processos, um Mercosul for Dummies e até mesmo um Idiot’s Guide to the FTAA. Por certo já surgiram e proliferam, desde Versalhes, os guias diplomáticos, desde os clássicos (e aborrecidos) de Harold Nicolson e de Ernest Satow, até os mais modernos, como o bem completo Guide to International Relations and Diplomacy, editado por Michael Fry, Richard Langhorne e Erik Goldstein (nada menos que 175 dólares). Mas eu me refiro, mais exatamente, a outros tipos de guias, algo como Diplomacy for Beginners ou então International Relations: A Do It Yourself Guide.
Esperando que um dia possam surgir esses tão preclaros quanto necessários guias do self-made diplomatist, decidi propor algumas simples regras para quem deseja seguir a profissão sem se submeter a esses exigentes concursos de provas do Instituto Rio Branco ou sem sequer precisar pedir ao presidente para que ele lhe designe para um desses postos cobiçados do exterior. Sendo um home-made diplomat, você estabelece suas próprias regras de procedimento e passa a reorganizar o mundo à sua imagem e semelhança, quem sabe até candidatando-se, algum dia, ao Prêmio Nobel da Paz?
Ao contrário do que muitos pensam, ser diplomata não é tão difícil quanto levantamento de peso nos Jogos Olímpicos ou acertar na loteria três vezes seguidas – como aquele deputado da comissão do Orçamento – e não se exige sequer experiência prévia, bastando uma certa dose de imaginação e muitas outras doses de um bom Scotch. Adquirindo um bom curso, quiçá em um dia você poderá estar habilitado a tratar dos mais difíceis problemas deste mundo, como a paz no Oriente Médio, o conflito Índia-Paquistão, as imunidades diplomáticas ligadas a um concurso de misses na Nigéria ou até mesmo o levantamento do embargo contra Cuba. Qual seria o segredo?:
Comece por aprender retórica, a arte de vender qualquer coisa. Se não puder ter um kit apropriado, faça apelo a esses programas de auditório: passe um dia e uma noite assistindo Ratinho, Silvio Santos, Faustão e até mesmo Jô Soares (embora ele seja mais propenso a complicar as coisas). Depois aprenda a falar em diplomatês – com a ajuda das novelas do horário nobre, por exemplo –, complementando essas lições essenciais com um curso rápido de diplomatês escrito, que pode ser feito por correspondência ou então obtido nos links de discursos do site www.mre.gov.br. Algumas lições de boas maneiras e de etiqueta também ajudam, mas hoje em dia, com a truculência exibida por certos serviços diplomáticos, todo esse protocolo pode ser facilmente substituído por aulas de kung-fu e de capoeira (mas não vale armas de destruição em massa).
Técnicas de relações públicas são essenciais para o sucesso na profissão, e também para uma boa progressão na carreira: houve mesmo um sujeito que galgou rápido os degraus da diplomacia, tendo sido alcunhado de “o guarda-chuva mais rápido da República”. Um outro foi apelidado de “João do Pulo”, tal a sofreguidão com que se alçou ao sommet embaixatorial, com a ajuda de uma boa caderneta de endereços, incontáveis idas aos aeroportos e muitos salamaleques por semana. Relações públicas são tão importantes quanto o trabalho, sem qualquer demérito para este último método, também eficiente, mas mais apropriado para os que não moram em lugares chic e não têm dinheiro de família para ostentar.
Por fim, um alfaiate competente pode fazer muito pela sua imagem, assim como brilhantina e uma vistosa coleção de gravatas. Roupas interiores podem ser compradas em lojas de departamentos, mas as camisas têm de ostentar uma certa griffe, do contrário você passará por um diplomata dos comuns, desses que são obrigados a ganhar a vida escrevendo memorandos e telegramas. Ofereça flores e tenha sempre pronto um mot-d’esprit para as damas e consortes que encontrar, mas não exagere nas aproximações: o próximo pode não gostar, a despeito mesmo de um certo grau de osmose nesses meios.
Você está preocupado com as matérias clássicas da diplomacia, tipo história, geografia, direito internacional, economia, línguas? Não há motivo para angústia: decore todo o Almanaque Abril e passe a ler os editoriais do The Economist, pois ali está tudo o que você precisa saber para um desempenho satisfatório em 90% dos casos que for chamado a enfrentar. Os 10% restantes aprenda nos livros ou com gente mais esperta que você, o que estou certo existe em qualquer corporação.
Seja um otimista e desminta a Lei de Murphy: você pode se tornar um diplomata de sucesso estando nos lugares certos nos momentos certos. Mas para isso você vai precisar de uma boa astróloga, uma das profissões mais em voga no Brasil – ela acaba de superar os sociólogos – e quase tão cheia de certezas definitivas quanto a própria diplomacia. E, ao contrário do que dizem, não minta: não é preciso e não é eficaz. Não pratique, tampouco, a hipocrisia: apenas saiba calar quando for preciso.
Acomode-se, em contrapartida, na diplomacia virtual e passe a trabalhar em casa, com base na internet e em softwares de simulação (tipo War e até mesmo Diplomacy). Quando estiver cansado de um conflito, passe para outro, pois o bom mesmo da profissão é o nomadismo obrigatório, poder ser um flâneur rêveur nos Champs Elysées e no Hide Park. Com um pouco de sorte (e a ajuda daquela astróloga) você vai estar no lugar certo e no momento certo, quando por exemplo for assinado algum armistício ou um acordo comercial (lembre-se que isso costuma se dar em Genebra, Paris ou Nova York).
E quando quiserem lhe mandar para alguma savana ou altiplano, seja radical: ameace que vai ter de agregar e trabalhar para o cerimonial de Santo Antonio do Salto da Onça ou de Cabrobó da Serra, que isso costuma ter efeito dissuasório. Nem sempre funciona, mas tenha certeza de que você será muito bem recebido nesses lugares, onde aliás passarão imediatamente a lhe chamar de Senhor Embaixador e de Vossência. Não era isso mesmo o que você pretendia?

