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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Perigo comunista na AL, segundo o chanceler (O Globo)

Em artigo, Ernesto Araújo alerta contra 'horizonte comunista' na América Latina

Chanceler diz que o intuito dos marxistas é preservar a 'utopia' comunista

O Globo, 18/12/2019

BRASÍLIA - O Itamaraty divulgou nesta quarta-feira um artigo em que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, "traça um panorama da ameaça comunista nos países latinos", que segundo ele "quer voltar a estrangular-nos" e regressar em Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Colômbia, México, Venezuela e no Brasil. O chanceler prega ainda que o sistema liberal estude seu antagonista para combatê-lo, sem aversão à ideologia. O texto foi disponibilizado na página oficial do ministério, mas foi escrito para o site Terça Livre, onde ainda não havia sido publicado até as 16h.

Intitulado "Para além do horizonte comunista", o artigo diz que a América Latina, sem dúvidas, "viveu dentro de um horizonte comunista" desde 2005 ou desde as vitórias eleitorais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2002, ou do ex-líder venezuelano Hugo Chávez, em 1999. Em seguida, diz que este horizonte "começou a raiar", na verdade, a partir da criação do Foro de São Paulo, em 1991. Citando uma declaração de 2007 do então vice-presidente boliviano Álvaro García Linera de que "o horizonte geral da nossa era é o comunismo", Ernesto expôs seu ponto de vista sobre o cenário político na região:

"Veja-se bem a expressão: dentro de um horizonte comunista. Não em um sistema explicitamente comunista. Muitas pessoas ridicularizam a discussão sobre a presença do comunismo na América Latina atual dizendo que os partidos autoproclamados comunistas são fracos ou inexistentes e que em nenhuma parte — exceto um pouco na Venezuela — cogita-se instaurar um sistema com propriedade coletiva dos meios de produção ou ditadura do proletariado", escreveu, rechaçando que estas sejam definições do comunismo.

'Loucura marxista'

O chanceler do governo Jair Bolsonaro criticou ainda a "loucura marxista" e disse que, além do socialismo, há novos instrumentos de construção do comunismo sendo desenvolvidos, sendo o "globalismo" o principal deles. Termo originalmente usado pela direita americana para se referir de modo pejorativo às instituições internacionais, na definição de Araújo globalismo é "a captura da economia globalizada pelo aparato ideológico marxista através do politicamente correto, da ideologia de gênero, da obsessão climática, do antinacionalismo".
No texto em tom de alerta, ele diz ainda que o intuito dos marxistas é "preservar a 'utopia' comunista e reinseri-la na realidade política e social concreta de um mundo aparentemente avesso ao comunismo".
"Pode-se argumentar que neste século XXI o projeto comunista está mais forte do que nos anos 80, justamente porque ninguém o vê e pode operar à sombra da sociedade de consumo. Em lugar de combater o capitalismo em nome de uma alternativa socialista claramente fracassada, infiltrar-se de maneira sutil dentro do capitalismo", aponta o ministro.
Ele aproveitou ainda para criticar o que elegeu como a principal fragilidade do sistema liberal: não pensar ou trabalhar no mundo das ideias. Segundo Araújo, os liberais criaram uma repulsa por tudo aquilo que chama de "ideológico" e acabam ignorando os ideólogos do comunismo, deixando que eles trabalhem em paz.

"Já os amantes da liberdade que leem esses trabalhos marxistas para entender o novo projeto comunista e assim poder combatê-lo são chamados de 'ideológicos'. O mundo isentão lida apenas com a figura fictícia de um certo comunismo 'derrotado em 1989' e recusa-se terminantemente a reconhecer — muito menos a enfrentar – o projeto comunista real que atua hoje por toda parte. O isentismo é antes de mais nada uma forma de preguiça intelectual", argumenta. "A pressa com que hoje, no Brasil, os isentos correm para os braços da extrema esquerda e vice-versa, formando uma estranha 'isentoesquerda', é o sinal abjeto dessas afinidades profundas", complementa.

