quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova - Ben Rhodes (NYT; O Estado de S. Paulo)

Henry Kissinger era um hipócrita, e seu legado é a prova

Ben Rhodes (NYT)
O Estado de S. Paulo, 30/11/2023


'Política externa defendida pelo ex-secretário de Estado não tinha preocupação com seres humanos deixados em seu rastro', escreve ex-vice-conselheiro de segurança nacional dos EUA.
https://www.estadao.com.br/internacional/henry-kissinger-era-um-hipocrita-e-seu-legado-e-a-prova-leia-a-analise/?utm_medium=newsletter&utm_source=salesforce&utm_campaign=manchetes&utm_term=20231130&utm_content=


THE NEW YORK TIMES - Henry Kissinger, que morreu na quarta-feira, era o exemplo vivo da lacuna entre a história que os Estados Unidos, a superpotência, conta e a maneira como os EUA agem no mundo. Por vezes oportunista e reativa, a política externa defendida por Kissinger era apaixonada pelo exercício do poder e sem preocupação com os seres humanos deixados em seu rastro. Justamente porque os Estados Unidos de Kissinger não eram a versão maquiada da “cidade na colina”, ele nunca se sentiu irrelevante: ideias entram e saem de moda, mas o poder não.

De 1969 a 1977, Kissinger se estabeleceu como um dos funcionários mais poderosos da história. Durante uma parte desse período, ele foi a única pessoa a ocupar simultaneamente os cargos de conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado, dois postos muito diferentes que o tornaram responsável por moldar e executar a política externa americana. Se suas origens judaico-alemãs e seu inglês carregado o diferenciavam, a facilidade com que exercia o poder fez dele um avatar natural para um estado de segurança nacional americano que cresceu e ganhou impulso ao longo do século XX, como um organismo que sobrevive ao se expandir.

Trinta anos depois que Kissinger se aposentou no conforto do setor privado, servi por oito anos em um aparato de segurança nacional maior, pós-Guerra Fria e pós-11 de setembro. Como assessor adjunto de segurança nacional, com responsabilidades que incluíam a redação de discursos e comunicações, meu trabalho muitas vezes se concentrava mais na história que os Estados Unidos contavam do que nas ações que tomávamos.

Na Casa Branca, você está no topo de uma estrutura que inclui as Forças Armadas e a economia mais poderosas do mundo e, ao mesmo tempo, detém os direitos de uma história radical: “Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais”.

Mas eu era constantemente confrontado com as contradições embutidas na liderança americana, o conhecimento de que nosso governo arma autocratas enquanto sua retórica apela para os dissidentes que tentam derrubá-los ou que nossa nação impõe regras - para a condução da guerra, a resolução de disputas e o fluxo do comércio - enquanto insiste que os Estados Unidos sejam dispensados de segui-las quando elas se tornam inconvenientes.

Kissinger não se sentia desconfortável com essa dinâmica. Para ele, a credibilidade estava enraizada no que se fazia, não no que se defendia, mesmo quando essas ações anulavam os conceitos americanos de direitos humanos e direito internacional. Ele ajudou a estender a guerra no Vietnã e a expandi-la para o Camboja e o Laos, onde os Estados Unidos lançaram mais bombas do que na Alemanha e no Japão na 2ª Guerra Mundial.

Esses bombardeios - muitas vezes com massacre indiscriminado de civis - não contribuíram em nada para melhorar os termos em que a Guerra do Vietnã terminou; na verdade, apenas indicou até que ponto os Estados Unidos chegariam para expressar seu descontentamento com a derrota.

É irônico que esse tipo de realismo tenha atingido seu ápice no auge da Guerra Fria, um conflito que era ostensivamente sobre ideologia. Do lado do mundo livre, Kissinger apoiou campanhas genocidas - do Paquistão contra os bengaleses e da Indonésia contra os timorenses. No Chile, ele foi acusado de ajudar a preparar o terreno para um golpe militar que levou à morte de Salvador Allende, o presidente esquerdista eleito, dando início a um terrível período de governo autocrático.

A defesa generosa é que Kissinger representava um ethos que via os fins (a derrota da União Soviética e o comunismo revolucionário) como justificativa para os meios. No entanto, para grandes áreas do mundo, essa mentalidade trazia uma mensagem brutal que os Estados Unidos sempre transmitiram às suas próprias populações marginalizadas: nós nos preocupamos com a democracia para nós, não para eles. Pouco antes da vitória de Allende, Kissinger disse: “As questões são importantes demais para que os eleitores chilenos decidam por si mesmos”.

Será que tudo valeu a pena? Kissinger estava obcecado com a credibilidade, a ideia de que os Estados Unidos devem impor um preço àqueles que ignoram nossas exigências para moldar as decisões de outros no futuro. É difícil ver como o bombardeio do Laos, o golpe no Chile ou os assassinatos no Paquistão Oriental (atual Bangladesh) contribuíram para o resultado da Guerra Fria.

Mas a visão não sentimental de Kissinger sobre os assuntos globais permitiu que ele conseguisse avanços consequentes com países autocráticos mais próximos da estatura dos Estados Unidos - uma distensão com a União Soviética que reduziu o ímpeto de escalada da corrida armamentista e uma abertura para a China que aprofundou a divisão sino-soviética, integrou a República Popular da China à ordem global e antecedeu as reformas chinesas que tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza.

O fato de essas reformas terem sido iniciadas por Deng Xiaoping, o mesmo líder chinês que ordenou a repressão aos manifestantes na Praça Tiananmen, mostra a natureza ambígua do legado de Kissinger. Por um lado, a aproximação entre os EUA e a China contribuiu para o fim da Guerra Fria e melhorou os padrões de vida do povo chinês. Por outro lado, o Partido Comunista Chinês emergiu como o principal adversário geopolítico dos Estados Unidos e a vanguarda da tendência autoritária na política global, colocando um milhão de uigures em campos de concentração e ameaçando invadir Taiwan, cuja situação não foi resolvida pela diplomacia de Kissinger.

Kissinger viveu metade de sua vida depois de deixar o governo. Ele abriu o que se tornou uma trilha bipartidária de ex-funcionários que criaram empresas de consultoria lucrativas enquanto negociavam com contatos globais. Durante décadas, ele foi um convidado cobiçado em reuniões de estadistas e magnatas, talvez porque sempre pudesse fornecer uma estrutura intelectual para explicar por que algumas pessoas são poderosas e justificam o exercício do poder.

Escreveu uma prateleira de livros, muitos dos quais poliram sua própria reputação como oráculo dos assuntos globais; afinal, a história é escrita por homens como Henry Kissinger, não pelas vítimas das campanhas de bombardeio das superpotências, incluindo as crianças do Laos, que continuam a ser mortas pelas bombas que não explodiram e que cobrem seu país.

Você pode optar por ver essas bombas não detonadas como a tragédia inevitável da condução dos assuntos globais. Do ponto de vista estratégico, Kissinger certamente sabia que o fato de ser uma superpotência trazia consigo uma grande margem de erro que pode ser perdoada pela história.

Apenas algumas décadas após o fim da Guerra do Vietnã, os mesmos países que havíamos bombardeado estavam buscando expandir o comércio com os Estados Unidos. Bangladesh e Timor Leste são agora nações independentes que recebem assistência americana. O Chile é governado por um socialista millenial cujo ministro da defesa é a neta do Allende. As superpotências fazem o que devem fazer. A roda da história gira. Quando e onde você vive determina se você será esmagado ou erguido por ela.