Paulo Roberto de Almeida
(um diplomata autodidata e nômade por natureza)
Washington, 2 de agosto de 2003.

Saudacao a formandos de Relacoes Internacionais (em 2003) - Paulo Roberto de Almeida

Este texto, uma mensagem enviada desde Washington aos formandos em Relações Internacionais da Tuiuti, no Paraná, provavelmente nunca foi divulgado em qualquer suporte, fora da leitura feita na própria cerimônica de formatura dessa turma.
Descobri-o agora, ao revisar algumas listas antigas de trabalhos inéditos ou sem qualquer link funcional com suportes antigos de divulgação.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de maio de 2016


Mensagem aos formandos

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 4 de julho de 2003

Desde Washington, onde exerço o cargo de ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil, e ocasionalmente o de Encarregado de Negócios junto ao governo dos Estados Unidos, tenho o prazer de encaminhar, por via eletrônica, não podendo participar desta cerimônia de corpo presente, minha mensagem de saudações e de congratulações pela formatura que ora ocorre desta turma de 2003 do Curso de Relações Internacionais da Universidade Tuiuti de Curitiba, no Paraná.
Cerimônias de graduação constituem sempre motivo de múltiplas satisfações, nas várias vertentes possíveis de uma vida aberta, doravante, a escolhas ainda mais decisivas:
- em primeiro lugar a satisfação propriamente acadêmica, pois que uma cerimônia como esta representa o acabamento, talvez parcial, de uma etapa importante na formação educacional individual, bem como a possível inauguração de outra etapa, num mundo sempre exigente em termos de especializações e de estudos continuados;
- em seguida, a quase realização profissional, já que habilitando cada um de vocês ao desempenho produtivo seja no âmbito empresarial, seja a serviço de alguma instituição pública ou ainda no seio da própria academia;
- satisfação familiar, também, uma vez que o objetivo maior de toda família sempre é o de ver seus filhos dotados dos requisitos específicos e suficientes que os habilitem ao sucesso na vida futura;
- contentamento, e eu diria mesmo alívio, pessoal, finalmente, na medida em que cada um dedicou o máximo de esforços, durante todos esses anos, para justamente obter o certificado que promete abrir novas portas num itinerário de certa forma ainda incipiente.
Quando digo “promete” é porque tenho consciência de que o diploma habilita mas não necessariamente assegura um direito, que seria o do emprego e o da remuneração considerada justa. Ele é provavelmente um requisito necessário, mas não suficiente para o sucesso profissional num mundo cada vez mais entregue à concorrência dos sistemas abertos, como aliás corresponde a uma realidade mais e mais globalizada, na qual se insere também o Brasil.
Ninguém deve ter a ilusão de que a posse de um certificado de estudos basta, por si só, para garantir o sucesso profissional e pessoal a que todos aspiram legitimamente. Muitos de vocês já estão trabalhando, em empregos nem sempre relacionados com os estudos recém concluídos; outros podem já ter tido a sorte de se ver oferecer uma ocupação que aproveitará parte ou a quase totalidade das habilidades adquiridas no curso; vários, enfim, ainda precisarão disputar no mercado de trabalho alguma atividade que os coloque mais perto da independência financeira e da satisfação profissional.
Em qualquer hipótese, porém, tenham consciência de algumas verdades que precisam ser refletidas desde já: nem vocês dominam as múltiplas facetas da profissão de “internacionalista” – usemos este termo à falta de outro melhor – nem a universidade que acaba de formá-los forneceu-lhes todos os requisitos de que necessitam para algum trabalho especializado na instituição que vier a acollhê-los.
Explico-me. Todos sabem que as escolas pouco educam, no sentido mais profundo deste verbo: elas no máximo ensinam algumas técnicas que habilitam cada um de nós a passar para as etapas seguintes do nosso aprendizado formal. Quem educa, em primeiro lugar, é normalmente a família, que deve fornecer as condições intrínsecas e extrínsecas para o sucesso de qualquer pessoa no itinerário escolar e depois na vida profissional.
A educação é um processo complexo que depende, basicamente, do entorno familiar, da disposição própria de cada um em querer aprender – e eu sou um grande crente no autodidatismo – e só depois, bem depois, vem o papel das estruturais formais de aprendizado, no sistema público ou privado.
Um personagem célebre da cultura popular americana, já falecido, Will Rogers, costumava dizer, em seu estilo cowboy, que tudo o que ele tinha aprendido na vida se devia aos livros e a pessoas mais espertas do que ele. E é verdade: tudo o que aprendemos de realmente importante na vida se deve ao esforço dos pais, à companhia dos grandes livros e a certas pessoas que marcaram nossas vidas, o que pode incluir, também, a já distante professora primária e um não tão distante professor universitário.
Aprendemos aquilo que somos motivados a gostar, desde muito cedo, e foi essa empatia com certas coisas, e não com outras, que levou muito de vocês a buscar um curso de relações internacionais, e não um de direito, de economia, de história, de sociologia ou de administração. Se alguém fez relações internacionais porque o curso estava na moda – ultimamente distinguido pelas vogas da globalização e da regionalização –, esse alguém vai ter agora de aprender a conhecer melhor as realidades do mundo, que por vezes incluem uma dura adaptação às condições concretas de trabalho no mundo profissional, nem todas elas descritas nos manuais universitários. Uma empresa, por exemplo, é mais suscetível de se interessar pelos acordos internacionais em matéria fitossanitária ou de telecomunicações do que pela teoria neorealista das relações internacionais aplicada ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Um ponto para os que aprenderam isso.