'Isentões'

Segundo o ministro, os "isentões" estão "jogando pedra justamente naqueles líderes que, no Brasil e no resto do mundo, querem descer ao porão" para lutar contra mazelas como corrupção e as drogas. "O isentão, quando você aperta, ele não quer uma economia livre, ele não quer uma internet livre, não quer um idioma livre capaz de expressar a complexidade e beleza do espírito humano em sua aventura multidimensional", aponta.
"No Brasil estamos rompendo o horizonte comunista e reenquadrando o liberalismo no horizonte da liberdade. O horizonte comunista está sendo rompido igualmente em outros lugares, certamente nos EUA, também no Reino Unido, na Hungria e na Polônia, penso que está sendo rompido na África, onde os últimos laivos da associação espúria entre comunismo e libertação, que vigorou por décadas desde as lutas anticoloniais, parecem estar-se dissipando", diz Araújo, citando os governos populistas de direita e extrema direita de Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Orbán e Mateusz Morawiecki.
De acordo com o artigo, a Igreja Católica também havia se inscrito dentro do horizonte comunista, a partir dos anos 60 e 70, "mas ali a verdadeira fé parece estar resistindo e repelindo o avanço marxista sobre a sua doutrina bimilenar".
Entrando em ocorrências mais recentes, ele destaca que o horizonte comunista está sendo rompido na Bolívia, "onde o povo deu um basta a Evo Morales e García Linera, que queriam continuar arrastando os bolivianos para o abismo à custa da fraude eleitoral". O governo de Morales e Linera, que renunciaram em 10 de novembro sob pressão de protestos contra o resultado das eleições de 20 de outubro e dos militares, promoveu o maior crescimento econômico contínuo da história recente do país, a uma média de 5% ao ano por 13 anos.

"Porém o horizonte comunista quer voltar a estrangular-nos. Quer regressar na Bolívia (Evo Morales foi acolhido pelo novo governo e está ali, a poucos quilômetros da fronteira, à espreita). Quer voltar no Chile, no Equador e na Colômbia, quer voltar no Brasil. Quer 'iluminar' com suas trevas essas grandes nações que são a Venezuela, o México e a Argentina", afirma o chanceler. Chile, Equador e Colômbia passam por ondas de protestos que têm como pano de fundo a desigualdade econômica. México e Argentina elegeram em eleições diretas e livres, em 2018 e neste ano, governos de centro-esquerda.
"Precisamos olhar para além desse horizonte comunista, que não é um horizonte onde há árvores e campos mas sim as paredes de uma cela, esse horizonte que não é onde a terra encontra o céu mas onde a terra encontra o inferno. Tudo o que temos para combater o avanço dessas paredes e a aproximação desse abismo é o apego à liberdade. A liberdade que, insisto, não é uma ideologia, mas o eixo central do ser humano. Para começar, precisamos estudar o comunismo a partir do que dizem e fazem os comunistas, em lugar de sair aos gritos de 'ideológico, ideológico' condenando quem o estuda e quem o enfrenta", conclui Araújo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

San Tiago Dantas e a PEI segundo o atual chanceler

Apenas copio e transcrevo, sem comentários (não precisa), a sucessão de twites do atual chanceler sobre um outro chanceler:


San Tiago Dantas e a PEI segundo EA

1/Um colunista disse por aí que eu mandei tirar o busto de San Tiago Dantas da sala que leva esse nome no Itamaraty. É fake news. Não mandei. Mas podia ter mandado.

2/Dantas foi o iniciador da "Política Externa Independente" (PEI) no final dos anos 50 e início dos 60, que virou o fetiche do establishment brasileiro de política externa desde então.

3/Em que consistia a "Política Externa Independente"? Afastar-se dos EUA e da aliança das democracias liberais ocidentais e bajular o bloco comunista sem dar muito na vista.

4/A PEI deu início a décadas de política externa ideológica mais ou menos disfarçada que nunca trouxe nada ao Brasil - exceto elogios de comunistas e globalistas, para quem um Brasil hipnotizado na mediocridade era muito conveniente, ajudando a formar massa de manobra.

5/A política externa brasileira acostumou-se a defender interesses fictícios, do tipo "ordem global", enquanto os principais atores internacionais defendem seus interesses concretos e seus valores constitutivos (bons ou maus).

6/Passamos décadas fazendo política externa não a partir do que somos enquanto nação, mas a partir de como queremos ser vistos pelos analistas bem-pensantes que escrevem na Foreign Affairs.

7/A "independência" de nossa política externa pendia sempre para um lado. Sempre, no final do dia, acabávamos carregando água para o moinho da esquerda.

8/Orwell já mostrou: aquilo que os comunistas chamam de "paz" é a guerra e o que chamam de "amor" é o ódio. Do mesmo modo, chamam de "política externa independente" a política de seguir a manada esquerdista.

9/O que querem hoje os saudosistas da PEI? Que voltemos a bajular os regimes totalitários e mandar-lhes dinheiro, ou pelo menos tolerá-los e não criar-lhes problema, sob o manto da "independência".