Mas essa visão de mundo confunde cinismo - ou realismo - com sabedoria. A história, o que está em jogo, é importante. No final das contas, o Muro de Berlim foi derrubado não por causa de movimentos de xadrez feitos no tabuleiro de um grande jogo, mas porque as pessoas do Leste queriam viver como as pessoas do Oeste. A economia, a cultura popular e os movimentos sociais eram importantes. Apesar de todas as nossas falhas, tínhamos um sistema e uma história melhores.

 

Ironicamente, parte do fascínio sobre Kissinger se deveu ao fato de sua história ser eminentemente americana. Sua família escapou por pouco da roda da história, fugindo da Alemanha nazista no momento em que Hitler colocava em prática seu plano diabólico. Kissinger retornou à Alemanha no Exército dos EUA e libertou um campo de concentração.

A experiência o impregnou de uma cautela em relação à ideologia messiânica associada ao poder do Estado. Mas isso não legou a ele muita simpatia pelos menos favorecidos. Tampouco o motivou a vincular a superpotência americana do pós-guerra à própria teia de normas, leis e fidelidade a certos valores que foi escrita na ordem do pós-guerra liderada pelos americanos para evitar outra guerra mundial.

A credibilidade, afinal, não se trata apenas de punir ou não um adversário para enviar uma mensagem a outro; trata-se também de saber se você é o que diz ser. Ninguém pode esperar perfeição nos assuntos de Estado, assim como nas relações entre os seres humanos. Mas os Estados Unidos pagaram um preço por sua hipocrisia, embora seja mais difícil de medir do que o resultado de uma guerra ou negociação.

Agora a história completou o círculo. Em todo o mundo, vemos um ressurgimento da autocracia e do etnonacionalismo, mais acentuadamente na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em Gaza, os Estados Unidos apoiaram uma operação militar israelense que matou civis em um ritmo que, mais uma vez, sugeriu a grande parte do mundo que somos seletivos em nossa adoção de leis e normas internacionais.

Enquanto isso, em casa, vemos como a democracia se tornou subordinada à busca pelo poder em uma parte do Partido Republicano. É a isso que o cinismo pode levar. Porque quando não há uma aspiração maior, nenhuma história que dê sentido às nossas ações, a política e a geopolítica se tornam meramente um jogo de soma zero. Nesse tipo de mundo, o poder faz a razão.

Tudo isso não pode ser colocado sobre os ombros de Henry Kissinger. De muitas maneiras, ele foi tanto uma criação do estado de segurança nacional americano quanto seu autor. Mas ele também é um conto de advertência. Por mais imperfeitos que sejamos, os Estados Unidos precisam de nossa história para sobreviver. É ela que mantém unida uma democracia multirracial em casa e nos diferencia da Rússia e da China no exterior.

Essa história insiste que uma criança no Laos é igual em dignidade e valor às nossas crianças e que o povo do Chile tem o mesmo direito de autodeterminação que nós. Para os Estados Unidos, isso deve fazer parte da segurança nacional. Nós nos esquecemos disso por nossa conta e risco.


* Ben Rhodes foi vice-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA entre 2009 e 2017, no governo de Barack Obama

 

Intervenção do Ministro Mauro Vieira no Debate de Alto Nível do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação no Oriente Médio e Palestina

Um dos mais importantes discursos preparados pela diplomacia brasileira para transmitir nossas posições tradicionais em matéria de política externa, em especial em relação à situação no Oriente Médio, com um foco bem mais explícito na questão da Palestina. Vale ler com atenção e gravar as posturas expressas desde muitos anos pela diplomacia brasileira, independentemente do que possa ser dito em nível executivo por amadores ou observadores.

Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 552

29 de novembro de 2023

Intervenção do Ministro Mauro Vieira no Debate de Alto Nível do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a situação no Oriente Médio, inclusive a Questão Palestina - 29 de novembro de 2023 - Nova York 

Versão original em inglês

(abaixo, versão em português)

Mr. President,

I thank the Chinese Presidency for elevating this meeting on the situation in the Middle East to a High-Level Event. The matter is of utmost importance and urgency to Brazil, of which is example the current official visit of President Lula to Saudi Arabia and Qatar where he is exchanging views with the main stakeholders on the situation in the region.

As we convene today, on the International Day of the Solidarity with the Palestinian People, we are compelled to acknowledge that the time is not for commemoration.

After hearing the Secretary-General António Guterres and Special Coordinator Thor Wennesland on the unprecedented horror taking place in Gaza, after the terror attack of October 7th and the 48 consecutive days of unrelenting bombardments that followed it, solidarity is certainly not the first word that comes to anyone’s mind.

Solidarity implies unity.

And, in the Security Council, we too have to stand in unity and solidarity for all those in need.

The situation in the Middle East, including the Palestinian Question, is, however, one of the most vetoed matters of the Security Council.

Such record is an unfortunate testament to the fact that more often than not disagreements triumph over common interest in this body. 

Yet the conflict in the Middle East has not disappeared, as we have been failing to see eye to eye in the Security Council. Much to the contrary, we have continuously heard reports of actions that have been undermining the viability of a Palestinian state and the fulfillment of the General Assembly Resolution 181 (II) of 1947 on the establishment of two States, living side by side in peace and security, within mutually accepted and internationally recognized borders.

The worsening situation in the past years between Israel and Palestine has not compelled us to unite and take action towards the shared goal of achieving peace to the Palestinians, the Israelis, and the people in the Middle East at large.

As we are now appalled by the spiral of violence and the intolerable loss of innocent lives, both in Israel and Palestine, and as we worry at the very concrete possibility of a regional spillover, we have to hold the Security Council accountable too, in its main obligation to uphold international peace and security.

Mr. President, Ladies and Gentlemen,

What is worse: we did not unite in the past. And we do not seem to be ready to unite now.

The Gaza Strip is grappling with unacceptable levels of violence. More than five thousand children have perished. We have heard Catherine Russell, Director of UNICEF, state unequivocally that "the Gaza Strip is the most dangerous place in the world to be a child".

The number of civilian lives lost exceeds 14 thousand. The plight of women, particularly pregnant women, in Gaza, is deeply disturbing.

The displacement figures are staggering, reaching nearly 1.7 million people, or 80% of Gaza's population.

An estimated number of 41,000 houses were destroyed or severely damaged. A total of 18 hospitals were shut down. The number of trucks with humanitarian assistance is utterly insufficient to attend the basic needs of the population, such as food, water, medicine, and fuel.

Alleged violations of International Humanitarian Law and International Human Rights Law continue as civilian infrastructure are destroyed.

The alarming death toll of over one hundred UN staff members is a tragic record in history.

In this light, Mr. President, this Council and the international community must join forces to ensure the end of violence, as well as to grant unhindered, sustainable, and predictable humanitarian aid to Gaza.

Mr. President, Ladies and Gentlemen,

We also stand unequivocally in solidarity with the Israeli families, whose innocent members were made hostages.

In this light, Brazil welcomes the release of 74 hostages in the past days. However, 167 individuals are still held captive. We share their pain and the unbearable suffering of their families. We cannot bear the idea of children taken from their families, under no circumstances and without any justification.

This is why we reiterate our call for the safe and unconditional liberation of all innocent people.

Brazil welcomes the recent truce deal between the parties, achieved through the mediation of Qatar and supported by Egypt and the United States.