Por isso mesmo, eu recomendaria que vocês não acumulem, depois de iniciada a próxima etapa da vida pessoal e profissional, recriminações indevidas contra os seus professores, que provavelmente fizeram o melhor possível para transmitir a vocês o saber codificado nos livros adotados e nas leituras recomendadas pelo curso. Seria impossível, a eles, como a qualquer outro mortal, fornecer-lhes tudo de que venham eventualmente a necessitar para um desempenho bem sucedido em alguma profissão específica. A função deles não era essa, como a da escola não era o de provê-los de todos os conhecimentos e habilidades necessárias para o exercício profissional. Escolas e professores transmitem, antes de mais nada, técnicas ou métodos de ensino e até mesmo alguns conhecimentos, mas estes são infinitos e incomensuráveis em sua dimensão própria.
Quem está acostumado a fazer pesquisa na Internet, via instrumentos de busca, sabe do que estou falando, e tenho certeza de que são muitos aqui aqueles que, ao longo do curso, utilizaram-se do recurso, hoje fácil, a sistemas de pesquisa online para atender alguns (ou a todos os) trabalhos escolares. Basta colocar um ou dois conceitos e os resultados, em menos de dois segundos, se cifram às centenas, quando não aos milhares de documentos e outros sites de referência ou de conteúdo substantivo. O “copiar e colar” tornou-se a praga do século, ou pelo menos o concorrente do livro e do professor.
Seria impossível a qualquer professor, de fato a qualquer curso, e mesmo a uma faculdade inteira, concorrer com esse instrumento fabuloso que constitui a Internet, e sabemos que ela contém apenas uma parcela das informações livremente disponiveis e do conhecimento necessário a um bom desempenho em qualquer profissão moderna digna desse nome. Professores normais não ganham da Internet, mas eles podem e devem, sim, fornecer as regras e métodos pelos quais vocês podem aproveitar o estoque acumulado de conhecimento útil para a finalização de um trabalho e para o cumprimento de encargos profissionais, inclusive e principalmente as normas da boa citação e da devida referência bibliográfica. Mais um ponto para o referenciador honesto.
Das considerações acima, eu tiraria duas conclusões, que também podem servir como duas lições de vida que eu gostaria de transmitir a vocês neste momento festivo.
Sejam, em primeiro lugar, os seus próprios professores e instrutores permanentes, e nunca esperem, passivamente, que alguém venha a fornecer, a cada um de vocês, meios ou recursos para triunfar na vida. Antes de mais nada, aprendam a aprender, aperfeiçoem a capacidade de serem autodidatas, constantes, incansáveis e insaciáveis e, para o essencial e o supérfluo, sejam mestres na arte da auto-educação contínua. Apenas aqueles que estão em processo de aprendizado permanente conseguem vencer os múltiplos desafios da carreira e lograr assim um bom desempenho profissional pela vida afora.
Tenham consciência, repito, de que o ensino dos professores, ao longo do estudo universitário “normal”, é apenas o começo de um longo processo de aperfeiçoamento que deve literalmente obrigá-los a se fazerem por si mesmos no desempenho ulterior, seja nos estudos de pós-graduação, seja na carreira profissional, seja até na vida pessoal e familiar. Quando eu disse, seguindo o conselho de um “caipira” americano, que uma boa receita é a de aprender com os livros e com pessoas mais espertas do que nós mesmos, não estava recomendando que vocês esperassem que os livros lhes caissem às mãos, ou dizendo que essas outras pessoas mais espertas se encontravam à disposição de vocês para transmitir-lhes a verdade revelada e o jeito certo de vencer na vida.
Como diz o velho ditado, retrabalhado pelo magnífico poeta popular que é Chico Buarque de Holanda, quem espera nunca, ou raramente, alcança o que pretende da vida. Apenas aqueles que saem ativamente à cata dos grandes livros e de pessoas mais espertas conseguem realizar seus objetivos de vida. Com isso não quero dizer que apenas pessoas ou livros dão a receita do sucesso; hoje em dia a Internet pode substituir uns e outros, mas é certo também que nem sempre com o mesmo prazer do contato físico com as lombadas e páginas dos livros ou a palavra amiga de quem sabe mais e tem o que transmitir.
Trata-se apenas de uma filosofia de vida, mas que convém levar em conta na organização pessoal do itinerário futuro de cada um. Bons livros e pessoas inteligentes nunca fizeram mal a ninguém, muito pelo contrário.
A segunda recomendação que eu faria a vocês seria simples, expressando apenas e tão somente o meu próprio modo de ver o trabalho profissional e o desempenho pessoal (no meu caso voluntário) nas lides acadêmicas. Ela é representada por dois conceitos, que considero absolutamente indispensáveis na vida: honestidade intelectual, acima de tudo.
A honestidade intelectual deve revelar-se em primeiro lugar no próprio “copiar e colar”, que parece constituir hoje um comportamento padrão nos universitários. As boas normas de citação dos manuais especializados incluem hoje em dia as regras para uma correta referência do material pescado na Internet e caberia começar por aí. Não pretendo aqui vir em defesa dos professores, sempre agoniados em saber se aquele trabalho genial tem copyright próprio ou emprestado. Quero chamar a atenção, mais uma vez, para uma filosofia de vida, uma postura ética que deve prevalecer nas relações de vocês com os colegas, os professores, os superiores no trabalho, para consigo mesmos, enfim.
Apenas aqueles que mantêm uma relação honesta e objetiva com as fontes, com os familiares, com os colegas e os superiores, no trabalho e na escola, com suas próprias limitações e insuficiências, apenas esses têm, afinal de contas, condições e possibilidades de continuar progredindo no caminho do saber e do desempenho profissional.
A vida nunca foi fácil para ninguém, mesmo para aqueles que nasceram em “berço de ouro” e que não precisam se preocupar com a subsistência elementar, digamos assim. Todo sucesso depende de um investimento inicial, mesmo em condições ótimas de recursos e de meios. E todos aqueles que dependem basicamente de si mesmos para seu sucesso na profissão e na vida sabem que duas das condições essenciais para tal são o auto-conhecimento e a honestidade para com os outros e consigo mesmo.
Por isso, minhas duas únicas recomendações seriam estas: continuem aprendendo a aprender e, sobretudo, sejam éticos pela vida afora. Seus amigos e familiares, seus colegas de trabalho, a própria sociedade em muitos casos, os recompensarão pelo esforço demonstrado. Boas leituras, boas companhias e muito boa sorte a todos vocês !
Paulo Roberto de Almeida,
aprendiz de sociólogo e diplomata de carreira.
Washington, 4 de julho de 2003.