10/Querem que façamos vista grossa ao Foro de São Paulo e sua insana aposta de recuperar o poder através da violência, da manipulação, do crime, da corrupção e da fraude.

11/Eles querem o busto de Santiago Dantas. Nós  queremos um Brasil grande dentro de uma América do Sul livre e próspera, sem a rede de corrupção lulista-kirchnerista-chavista que jurou de morte as nossas repúblicas.

12/Na mente pobre e raivosa dos saudosistas da PEI há um interesse muito claro: rebaixar o Brasil. Querem tirar o Brasil do caminho para que o Foro de São Paulo possa avançar desimpedido com sua sanha destrutiva.

13/Querem remover o Brasil da coluna das democracias e nos devolver à coluna do meio, o reino da indiferença pusilânime, para daí passar em seguida à coluna dos totalitarismos.

14/O Brasil não nasceu para ser coluna do meio. Nossa política externa, hoje, está aqui para ajudar a defender aquilo em que os brasileiros acreditam, começando pela nossa própria liberdade.

15/O Brasil não nasceu para ser capacho do Foro de São Paulo. O busto de Santiago Dantas pode até voltar, mas a política externa hipnotizada pela ideologia e facilitadora de totalitarismos não voltará.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Entrevista do chanceler brasileiro - BBC (16/07/2019)

Sem comentários...
PRA


Da luta contra o Foro de SP ao voto com islâmicos sobre mulheres, o novo Brasil de Ernesto Araújo
Ricardo Senra - @ricksenraDa BBC News Brasil em Londres
17 de julho de 2019


Na noite da última quinta-feira (11), horas depois de o presidente Jair Bolsonaro surpreender até os assessores mais próximos ao anunciar o filho Eduardo como seu preferido para a embaixada brasileira em Washington, diplomatas foram avisados sobre uma reunião marcada por "motivos de força maior" para a primeira hora da sexta-feira, no gabinete principal do Palácio do Itamaraty.

Na manhã seguinte, perto da famosa tapeçaria que reproduz o planisfério de Marini - um mapa desenhado em 1502, primeiro da história em que o Brasil aparece representado -, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, confirmaria ao ex-escrivão da Polícia Federal que apoiava sua indicação ao cargo mais alto da principal embaixada brasileira.
O encontro durou pouco mais de uma hora. Na saída, Eduardo Bolsonaro falou a jornalistas sobre o aval do chanceler à empreitada. Ernesto Araújo, simultaneamente, contava à BBC News Brasil que o principal assunto havia sido outro.
"Conversamos sobre uma pauta nossa de coordenação sobre temas de política latino-americana. Muito especialmente a questão do Foro de São Paulo, que vai se reunir no final do mês e é um tema que nos preocupa e a outras pessoas também."
Enquanto muitos começaram a especular sobre possíveis atritos entre o chanceler e o deputado, o apoio de Araújo à nomeação não foi surpresa para nenhum de seus auxiliares e conselheiros mais próximos. "Eduardo é o grande - e um dos únicos - apoiadores do Ernesto", disse uma embaixadora à reportagem, sob condição de anonimato.

O ministro sabe que disputar protagonismo com o filho do presidente tende a ser uma batalha perdida, a exemplo de outros ministros que entraram em conflito com outro filho, Carlos. Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro estão do mesmo lado na gestão bolsonarista e lideram uma agenda comum que ocupa o topo das preocupações do presidente: consolidar uma alternativa conservadora ao famoso grupo criado em 1990 por Luiz Inácio Lula da Silva e o então presidente cubano Fidel Castro para articular forças de esquerda na América Latina e no Caribe.
Na entrevista mais detalhada que concedeu desde que assumiu o cargo, em janeiro deste ano, Araújo explica as bases do que tenta emplacar como Aliança Liberal Conservadora - uma versão à direita do Foro de S. Paulo que reúne elementos-chave da lógica bolsonarista, pautada pela ruptura com pautas globais como as mudanças climáticas e princípios históricos da agenda de direitos humanos, como a consolidação de direitos LGBT, o combate a exploração sexual por meio da educação na infância e o repúdio à violência policial.
"Acho que às vezes os conceitos atrapalham a realidade", diz o Araújo durante quase uma hora de conversa. A frase serve como fio da meada para tentar entender a cabeça do chanceler.
Você pode assistir à entrevista completa, na íntegra, no canal da BBC News Brasil no YouTube.