Although contingent and temporary, halting hostilities and facilitating the release of numerous captives is a sign that agreement is possible, even when it seems unreachable and unattainable.

While acknowledging the efforts of the mediators of this encouraging diplomatic development, Brazil also welcomes the news of the extension of the truce for another two days.

Violence, terror, and forceful measures only breed hatred and fuel a never-ending cycle of hostilities.

We, therefore, urge all parties to cling to this spark of hope and encourage them to uphold this vital agreement.

Mr. President,

The truce is a first step towards a de-escalation of violence. It should encourage us to overcome differences and cooperate ambitiously.

While recognizing the relevance of the Security Council Resolution 2712(2023) and its call for humanitarian pauses and corridors in Gaza, Brazil is of the view that this Council must do more. It must unite to adopt a more decisive and comprehensive course of action that can consolidate gains; sustainably and predictably address the dire situation on the ground; and foster a safer and more hopeful future.

Echoing President Lula's recent remarks on the matter, we very much hope that this agreement on a short humanitarian truce – a modest sign of hope amidst an appalling human tragedy – can show a way to peace and lay the groundwork for the resumption of the peace process between Israel and Palestine.

In this endeavor, we must not lose sight of the need to address the root causes of the Palestinian issue through dialogue, political will, and good diplomacy.

This process needs to be fully inclusive, considering the perspectives of all relevant stakeholders. Every country and partner with influence over the parties must be called to shoulder their responsibility to reach a lasting solution for this central issue. And of course this Council should also live up to its responsibilities.

Burying the two States solution is burying any prospect for peace. A viable Palestinian state, living side by side in peace and security with Israel, within mutually accepted and internationally recognized borders, is the fulfillment of the Palestinian self-determination. But it is also the most crucial interest of all peace-loving countries that belong to the United Nations. Any initiative, in the form of an international conference, as some member states have proposed, with a view to implementing the two States solution, counts with the Brazilian unequivocal support.

Mr. President,

The legitimate aspirations of Palestinians and Israelis for peace and security in their own countries cannot be overlooked or neglected any longer.

As I tried to convey here today, solidarity is not only a moral obligation. It is the Security Council’s duty. In order to discharge its responsibilities for the maintenance of international peace and security, as enshrined in the UN Charter, the Security Council must unite around a common good and raise above any individual interest of its members.

Thank you.

 

* * * * * * * * *

(Tradução para o português)

 

Senhor Presidente, 

Agradeço à Presidência Chinesa por elevar esta reunião sobre a situação no Oriente Médio a um Evento de Alto Nível. O assunto é de extrema importância e urgência para o Brasil, como exemplificado pela atual visita oficial do Presidente Lula à Arábia Saudita e ao Catar, onde está intercambiando impressões com os principais interessados na situação da região.

Enquanto nos reunimos hoje, no Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino, somos compelidos a reconhecer que este não é um momento de comemoração.

Após ouvir o Secretário-Geral António Guterres e o Coordenador Especial Thor Wennesland sobre o horror sem precedentes que está ocorrendo em Gaza, após o ataque terrorista de 7 de outubro e os 48 dias consecutivos de bombardeios incessantes que o seguiram, solidariedade certamente não é a primeira palavra que vem à mente.

Solidariedade implica unidade.

E, no Conselho de Segurança, também precisamos estar unidos em solidariedade por todos aqueles que precisam.

A situação no Oriente Médio, inclusive a Questão Palestina, no entanto, é uma das mais vetadas no Conselho de Segurança.

Esse registro é um testemunho infeliz de que frequentemente discordâncias triunfam sobre interesses comuns neste órgão.

Ainda assim, o conflito no Oriente Médio não desapareceu enquanto não conseguimos chegar a acordo no Conselho de Segurança. Pelo contrário, continuamos a ouvir relatos de ações que têm minado a viabilidade de um Estado palestino e o cumprimento da Resolução 181 (II) da Assembleia Geral de 1947 sobre o estabelecimento de dois Estados, convivendo lado a lado em paz e segurança, dentro de fronteiras mutuamente aceitas e internacionalmente reconhecidas.

A piora da situação nos últimos anos entre Israel e Palestina não nos levou a nos unir e agir em prol do objetivo comum de alcançar a paz para os palestinos, israelenses e as pessoas no Oriente Médio em geral.

Enquanto estamos chocados com a espiral de violência e a perda intolerável de vidas inocentes, tanto em Israel quanto na Palestina, e enquanto nos preocupamos com a possibilidade concreta de um transbordamento regional, também temos de responsabilizar o Conselho de Segurança, no que tange à sua principal obrigação de manter a paz e a segurança internacionais.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores,

O que é pior: não nos unimos no passado. E não parece que estamos prontos para nos unir agora.

A Faixa de Gaza tem sofrido com níveis inaceitáveis de violência. Mais de cinco mil crianças faleceram. Ouvimos Catherine Russell, Diretora da UNICEF, afirmar inequivocamente que "a Faixa de Gaza é o lugar mais perigoso do mundo para ser uma criança".

O número de vidas civis perdidas ultrapassa 14 mil. A situação das mulheres, especialmente das grávidas, em Gaza, é profundamente perturbadora.

Os números de deslocamento são impressionantes, atingindo quase 1,7 milhão de pessoas, ou 80% da população de Gaza.

Um número estimado de 41.000 casas foi destruído ou gravemente danificado. Um total de 18 hospitais foram fechados. O número de caminhões com assistência humanitária é totalmente insuficiente para atender às necessidades básicas da população, como alimentos, água, medicamentos e combustível. 

Alegadas violações do Direito Internacional Humanitário e do Direito Internacional dos Direitos Humanos continuam à medida que infraestruturas civis são destruídas.

O alarmante número de mais de cem membros do pessoal da ONU mortos é um registro trágico na história.

Nesta perspectiva, Senhor Presidente, este Conselho e a comunidade internacional devem unir forças para garantir o fim da violência, bem como para prestar assistência humanitária incondicional, sustentável e previsível a Gaza.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores,

Também expressamos nossa solidariedade inequívoca às famílias israelenses, cujos membros inocentes foram feitos reféns. 

Nesse sentido, o Brasil saúda a libertação de 74 reféns nos últimos dias. No entanto, 167 pessoas ainda estão mantidas em cativeiro. Compartilhamos a dor e o sofrimento insuportável de suas famílias. Não podemos aceitar a ideia de crianças tiradas de suas famílias, sob nenhuma circunstância e sem qualquer justificativa. 

Por isso, reiteramos nosso apelo pela libertação segura e incondicional de todas as pessoas inocentes. 

O Brasil saúda o recente acordo de cessar-fogo entre as partes, alcançado por meio da mediação do Catar e apoiado pelo Egito e pelos Estados Unidos.

Embora pontuais e temporárias, a suspensão das hostilidades e a facilitação da libertação de numerosos prisioneiros demonstram que um acordo é possível, mesmo quando parece inalcançável.

Ao reconhecer os esforços dos mediadores deste encorajador desdobramento diplomático, o Brasil também recebe com satisfação a notícia da prorrogação da trégua por mais dois dias.

A violência, o terror e medidas coercitivas apenas instilam o ódio e nutrem um ciclo interminável de hostilidades. Portanto, instamos todas as partes a se apegarem a essa centelha de esperança e as encorajamos a manter este acordo vital.

Senhor Presidente, 

A trégua é um primeiro passo rumo à redução da violência. Deve nos encorajar a superar as diferenças e cooperar com ambição.