Texto de saudações elaborado a pedido da Comissão de formatura do Curso de Relações internacionais, 2003, da Universidade Tuiuti do Paraná.

Dez coisas que aprendi nos primeiros cinquenta anos de vida - Paulo Roberto de Almeida

Um texto de 2003, nunca divulgado, mas aparentemente ainda válido.


Dez coisas que aprendi ao longo de meio século de vida
(e que nunca é demais lembrar porque nelas não se presta atenção)

Paulo Roberto de Almeida

1. Não se deve generalizar situações, tipos e ocorrências

2. Nunca se deve absolutizar avaliações e julgamentos.

3. Não se deve fazer previsões sobre comportamentos.

4. Não se deve deixar a religião interferir com a vida civil.

5. Os resultados são sempre mais importantes do que as intenções, mas os fins não justificam os meios.

6. Interpretações e diagnósticos são sempre parciais e limitados e as ideologias derivam diretamente deles.

7. A justiça distributiva deve ser praticada sobre os fluxos, não sobre os estoques.

8. Direitos humanos não precisam ser “contemplativos”, eles podem ser “ofensivos”; o respeito das diferenças pode preservar situações de discriminação absoluta.

9. Soberania estatal é um conceito caduco no plano das liberdades individuais.

10. A educação deve ser obrigatória, contínua e de preferência complementada por formação humanista.

Washington, 19 maio 2003

Minha revisao da era lulopetista: o que eu pensava no final de 2002 - Paulo Roberto de Almeida

Antes do início da era do Nunca Antes no Brasil, eu já me preocupava com as políticas que seriam colocadas em prática, e ousava contrariar o otimismo dominante: eu achava que o PT iria "salvar" a burguesia, e continuaria deixando as crianças pobres na mesma situação, e com uma educação deplorável.
Aparentemente fui desmentido durante um bom tempo, enquanto vicejavam favores para os pobres e dezenas de políticas ditas sociais, mas parece que a realidade se encarregou de me confirmar em meus temores mais evidentes, no final de 2002, ou seja, antes mesmo que começasse o reino dos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida


Pensando adiante: como a nova maioria salvou a burguesia e todos os seus bens
(advertência preventiva)

Paulo Roberto de Almeida

Sou um amigo, simpatizante e mesmo um promotor ativo da causa transformadora do Brasil, isto é, do partido da “reforma social profunda”, ainda que não seja membro efetivo de nenhum partido, seita ou agrupação política ou religiosa. Minha adesão à reforma é, contudo, total e de nenhuma forma subscrevo às velhas maneiras de fazer política, assim como não me considero neoliberal ou ainda um reformista “abstrato”. Como qualquer outro brasileiro engajado no movimento mudancista, portanto, recebi como extremamente auspiciosa a vitória do partido da reforma e aguardo com muitas expectativas otimistas a assunção da nova maioria e sua implementação dos projetos de reforma anunciados durante tanto tempo.
Apenas acontece que, ademais de simpático à causa da mudança, sou também um bom observador da realidade política e, acima tudo, um “racionalista” em políticas econômicas, uma vez que minha experiência de observador social indica que certas aventuras econômicas redundaram em indizível sofrimento para as camadas mais humildes da população, geralmente por via do imposto inflacionário e por políticas redistributivas altamente regressivas do ponto de vista dos que mais necessitam (usualmente via “serviços” educacionais e previdenciários que se dirigem aos mais privilegiados). Por isso, tomei a iniciativa de registrar no presente texto “prospectivo” algumas reflexões preventivas que – a despeito de não serem destinadas a publicação – se dirigem aos que, como eu, seguem a atualidade política e pretendem contribuir para a manutenção dos compromissos com a mudança, de uma maneira responsável e sensata, preservando equilíbrios econômicos fundamentais mas avançando no sentido de diminuir os graus anormalmente elevados de iniquidade social que ainda caracterizam a Nação brasileira.
Os pontos que se seguem não observam nenhum ordenamento particular, mas são indicativos de um cenário que está sendo implementado gradualmente, qual seja, o discurso pré-posse, a atitude voluntarista na assunção ao poder, a atuação de velhos e novos grupos de interesse em direção da nova maioria, a reação dos velhos militantes e comprometidos com o “projeto nacional”, os resultados esperados das políticas implementadas, e as conclusões práticas que podem ser tiradas preventivamente dessa movimentação excepcional a que está assistindo a sociedade brasileira. Finalmente, permito-me formular algumas recomendações genéricas que refletem minha própria visão do mundo e que servem como fecho a um texto que pretende continuar sob reserva até nova conferência dentro de algum tempo (2 ou 4 anos a partir de dezembro de 2002).