Video-entrevista completa: https://youtu.be/wyARxri8EWA

O fim da diplomacia como ela acontecia até hoje

A principal ruptura da gestão de Araújo à frente do Itamaraty é com a própria tradição da pasta.
"Nós precisamos fazer coisas que sejam importantes para o povo brasileiro e não apenas coisas que sejam importantes para outros diplomatas", disse o ministro à BBC News Brasil ao defender a nomeação de Eduardo Bolsonaro em meio a acusações de nepotismo e despreparo do deputado. "Não é nepotismo nenhum."
Bolsonaro não tem formação em Relações Internacionais e sua única vivência no exterior, além de viagens acompanhando ou representando o pai, foi um intercâmbio em 2005, durante a faculdade, quando trabalhou numa lanchonete.
"Acho que ter, nessa hipótese, um embaixador não de carreira em uma embaixada como Washington ajudaria nesse processo muito necessário de romper um ensimesmamento do Itamaraty e romper um ciclo vicioso onde nós trabalhamos só para nós mesmos e esquecemos a sociedade do lado de fora."
A exemplo do que ocorre nos EUA de Donald Trump, de quem Araujo e Bolsonaro são admiradores confessos, o nacionalismo está na base desta ruptura com o passado recente.

"O Brasil é parte de um movimento de recuperação do papel de nação como ator no sistema internacional. Uma nação que atue tanto domesticamente quanto no sistema internacional em função do bem do seu próprio povo", diz.
A Aliança Liberal Conservadora, que Araújo tenta criar como oposição ao Foro de S. Paulo, ressoaria estas ideias junto a países como EUA, Hungria, Itália, Argentina e Colômbia.
"Há uma sensação de que a gente pode derrotando percepções ideológicas que dizem que você não pode ter nação, não pode ter povo, tem que ter padrões globais que valham para todos independentemente das suas identidades e só assim você pode atingir a prosperidade."
"Isso está acontecendo cada vez mais, e ao mesmo tempo, países e atores internacionais que acham que para isso você não precise renunciar à sua identidade e se transformar em uma geleia geral, como a gente diz aqui no Brasil. Pode-se ter uma comunidade internacional forte, dinâmica, pacífica, próspera, construída a partir de nações também saudáveis, pacíficas, com povos vivendo em harmonia e prosperidade", avalia.

LGBTs como 'coisas abstratas'

A diplomacia brasileira é conhecida no exterior pela vanguarda em temas ligados a minorias.
O país foi, em 2003, o primeiro do mundo a propor uma resolução na Organização das Nações Unidas (ONU) sobre "Direitos Humanos e Orientação Sexual", abrindo caminho para discussões sobre o tema na instituição. Em 2008, patrocinou um documento na Organização dos Estados Americanos (OEA) para a prevenção da violência contra pessoas LGBT. No mesmo ano, o país foi o primeiro a realizar Conferência Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas LGBT, um modelo repetido no exterior desde então.
Para Araújo, no entanto, o Brasil pré-Bolsonaro "procurava se pautar por aquilo que não desagrada ninguém, que procurava sempre ver 'se eu posso dizer isso, se eu posso dizer aquilo', que cada vez se limitava mais dentro do politicamente correto".
Na visão do chanceler, o país "vinha simplesmente copiando o discurso oficial e padrão do politicamente correto, e isso não é influenciar. Estávamos simplesmente indo com uma onda".
Araujo ilustra a mudança de maré quando explica, por exemplo, por que o Brasil retirou menções ao termo LGBT em sua recém-apresentada candidatura ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

"Nossa plataforma é colocar a nossa contribuição no Conselho de Direitos Humanos em favor da defesa dos direitos humanos reais de pessoas reais, e não de coisas abstratas que são sempre usadas para distorcer a realidade e a realidade daquilo que as pessoas geralmente querem", diz.
A reportagem pergunta se LGBTs não são pessoas reais ou algo concreto - no Brasil, segundo dados de 2017 do Ministério de Direitos Humanos, o Brasil registra 552 pessoas mortas por ano vítimas de homofobia - ou uma a cada 16 horas.
"(O termo) é usado como se fosse simplesmente um mecanismo para controle do discurso, daquilo que se pode falar, dizer, e não como algo que seja usado realmente para a igualdade às pessoas com opções sexuais diferentes nesse sentido aí", responde Araújo.
"Nós queremos defender os direitos das pessoas, né, independentemente de a gente usar ou não uma determinada denominação padrão ou não."