Ao reconhecer a relevância da Resolução 2712(2023) do Conselho de Segurança e seu apelo por pausas humanitárias e corredores em Gaza, o Brasil considera que este Conselho deve fazer mais. Ele deve unir-se para adotar um curso de ação mais decisivo e abrangente que possa consolidar ganhos; abordar de maneira sustentável e previsível a precária situação no terreno; e promover um futuro mais seguro e esperançoso.

Ecoando os recentes comentários do Presidente Lula sobre o assunto, esperamos sinceramente que este acordo sobre uma breve trégua humanitária - um modesto sinal de esperança em meio a uma tragédia humana terrível - possa indicar um caminho para a paz e lançar as bases para a retomada do processo de paz entre Israel e Palestina. 

Nesta empreitada, não devemos perder de vista a necessidade de abordar as causas profundas da questão palestina por meio do diálogo, da vontade política e da boa diplomacia.

Esse processo precisa ser totalmente inclusivo, considerando as perspectivas de todos os atores relevantes. Todos os países e parceiros com influência sobre as partes devem ser chamados a assumir sua responsabilidade para alcançar uma solução duradoura para esta questão central. E, é claro, este Conselho também deve cumprir suas responsabilidades.

Enterrar a solução de dois Estados é enterrar qualquer perspectiva de paz. Um Estado palestino viável, convivendo lado a lado em paz e segurança com Israel, dentro de fronteiras mutuamente aceitas e internacionalmente reconhecidas, é a concretização da autodeterminação palestina. Mas também é o interesse mais crucial de todos os países que amam a paz e fazem parte das Nações Unidas. Qualquer iniciativa, na forma de uma conferência internacional, como alguns Estados membros propuseram, com o objetivo de implementar a solução de dois Estados, conta com o apoio inequívoco do Brasil.

Senhor Presidente, 

As aspirações legítimas dos palestinos e israelenses por paz e segurança em seus próprios países não podem mais ser ignoradas ou negligenciadas.

Como tentei transmitir aqui hoje, a solidariedade não é apenas uma obrigação moral. É o dever do Conselho de Segurança. Para cumprir suas responsabilidades na manutenção da paz e segurança internacionais, conforme consagrado pela Carta da ONU, o Conselho de Segurança deve unir-se em torno de um bem comum e elevar-se acima de qualquer interesse individual de seus membros.

Obrigado.

 

Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/intervencao-do-ministro-mauro-vieira-no-debate-de-alto-nivel-do-conselho-de-seguranca-da-onu-sobre-a-situacao-no-oriente-medio 



Seminário sobre o Programa Espacial Brasileiro no Itamaraty - Nota do MRE

 Ministério das Relações Exteriores

Assessoria Especial de Comunicação Social

 

Nota nº 553

29 de novembro de 2023

 

 

Seminário sobre o Programa Espacial Brasileiro

 

 

O Ministério das Relações Exteriores e a Fundação Alexandre de Gusmão, em colaboração com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, a Agência Espacial Brasileira e a Força Aérea Brasileira, realizaram, em 29 de novembro, Seminário sobre o Programa Espacial Brasileiro, no Palácio do Itamaraty, em Brasília. O Seminário reuniu os principais atores do setor espacial no Brasil para discussão sobre a história do setor no país, o panorama atual, interno e mundial, e as perspectivas para o futuro.

O Seminário buscou promover a importância estratégica das tecnologias espaciais para o desenvolvimento nacional. Atualmente, as tecnologias espaciais são essenciais para áreas como telecomunicações, vigilância das fronteiras e costas marítimas, mapeamento de recursos, combate a desastres naturais, monitoramento ambiental e meteorológico, segurança cibernética, entre outras. O evento também avaliou o papel central da cooperação internacional e da diversificação de parcerias para o fortalecimento do Programa Espacial Brasileiro, bem como um papel ativo do Brasil no âmbito multilateral, no que concerne a regulações e regimes de uso do espaço, para consolidar o princípio de que a exploração espacial deve ser empreendida em benefício de todas as nações.

 

Nota publicada em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/seminario-sobre-o-programa-espacial-brasileiro

Death of a diplomat: Henry Kissinger, 1923-2023 (The Washington Post)

Death of a diplomat

The Washington Post, Nov 30, 2023

Henry A. Kissinger, a scholar, statesman and celebrity diplomat who wielded unparalleled power over U.S. foreign policy throughout the administrations of Presidents Richard M. Nixon and Gerald Ford, and who for decades afterward, as a consultant and writer, proffered opinions that shaped global politics and business, died Nov. 29 at his home in Connecticut. He was 100.

His death was announced in a statement by his consulting firm, which did not give a cause.

As a Jewish immigrant fleeing Nazi Germany, Dr. Kissinger spoke little English when he arrived in the United States as a teenager in 1938. But he harnessed a keen intellect, a mastery of history and his skill as a writer to rise quickly from Harvard undergraduate to Harvard faculty member before establishing himself in Washington.

As the only person ever to be White House national security adviser and secretary of state at the same time, he exercised a control over U.S. foreign policy that has rarely been equaled by anyone who was not president.

He and Vietnam’s Le Duc Tho shared the Nobel Peace Prize for the secret negotiations that produced the 1973 Paris agreement and ended U.S. military participation in the Vietnam War. His famous “shuttle diplomacy” after the 1973 Middle East war helped stabilize relations between Israel and its Arab neighbors.

As the impresario of Nixon’s historic opening to China and as the theoretician of détente with the Soviet Union, Dr. Kissinger earned much of the credit for seismic policy shifts that redirected the course of world affairs.

When he was appointed secretary of state, a Gallup poll found him to be the most admired person in the country. But he also became the target of relentless critics.

On the left, loud voices accused him of a coldblooded pragmatism that put strategic gains ahead of human rights. Some of his critics said the Paris agreement left a longtime ally, the government of South Vietnam, to a dark fate as the North Vietnamese seized control. Others accused him of letting the war continue for three years while he negotiated a deal that he could have had from the beginning.

Throughout his life, Dr. Kissinger ruminated on power and strategy in philosophical and even existential terms, but he always described himself as a realist, able to see which risks were worth taking.

“Policy is the art of weighing probabilities; mastery of it lies in grasping the nuances of possibilities,” he wrote as a young man. “To attempt to conduct it as a science must lead to rigidity. For only the risks are certain; the opportunities are conjectural.”

By Thomas W. Lippman, a former Washington Post reporter who covered Dr. Kissinger’s diplomatic activities in Vietnam and the Middle East.

Read more: Henry Kissinger, who shaped world affairs under two presidents, dies at 100.
https://s2.washingtonpost.com/3bf32b1/6568175fee20006aed835632/596b79f3ade4e24119b43ed3/26/61/6568175fee20006aed835632

O legado de Henry Kissinger (2008) (antecipei-me) - Paulo Roberto de Almeida

 O Metternich do século XX finalmente faleceu. Eu já tinha feito uma espécie de obituário 15 anos antes; ele me venceu...

