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segunda-feira, 1 de maio de 2017

Roberto Campos e a "Lanterna na Popa" - José Mário Pereira

ROBERTO CAMPOS E 'A LANTERNA NA POPA'
 JOSÉ MARIO PEREIRA
Diário do Poder, 1/05/2017

Depoimento do editor José Mario Pereira no seminário “Roberto Campos: O Homem que pensou o Brasil”, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro, em 18 de abril de 2017, em homenagem ao centenário de nascimento do autor de "A Lanterna na Popa" (1994), que ele editou pela Topbooks.
Quem me apresentou ao dr. Roberto Campos, em Brasília, foi meu amigo José Guilherme Merquior. Isso aconteceu em 18 de novembro de 1981, uma quarta-feira em que Henry Kissinger deveria fazer conferência no auditório Dois Candangos, que acabou não acontecendo devido ao tumulto criado pelos estudantes. Eu estava lá, enviado pelo jornal Última Hora, onde escrevia sobre livros. Merquior, na época, assim como Francisco Rezek, se encontrava na assessoria de Leitão de Abreu, então chefe da Casa Civil. Ali, enquanto Kissinger era retirado da sala por questões de segurança, e a polícia tentava conter a confusão, Merquior me apresentou ao dr. Roberto. O que de imediato me chamou a atenção foi a fleuma dele, a tranquilidade com a qual presenciava o desenrolar da confusão. O que ele fazia? Contava uma piada atrás da outra, e, como era exímio nessa arte, provocava risos no grupo que se formara ao redor dele.

Dr. Roberto possuía um estoque infindável de frases jocosas, piadas envolvendo figuras históricas, e também muitas de teor fescenino e erótico. Na noite do mesmo dia, voltamos a nos encontrar, no jantar que Merquior ofereceu em seu apartamento, ao qual compareceram também Leitão de Abreu, Delfim Netto, Bilac Pinto, o reitor José Carlos Azevedo, da UNB, e o dr. Marcílio Marques Moreira, então no Unibanco. Naquele momento, o dr. Roberto cuidava de acertar a sua candidatura ao Senado por Mato Grosso, afinal vitoriosa, e que foi o início de um período de 16 anos entre o Senado e a Câmara dos Deputados.
Passado esse primeiro encontro, só voltamos a nos ver uns três meses antes das eleições majoritárias de novembro de 1990, por intermédio do seu antigo companheiro de seminário em Minas Gerais, o escritor Antônio Olinto, que me levou ao apartamento dele para que eu examinasse a possibilidade de editar, com urgência, um livro que ele gostaria de ver impresso antes das eleições. Foi assim que surgiu O século esquisito, antologia de artigos e ensaios que publiquei naquele mesmo ano, uma semana antes das eleições, e que teve um lançamento muito concorrido na Livraria da República, de que eu era sócio, logo à entrada do Shopping da Gávea.
Na mesma época lancei ainda Moscou, Freiburg e Brasília, ensaios do prof. Delfim Netto, e O tom desafinado, de César Maia. Minha editora, a Topbooks, nasceu, portanto, com a publicação de três economistas em campanha eleitoral. Do prof. Delfim Netto fiz, mais tarde, outro livro, e de Roberto Campos foram ao todo cinco títulos – entre eles A Lanterna na Popa, suas admiráveis memórias, que saiu em setembro de 1994, e, dois anos depois, Antologia do bom senso, ganhador do Prêmio Jabuti de melhor livro de não ficção de 1996.
Eu já tinha publicado, então, dois livros do dr. Roberto — O século esquisito em 90 e Reflexões do crepúsculo em 91 — quando, a caminho da Churrascaria Majórica, em Petrópolis, parei numa banca para comprar a Folha de S. Paulo. O caderno “Mais!” daquele domingo, 11 de abril de 1993, trazia na capa o título “Ok, Bob: Você venceu”, e na parte interna uma entrevista, conduzida pelo jornalista Fernando Rodrigues, em que se lia, logo na abertura, que A Lanterna na Popa sairia em julho daquele ano. Percebi ali, dado o tamanho da matéria, que haveria muita disputa por esse livro, e que eu teria pouca chance na concorrência com as grandes editoras; mas, por insistência de minha mulher, Christine, liguei no fim da tarde para o dr. Roberto, comentei a matéria, e dele ouvi: “Agora vou ter de terminar o livro”. Indaguei: “Mas não está pronto?”, ao que ele respondeu: “Já escrevi um bocado, mas ainda há muito trabalho a ser feito”. Aí, ganhei coragem, e perguntei: “O senhor irá amanhã ao escritório?”. Respondeu que sim, e indagou se eu gostaria de passar por lá. Confirmei, e marcamos o encontro para as 13h no seu confortável escritório no número 151 da Av. Rio Branco, no centro do Rio. Tivemos uma longa conversa, durante a qual me mostrou cartas de editoras interessadas que recebera naquela manhã; pediu-me informações sobre cada uma delas, e ao final perguntou o que eu propunha. Basicamente, ofereci a ele os meus préstimos como pesquisador, revisor, divulgador, e meio a meio no lucro com as vendas do livro. Por uma questão de tempo, não vou detalhar agora todo o teor dessa nossa conversa, mas é fato que, já no dia seguinte, d. Nayde (pronuncia-se Neide), sua fiel secretária por mais de 30 anos, me telefonou dizendo que o dr. Roberto tinha ido para Brasília e pedira para me entregar os disquetes com o livro no ponto em que estava. Ele queria uma avaliação minha, e a partir daí me dediquei inteiramente à finalização de A Lanterna na Popa. Portanto, colaborei com o dr. Roberto nesse projeto, intensamente, por 17 meses: de 13 de abril de 1993 até o lançamento do livro, em 12 de setembro de 1994.
Nos seis meses que antecederam a publicação, trabalhamos em média 10 horas por dia, nos finais de semana, no escritório do seu apartamento na rua Francisco Otaviano, 140. Ficávamos horas a fio em silêncio, cada um no seu canto, revendo capítulos, checando datas, aperfeiçoando detalhes de informação, limando uma ou outra repetição, conferindo citações. Ele fazia as inserções que achava necessárias, sempre a lápis, e examinava com atenção as sugestões de mudanças e acréscimos que eu trazia como resultado das pesquisas que fizera durante a semana.