1. Mudou o mundo, mudou o Brasil e mudou o partido: nessa ordem?
O Brasil assistiu, em meados de 2002, a uma das mais importantes mudanças políticas já ocorridas na história republicana, movimento que tentei captar nos textos de meu livro A Grande Mudança (São Paulo: Códex Editora, 2003). Ocorreu aquilo que os marxistas chamariam de transformação da “superestrutura política da sociedade”, colocando-a em compasso mais afirmado com sua infra-estrutura social. Essa mudança relevante tem sido apresentada, pelos principais protagonistas, como uma “conseqüência natural” das transformações em curso no mundo e no próprio Brasil, mas quero crer que ela é, antes de mais nada, o resultado de uma mudança de atitude e de mentalidade das próprias lideranças políticas que agora converteram-se na nova maioria social e política da Nação.
Em outros termos, a conversão à responsabilidade fiscal, as declarações de respeito aos contratos e o novo realismo nas relações com o FMI, para citar três exemplos dessa mudança paradigmática, não foram ditadas pelas circunstâncias externas, que não se alteraram dramaticamente nos poucos meses de campanha eleitoral presidencial. Ou, se mudança houve, ela foi no sentido do aprofundamento da “crise da globalização”, de uma acrescida dependência do Brasil dos “mercados financeiros globalizados”, de um sensível agravamento da nossa “fragilidade financeira externa”, ou seja, em todos aqueles elementos que figuravam no lado perverso do figurino da “ruptura”, ainda proclamada no último encontro oficial do partido mudancista.
Cabe registrar, em todo caso, a bem-vinda mudança de atitude, que constitui o primeiro passo na direção de novas responsabilidades governativas, o que só pode ser saudado de maneira otimista. O que se espera agora é que essa mudança de atitude se traduza em atos concretos no sentido da mudança de cenário social com preservação da estabilidade macroeconômica e da continuidade da inserção do Brasil no sistema internacional globalizado, pois foi esse o mandato recebido nas urnas. A conferir, portanto.

2. O que fazer com a memória do passado?: as virtudes do autocontrole
As declarações de mudança não bastaram, contudo, para instilar confiança nos “mercados”, que continuaram a atribuir notas baixas ao chamado “risco Brasil”, com uma deterioração lamentável do valor da moeda e dos títulos de crédito brasileiro negociados externamente (e conseqüente elevação dos prêmios para renovação de crédito). Em virtude desse fenômeno, muito bem percebido pela nova equipe dirigente, passou-se a ostentar tremendo autocontrole, com poucas declarações públicas no sentido daquelas teses antes proclamadas como integrando o menu da ruptura: redução dos juros, políticas setoriais ativas, medidas redistributivas e de correção de “desequilíbrios” sociais ou regionais, enfim, a panóplia de iniciativas de tipo voluntarístico que denotavam a tendência, consciente ou inconsciente, de “querer fazer algo” para corrigir as tremendas iniquidades que obviamente ainda caracterizam o cenário social brasileiro.
Há, todavia, uma tendência latente a “resolver” esses “problemas urgentes” via implementação de políticas ativas em vários setores de notórias carências sociais e, de fato, a componente “social” do novo governo cresceu bastante em relação à estrutura administrativa existente até então, com as previsíveis novas fontes de pressão sobre o orçamento. Resta saber se a política do “pau na máquina” permite, efetivamente, resolver os problemas que se pretende encaminhar por via administrativa. Alimentar os carentes, por exemplo, é uma tarefa gigantesca e auto-perpetuadora, com dispêndio de recursos nos meios – cadastro, distribuição física e controle dos resultados – e uma ingente repetição dos mesmos “remédios” em todas as fases do processo. Existem certamente formas mais eficientes de se despender o dinheiro público, atuando talvez na “produção” de emprego e na “criação” de renda de maneira a gerar um circulo virtuoso no próprio processo produtivo, não necessariamente na demanda agregada (elogiável e keynesianamente correta, mas de difícil sustentação em condições de precário equilíbrio orçamentário).
Um pouco de auto-contenção seria recomendável nesta fase de testes.

3. Os novos “amigos do social”: atenção com os aliados
Todo governo tem amigos sinceros, os de sempre (e conhecidos), um imenso contingente de novos amigos, pouco sinceros e de fato oportunistas, e um número indeterminado de novos lobistas em favor de alguma “causa importante”. Na verdade, se trata dos velhos lobbies do passado, mas reciclados em “amigos do social”, mas que são ainda mais amigos do poder e de suas inestimáveis possibilidades de distribuição de recursos. Basta conferir uma agenda de endereços ou a lista de chamadas telefônicas registradas pela secretária para verificar como a mesma fauna se reproduz nos mesmos gabinetes, agora sob responsabilidade de novos ocupantes, pouco afeitos a esse tipo de manobras em favor de políticas ativas em tal ou qual setor.
Mesmo entre os velhos amigos, existem aqueles unicamente preocupados em reivindicar a “recuperação das perdas do passado”, o que promete uma irônica inversão de papéis entre velhos e novos guardiães do Tesouro. Velhos acadêmicos por certo retomarão o antigo slogan sobre a necessidade de um governo que se ocupe de “algo além da estabilidade monetária”, o que também não deixa de ser incômodo do ponto de vista ideológico. Configura-se, portanto, uma pressão irreprimível pela conformação de políticas setoriais ativas e pela “restauração” de vários segmentos sociais “massacrados” por anos de política austera e insensível. Todos – industriais, agricultores, universitários, cientistas, funcionários, aposentados, artistas, coletores de frutas nativas – têm uma causa a defender, que geralmente se confunde com o interesse nacional ou com alguma prioridade estratégica do ponto de vista do emprego e da renda agregada. Difícil resistir.