Acordo com islâmicos em discussões sobre mulheres

O ministro defende uma ruptura definitiva com o pensamento de esquerda a partir do que chama de "resgate de valores cristãos e ocidentais" - em coro com o presidente, que já fez críticas ao alinhamento de governos petistas com países como Irã, Rússia e China.
Recentemente, no entanto, o Brasil se afastou das principais democracias europeias e das Américas ao se unir a países como Arábia Saudita, Paquistão, Bangladesh, Afeganistão e Egito em discussões na ONU sobre mulheres.
Emissários de Araújo apoiaram estes países em discussões sobre referências à educação sexual como forma de combate a violência contra mulheres e casamentos forçados.
"O que aconteceu? Estamos junto com o Ocidente ou esta é uma pauta em que estamos mais próximos dos islâmicos?", pergunta a reportagem.
"Tem que ver o que é Ocidente, né?", responde o chanceler.
"Ocidente não é necessariamente aquilo que determinados países ocidentais defendem nas Nações Unidas ou em outras instâncias. Nós nos consideramos parte do Ocidente e temos uma voz em dizer o que é Ocidente, né? E uma das coisas que achamos que é Ocidente é você, no caso, não sexualizar a infância, digamos assim. É uma das coisas que fazem parte da ética, digamos, ocidental. Claro, cada país tem sua maneira de defender e interpretar quais são os seus valores. A nossa é essa maneira."
Dados do governo federal apontam que, em 2018, foram registradas 17.093 denúncias de violência sexual contra menores. Mais de 70% dos casos foram praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes - e dentro de casa.
A reportagem lembra que a argumentação dos países que se opunham ao Brasil e aos árabes defendiam não se referia à sexualização de crianças, mas à formação de jovens para que possam identificar, se defender e aprender a denunciar abusos.
"São interpretações diferentes, né? Cada um tem a sua. Nós queremos tentar ter uma política coerente em que você defenda os direitos das mulheres, das meninas, evidentemente, mas ao mesmo tempo que se evite uma coisa que nos preocupa há muito tempo que é educação sexual precoce e esse tipo de coisa que não nos parece permanente e que eu acho que não corresponde ao que a sociedade brasileira como um todo deseja, né?"
Ele prossegue: "Você pensa 'valores ocidentais'. Tem muitos países que são democracias estabelecidas, alguns pelo menos, na Europa que ainda reconhecem a ditadura Maduro como legítima na Venezuela. Aí também temos uma diferença, digamos de interpretação, do que seja democracia".

Otan, Filipinas e o novo Brasil militarista

Em junho, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que os EUA aceitaram o Brasil aliado extra-Otan - a Organização do Tratado do Atlântico Norte - em um desdobramento de sua visita oficial ao presidente Donald Trump em Washington, em março.
"Isso já foi consignado pelos EUA, é uma decisão deles que já foi anunciada ao Congresso americano e começando a ser implementado", diz Araújo à reportagem.
"Nós acreditamos que vai nos trazer benefícios para a recapacitação da nossa capacidade militar sobretudo, que é algo que já se tem dito que foi um pouco negligenciado em governos recentes. Isso é um processo e esse é um dos elementos desse processo de o Brasil ter um aparato de defesa compatível com as nossas necessidades."
A BBC News Brasil pergunta por que exatamente o país quer ampliar investimentos e poderio militar. "Por que isso é importante nesse momento na prática?"
"Isso, enfim, faz parte das relações internacionais você ter uma capacidade inclusive de dissuasão, uma capacidade de defesa do seu território", diz Araújo, que nega que os investimentos tenham relação com a oposição do Brasil ao governo de Nicolás Maduro na Venezuela.
No passado, tanto Ernesto quanto Eduardo Bolsonaro não descartaram, em declarações públicas, uma eventual ação militar no país bolivariano. Mais tarde, sob pressão de militares membros do governo, ambos recuaram.
"Isso (militarização) é uma função clássica de qualquer Estado. Um país das dimensões do Brasil, com a diversidade de interesses que nós temos, litoral inclusive, é um país que tem um desafio muito grande nessa área de defesa e para isso nós precisamos de parcerias que deem a capacidade inclusive tecnológica de uma presença de defesa."
Sob a égide de Araújo, o Brasil se absteve no início do mês de votar a favor de uma investigação na ONU sobre a política de guerra as drogas nas Filipinas, que teria deixado mais de 27 mil pessoas mortas. O presidente Rodrigo Duterte defende execuções sumárias contra suspeitos de tráfico. A reportagem pergunta por que o Brasil não defendeu a apuração.
"A gente está totalmente numa linha de evidentemente combate ao crime em todas as suas vertentes e isso não é problema nenhum. No caso das Filipinas, nos pareceu que era um tema que estava mal definido e por isso o Brasil se absteve. A gente é sempre a favor de que tudo que seja necessário se esclarecer se esclareça, né, e ao mesmo tempo somos a favor, tanto no Brasil quanto em outros lugares, de combate ao crime", respondeu o ministro.
"Nos pareceu um tipo de proposta mal enquadrado. Isso é um recurso que muitas vezes se utiliza no sistema multilateral quando você acha que determinada questão está mal enquadrada em um projeto você se abstém", disse. "Por um lado, não queremos limitar nenhum país no seu direito de combater o crime dentro do seu território e por outro lado queremos que seja feito sempre respeitando normas, direitos humanos e tudo isso."
O chanceler optou por não responder quando questionado sobre o que estaria mal enquadrado na proposta. "Nós achamos que nesse momento não era a maneira de encaminhar essa questão em relação às Filipinas", disse.