Campos com Margaret Thatcher: entusiasmo pelas ideias e pela capacidade decisória
O capítulo sobre Assis Chateaubriand, por exemplo, foi quase inteiramente reescrito dias antes do envio dos fotolitos para a gráfica devido à recente publicação do Chatô, de Fernando Morais, que continha a transcrição de trechos de alguns virulentos artigos do biografado contra o dr. Roberto Campos. A leitura desta biografia me alertou para a necessidade de uma consulta urgente ao arquivo de O Globo, onde localizei a íntegra dos textos citados, além de outros igualmente violentos de Chateaubriand contra ele e Roberto Marinho no período que antecedeu a assinatura do acordo da TV Globo com o grupo americano Time-Life.
Recordo também que o capítulo “O discurso inaugural” ganhou acréscimos quando relatei ao dr. Roberto, a partir de conversas com o dono da Globo e com Merquior, o que se passara no almoço oferecido em Brasília, em fevereiro de 1990, pelo presidente eleito, Fernando Collor, a Mario Vargas Llosa, que então concorria à presidência do Peru. Nesse dia eu fora e voltara de Brasília com o dr. Roberto Marinho, que me contou do almoço, e logo depois confrontara a sua narrativa com a do próprio Merquior. Lembro ainda o dia em que o dr. Roberto Campos me pediu para localizar “um punhado de frases” que merecessem um lugar ao lado da sentença de Coleridge que lhe havia inspirado o título A Lanterna na Popa. Pouco tempo depois entreguei a ele umas três páginas que extraíra de livros e dicionários de citações. Mas ele só gostou mesmo dos versos de João Cabral: “Sempre evitei falar de mim, / falar-me. Quis falar de coisas. / Mas na seleção dessas coisas / não haverá um falar de mim?”.
Para atiçar a memória do dr. Roberto, organizei num canto de sua biblioteca, onde as estantes eram de vidro, um conjunto de memórias, depoimentos e biografias de contemporâneos, e fichei as referências ao seu nome que considerei relevantes. Em seguida, eu comentava sobre o que localizara, e muitas vezes esse diálogo o levava a uma nova recordação, que ele imediatamente anotava para ser inserida numa passagem ou noutra do Lanterna. Entre os livros de memórias que lembro ter lido e anotado com vagar estão os de Gilberto Amado e Afonso Arinos; entre as biografias, eu destacaria a de Castello Branco por Luiz Viana Filho.
O Dr. Roberto era uma máquina de trabalho, e parece ter apreciado a minha disponibilidade para atendê-lo com a urgência que se impunha. Com o tempo, foi se consolidando uma boa camaradagem entre nós, e passamos a falar não só do livro em processo mas da situação política, do mercado editorial, de pessoas que conhecíamos, da ABL – onde ele viria a ingressar, após duas tentativas – e de vários outros assuntos culturais e mundanos. Lembro, por exemplo, que num domingo à tarde, depois de almoçarmos no andar de baixo de sua cobertura, me convidou para uma caminhada no calçadão de Ipanema, para “tomar um ar e apreciar as moças”. No meio do passeio, ele, vestindo um surrado moleton azul, ao perceber que eu virara o rosto para olhar uma bela garota de biquíni, disparou: “Acabo de constatar que você pertence à geração do pau aflito. Eu, infelizmente, estou broxa!”. E riu. Com o tempo, fui percebendo que ele praticava uma ironia muito corrosiva, não só sobre adversários ideológicos e os descaminhos políticos e econômicos do Brasil, mas também em relação a si mesmo!