1894. “O legado de Henry Kissinger”, Brasília, 1 junho 2008, 5 p. Comentários sobre a obra prática e intelectual do estadista americano. Publicado em Mundorama (Brasília, 31/05/2008); em Meridiano 47 (n. 94, maio de 2008, p. 29-31). Relação de Publicados n. 838.
Divulgado no blog Diplomatizzando (11/05/2020); link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/05/o-legado-de-henry-kissinger-paulo.html

O legado de Henry Kissinger

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Não, o velho adepto da realpolitik ainda não morreu. Mas tendo completado 85 anos em maio de 2008, o ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA Henry Kissinger aproxima-se das etapas finais de sua vida. Seus obituários – não pretendendo aqui ser uma ave de mau agouro – devem estar prontos nas principais redações de jornais e revistas do mundo inteiro, e os comentaristas de suas obras preparam, certamente, revisões de análises anteriores para reedições mais ou menos imediatas, tão pronto este “Metternich” americano passe deste mundo terreno para qualquer outro que se possa imaginar (na minha concepção, deverá ser o mundo das ideias aplicadas às relações de poder). 

Talvez seja esta a oportunidade para um pequeno balanço de seu legado, que alguns – por exemplo Cristopher Hitchens, em The Trial of Henry Kissinger  querem ver por um lado unicamente negativo, ou até criminoso, como se ele tivesse sido apenas o inimigo dos regimes “progressistas” e um transgressor consciente dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos. Ele certamente tem suas mãos manchadas de sangue, mas também foi o arquiteto dos acordos de redução de armas estratégicas e da própria tensão nuclear com a extinta União Soviética, além de um mediador relativamente realista nos diversos conflitos entre Israel e os países árabes, no Oriente Médio. Sua obra “vietnamita” é discutível, assim como foi altamente discutível – ou francamente condenável – o prêmio Nobel da Paz concedido por um simplesmente desengajamento americano, que visava bem mais a resolver questões domésticas do que realmente pacificar a região da ex-Indochina francesa. 

Pode-se, no entanto, fazer uma espécie de avaliação crítica de sua obra prática e intelectual, como reflexão puramente pessoal sobre o que, finalmente, reter de uma vida rica em peripécias intelectuais e aventuras políticas. Sua principal obra de “vulgarização” diplomática, intitulada de maneira pouco imaginativa Diplomacia simplesmente, deve constituir leitura obrigatória em muitas academias diplomáticas de par le monde. Seu trabalho mais importante, uma análise do Congresso de Viena (1815), é mais conhecido pelos especialistas do que pelo grande público, mas ainda assim merece ser percorrido pelos que desejam conhecer o “sentido da História”.

 O legado de Henry Kissinger é multifacético e não pode ser julgado apenas pelos seus atos como Conselheiro de Segurança Nacional de Richard Nixon, ou como Secretário de Estado desse presidente e do seguinte, Gerald Ford, quando ele esteve profundamente envolvido em todas as ações do governo americano no quadro da luta anticomunista que constituía um dos princípios fundamentais da política externa e da política de segurança nacional dos EUA. Esse legado alcança, necessariamente, suas atividades como professor de política internacional, como pensador do equilíbrio nuclear na era do terror – doutrina MAD, ou Mutually Assured Destruction –, como consultor do Pentágono em matéria de segurança estratégica, e também, posteriormente a seu trabalho no governo, como articulista, memorialista e teórico das relações internacionais.

A rigor, ele começou sua vida pública justamente como teórico das relações internacionais, ou, mais exatamente, como historiador do equilíbrio europeu numa época revolucionária, isto é, de reconfiguração do sistema de poder no seguimento da derrocada de Napoleão e de restauração do panorama diplomático na Europa central e ocidental a partir do Congresso de Viena (1815). Sua tese sobre Castlereagh e Metternich naquele congresso (A World Restored, 1954) é um marco acadêmico na história diplomática e de análise das realidades do poder num contexto de mudanças nos velhos equilíbrios militares anteriormente prevalecentes. Depois ele foi um fino analista dessas mesmas realidades no contexto bipolar e do equilíbrio de terror trazido pelas novas realidades da arma atômica. Ele se deu rapidamente conta de que não era possível aos EUA manter sua supremacia militar exclusiva, baseada na hegemonia econômica e militar e no seu poderio atômico, sem chegar a algum tipo de entendimento com o outro poder nuclear então existente, a União Soviética, uma vez que, a partir de certo ponto, a destruição assegurada pela multiplicação de ogivas nucleares torna ilusória qualquer tentativa de first strike ou mesmo de sobrevivência física, após os primeiros lançamentos.

Daí sua preocupação em reconfigurar a equação dos poderes – aproximando-se da China, por exemplo – e em chegar a um entendimento mínimo com a URSS, através dos vários acordos de limitações de armas estratégicas. O controle da proliferação nuclear também era essencial, assim como evitar que mais países se passassem para o lado do inimigo principal, a URSS (o que justifica seu apoio a movimentos e golpes que afastassem do poder os mais comprometidos com o lado soviético do equilíbrio de poder). Numa época de relativa ascensão da URSS, com governos declarando-se socialistas na África, Ásia e América Latina, a resposta americana só poderia ser brutal, em sua opinião, o que justificava seu apoio a políticos corruptos e a generais comprometidos com a causa anticomunista. Não havia muita restrição moral, aqui, e todos os golpes eram permitidos, pois a segurança dos EUA poderia estar em jogo, aos seus olhos. 

Ou seja, todas as acusações de Christopher Hitchens estão corretas – embora este exagere um pouco no maquiavelismo kissingeriano – mas a única justificativa de Henry Kissinger é a de que ele fez tudo aquilo baseado em decisões do Conselho de Segurança Nacional e sob instruções dos presidentes aos quais serviu. Não sei se ele deveria estar preso, uma vez que sua responsabilidade é compartilhada com quem estava acima dele, mas certamente algum julgamento da história ele terá, se não o dos homens, em tribunais sobre crimes contra a humanidade. Acredito, pessoalmente, que ele considerava as “vítimas” de seus muitos golpes contra a democracia e os direitos humanos como simples “desgastes colaterais” na luta mais importante contra o poder comunista da URSS, que para ele seria o mal absoluto. 

O julgamento de alguém situado num plano puramente teórico, ou “humanista” – como, por exemplo, intelectuais de academia ou mesmo jornalistas, para nada dizer de juízes empenhados na causa dos direitos humanos ou de “filósofos morais” devotados à “causa democrática” no mundo –, tem de ser necessariamente diferente do julgamento daqueles que se sentaram na cadeira onde são tomadas as decisões e tem, portanto, de julgar com base no complexo jogo de xadrez que é o equilíbrio nuclear numa era de terror, ou mesmo no contexto mais pueril dos pequenos golpes baixos que grandes potências sempre estão aplicando nas outras concorrentes, por motivos puramente táticos, antes que respondendo a alguma “grande estratégia” de “dominação mundial”. Desse ponto de vista, Kissinger jogou o jogo de forma tão competente quanto todos os demais atores da grande política internacional, Stalin, Mao, Kruschev, Brejnev, Chu Enlai, Ho Chi-min e todos os outros, ou seja, não há verdadeiramente apenas heróis de um lado e patifes do outro. Todos estão inevitavelmente comprometidos como pequenos e grandes atentados aos direitos humanos e aos valores democráticos.

Não creio, assim, que ele tenha sido mais patife, ou criminoso, do que Pinochet – que ele ajudou a colocar no poder – ou de que os dirigentes norte-vietnamitas – que ele tentou evitar que se apossassem do Vietnã do Sul (e, depois, jogou a toalha, ao ver que isso seria impossível cumprir pela via militar, ainda que, na verdade, os EUA tenham sido “derrotados” mais na frente interna, mais na batalha da opinião pública doméstica, do que propriamente no terreno vietnamita). Ou seja, Kissinger não “acabou” com a guerra do Vietnã: ele simplesmente declarou que os EUA tinham cumprido o seu papel – qualquer que fosse ele – e se retiraram da frente militar.