Dúvidas sobre aquecimento global e 'o frio na Itália que não aparece tanto'

Araújo já disse que as noções de aquecimento global e mudanças climáticas são uma "trama marxista".
Durante a entrevista, ele se absteve de afirmar se acredita ou não nas mudanças como fruto da ação do homem, mas questionou métodos da comunidade científica e defendeu "liberdade de expressão e de debate" para "que as pessoas que, com base em argumentos científicos, contestam a teoria do aquecimento global antropogênico não sejam demonizadas".
"O comportamento da temperatura tem ficado sempre abaixo do que os modelos pressupõem", diz Ernesto. "Você tem estudos sobre isso e é claro que isso não é muito divulgado."
A reportagem lembra que a preocupação com as mudanças climáticas associada ao desmatamento e a poluição são um consenso em todas as principais universidades e entidades científicas do planeta, como a Nasa.
"Cada vez que há algo que parece confirmar o aquecimento global, isso vai para a imprensa e todo mundo acha que está sendo confirmada a teoria do aquecimento global. Quando algo desmente, não aparece." Segundo Araújo, os modelos científicos que preveem a evolução do aquecimento global são falhos.

Ele ilustra seu ponto. "Visitei a Itália no começo de maio. Cheguei lá e estava muito frio na Itália para maio. Me disseram que havia sido o abril mais frio em Roma dos últimos 60 ou 70 anos. Isso não aparece tanto. Se tivesse sido o abril mais quente dos últimos 70 anos, claro, estaria em todas as manchetes."
Em seu site, a Nasa desmente a ideia de que recordes de temperatura fria poriam em xeque a mudança climática, explicando que o aquecimento global vem acompanhado de temperaturas extremas, para cima e para baixo.
"O caminho até um mundo mais quente terá muitos episódios de tempos extremamente quentes e extremamente frios", diz a agência especial americana
Para cientistas, mesmo que esteja fazendo mais frio que a média em uma região específica, o mundo como um todo está, na média, mais quente. Esse aquecimento da temperatura média da Terra provoca eventos climáticos extremos, desde inundações na África até seca no Brasil, passando por invernos muito mais rigorosos na América do Norte.
"Ou seja, estamos falando de grandes flutuações. E esses eventos climáticos tendem a ficar cada vez mais frequentes e exagerados", explicou recentemente à BBC News Brasil Alexandre Köberle, pesquisador do Grantham Institute na Universidade Imperial College London.

Ricos não respeitam o Acordo de Paris

Mesmo colocando o tema em xeque, o ministro reiterou a participação do Brasil no Acordo de Paris, um tratado assinado em 2015 por 195 países, a fim de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, um dos vilões por trás do aquecimento global, segundo a comunidade científica.
"O Brasil é parte do acordo do Paris então é importante não assumir que, pelo fato de eu e outras pessoas termos dúvidas sobre se realmente está havendo esse aumento de temperatura e se isso tem origem no homem, não pensar que isso significa que a gente necessariamente fosse denunciar o acordo de Paris. Não é. O acordo é construído a partir de compromissos nacionais, contribuições nacionalmente determinadas, que a meu ver são boas em si mesmas", diz Araújo.
Pelo acordo, o Brasil deverá reduzir em 37% suas emissões até 2025 e chegar a 43% em 2030.
"Sobretudo, no nosso caso, desmatamento: o Brasil quer de toda forma controlar o desmatamento porque mesmo que se daqui a algum tempo se prove que não tem nada a ver o CO2 com temperatura, há uma virtude em si mesma em se preservar, como o Brasil preserva 66% da cobertura nativa, coisa que pouca gente sabe. Que o Brasil continue sendo um grande preservador ambiental porque isso tem valor em si mesmo", disse.
Ele também apontou problemas, citando "a falta de contrapartida por parte sobretudo de países desenvolvidos".
A argumentação não é novidade na diplomacia e também era citada em governos petistas frente à imposição de metas mais ambiciosas a países em desenvolvimento.
"O que há é um compromisso por parte de países desenvolvidos em controlar as emissões deles, o que não está acontecendo em muitos casos, não estão concluindo as suas próprias contribuições", diz.
"Vemos esse tipo de problema e vemos às vezes o problema de que o acordo pode ser usado como pretexto de atuação de ONGs no Brasil que a gente não sabe bem às vezes o que estão fazendo e agem de uma maneira um pouco opaca."