A Lanterna na Popa foi quase todo escrito nos finais de semana. Dr. Roberto, então senador, chegava ao Rio, de Brasília, na quinta-feira à tarde. D. Neide me avisava, e então eu levava para ele o que já tinha revisto, mais o material que havia pesquisado em jornais e revistas, e que, me parecia, ele podia aproveitar nesses capítulos que deixara comigo no final da semana anterior, para revisão. Nesse compasso, o livro foi se avolumando e tornou-se o que é: obra definitiva para a compreensão do Brasil moderno.
Embora crescesse a cada semana, nunca passou por minha cabeça inibir o autor com observações sobre tamanho, nem impor limite ao número de páginas. Deixei-o escrever, reescrever, acrescentar. Na última hora, quando já estava indo para a impressão, ele pensou em eliminar o Apêndice, preocupado em reduzir o tamanho do livro. Mas advoguei o contrário, puxando de uma de suas estantes o primeiro volume das memórias de Henry Kissinger, The White House Years, com mais de 1.500 páginas. "Dr. Roberto, eis aqui um ilustre precedente". Ele concordou. Eu tinha a intuição de que assistia à gestação de uma obra única, que viria a ser, a partir de sua publicação, fonte de consulta permanente.
Quando comecei a trabalhar na finalização de A Lanterna na Popa, tive a preocupação de consultar todos os livros importantes, principalmente os de memórias e depoimentos de brasileiros ilustres seus contemporâneos. Qualquer referência a Roberto Campos que encontrasse eu fichava, resumia, e em seguida lhe dava conhecimento do meu achado. Às vezes ele olhava e dizia: "Isso não tem importância". Em outras, lia com atenção, sentava-se em seguida à mesa no fundo do escritório do seu apartamento, e começava a escrever – sempre à mão, com lápis e borracha, em bloco de papel pautado. Eu achava engraçado aquilo, parecia coisa de garoto em idade escolar. Quando não gostava do que redigira, apagava. A mesa ficava coberta por aquela farinha da borracha.
Com o tempo, certifiquei-me do hábito de escrevinhar seu artigo do fim de semana nos espaços em branco de qualquer livro que estivesse lendo – e muitas vezes à caneta. Fazia isso notadamente nos voos de ida e volta para Brasília. Uma vez lhe emprestei um livro que acabara de comprar. Semanas depois o encontrei em sua mesa de trabalho, todo rabiscado: ele havia escrito um artigo quase inteiro em suas guardas. Achei por bem presentear-lhe com o livro, que lhe despertara tanto interesse a ponto de riscá-lo daquela maneira, mas hoje lamento não poder voltar a examiná-lo com as marcações do dr. Roberto. Quase todos os livros dele eram riscados e anotados. Um dia, no almoço em sua casa, comentei dessa mania com d. Stella, sua mulher, que observou: “O Roberto gosta tanto de livro mas não para de fazer isso. Um horror!”.
A primeira edição de A Lanterna na Popa foi de 6 mil exemplares, e mereceu uma cobertura pioneira da Veja e, na sequência, dos principais jornais do país. O editor Thales Alvarenga pretendia dar a capa da revista ao livro, mas Rubens Ricupero, então ministro da Fazenda, com uma frase infeliz gravada sem o seu conhecimento, acabou estampando a edição de 7 de setembro de 1994. Tivemos, no entanto, uma chamada no alto da capa, e mais oito páginas de matéria, sob o título “Mais de um século em 77 anos”, e um subtítulo: “Nas memórias de Roberto Campos um retrato abrangente e bem-humorado do Brasil”.
No dia 10 de setembro de 1994, um sábado, entreguei a Roberto Campos, no Aeroporto Santos Dumont, os primeiros 46 exemplares. Ele os levou para São Paulo, porque tinha um café da manhã agendado com jornalistas na manhã do dia 12, uma segunda-feira. À noite se deu o primeiro lançamento, no Clube Harmonia, com patrocínio da Bolsa de Mercadorias e Futuros, quando autografou 522 dos 550 exemplares que mandamos para lá, e que chegaram ao seu destino em cima da hora, pois a gráfica atrasara a entrega, o que provocou muito estresse.
Foi providencial a ajuda da Varig para embarcar, do Rio para São Paulo, esses exemplares no meio da tarde do dia do lançamento. No Rio de Janeiro, a noite de autógrafos ocorreu dois dias depois, na sede do Jóquei Clube, no centro da cidade, quando autografou pouco mais de 300 exemplares.
Em seguida, foram impressas pelo menos três edições de 20 mil exemplares cada uma. A partir daí fui reimprimindo tiragens de 2 mil exemplares. Desde então, nesses 23 anos o livro nunca deixou de ser reimpresso, e há muito tempo alcançou a categoria de obra de referência incontornável sobre o Brasil em que o autor viveu e atuou.    
As reações ao Lanterna, quando do seu lançamento, foram diversas: algumas livrarias que antes se recusavam a receber os livros do dr. Roberto, mesmo em consignação, passaram a vendê-lo com entusiasmo. A crítica também foi excelente. Wilson Martins escreveu no Jornal do Brasil de 4 de março de 1995: “Podem-se ler nas memórias de Roberto Campos a história política, a história diplomática, a história econômica, a história ideológica e a história intelectual do Brasil nos últimos 50 anos – assim como, bem entendido, a autobiografia de um estadista que nelas desempenhou funções de destaque e prestígio. São níveis de leitura que se completam e complementam entre si, para nada dizer do seu extraordinário valor documental”.
Houve também quem reclamasse do peso do livro. Paulo Francis foi um que lamentou não poder lê-lo na cama. Rachel de Queiroz me pediu para conseguir um exemplar cortado ao meio. Eu fiz melhor: mandei pra ela um exemplar com os 92 cadernos soltos. Assim ela o leu, inteiro, na rede de sua fazenda no Ceará. A socialite Carmen Mayrink Veiga cortou o exemplar com a tesoura e o levava aos pedaços para ler na praia. Tempos depois, Caetano Veloso, que lera o livro de ponta a ponta, brincou ao me conhecer: “Então você é o culpado pela minha bursite?” (rs).