4. A turma do “Projeto Nacional”: o que fazer com ela?
Justamente, falando de interesse nacional, existe uma categoria especial de formuladores do destino pátrio que invariavelmente se reflete nas lamúrias em torno da falta de um “projeto nacional”. Ele pode ser setorial – no terreno científico e tecnológico, por exemplo – ou pode mesmo ser global, como algumas velhas receitas acadêmicas (geralmente anti-globalização) recomendam. Em qualquer hipótese, é promessa de dias e dias, noites e noites, meses de discussão acalorada para uma “proposta de consenso”, geralmente um grosso calhamaço com muitos pontos de dissenso e várias generalidades que ainda necessitarão detalhamento operacional e (sobretudo) quantificação orçamentária. Alguém tem idéia de quantos “projetos nacionais” existiram na história do Brasil (no regime republicano obviamente)? Eles foram registrados, têm copyright ou, pelo menos, funcionaram na prática? Foram de baixo para cima – alguém é capaz de citar um? – ou de cima para baixo (ao estilo varguista)?
Enfim, sempre existirão os que acham absolutamente indispensável dispor de um projeto nacional antes de passar à ação. Que seja: o pacto social está aí para isso mesmo e pode-se mesmo trabalhar de maneira concreta, com idéias registradas e prontas para serem testadas, mediante um conselho de desenvolvimento econômico e social que precisa ser representativo de todos aqueles setores que “contam” (no PIB e na opinião pública). Um pouco de utopia não faz mal a ninguém e ela existe precisamente para impulsionar novas idéias, mobilizar iniciativas e energias e permitir um grau superior de esforço concentrado em favor de algum objetivo transcendente.
Tudo depende de bem determinarmos em que direção deve incidir esse esforço. Eu, por exemplo, proponho que ele incida prioritariamente sobre a escola pública nos dois primeiros níveis e no ensino técnico profissionalizante: como melhorar sua qualidade, como introduzir mecanismos de aperfeiçoamento e de avaliação contínuos dos professores, como aumentar os recursos para o ensino em todos os níveis. De modo geral, não recomendaria que se fizessem esforços no setor produtivo, pois aqui as possibilidades são propriamente infinitas e a iniciativa privada pode fazer melhor que qualquer governo.

5. Medindo resultados antes que eles aconteçam: um pouco de futurologia
Se ouso praticar um pouco de astrologia social, meu ceticismo natural – que não é doentio, mas geralmente desconfiado das virtudes dos governos, talvez por anarquismo – indicaria que as energias e esforços da nova maioria social vão acabar reproduzindo as preferências das coalizões organizadas em torno do governo, cujo perfil não é difícil adivinhar. Pode-se esperar, assim, várias “políticas ativas” em setores considerados estratégicos do ponto de vista econômico (com ênfase na indústria), do desenvolvimento tecnológico, da defesa da soberania do País, enfim, aqueles que lograrem transmudar-se em projetos coerentes e quantificados. A peça orçamentária de 2004 começará a refletir essa nova realidade, que cabe portanto seguir com um certo grau de detalhamento no curso dos próximos meses. Estarei sendo pessimista?

6. Tirando minhas conclusões: conseguiremos nos lembrar das crianças?
Se ouso ser realista – ou estarei sendo apenas maldoso? –, diria que a nova maioria social conseguirá, ao cabo de três ou quatro anos de políticas ativas, salvar a burguesia e todos os seus bens (industriais e banqueiros reunidos no mesmo partido reformista). Os antigos ganhadores continuarão ganhando numa situação de mudança que será lenta, gradual e restrita, e os antigos perdedores continuarão perdendo relativamente, ainda que com direito a discurso e afagos desta vez.
Quem são os perdedores? Do meu ponto de vista são as crianças em geral, as crianças pobres em particular, que necessitariam de quatro vezes mais recursos do que o disponível atualmente para mantê-las bem alimentadas, vestidas e provistas de livros nas escolas que deveriam funcionar em turnos ampliados. Não há maneira de resolver, agora, o problema dos adultos pobres, mesmo analfabetos e sem emprego, pois o dispêndio teria de ser então muito maior, para resultados duvidosos no terreno da prática. O investimento nas crianças não produz, obviamente, resultados em quatro anos, talvez em dez ou quinze, mas se não começarmos agora não teremos resultado algum nem em quatro ou em oito anos.
Não gostaria de, ao retomar este texto em quatro anos, chegar à conclusão de que a burguesia vai muito bem, obrigado, no novo Brasil, e que as crianças pobres continuam, sim, existindo como antes, “a despeito dos esforços conduzidos”.

7. Uma proposta modesta: que tal, por uma vez, nos ocuparmos dos pobres?
A mudança social no Brasil deveria começar por objetivos muito modestos, quase que prosaicos em sua simplicidade governativa: coloquemos todas as crianças em escolas de qualidade, façamos um esforço brutal na formação e treinamento de professores (bem remunerados obviamente) e acompanhemos essas crianças em direção de estágios mais avançados de formação, não necessariamente no caminho do ensino superior, mas do ensino médio de igual ou melhor qualidade que a melhor das escolas primárias no Brasil e dos cursos de capacitação profissional que, melhor do que os “canudos”, contribuirão para incorporar ao mercado de trabalho imensos contingentes de cidadãos brasileiros hoje excluídos de qualquer possibilidade de aumento de renda e de bem estar.
Reputo essencial que esse esforço concentrado se faça, à frente e acima de quaisquer outras prioridades “setoriais” do novo governo, pois ele é a única garantia de que, dentro de quatro ou oito anos, o panorama social brasileiro comece de fato a ser transformado no sentido pretendido pela nova maioria. Não tenho certeza de que o famoso coeficiente de Gini (que mede a concentração da renda) – teimosamente estacionado em patamares vergonhosos durante os últimos anos, ou décadas, de baixo crescimento econômico – será alterado de forma dramática ao cabo desse esforço concentrado, mas tenho sim certeza de que ele não se modificará se nada for feito no terreno educacional e da capacitação profissional.