Seu legado também pode ser julgado como “comentarista” da cena diplomática mundial, como memorialista – aqui com imensas lacunas e mentiras, o que revela graves falhas de caráter – e como consultor agora informal de diversos presidentes, em geral republicanos (mas não só). Ele é um excelente conhecedor da História – no sentido dele, com H maiúsculo, certamente – e um grande conhecedor da psicologia dos homens, sobretudo em situações de poder. Trata-se, portanto, de um experiente homem de Estado, que certamente serviu ardorosamente seus próprios princípios de atuação – qualquer que seja o julgamento moral que se faça deles – e que trabalhou de modo incansável para promover os interesses dos EUA num mundo em transformação, tanto quanto ele tinha analisado no Congresso de Viena.

Desse ponto de vista, pode-se considerar que ele foi um grande representante da escola realista de poder e um excelente intérprete do interesse nacional americano, tanto no plano prático, quanto no plano conceitual, teórico ou histórico. Grandes estadistas, em qualquer país, também são considerados maquiavélicos, inescrupulosos e mentirosos, pelos seus adversários e até por aliados invejosos. Esta é a sina daqueles que se distinguem por certas grandes qualidades, boas e más. Kissinger certamente teve sua cota de ambas, até o exagero. Não se pode eludir o fato de que ele deixará uma marca importante na política externa e nas relações internacionais – dos EUA e do mundo – independentemente do julgamento moral que se possa fazer sobre o sentido de suas ações e pensamento.

Por uma dessas ironias de que a História é capaz, coube a um dos presidentes mais ignorantes em história mundial (Ronald Reagan) enterrar, praticamente, o poder soviético com o qual Kissinger negociou quase de igual para igual durante tantos anos. Ele, que considerava o resultado de Viena um modelo de negociação – por ter sido uma paz negociada, justamente, não imposta, como em Versalhes – deve ter sentido uma ponta de inveja do cowboy de Hollywood, capaz de desmantelar o formidável império que tinha estado no centro de suas preocupações estratégicas – e que ele tinha poupado de maiores “desequilíbrios” ao longo dos anos. Seu cuidado em assegurar o “equilíbrio das grandes potências” saltou pelos ares com o keynesianismo militar praticado por Reagan, um desses atos de voluntarismo político que apenas um indivíduo totalmente alheio às grandes tragédias da História seria capaz. Talvez Kissinger tivesse querido ser o arquiteto do grande triunfo da potência americana, mas ele teve de se contentar em ser apenas o seu intérprete tardio. Nada mau, afinal de contas, para alguém que foi, acima de tudo, um intelectual...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2 de junho de 2008

Divulgado no blog Diplomatizzando (11/05/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/05/o-legado-de-henry-kissinger-paulo.html).

 

 

Pronunciamento do presidente Lula na cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, 2023

Pronunciamento do presidente Lula na cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco

Transcrição do pronunciamento do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, no Palácio Itamaraty, em 21 de novembro de 2023


Meu querido companheiro Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores, por meio de quem cumprimento os demais diplomatas que completaram 50 anos de serviço público. General Marcos Antônio Amaro, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Jean Baptista, o Núncio Apostólico do Brasil, por meio de quem cumprimento os demais chefes de missão diplomática. Embaixadora Maria Laura da Rocha, secretária-geral do Itamaraty, embaixadora Glivânia Maria de Oliveira, diretora do Instituto Rio Branco e embaixadora Maria Elisa Teófilo de Luna, paraninfa da turma Mônica de Menezes Campos, formandos, e familiares, amigos e amigas.

Eu, por conta do discurso do Essi Rafael, resolvi deixar meu discurso lá e vim falar um pouco com vocês, não da história da fundação do Itamaraty, ou da história da nossa diplomacia, porque não fui tão longe como esse. Mas eu queria falar para jovens que estão adentrando essa carreira de diplomata que, nesses anos todos, eu aprendi a ter uma relação de muito respeito com o Itamaraty.

Muitas vezes, eu nem era presidente da República, nos anos oitenta, era apenas um dirigente sindical, e quase todas as vezes que eu viajava para o exterior eu tinha um assessor, um grande companheiro de muitos de vocês, chamado Marco Aurélio Garcia, que toda vez que eu ia viajar ele comunicava ao Itamaraty que a gente ia viajar. Não importa se o presidente fosse Figueiredo, fosse Geisel, fosse Sarney, quem quer que seja, a gente comunicava ao Itamaraty que a gente ia viajar ao exterior.

E muitas vezes, Mauro, muitas vezes mesmo, sempre tinha alguém do Itamaraty esperando a gente no aeroporto, e muitas vezes a gente era convidado até para almoçar ou para jantar na embaixada. Isso me fez aumentar o orgulho que eu já tinha do Itamaraty, porque muitas vezes nós somos acusados, e muita gente até merece essa acusação, de termos complexo de vira-lata, de não termos autoestima, de não defendermos as coisas que nós acreditamos, e muitas vezes dizem que a gente se subordina demais, às vezes, à vontade de países mais importantes que nós.

Eu não acho que seja assim. Eu acho que não é o Itamaraty que determina a política externa dele. O Itamaraty cumpre as estratégias determinadas por um governo. E se o governo tiver estratégia de política internacional, eu posso dizer pra vocês que o Itamaraty tem mulheres e homens altamente capacitados para exercer qualquer que seja a tarefa determinada pelo governo. E isso é motivo de orgulho pra vocês que estão entrando nessa carreira.

Não é uma carreira fácil. Dizem que a gente pensa de acordo com o chão que os nossos pés pisam, e aí a gente precisa sempre ter cuidado de fazer com que os embaixadores possam conhecer, desde o início, a diversidade da função. É muito importante que a gente faça com que o Brasil tenha uma política muito altiva e ativa na América do Sul e no Caribe, e na América Latina. É muito importante estrategicamente, para um país como o Brasil, ter uma aproximação muito forte com o continente africano.

Se não por outra razão, é porque nós temos origem naquele continente. É porque nós devemos parte da nossa cultura àquele continente. Porque nós devemos parte do que nós somos àquele continente. E porque eles precisam que a gente retribua, não com dinheiro porque também não temos, mas com transferência de tecnologia, sabe, tudo aquilo que a gente pode ajudá-los. É esse o papel de um país do tamanho do Brasil, que faz fronteira seca de quase 16.800 km na América do Sul, e que tem como fronteira marítima todo o continente africano. Vai de Cabo Verde à Cidade do Cabo, ou seja, que a gente tem que tratar isso com muito carinho, muito respeito e com muita diplomacia, sem o complexo da arrogância daquele que acha que alguém é inferior a nós.

Eu vivi muitas histórias aqui no Itamaraty. Muitas. E muitas alegrias, e poucas tristezas. Eu tive oportunidade de viver isso aqui quando a gente resolveu não permitir que a ALCA se implantasse na nossa querida América do Sul, e que a gente fortalecesse o Mercosul, que tinha sido criado pelo presidente Sarney e pelo presidente Alfonsin (ex-presidente da Argentina, Raúl Alfonsin). Eu lembro da importância que foi a gente criar a UNASUL. Nunca, em nenhum momento da história desse país, os países da América do Sul estiveram tão irmanados como nós tivemos durante um período de quase 16 anos.