Estamos falando de um livro que em sua primeira edição saiu em um volume de 1.417 páginas. Há nele histórias saborosas para todos os gostos. Entre as que dizem respeito à relação do autor com o editor, vou contar agora, pela primeira vez, uma especial. Por volta de junho de 1994, conversando com o dr. Roberto em seu escritório da Av. Rio Branco, e depois de muito hesitar, acabei comentando que conhecidos meus – não mencionei nomes, mas dois deles eram o jornalista Tarso de Castro e o compositor Tom Jobim – me perguntavam se na Lanterna ele iria falar sobre o episódio envolvendo uma mulher que o agredira. Estávamos tomando um whisky, na maior camaradagem, e a menção a esse caso mudou seu semblante. “Não tenho por que falar disso! Trata-se de um assunto de minha vida particular, já por demais comentado”, respondeu-me num tom fronteiriço ao áspero. Tomei fôlego e prossegui: “Não estou sugerindo que trate do assunto, dr. Roberto. Apenas quis preveni-lo a respeito, porque podem surgir perguntas nesse sentido em alguma entrevista ao vivo, por ocasião do lançamento”. Ele me olhou, ainda travado, e falou: “O que você sugere?”. Eu enfatizei que de modo algum pretendia induzi-lo a tratar de um tema que o desagradava, mas que ele podia tentar escrever uma frase (ou duas) que servisse de escudo no caso de ser abordado de surpresa, em público, sobre essa história. Aí tratei de finalizar o meu whisky, e logo ele disse: “Ok. Vou ver o que consigo!”. Fui embora um tanto arrependido de ter tocado num assunto que o incomodava. Uns três dias depois, ao voltar lá, assim que entrei na sala ele apanhou uma folha manuscrita, que estava sobre a mesa, e me passou, dizendo: “Veja se é isso o que você imaginava”.
Então li: “Esse depoimento é menos a estória de uma pessoa que o testemunho de uma época. Ou antes, de várias épocas da vida brasileira, com frequentes relanceios sobre a conjuntura internacional. Os prurientes ficarão desapontados pela ausência de entrechos românticos ou peripécias amorosas. Direi apenas que, tendo tido uma adolescência reprimida, com jejum e cilício no claustro, procurei usar galhardamente o direito de pecar. Se escrevesse um capítulo amoroso, ele teria apenas uma frase: “Não fui veado”; e uma nota de rodapé: “Nem atleta sexual”. Disse-lhe que estava perfeito, sem me alongar em comentários, e esse trecho acabou se tornando um dos mais citados do livro.
Embora fosse tímido, o que os desavisados tendiam a confundir com arrogância, ele era muito educado, atencioso, e até brincalhão em meio ao seleto grupo de amigos e conhecidos. Gostava da convivência com sua turma de confiança. Apreciava compartilhar o whisky com eles, sabia ouvir e estimular a conversação. Mas quando em meio ao trabalho, era em geral telegráfico, especialmente ao telefone. Não demorei a notar que quando dizia “OK” era hora de encerrar a ligação. Eu ouvia o seu “OK” e respondia imediatamente com um “Até logo; qualquer novidade ligo para o senhor”. Assim, nunca tivemos nenhum desentendimento.
Nossas conversas nos intervalos do trabalho giravam, com frequência, em torno de literatura, filosofia e teoria social. Ele contava boas histórias de Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, falava das leituras que fez de Aristóteles e Santo Agostinho no seminário, da forte impressão que lhe deixaram sociólogos como Ralf Dahrendorff e Ernst Gellner, que conhecera em Londres por intermédio de José Guilherme Merquior, e se queixava da falta de tempo para ler romances. Um dos últimos que tentou foi Auto de fé, de Elias Canetti, mas me confessou que não conseguira ir adiante, o que lamentei. Aprendi muito no convívio com ele e na observação de seu modo de pensar e proceder, e por isso lhe sou grato. No íntimo era um homem afetuoso; quem ler a seção “Elegias”, nos livros Reflexões do crepúsculo e Na virada do milênio, vai comprovar isso.
Meu amigo Darcy Ribeiro comungava com a opinião de Brizola sobre o dr. Roberto: “É o mais autêntico e competente dos tecnocratas entreguistas”. Quando, já doente, finalizava suas memórias, Darcy me chamou várias vezes ao seu apartamento para ajudá-lo a rever Confissões, que afinal teve edição póstuma, em 1997. Uma vez, assim que entrei na sala, ele me olhou e disse: “Você está com boa cara. Soube também que ficou rico!”. Eu ri, e perguntei que história era aquela. Ele então disparou: “Ora, você deve ter recebido muito dinheiro do Departamento de Estado americano, ou de algum outro órgão cultural deles, para editar o calhamaço do Roberto Campos! Eles também devem ter ajudado na pesquisa, não?”. Caí na gargalhada, e passei a contar as dificuldades que tive para levantar o dinheiro para editar A Lanterna na Popa. “Mas o Roberto Campos é rico, Zé Mario! Ganhou muita comissão servindo aos interesses americanos no Brasil! Então foi ele quem pagou a edição!”. Tornei a dizer que não era verdade, que eu até pegara dinheiro emprestado para publicar o livro, e que o dr. Roberto não me parecia nada rico: eu testemunhara suas dificuldades para levantar dinheiro quando das campanhas eleitorais, e depois para quitar as dívidas restantes, quando chegou a vender quadros que ganhara de amigos como Di Cavalcanti e Manabu Mabe. Mas Darcy continuou incrédulo, e então procurei mudar de assunto.
Terminada a cerimônia de posse de Darcy Ribeiro no Senado Federal, em fevereiro de 1991, fui para a sala do dr. Roberto Campos na Câmara porque havíamos combinado de almoçar juntos. Saímos em busca do carro dele, e fui contando que acabara de assistir a um comovido discurso do Darcy, e que ele até descera da tribuna para beijar a cabeça do Florestan Fernandes. Dr. Roberto deu um riso simpático, o que me animou a mostrar-lhe uma cópia do discurso do Darcy que trazia comigo. Ele começou a folheá-lo, aparentemente interessado, mas logo a seguir me devolveu a cópia, dizendo, com ar irônico: “O Darcy é um romântico inveterado. E os nossos índios não chegam aos pés dos astecas, incas e maias!”. Aí entramos no carro e passamos a falar de outros temas. Eu não contei dessa sua opinião para ninguém, mas tempos depois o próprio dr. Roberto, num artigo chamado “Ataques de romantismo”, publicado em 3 de setembro de 1995, repetiu quase literalmente o que antes me dissera. A receita para conviver com pessoas de visões ideológicas tão díspares é não dar a conhecer a nenhuma delas o que um disse do outro, e, na medida do possível, aplainar as diferenças. Foi o que sempre procurei fazer.
Dr. Roberto tinha imenso respeito intelectual por Eugênio Gudin, a quem considerava um intelectual lúcido e cosmopolita, e admirava Mario Henrique Simonsen por sua afinidade com a matemática, e também pela quase obsessão do amigo por ópera, especialmente as de Wagner, que ele, dr. Roberto, dizia considerar uma das supremas formas do tédio! Ele apreciava canto gregoriano, certamente eco de sua passagem pelo seminário, e algumas peças de Bach. Quando caminhava sozinho pelo calçadão de Ipanema, sempre de moleton, em geral o fazia portando um walkman, mas o que ouvia ali era Shakespeare e Eliot.