Anexo: Pensando um pouco adiante: como conciliar políticas sociais e políticas setoriais na administração da nova maioria.
Para não terminar de maneira pessimista, gostaria de reafirmar minha confiança na capacidade da nova administração em conduzir o processo de mudança no sentido apontado acima, com a preservação da estabilidade econômica e da abertura econômica internacional, que considero indispensáveis à consecução dos demais objetivos sociais.
O problema que vejo na consecução das metas transformistas se situa na própria concepção do processo governativo que parecem ostentar determinados setores da nova maioria. Essa concepção se situa na linha de continuidade do Estado interventor, na mentalidade de que o governo “precisa” corrigir, redirecionar, estimular determinados impulsos “naturais” dos mercados, de molde a poder criar um ambiente mais “propício” ao crescimento econômico com desenvolvimento social. Longe de mim proclamar uma volta ao laissez-faire e a concepções doutrinais típicas de um liberalismo impraticável nas modernas condições do jogo econômico. Mas denoto uma inclinação espontânea dos principais responsáveis políticos da nova maioria por um tipo de ação que faça do Estado uma entidade capaz de orientar o mercado na direção das “boas políticas” setoriais (elas só podem ser setoriais, pois os mercados normalmente são segmentados), o que redunda na inevitável concentração de recursos públicos nos setores politicamente mais ativos (que nunca são, obviamente, as crianças pobres, mas marmanjos fortes e espertos).
Talvez um critério simples possa permitir separar as políticas “necessárias” daquelas que são apenas “complementares” ao objetivo principal, que suponho ser o da diminuição da desigualdade social, não a transformação do Brasil em grande potência econômica, tecnológica ou mesmo militar (condições que serão sempre decorrência dos investimentos educacionais, não suas fontes primárias). Esse critério seria o de que, na formulação das políticas setoriais, atenção especial deve ser dada aos efeitos que tais investimentos terão na disseminação de políticas horizontais de igualdade de chances. Em termos concretos e para citar apenas um exemplo, algum acréscimo de investimentos na educação de terceiro grau teria de ser pensado na perspectiva de seus efeitos sobre os ciclos iniciais de ensino público, em suas diversas vertentes, diretas e indiretas. Não é obviamente fácil determinar o grau de “inclusividade educacional” de determinadas ações do “Estado indutor”, na medida em que essa indução se prende a objetivos diretamente produtivos, mas um pouco de treino e algum bom-senso podem ajudar.
Em todo caso, deixo aqui registrado (ainda que de forma reservada e não destinada a publicação) o meu pensamento geral – contra políticas setoriais muito ativas por parte do Estado, em especial contra políticas intervencionistas no setor produtivo – e o meu pensamento particular – a prioridade absoluta para o ensino público de qualidade e o apoio às crianças pobres – neste início de um novo governo que promete, mais do que em qualquer outra época da história nacional, transformar o Brasil de maneira radical no curso dos próximos quatro ou oito anos. Não podendo eu mesmo contribuir diretamente – por especialização profissional de origem ou falta de oportunidade administrativa – para esse processo de mudanças, pretendo registrar escrupulosamente, de maneira honesta e objetiva, a substância mesma do movimento mudancista e oferecer, ao cabo daqueles prazos, uma avaliação ponderada sobre os resultados alcançados.
Os dados estão lançados: rendez-vous na primeira etapa de balanço da nova situação.

Washington, 984: 16 e 17 novembro 2002;
 revisão, atualização: 29 dezembro 2002

Alguns conselhos a candidatos a carreira diplomatica (de 2002, mas ainda validos) - Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo, de uma entrevista que concedi em 11 de janeiro de 2002, parte das respostas que elaborei (em 9 p.) a questões colocadas pelo Centro Acadêmico Paulo Roberto de Almeida (sim, ousaram dar o meu nome, mas não sei se ainda subsiste), do Curso de Relações Internacionais da Unisul, para o Boletim Internews. A entrevista completa foi publicada no site da Unisul (http://www.unisul.br/), mas provavelmente já não existe mais. 
Limito-me à última questão sobre a preparação para a carreira diplomática, pois as demais questões tocavam em questões de conjuntura, embora algumas ainda possam apresentar alguma validade ainda hoje. Como nunca foi preservada, permito-me transcrever minhas considerações como abaixo.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 27 de maio de 2016


INTERNEWS - Qual conselho o Sr. daria para os estudantes de RI que sonham em seguir a carreira diplomática?
 