O Brasil para os próximos anos

"Se eu puder, gostaria de colocar a contribuição do Itamaraty para a construção de um Brasil grande e forte, um Brasil que influencia nos destinos do mundo e, ao mesmo tempo, uma política externa que traz desenvolvimento e crescimento econômico para o Brasil, desenvolvimento tecnológico, capacitação econômica, abertura comercial. Basicamente isso", diz o ministro, questionado sobre a marca que pretende deixar em sua gestão.
O chanceler se mostra otimista com a guinada conservadora em curso em um Brasil e diz, ao mesmo tempo em que imprime a marca ideológica do governo, que lida "com problemas reais e não com problemas imaginários ou ideológicos".
"Vejo uma evolução muito positiva porque cada vez há mais países que querem trabalhar, claro, pelo crescimento econômico e por uma economia global que ajude na prosperidade de todos os povos com abertura, com crescimento tecnológico", afirma. "No Brasil, temos hoje uma economia liberal se consolidando depois de décadas de isolamento e economia fechada, ao mesmo tempo em que se tem uma sociedade de valores conservadores se afirmando e uma coisa reforça a outra e não atrapalha. Isso acontece na nossa dimensão nacional no Brasil e de certa forma acontece também ao redor do mundo."
"Então vejo décadas bastante ensolaradas pela frente."

Assista ao vídeo neste link: https://youtu.be/wyARxri8EWA


terça-feira, 4 de junho de 2019

Samuel Pinheiro Guimaraes: ‘Ernesto Araújo é ridículo’ - Entrevista The Intercept

Transcrevo a grande entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães, neste link do The Intercepthttps://theintercept.com/2019/06/02/samuel-pinheiro-entrevista/

O site remete à minha postagem de 2018, por ocasião do convite que eu formulei ao SPG para que ele falasse no quadro da série "Percursos Diplomáticos", uma vez que ele não se encontrava na lista original dos convites. Fiz questão de convidá-lo, como grande formulador que foi da política externa do que eu já chamei de lulopetismo diplomático, ainda que discordando de muitas das posições assumidas durante o governo Lula, pelo chanceler Celso Amorim, pelo assessor presidencial Marco Aurélio Garcia e pelo próprio Samuel, enquanto secretário geral do Itamaraty.
A postagem é esta aqui: 
https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/08/percursos-diplomaticos-samuel-pinheiro_24.html
Divirtam-se...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de junho de 2019


Entrevista: ‘Ernesto Araújo é ridículo’, diz número dois do Itamaraty no governo Lula