Admiração pelo Marechal Castello Branco, o estadista que reformou o Brasil, na companhia de Luiz Viana Filho.

Em relação ao “liberista” Merquior, por quem tinha funda amizade, este lhe despertava admiração intelectual. O diálogo dos dois se estreitou no período em que coincidiram em Londres, ele embaixador. Nessa época, discutiram muito sobre as mudanças que ocorriam no mundo e que levaram à Queda do Muro de Berlim e à perestroika, por exemplo, além das últimas novidades da teoria liberal. Dr. Roberto era um entusiasta da obra madura de Hayek, especialmente de A constituição da liberdade, e comungava com Merquior no entusiasmo pela obra do politólogo francês Raymond Aron, de quem foram amigos, e sobre o qual escreveram. É muito aguda a introdução que o dr. Roberto fez para a edição lançada pela UnB no início dos anos 80 de O ópio dos intelectuais, assim como o prefácio que escreveu para a edição brasileira de Liberalismo – Antigo e moderno, o livro póstumo de Merquior, cuja morte precoce ele lamentou como a de um filho querido. “É um desperdício! Por que não fui eu, que já estou um bagaço?”, ouvi-o dizer à época, verdadeiramente comovido.  
Em várias ocasiões o vi referir-se elogiosamente a Celso Furtado; embora discordassem, ele o respeitava muito. Uma vez, saindo com o dr. Celso da ABL, este me confessou ter ficado surpreso com o espaço que Roberto Campos havia lhe dado em suas memórias, e considerou que o autor fora muito generoso com ele. O dr. Roberto tinha a capacidade de admirar, mesmo quando não concordava com as ideias expressas por seus adversários ideológicos. Não se encontra rancor nem mesquinharia intelectual em nenhum dos perfis de personalidades por ele traçados em A Lanterna na Popa.
O dr. Roberto – que no começo da carreira chegou a ser tachado de esquerdista – exercitava a autocrítica o tempo todo. Ele admitia seus erros, comentava as ilusões que teve ao longo da vida, os fracassos; era por demais autocrítico. Às vezes estávamos vendo uma fala sua na televisão, e alguém o elogiava; ele agradecia com um rápido “obrigado”, e acrescentava: “Mas como estou feio! Meu Deus!”.
Ele procurava refletir sobre tudo o que se publicava de relevante nos temas de sua especialidade. Lembro do enorme interesse com que leu, ainda em formato de tese, a obra de Ricardo Bielschowsky, Pensamento econômico brasileiro, onde se encontram excelentes páginas de análise sobre o seu pensamento e ação. Na classificação do autor, Gudin e Bulhões seriam “neoliberais” porque, ao contrário dos liberais até a Revolução de 30, admitiam uma moderada intervenção estatal para regular as imperfeições do mercado, enquanto Roberto Campos, em parte por ter concebido o Plano de Metas, seria um “desenvolvimentista”.
Num de seus livros, Celso Furtado chama a atenção para o ceticismo de Roberto Campos em relação ao Estado. Celso chega mesmo a supor que essa sua posição tomou forma quando idealizou o BNDE, e Getúlio Vargas, para seu espanto, entregou a superintendência-geral do órgão, o cargo mais importante na estrutura de comando do órgão, a Maciel Monteiro, jejuno em economia, e conhecido como “Bundinha”.
Antes de Hayek, nos seus anos de formação, ele foi influenciado por Keynes, especialmente por seu Tratado sobre a Moeda; por Haberler – de quem foi aluno; pelo Schumpeter de Business Cycle, de 1939, e por Ragnar Nurkse. O Hayek pensador, de quem se aproximou na maturidade, muito mais que o economista foi o filósofo liberal que escreveu obras seminais como A constituição da liberdade (1960), e Direito, Legislação, e Liberdade, a trilogia de 1973. Ele também demonstrava um verdadeiro entusiasmo pelas ideias e pela capacidade decisória de Margareth Thatcher, com quem esteve várias vezes. No Brasil, a grande influência em sua formação profissional ele a recebeu de Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões.
Dr. Roberto conhecia muita gente mas, quando estreitamos relações, nos meses que antecederam a eleição de 1990 – durante a produção do livro O século esquisito – quem mais eu via com ele, íntimos a ponto de frequentarem o seu apartamento, eram: o médico Reginaldo Delamare, com quem costumava caminhar no calçadão de Ipanema; o embaixador Oscar Lorenzo Fernandez, amigo de muitos anos, que o assessorou no Senado e na Câmara; Márcio Campos; Nelson Teixeira; Aristóteles Drummond; seu assessor de imprensa, Olavo Luz; seu cardiologista, César Benjó; o jornalista Gilberto Paim e o advogado Paulo Mercadante. Tanto Oscar Lorenzo quanto Gilberto o ajudavam, quando necessário, a estruturar os seus artigos, principalmente em épocas de eleição. Num domingo à tarde, fui ao seu apartamento e lá encontrei o Oscar e o Gilberto fazendo uma avaliação do quadro eleitoral. Ao elogiar seu artigo no Globo daquele dia, dr. Roberto deu uma risada e disse: “Já que gostou, cumprimente o Oscar. Foi ele quem o escreveu!”. Naturalmente ele fizera isso dados a intimidade e o conhecimento profundo das ideias do economista, mas esta sua manifestação espontânea revela muito sobre seu compromisso com a verdade e sua predisposição para reconhecer o talento alheio.
O dia a dia do dr. Roberto era controlado pela fiel secretária Nayde Rodrigues Alves, a dona Neide, e pelo filho Bob. A muitas solenidades ele comparecia com Sandra, a filha, e não com d. Stella, senhora admirável, sem pompa, que aparentemente gostava mesmo era de ficar em casa. No mundo empresarial, tinha grande estima por figuras como Walther Moreira Salles e Roberto Marinho, para citar apenas dois. Um dia, o dono da TV Globo, que muito ajudara na divulgação de A Lanterna na Popa, me pediu para combinar com o dr. Roberto Campos um almoço, que foi o último deles, acrescentando: “Mas vamos fazê-lo lá em casa, não na televisão, só nós três, para podermos conversar à vontade”. Fomos juntos, no dia combinado, à residência do Roberto jornalista, no Cosme Velho. Ainda no carro ele me perguntou: “O Roberto te falou qual será a pauta do almoço?”. Respondi que não, mas que pressentira nele um ar conspirador. Lá chegando, o mordomo nos conduziu a uma mesa na varanda, e logo depois apareceu o dr. Roberto Marinho; sorridente, nos abraçou, e convidou-nos a sentar. Então contou que havia pedido aquele encontro porque há muito pensava em promover uma grande campanha para devolver ao Rio de Janeiro o título de capital do país, pois achava Brasília um horror, e acreditava que a crise inflacionária nacional tinha sido agravada com os custos de sua construção. “O que você acha, Roberto? Você me ajudaria nisso?”, ao que o Roberto economista respondeu: “Acho a ideia excelente, só desconfio que não tenhamos mais o necessário ânimo para implementá-la, nem tampouco suportarmos o achincalhe. Mas há tempos fiz umas tabulações sobre o “custo Brasília”, que é alto, isso para não falar do coeficiente de corrupção que lá prospera”. Garantiu que iria voltar a estudar o assunto, o anfitrião ficou satisfeitíssimo, e logo depois nos despedimos. Como previu o economista, o tempo foi curto para que ambos pudessem tocar a cruzada a favor do Rio.
Tenho a impressão de que o dr. Roberto Campos não cultivava ressentimento de nenhuma ordem. Às vezes comentava que fora alvo de campanhas injustas, que os estudantes haviam promovido o seu enterro, mas logo depois dava uma risada. Havia em sua personalidade um componente estoico que o predispunha a aceitar com tranquilidade as reações provocadas por suas ideias, mesmo quando tais reações eram desmedidas, tolas ou arbitrárias. Nisso eu o achava parecido com Raymond Aron, e assinalei essa semelhança de postura intelectual no texto que escrevi para as “orelhas” de A Lanterna na Popa.
Foi assim que ele se comportou frente à campanha, promovida por intelectuais de esquerda como Antônio Houaiss e Antonio Callado, às vésperas da concessão, pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o grupo Votorantim, da primeira edição do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, que afinal recebeu em 20 de julho de 1995. Eles e outros acadêmicos defendiam a escolha como melhor livro do ano de 1994 para Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais. Callado declarou ao Jornal do Brasil: “Vamos tentar de tudo” para impossibilitar a premiação ao “baluarte do que há de mais reacionário no Brasil” (Veja, 19.4.1995). Na mesma matéria, havia a seguinte afirmação de Houaiss: “O livro de Roberto Campos é só vaidade. Uma pessoa que tem uma vida de canalhice não pode escrever um livro de santo. Não há nenhuma autocrítica no texto”. No domingo anterior, 16 de abril de 1995, Paulo Francis comentara em sua coluna “Diário da Corte”, em O Globo: “Surpreendente que Antonio Callado e Dias Gomes queiram negar o prêmio da Academia a Roberto Campos, porque o detestam ideologicamente, única razão, porque suas memórias são um pilar da nossa história. Rosa Luxemburgo disse tudo: “Liberdade é quase sempre exclusivamente a liberdade de quem discorda de nós”.