PRA: Longa, lenta e séria preparação e sobretudo não conte apenas com os cursos de relações internacionais ou qualquer outro curso tradicionalmente acadêmico. Seja basicamente um auto-didata, e comece cedo a ler, anotar, estudar, se preparar, em todos os terrenos importantes para os exames de ingresso. Sobretudo tenha certeza de que é isso mesmo que pretende, e que não está alimentando nenhum sonho romântico de entrar numa carreira que supostamente apresenta “glamour” ou “viagens fáceis”. 
Trata-se simplesmente de uma das mais exigentes profissões da burocracia governamental e certamente a mais intelectualizada das carreiras de Estado, requerendo portanto uma educação sofisticada e diversificada. Comece cedo, portanto, não perca tempo com digressões inúteis, mas vá direto aos temas que apresentam “vantagens comparativas” para uma boa prova de ingresso: português, outras línguas (mas sobretudo o inglês), história e ciências humanas e sociais de maneira geral, literatura, economia, relações internacionais enfim. 
Na faculdade, não compactue com o pacto de mediocridade e de preguiça entre professores e alunos, mas exija aulas, leituras, seja sério e competente na preparação de seus deveres e trabalhos e sobretudo cobre responsabilidade de quem está ganhando dinheiro para ensiná-lo (e eventualmente não o faz). 
Na vida diária, acostume-se a passar os fins de semana lendo e navegando pela Internet, faça cadernos de notas (com fichas de livros, por exemplo), mantenha seus arquivos de computador organizados e atualizados (acostume-se a guardar documentos disponíveis de reuniões internacionais, discursos e posições de países), faça assinatura de algum jornal econômico de boa qualidade (os jornais tradicionais trazem muita fofoca política e colunismo impressionista, que fazem você perder tempo com besteirol) e de alguma revista internacional de qualidade (recomendaria a The Economist, que tem tudo o que você precisa saber para aspirar a um bom exame de ingresso e depois a uma carreira bem sucedida). 
Sobretudo, não pense que a carreira diplomática seja o nec plus ultra da vida profissional ou acadêmica. Você primeiro precisa ser um profissional competente em sua própria área, para depois aspirar a ser um diplomata competente. 
Em outros termos, não dependa da carreira, como o único horizonte disponível em sua vida profissional, mas seja capacitado em qualquer outra profissão, para poder abandonar a carreira diplomática quando bem lhe aprouver, ou para poder dedicar-se a um hobby ou atividade de apoio (artística ou acadêmica, por exemplo) que seja diferente e atraente em seus méritos próprios, não em função de uma dependência indesejada a uma única atividade. 
Por fim, não sonhe, mas sim faça uma previsão realista de suas capacidades e possibilidades. A carreira diplomática seleciona um entre muitas dezenas de candidatos, o que significa que a maioria dos que tentarem ficarão de fora durante um certo tempo ou mesmo indefinidamente. Que isso não seja motivo de frustração pessoal ou profissional. 
Tenha os pés no chão, não idealize a carreira, seja esforçado, em todas as etapas, pois você vai precisar de muita seriedade e dedicação para enfrentar todos os desafios de uma carreira enriquecedora e exigente. 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Sete apostas de Serra - Matias Spektor (FSP); Apostas? Apenas diplomacia normal...

Segundo esse colunista da FSP, especialista em temas internacionais, o "governo interino promete chacoalhar a política de comércio exterior herdada do PT".
Chacoalhar seria o termo correto?
Por que não apenas trazê-la de volta a seu leito normal, de criação de empregos, renda, riqueza, investimentos, em lugar de fechar o Brasil no protecionismo doentio do stalinismo industrial da diplomacia lulopetista?
As medidas propostas já deveriam estar na agenda de qualquer governo sensato, em qualquer lugar. O fato de que não foram sequer cogitadas pelo governo petista -- e mesmo o acordo com o México era uma substituição ao que tinha sido denunciado antes pelo mesmo governo -- já era um indicativo de que a diplomacia companheira era profundamente desajustada ao que necessitava o país.
Paulo Roberto de Almeida

Sete apostas de Serra
Matias Spektor

Folha de S.Paulo, 26/05/2016 

O governo interino promete chacoalhar a política de comércio exterior herdada do PT. Trata-se de aposta ambiciosa, pois há pouco tempo para negociar e reverter décadas de uma política equivocada, cujo efeito mais direto foi deixar o país e seus cidadãos mais pobres. Mas há bons motivos para ter alguma esperança, pois tudo o que o governo precisa fazer é mostrar espírito propositivo e sede por criar comércio novo.
Há sete áreas específicas em que dá para fazer muito em pouco tempo e com o apoio dos principais grupos de interesse envolvidos.
1) Dobrar a aposta com a União Europeia. Ainda com Dilma, os europeus fizeram uma oferta ruim à qual o Brasil respondeu com outra proposta ruim. Serra pode subir a ambição do acordo. Em vez de oferecer 80% do universo tarifário, oferecemos 90% e pomos na mesa temas espinhosos como meio ambiente e direitos trabalhistas.
2) Realizar um "exercício de escopo" com os Estados Unidos. No prazo de 180 dias, Brasília e Washington publicariam um relatório listando as áreas em que é possível avançar na agenda comercial bilateral. Há muito espaço para avançar com os americanos. E nada seria mais eficaz para tirar os europeus da pachorra.
3) Dilma iniciou conversas com México para um acordo de livre comércio muito benéfico para a indústria brasileira. Bastaria a Serra sinalizar compromisso com a boa empreitada.
4) Atacar a burocracia alfandegária. Para o setor privado, ela atrapalha mais que tributação, financiamento ou logística. Bastaria a Serra antecipar a implementação do Acordo de Facilitação do Comércio da OMC (Organização Mundial do Comércio) e apoiar programas inovadores como o Portal Único de Comércio Exterior e o Operador Econômico Autorizado.
5) Discutir a adesão à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Não se trata de entrar para o clube dos ricos, mas de forçar a conversa pública sobre o assunto. Da última vez que a proposta foi posta sobre a mesa, o Itamaraty optou por mata-la em silêncio.
6) Aderir ao TISA. Este acordo regula serviços, que representam 65% do valor agregado de nossa indústria, 40% das exportações de manufaturados e mais da metade da riqueza brasileira. Como barateia custos, torna a indústria mais competitiva,
recuperando um setor muito punido no governo Dilma.
7) Assinar o Acordo sobre Compras Governamentais da OMC. Ele impõe transparência
às licitações públicas, dá segurança jurídica às novas concessões, reduz o custo do governo e tem cláusula de reciprocidade que abre mercados a nossas empreiteiras em crise. O melhor sinal de que o combate à corrupção está no centro da agenda nacional.


Endereço da página:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/matiasspektor/2016/05/1775167-sete-apostas-de-serra.shtml