E não era irmanado porque pensávamos politicamente a mesma coisa, porque pensávamos ideologicamente a mesma coisa. Não. Éramos irmanados porque, em determinado momento da nossa história, o povo elegeu um agrupamento de dirigentes que tinha noção de que era preciso que a gente construísse um grupo, um conjunto de países, que resolvesse se fortalecer para negociar com aqueles que eram mais fortes do que nós. Para negociar com os Estados Unidos, para negociar com a China, para negociar com a União Europeia, para negociar com o Japão. Ou seja, era preciso que a gente se fortalecesse e que tivesse decisões comuns em determinadas ações de políticas externas.

E nós conseguimos viver o melhor momento. Foi aqui no Itamaraty que nós decidimos fazer a primeira reunião da história entre países árabes e países da América do Sul. Em que os Estados Unidos ficaram assustados achando que nós estávamos fazendo um movimento contra Israel. E a gente não queria fazer um movimento contra Israel, a gente queria fazer o movimento pró-Brasil, pró-América do Sul, para que a gente pudesse adentrar nesse mundo árabe e tentar estabelecer negociações e relações políticas mais maduras.

Foi aqui também que nós tomamos a decisão de fazer a primeira reunião entre o continente africano e o continente sul-americano para que a gente pudesse permitir, sabe, que os pobres do mundo se conhecessem, e que pudessem estabelecer relações, e que a gente pudesse descobrir que, mesmo sendo pobre, muita gente tem muito a oferecer para nós e nós temos muito a oferecer para eles. É por isso que nós fizemos a maior investida de embaixadores que já teve na história da África. Foram 19 embaixadas novas criadas, foram 34 países visitados. Levamos para Gana a Embrapa. Levamos para Moçambique a Universidade aberta, levamos uma fábrica de remédios retrovirais. Ou seja, na perspectiva de que o Brasil tinha que cumprir um papel muito forte para não permitir que a África continuasse sendo refém dos colonizadores, ou refém de uma atuação muito forte da China, que estava procurando lugares para poder comprar os alimentos que tanto eles precisavam.

E foi assim que o Brasil foi conquistando respeito no mundo, e foi assim que o Brasil foi ficando importante, e foi assim que eu tenho muito orgulho de ter sido o único presidente do Brasil convidado para participar de todas as reuniões do G7, menos uma que foi em São Francisco que foi o segundo ano já no governo Bush. E aí tem coisas interessantes para contar: a primeira vez que eu participei, em junho de 2003, eu tinha apenas seis meses de governo, e eu fui convidado a participar do G7 em Evian. Cheguei em Evian, um metalúrgico recém-eleito presidente da República, olhei pra dentro de uma sala cercada por vidros blindados para tudo quanto é lado, estavam lá grandes figuras que eu só via lá na televisão. Estava lá o Bush, estava lá o Tony Blair, estava lá o primeiro ministro da Itália e estava lá o convidado rei da Arábia Saudita, estava lá o Koizumi, do Japão. E eu fiquei pensando: "o que que eu vou fazer dentro dessa reunião?". E mais: não podia entrar intérprete. Eu nem entendia e nem falava. E eu falei: "o que que eu vou fazer?". Aí eu fiquei lá fora, o Sérgio Ferreira, que está aqui até hoje, e eu falei: "Sérgio, que que eu vou fazer lá dentro? Eu não consigo nem falar bom dia em inglês". Em espanhol eu ainda consigo falar “hola, que tal? Buenos dias”. O que é que eu vou fazer lá dentro?

Aí me baixou uma coisa, que eu acho que é uma coisa que deve nortear vocês, que é não esquecer o que vocês são, é não esquecer o que vocês querem, porque a gente não compra nem honra nem caráter em shopping. A gente traz de família, a gente traz de berço. Eu lembro que ver aquela gente toda importante, que eu só via na televisão, porque é engraçado, a gente vê mais o presidente americano na televisão brasileira do que o brasileiro mesmo. É uma capacidade de comunicação extraordinária. E eu fiquei pensando: "bem, desses presidentes que estão aí, alguém já viveu desempregado? Alguém já trabalhou no chão de fábrica? Alguém já viveu num bairro que dava enchente? Alguém já acordou com rato, com barata, com um metro e meio de água dentro de casa? Alguém já passou fome? Alguém já morou na periferia de algum país?", e eu pensava “acho que não”. E eu me enchi de orgulho para falar, e sabe o que eu vou falar? Eu vou falar o que eu sei falar. E eles vão me entender porque o Sérgio ia interpretar cada palavra que eu falasse. E eu entrei. Nunca me senti tão à vontade na vida, porque eu tinha definido antes de qualquer coisa que eu não era inferior a eles. Que eu não era melhor, que eu representava não o Lula, não a quantidade de diploma, eu representava o Brasil, o povo brasileiro e que, portanto, eu tinha que ter orgulho. Isso fez com que a gente ganhasse a respeitabilidade que eu acredito que tenha sido o melhor momento da história desse país.

Eu posso dizer aos jovens diplomatas, e aos velhos também. Velhos, não, experientes. De que eu estou voltando agora, estou apenas há 10 meses no governo, eu acho que nós estamos em uma fase melhor do que a gente estava quando eu deixei a presidência. Se bem que nós estamos vivendo algumas confusão na América do Sul. Não é mais a mesma de 2002, 2004, 2006. Nós vamos ter problemas políticos e, ao invés de reclamar dos problemas políticos, a gente precisa ser inteligente e tentar resolvê-los. Tentar conversar. Tentar fazer com que as pessoas aprendam a viver democraticamente na diversidade. Eu não tenho que gostar do presidente do Chile, da Argentina, da Venezuela. Ele não tem que ser meu amigo. Ele tem que ser presidente do país dele e eu tenho que ser presidente do meu país. Nós temos que ter políticas de Estado brasileiro e ele política do estado dele. Nós temos que sentar na mesa, cada um defendendo os seus interesses, como não pode ter supremacia de um sobre o outro, a gente tem que chegar num acordo. Essa é a arte da democracia, a gente ter que chegar a um acordo.

E aí é preciso ter capacidade de negociação, ter capacidade de convencimento, ter capacidade de ceder. É por isso que historicamente eu comparo democracia a um casamento. Nada é parecido com a democracia do que um casamento. Porque no casamento, na hora que você casa, na hora que você tem uma companheira, ou a companheira tem um companheiro, e você tem filhos, todo dia a gente faz concessão. É a gente que faz concessão pra mulher, é mulher que faz concessão pra gente, é a gente que faz concessão pra filho, é filho que faz concessão pra gente. Porque se não for assim, acaba o casamento.

E se não for assim, acaba a grandiosidade de uma coisa chamada diplomacia brasileira, que quer queira ou não é uma das mais respeitadas e mais elogiadas no mundo inteiro. Se tem uma coisa que a gente tem que ter orgulho, é da diplomacia brasileira. Eu posso não gostar de um diplomata, mas se o Brasil tiver política correta, esse diplomata vai exercer a sua função como funcionário do Estado brasileiro, e a gente vai ter orgulho do trabalho que ele prestou.