O liberalismo no Brasil tem uma história longa, já esmiuçada por estudiosos como Luiz Camilo de Oliveira Torres, Celso Lafer, Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, entre outros. Por sua capacidade de exposição, vigor analítico e destemor na defesa de seus pontos de vista, Roberto Campos teve uma enorme importância na história do nosso liberalismo econômico. Ele herdou e ampliou o debate sobre as ideias liberais de Eugênio Gudin, a quem conheceu durante a Conferência de Bretton Woods, e a quem permaneceu ligado pelo resto da vida.
Eu lhe perguntei muito sobre Castello Branco, dado que nasci no Ceará. Ele o tinha em alta conta. Admirava-lhe a disposição para ouvir, e o seu espírito cívico e liberal. É bom lembrar que o então presidente pretendia ser sucedido por um civil. Segundo o depoimento de Cordeiro de Farias, o candidato de Castello era Bilac Pinto, um dos próceres da UDN.
Num artigo que publicou em O Globo a 27 de março de 1994, dr. Roberto afirmou: “Com a correção monetária, criei um carneiro que virou um bode”. Numa entrevista à revista IstoÉ de abril de 1983, declarou: “‘Arrocho salarial’ é expressão pejorativa. O que houve ao tempo de Castello Branco foi ‘realismo salarial’. Era necessário evitar que os salários reais crescessem mais que a produtividade. E era necessário restaurar a exangue capacidade de investimentos, quer do Governo, quer das empresas”.
Não só em A Lanterna na Popa ele expressa admiração e respeito pessoal por Castello Branco. Em artigos de jornal e em entrevistas anteriores, reconhece as qualidades de estadista do marechal-presidente. Ele considerava que um de seus êxitos junto a Castello foi fazê-lo compreender a necessidade de se alcançar a estabilidade de preços.
A mim ele nunca expressou reserva de qualquer ordem, ou mesmo arrependimento, por ter colaborado com governos militares. Considerava-se um funcionário público, treinado para desempenhar funções administrativas e de planejamento econômico. Eu penso que o dr. Roberto, por temperamento, não era de arrependimentos dessa natureza. Ele não era um carreirista, desses que fazem qualquer coisa pelo poder. Havia nele uma autonomia intelectual genuína, e desse modo não evitava conflito ou polêmica quando elas se faziam necessárias.
Dr. Roberto era muito autocrítico. Admitia erros de percurso, evidentemente. É de sua lavra esta reflexão: “Quem chega ao crepúsculo de uma longa experiência na vida pública pode sempre detectar, com realismo, a brecha entre o desejável e o realizável, entre a promessa e o desempenho”.
Quem consultava muito o dr. Roberto sobre a situação econômica brasileira, com ênfase no desempenho das estatais, entre elas a Petrobrás, era o Paulo Francis. Na última passagem do Francis pelo Rio, pouco antes de sua morte em fevereiro de 1997, almocei com ele na casa de um grande amigo seu, o empresário Ronald Levinsohn. Ao final, liguei para o dr. Roberto, falei rapidamente com ele, e passei o telefone para o Francis. Eles conversaram por um bom tempo, o Francis empolgado, dando gargalhadas, e pelo menos uma vez eu o ouvi dizer: “É um espanto. A Petrobrás é um espanto!”.
Roberto Campos era muito crítico da Constituição de 1988, que considerava “híbrida no plano político, intervencionista no plano econômico, e utópica no plano social”. Acreditava que a privatização podia ajudar muito na solução da nossa dívida interna e externa, mas que era necessário o governo ter pulso firme na condução desse processo. Ele percebia muita hesitação a respeito em alguns setores. Assisti a inúmeras conversas dele com Oscar Lorenzo Fernandez e Paulo Mercadante sobre o tema.
No último volume do seu Diário da Presidência, o ex-presidente Fernando Henrique conta que, em várias ocasiões, pediu a ajuda do dr. Roberto para acalmar alguns banqueiros, do Brasil e dos Estados Unidos, em relação ao que ele estava fazendo na economia. No mesmo volume, o leitor é informado de que, nos anos 70, FHC esteve detido no Doi-Codi paulista por 24 horas, “para “prestar esclarecimentos” sobre suas ligações com intelectuais trotskistas e sua amizade com o ex-ministro Roberto Campos”. Ou seja, o homem que em 1958 teve o seu enterro simbólico promovido por estudantes da UNE, nos anos 70 era visto com desconfiança pelos militares.
Ele foi um corajoso defensor das privatizações, alertando, porém, para a necessidade de que fossem realizadas com base em minuciosos estudos preliminares, para evitar pressões políticas, lobismo irresponsável, e roubalheira. Em relação à Petrobrás – que apelidara de “Petrossauro” – tinha uma visão crítica, amparada no exame detalhado que fazia de relatórios, balanços e informações que recebia, na Câmara e no Senado, de gente ligada à empresa. Mesmo assim, penso que se espantaria com o nível de bandalheira praticada nos últimos anos na Petrobrás, e que a Lava Jato ajudou a trazer a público.
Além de economista brilhante, filósofo social, e até moralista – no sentido francês dessa expressão – ele era um escritor de pena feliz. Gosto de lembrar que a revista Senhor, que contou entre seus colaboradores com grandes escritores da época, não descuidou de ter Roberto Campos em suas páginas. Na Sessão da Saudade na Academia Brasileira de Letras, uma semana após sua morte, em outubro de 2001, Carlos Heitor Cony disse que o modelo de A Lanterna na Popa eram as Mémoires d’outre tombe (1849), do francês Chateaubriand. Não acredito nisso, nunca vi essa obra na biblioteca do dr. Roberto. Isso não significa que ele não a tenha lido, mas não creio que fizesse parte de suas leituras de cabeceira a ponto de tê-lo influenciado na arquitetura de suas memórias. De qualquer modo, o fato de uma pessoa com a experiência e a cultura de Cony ter visto em A Lanterna na Popa a influência das Memórias de Chateaubriand revela que o livro de Roberto Campos é obra de escritor com domínio invulgar da língua — não somente um economista que, a certa altura da vida, resolveu escrever memórias.
Nos fins de semana, quando terminávamos a tarefa do dia, por volta das 9 ou 10 da noite, o dr. Roberto Campos costumava me propor um whisky. Logo aprendi o ritual: eu ia até a sala no fundo do corredor, onde havia um minibar, e preparava duas doses – a minha, só com gelo, e a dele, que acrescentava ao whisky um pouco de coca-cola diet. Ao longo de nossa convivência, eu o observei em várias situações, algumas alegres, outras tristes, mas acho que a mais tensa de todas ocorreu quando, acossado pelas contas da última campanha à Câmara dos Deputados (um dia chegou a me dizer que estava sem dinheiro até para os galhardetes), o vi disparar telefonemas para vários lugares em busca de um banqueiro seu amigo, baseado na Suíça, que prometera ajudá-lo, mas que naqueles dias parecia ter evaporado. Cheguei a ficar preocupado, porque pouco tempo antes ele colocara um marca-passo.
Conto isso agora com os olhos fitos no descalabro que as delações premiadas da Operação Lava Jato vêm revelando, onde avulta o absurdo volume do dinheiro envolvido, parte dele roubada da Petrobrás, e a desfaçatez da maioria dos acusados. Revelo esse episódio que presenciei porque, entre nós, poucos foram tão acusados injustamente quanto o autor de A Lanterna na Popa. Como seria bom poder ouvi-lo a respeito do que hoje se passa com o Brasil e sua desacreditada classe política. O que ele diria a respeito?
Se a vida não fosse “um acidente irrecorrível”, como bem lembrou o prof. Delfim Netto no artigo dedicado ao dr. Roberto Campos no último domingo, e o homenageado do dia pudesse agora se exercitar no trapézio de sua imensa lucidez, talvez me repetisse o que escreveu num dos artigos de Temas e sistemas, seu livro de 1969: “O nosso problema atual é menos de instituições que de material humano”.
Depoimento do editor José Mario Pereira no seminário “Roberto Campos: O Homem que pensou o Brasil”, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro, em 18 de abril de 2017, em homenagem ao centenário de nascimento do autor de "A Lanterna na Popa" (1994), que ele editou pela Topbooks.


Brasil: um país corporativo - Suely Caldas

A vez dos sindicatos | Suely Caldas

O Estado de S.Paulo, 29/04/2017 
A vez dos sindicatos | Suely Caldas
- O Estado de S. Paulo
 
A falta de uma reforma sindical é a maior lacuna no texto da reforma trabalhista aprovada na Câmara
 
O foco maior da reforma trabalhista, aprovada pela Câmara dos Deputados, foi atualizar regras na relação capital x trabalho e regulamentar o que já era praticado sem regra alguma (o trabalho em casa, por exemplo). Como seria impossível fazer isso mudando a retalhada e septuagenária Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a saída encontrada foi submeter a legislação aos acordos negociados entre patrões e empregados, representados por seus respectivos sindicatos. O texto aprovado que segue, agora, para o Senado tem méritos e lacunas.
 
O mérito maior foi acabar com a contribuição sindical, que virou um cobiçado negócio lucrativo para dirigentes de sindicatos e obstáculo à verdadeira defesa dos direitos dos trabalhadores, sobretudo os mais humildes, que desconhecem seus direitos e nem sequer sabem que descontam um dia de salário para financiar quem não os defende. O fim da contribuição vai obrigar esses dirigentes a caçar filiados, incentivar sua participação, reuni-los em assembleias massivas, provar que realmente os representam e buscar acordos de trabalho satisfatórios para eles. Por isso, longe de enfraquecer, como apregoam sindicalistas, os sindicatos serão fortalecidos, não do ponto de vista dos dirigentes, mas de seus trabalhadores.
 
A lacuna maior é a falta de uma reforma sindical, que a trabalhista tornou inevitável. Uma reforma
que acabe com a indústria de sindicatos falsos, que existem só para se apropriarem do imposto; uma reforma que submeta a estrutura sindical (não só de empregados, também de empregadores) à fiscalização quando usarem dinheiro público. Além da contribuição, os sindicatos recebem verbas do Ministério do Trabalho para promover cursos e eventos, desviam o dinheiro para outras finalidades e não prestam contas a ninguém, em nome da “liberdade sindical”.
 
O Brasil tem, hoje, 16,5 mil sindicatos de trabalhadores e uma estrutura duplicada de federações, confederações e 13 centrais sindicais. Em 2016 essa estrutura se apropriou de R$ 3,6 bilhões do imposto sindical. É um intolerável exagero, já que em outros países o número é infinitamente menor: com toda a força do peronismo, a Argentina tem apenas 91 sindicatos; a Inglaterra tem 168; e os Estados Unidos, 130. As mais antigas das 13 centrais – a Força Sindical e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) – representam, juntas, 5.163.609 trabalhadores apenas. Para uma população ativa de 80 milhões, a representatividade das duas não chega a 7%.
 
As outras 11 foram criadas depois que o governo Lula decidiu destinar às centrais 10% do imposto sindical. Associadas a partidos políticos, elas seguiram a onda: onde tem dinheiro público, é pra lá que eu vou. Há exigências na lei para obtenção do cadastro, inclusive a central representar pelo menos 7% de empregados sindicalizados no País. Mas nenhuma atende às exigências e, mesmo assim, arrancaram o cadastro no Ministério do Trabalho, politizado pelo PDT nos governos Lula e Dilma. A Intersindical, por exemplo, tem apenas um sindicato filiado e a Central Unificada dos Profissionais de Serviço Público, só três sindicatos e 875 servidores. Sem o dinheiro do imposto, o caminho natural delas será desaparecer.
 
A estrutura sindical das empresas é composta por sindicatos, federações e confederações. Aí o fenômeno da perpetuação dos dirigentes é comum, como o caso do presidente da Confederação Nacional do Comércio, que está há 36 anos no cargo, deveria representar milhões de comerciantes espalhados pelo Brasil e, em 2014, foi reeleito com apenas 26 votos. Além do imposto, essas entidades recebem verbas do Sistema S (Sesc, Senai, Sesi, Sest, etc.), para aplicar em treinamento de trabalhadores, mas as usam em outras finalidades, inclusive para pagar as contas das federações e confederações que dirigem. Com mais de 14 milhões de desempregados, isso precisa mudar!
 
 


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Roberto Campos: genio ou reacionario? - Saulo Moreira e Leonardo Spinelli (JC)

Roberto Campos: gênio ou reacionário, uma trajetória brilhante

Se estivesse vivo, Campos completaria 100 anos em 2017. Polêmico, o intelectual faz falta no atual momento de debates raivosos
Intelectual, frasista e polêmico, Roberto Campos chegou ao fim da vida frustrado com a administração pública do País / Foto: Nelson Perez/ Divulgação
Intelectual, frasista e polêmico, Roberto Campos chegou ao fim da vida frustrado com a administração pública do País
Foto: Nelson Perez/ Divulgação
Saulo Moreira e Leonardo Spinelli
Gênio, visionário, reacionário, serviçal dos militares. O adjetivo varia de acordo com a matiz ideológica de quem o profere. Aqueles classificados de direita o enaltecem tratando-o de “doutor”, “ministro”, “diplomata”. Os de esquerda o menosprezam com o mais que pejorativo apelido de “Bob Fields”, por ser “entreguista”. Se vivo fosse, Roberto Campos, um dos mais célebres pensadores brasileiros do século 20, faria 100 anos neste 2017. Numa época eivada de debates rasos e raivosos, o polemista intelectual Roberto Campos faz falta.