Eu lembro, Mauro, você já estava no Itamaraty, eu lembro quando começou a briga com Estados Unidos e Iraque. Eu lembro que o nosso representante na agência de armas químicas, me parece, ou armas atômicas, era o embaixador Bustani. E eu lembro que o embaixador Bustani disse publicamente, várias vezes, que não tinha armas químicas no Iraque. Disse isso com todo o poder da voz que ele tinha. Mas como os americanos precisavam prestar contas ao seu povo, de que era preciso derrotar alguém ligado ao terrorismo, era preciso consagrar a mentira de que o Iraque tinha armas químicas. E esse caso é fantástico porque mentiu Saddam Hussein pro seu povo, passando a ideia que tinha, e mentiu os Estados Unidos dizendo que tinha. Aí eu lembro que foi sacado do cargo o nosso companheiro Bustani, e eu fui conversar com um amigo embaixador. Não vou dizer nem aonde e nem quando, e ele me dizia assim: "Presidente, tá correto tirar o Bustani. O Brasil não tem que estar naquela agência, o Brasil não põe dinheiro lá". Eu achei uma atitude tão pequena, eu achei uma atitude tão subserviente, porque não se trata do Brasil colocar dinheiro ou não, se trata de um Brasil que faz parte de um conjunto de países que compõem a ONU. E que, portanto, o Brasil tem o direito de participar e tentar ocupar o cargo. Senão, fica uma coisa estranha.

Quando eu tomei posse em 2003, em setembro eu fui fazer meu discurso e o Brasil estava devendo todas as instituições. Todas. Pense no que que é um presidente chegar para falar e eu fiquei vendo a hora de o Kofi Annan falar: "ô baixinho, para de falar grosso e paga o que você deve, pô". Porque é vergonhoso, é vergonhoso você participar de uma série de coisas e não pagar. Você perde a autoridade moral. E durante todo o meu período de governo, sabe, quem foi diplomata no meu tempo, a gente fazia questão de pagar para que a gente tivesse autoridade de interferir em qualquer espaço que a gente estivesse.

Agora me parece que estava atrasado outra vez. Nós vamos ter que colocar em dia. Porque a gente tem que chegar nos lugares e andar de cabeça erguida. Porque se não você chega, vai sentar, e o cara fala: "o baixinho, você não pagou, fica de pé". E não é possível, assim a gente perde o respeito internamente entre nós.

Então eu queria dizer pra vocês que estão se formando, que a gente vai tentar fazer com que o Brasil tenha uma política externa mais ativa e mais altiva. Obviamente que a gente tem debilidades financeiras, nem sempre a gente tem a quantidade de dinheiro que a gente gostaria de ter, mas, por exemplo, eu tinha visitado, nos meus dois primeiros mandatos, todos os países da América do Sul e do Caribe. Não ficou um que eu não visitasse. E alguns mais de uma vez. A gente, pra manter uma boa relação com a Venezuela, a gente tinha quatro reuniões por ano com a Venezuela. Eram duas lá e duas cá. Era quase um bolero.

A gente fazia muita reunião com a Argentina, porque a Argentina é um país parceiro, o Brasil tem uma relação extraordinária com a Argentina. Foi o primeiro país que eu visitei para dar uma demonstração, em 2003, de que a gente ia ter uma forte política para a América do Sul. Porque quando eu não era ainda candidato, eu já percebia que, durante muito tempo, o Brasil olhava para os Estados Unidos e para União Europeia de costas viradas para a América do Sul. Isso aqui não tinha importância, isso aqui era problema. Pra que cuidar do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia? É tudo problema. Não, gente. Se a gente não cuida de quem está perto da gente, muito menos a gente cuida de quem está longe. A gente olhava pro continente europeu e não via a África. Se bem que foi no regime militar, que foi no governo Geisel que a gente foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola.

É essa diplomacia que nós temos que levar em conta. É vocês saberem que vocês estão sendo respeitados por aquilo que vocês fazem. Pelo trabalho, e é preciso que o governo tenha a política, porque se alguém chegar pra vocês e falar "o embaixador não faz nada", não acreditem. O que falta é orientação política. Se o governo tiver orientação política e o Itamaraty receber a orientação política correta, todos os diplomatas serão competentes e irão executar essa política. Portanto, é esse presidente que vai, nesses próximos quatro anos, se relacionar com vocês.

A gente vai voltar a ter orgulho de ter orgulho. A gente vai voltar a ter orgulho de ser respeitado. A gente vai voltar a ser um país que não se sente menor do que ninguém, e nem queremos ser maiores. Queremos apenas compartilhar com os nossos irmãos aquilo que a gente pode fazer em conjunto. Mesmo na questão do desenvolvimento, eu sempre imaginava que o Brasil não pode crescer sozinho. Um país que tem uma fronteira que tem o Brasil, o Brasil precisa compartilhar muitas de suas políticas de desenvolvimento com outros países. Se a gente produz um avião, que alguém produza a asa, que alguém produza a hélice. Se a gente produz um barco, que alguém produza alguma parte do navio para que a gente possa gerar oportunidade pra todo mundo.

Eu não quero que o Brasil seja uma nação rica cercada de pobre por todos os lados. Eu não quero repetir o padrão América do Norte. Não é comum que a gente não tenha na América do Norte aquele monte de país do Caribe vizinho dos EUA, nenhum país ficou rico ao longo de 500 anos. É porque não tem política de compartilhamento. Vocês veem todo dia na televisão se construindo um muro para evitar que latino-americano vá para os Estados Unidos. A melhor forma de evitar, e mais barata, é fazer com que tenha desenvolvimento nos países da América Latina e do Caribe.

As pessoas viram nômade porque as pessoas querem viver, porque as pessoas querem comer. Essa é a origem da espécie humana. A gente vivia atrás de comida, as pessoas querem comer, as pessoas querem emprego. E se nos seus países não oferecem, as pessoas tentam buscar onde tem. É com essa ideia que eu gostaria de terminar meu discurso dizendo para vocês: vocês já faziam parte da história desse país, agora vocês escolheram uma função que vocês vão representar o Brasil. Não importa a grandiosidade da função, até porque ninguém nasce grande e ninguém começa grande. Ninguém. Mas vocês podem crescer na carreira, e vocês podem não só ter orgulho da função de vocês, como nós, brasileiros, poderemos ter orgulho de vocês.

Eu acho que no nosso governo, Mauro, o Itamaraty tem que receber orientação: qualquer autoridade brasileira que chegar no exterior e precisar do Itamaraty, o Itamaraty tem que atendê-lo sem saber quem é, se ele gosta do governo, se não gosta, se gosta do Lula, se não gosta, até porque ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Nós somos obrigados a conviver de forma civilizada, democrática e respeitosa entre os seres humanos. É esse o mundo que nós poderemos construir. E é esse mundo que está agora começando na mão de vocês. Uma evolução, muitas meninas, ainda menos do que a gente precisa, vários estados estão aqui, não está mais apenas no Rio e em São Paulo. E aos poucos a gente vai fazendo com que... a gente já fez com que as universidades ficassem a cara do Brasil.

Outro dia eu fui na USP, e era um ato público, e na hora da fotografia a reitora falou assim pra mim: "Ô presidente, dá uma olhada na foto como mudou a cara da universidade". Antes, era só uma cor, era só um tipo de gente, e agora é uma coisa muito diversa. E o Itamaraty, Mauro, também tem que ser assim. O Itamaraty não tem que ter problema de gênero, o Itamaraty não tem que ter preconceito. O Itamaraty, e é por isso que vamos continuar investindo na educação, o Itamaraty tem que ser a cara do Brasil. Portanto, parabéns a vocês. Que Deus possa dar a vocês a sabedoria que o Brasil precisa desses novos representantes. E parabéns às famílias de vocês. Um abraço e boa sorte na carreira de vocês.