Para além de deferências ou depreciações, Roberto de Oliveira Campos foi um homem de coragem. Nasceu em 1917, em Cuiabá, e morreu em 2001, no Rio de Janeiro, com 84 anos e tido como o maior defensor do liberalismo econômico clássico no Brasil. Ainda jovem, porém, flertou com a teoria de John Maynard Keynes, na época do pós-guerra em que nem os EUA do New Deal de Franklin Roosevelt era uma economia liberal. Como se tratava da reconstrução do mundo, Campos acreditava no planejamento estatal. Nos anos 40, participou, ao lado do economista brasileiro Eugênio Gudin da Conferência de Bretton Woods, responsável pela criação do Banco Mundial e do FMI. A conferência também gerou a semente para a criação, muitos anos depois, em 1993, da Organização Mundial do Comércio (OMC).
O tempo passou e no final da vida Campos era um convicto seguidor da escola austríaca, cujo símbolo maior é Friedrich August von Hayek (assista ao vídeo abaixo). Entendia que a economia funcionaria melhor se houvesse estabilidade de preços, segurança jurídica, menos controle estatal, estímulos ao empreendedorismo, privatizações, concorrência, reformas etc. Trata-se de uma visão moderna de mundo, sobretudo num momento em que o País amarga índices recordes de desemprego e três anos de recessão resultantes de administrações contrárias ao modelo defendido por Campos.
Como a história é feita de paradoxos, vale lembrar que o economista defendeu o golpe militar de 1964 e participou dos governos de Castelo Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Contribuiu, portanto, não apenas com ditaduras, mas também com administrações altamente estatistas.
A contradição é clara também porque o ideário liberal clássico só prospera com liberdades individuais.
Sempre que alguém o tentava emparedar com esta contradição na sua biografia, Campos, frasista brilhante que era (leia algumas abaixo), lançava mão de uma de suas tiradas: “Contradições são características de homens inteligentes, mulheres bonitas e países jovens.”
Ao relembrar a frase, Gustavo Krause, ex-ministro de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso, dá uma gargalhada. Para Krause, Campos era uma mente brilhante. “Ele sofreu dos seus adversários a intolerância da inveja. Naquela época, pensar contra a corrente marxista era uma atitude de coragem.”
Antes dos militares, o anti-marxista Campos também serviu ao segundo governo de Getúlio Vargas, quando criou o BNDE (o “S”, de social, veio depois). Na gestão Juscelino Kubitschek foi um dos formuladores do famoso Plano de Metas. No governo João Goulart, gestão notoriamente de esquerda, se tornou embaixador do Brasil em Washington e Londres. Campos entrou no serviço diplomático em 1939. Antes havia sido seminarista, mas abandonou a escola para padres às vésperas da ordenação.
Sua participação em governos de diversas linhas, no entanto, não queria dizer concordância. Muito pelo contrário, conta o diplomata e escritor Paulo Roberto de Almeida. “Ele se desentendeu com Vargas depois da criação do BNDE, quando o presidente começou a fazer demagogia indicando amigos para cuidar da instituição. Com JK, a mesma frustração acometeu o economista depois que Juscelino resolveu construir Brasília, torrando dinheiro público e alimentando a inflação.

“Já João Goulart, atacava o ‘imperialismo ianque’, enquanto pedia crédito aos bancos dos EUA. Campos voltou a pedir demissão”, conta Almeida, que organizou o livro O Homem que Pensou o Brasil, por ocasião do centenário de seu nascimento.

CHAMPANHE

Sua trajetória como embaixador é pródiga em boas histórias. Em seu livro de memórias, A Lanterna na Popa, Campos conta uma conversa interessante com o ex-presidente dos EUA John Kennedy, em plena Casa Branca. Durante a Crise dos Mísseis, em 1962, Kennedy lembrou a Campos que ele estava num país que poderia ser alvo, a qualquer momento, de bombas soviéticas. E quis saber o que o brasileiro faria se a sirene tocasse. Campos, com o inglês perfeito, disse que iria para algum abrigo anti-nuclear em Camp David e procuraria a adega. Kennedy quis saber o motivo. E Campos: “como dizem os franceses, presidente, entre uma tragédia e uma calamidade, sempre haverá tempo para um taça de champanhe”. Kennedy gostou tanto da tirada que mandou um de seus assessores anotar. Após sair da Embaixada do Brasil nos EUA durante o governo Jango, Campos foi para a Ásia e conheceu países como Hong Kong, Cingapura, Malásia, Taiwan que mais tarde ficaram conhecidos como os Tigres Asiáticos.

SUAPE

Eis que durante sua fase como ministro do Planejamento de Castelo Branco, já na ditadura, Campos foi contra a instalação da Zona Franca de Manaus, mas não tinha muito o que fazer. Os militares enxergavam a região como uma zona estratégica e não aceitavam o contraditório. “Ele achava que a Zona Franca era uma aberração, um privilégio. Era a favor de algo maior, inclusive abrangendo Suape, que na época era apenas um projeto. Manaus ficaria com o polo de eletroeletrônico e informática e em outros locais se criariam Zonas de Processamento e Exportação (ZPEs), incluindo Suape, Camaçari na Bahia, Sepetiba, no Rio, e até Teófilo Ottoni, em Minas. Campos queria justamente replicar aqui o modelo dos Tigres Asiáticos. Ele, como cidadão do mundo, previu que os asiáticos iriam acertar”, conta o jornalista Aristóteles Drummond, amigo de Campos, que participa do livro Lanterna na Proa, organizado pelo presidente do IBGE, Paulo Rabello Castro, e pelo jurista Ives Gandra da Silva Martins, também em homenagem aos 100 anos de Campos.
Drummond lembra que Campos era irônico. “Me disse que não votaria em José Serra para presidente. Perguntei por quê. E ele ‘a única vez em que Serra se dirigiu a mim foi na Revisão Constitucional de 1993’”.
Mas porque Serra o havia procurado? Interessado em suceder FHC, Serra tinha o projeto de extinguir a Zona Franca, sabia que Campos havia sido contra desde a origem e veio pedir apoio. Campos ficou perplexo. “Ele disse a Serra: ‘deputado, a Zona Franca emprega 100 mil pessoas com mão de obra de qualidade, Manaus não tem outra fonte de renda. Fui contra instalar e agora sou contra tirar...E esse Serra ainda dizia que eu sou contra o trabalhador.’”

FRUSTRAÇÃO

Tantas participações em governos criaram uma frustração crescente em Roberto Campos, que já no fim da vida não escondia a decepção de ver ideais serem tragados por ineficiência, politicagem e populismo. Sempre que participava de governos, era no afã de buscar a modernização da administração pública.
Uma de suas criações, o ICM (que mais tarde virou ICMS), trouxe ao Brasil o conceito de imposto de valor agregado. “Hoje o Brasil é mercado comum”, disse Campos ao ver sua ideia aprovada, apesar de seu conceito ter sido distorcido ao longo dos anos.
A presença na burocracia governamental também mostra, segundo a economista pernambucana Tânia Bacelar, que Roberto Campos não era apenas um teórico. “Era um pragmático”, diz Tânia, que participou de dois governos Miguel Arraes e sempre teve uma inclinação ideológica à esquerda. Ela lembra que foi Campos quem criou as terminologias monetaristas e estruturalistas para classificar os economistas. Os primeiros são os ortodoxos como ele. Os outros, aqueles que priorizam o crescimento, como ela. Cepalina clássica, diante da divergência de ideias, Tânia já o teria chamado de Bob Fields? Ela sorri abertamente e diz que não. “Minha formação é diferente, mas toda minha geração estudou com os livros dele. Era brilhante." Em 17 de abril de 2001, Campos morreu. Como uma lanterna na popa, deixou uma rota iluminada para os que vêm atrás de sua nau.