O chanceler Ernesto Araújo é “ridículo” e “um louco”. O governo Jair Bolsonaro não deve passar de julho e uma eventual presidência de Hamilton Mourão não deve causar receios de uma nova ditadura militar. É assim que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, ex-secretário-geral do Itamaraty durante o governo Lula, avalia o atual cenário político brasileiro.
Pode causar surpresa que um embaixador renomado, com profundas ligações com o PT – Guimarães foi o número dois do Itamaraty no governo Lula, entre 2003 e 2009, abaixo apenas do então chanceler Celso Amorim – relativize a ascensão de um militar à presidência. Mas Guimarães, aos 79 anos, faz a avaliação com tranquilidade: “[Os militares] passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles”, ele nos disse.
Guimarães trabalhou no Itamaraty de 1963 a 2009 e depois foi professor de política internacional e política externa do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas brasileiros, até 2016. Muito ligado ao PT – mas respeitado por colegas como Paulo Roberto de Almeida, crítico feroz do que chama de “lulo-petismo” –, ele defendeu, ao longo de quase duas horas de conversa, as bandeiras da política externa do governo Lula, inclusive o alinhamento com o chavismo na Venezuela.
“Jeffrey Sachs, economista americano, um comunista conhecido, calculou que 40 mil pessoas morreram na Venezuela por causa das sanções americanas”, disse, irônico – Sachs é conhecido por ter introduzido o plano econômico capitalista em países soviéticos. “Isso foi causado pelo governo do Maduro?”
O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos.
Guimarães, que costuma pontuar suas afirmações elevando a voz e repetindo os argumentos que acabou de tecer, direcionou suas principais farpas contra Bolsonaro. A tentativa brasileira de intervir na crise política venezuelana, para ele, é “um erro enorme”, e os comentários do ex-militar sobre uma eventual volta de Cristina Kirchner à presidência da Argentina, “um absurdo”.
“Não se dá palpite [em assuntos internos de outras nações], cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia”, ele argumentou. Para Guimarães, Bolsonaro se esquece de que o Brasil é um país subdesenvolvido ao negociar a entrada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. “O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos”, falou. Ao comparar o sistema internacional a um avião, ele disse que o Brasil não tem sequer assento na classe econômica. “Está no compartimento de bagagens.”
Guimarães nos recebeu em seu escritório, uma sala acanhada num prédio comercial simples da Asa Norte de Brasília, a poucos minutos do prédio em que mora – que também já foi endereço, na cidade, de Bolsonaro e Mourão. Leia os principais trechos da conversa.

Sob Ernesto Araújo, o Itamaraty tem “uma visão simplista, ingênua, equivocada” sobre a geopolítica internacional, diz Pinheiro Guimarães. 
Foto: Mariana Alves/The Intercept Brasil

Intercept – Em março, em Washington, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o Brasil passaria a abrir mão do Tratamento Especial Diferenciado, o TED, na Organização Mundial do Comércio em troca de uma indicação para a OCDE. O que significa para o país abrir mão do TED?
Samuel Pinheiro Guimarães – O Tratamento Especial Diferenciado é uma reivindicação histórica dos países subdesenvolvidos. Parte do princípio de que existem países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Vocês já foram ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro? Já viram como é ali perto? Já foram ao aeroporto de Zurique? É diferente, né? Aqui é um país subdesenvolvido. Já os desenvolvidos querem extrair o máximo possível das relações de troca. O Brasil se transformou em um país totalmente exportador de produtos primários e importador de manufaturados. Quem é que exporta produtos manufaturados? Os EUA, a Inglaterra, a França, a China. Eu quero saber onde é que vão ser empregados os 13 milhões de desempregados hoje em dia. No campo? Mas o campo é altamente automatizado. Tem que ser na indústria. A maioria desses 13 milhões moram na cidade, e na cidade não se planta nada. Agora, o governo parte do princípio de que [o Brasil] é igual aos EUA, é um país desenvolvido.
Num artigo recente, o senhor disse que a luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto no FMI e no Banco Mundial foi abandonada pelo governo brasileiro. Como isso se deu?
Nunca mais ouvi falar nisso. Porque os EUA são contra, o congresso americano é contra, isso diminui o poder americano. Você acha que o presidente Bolsonaro vai lutar para diminuir o poder americano? Eu tenho a impressão que não é bem o caso. Isso, como eles dizem, é confrontação do Brasil com os EUA. Os EUA têm uma estratégia de natureza mundial, que é impedir que em qualquer região do mundo surja um estado ou grupo de estados que possa reduzir a influência deles. Outro ponto interessante: os EUA têm mil bases no exterior, mas nenhuma no Atlântico Sul. É óbvio que a [cessão da] base de Alcântara (no Maranhão, com o acordo de salvaguardas tecnológicas) não tem nada a ver com o lançamento de foguetes. Nós iríamos receber uma quantia irrisória para termos uma parte do território fora do alcance das autoridades brasileiras. Você instala uma pista [de pouso de aviões], de grande dimensão, a pretexto de transportar o material. Uma vez que os EUA entram [num país], não saem mais, não.
‘O Ernesto é uma coisa deste tamanho. Uma coisa ridícula. É ridículo. Ri-dí-cu-lo.’ 
Desde que assumiu o posto, o chanceler Ernesto Araújo tem se desentendido com o setor militar do governo Bolsonaro sobre a Venezuela. A crise chegou ao auge com a ida de Araújo aos EUA para um encontro com o secretário de estado Mike Pompeo um dia antes da mal sucedida operação liderada por Juan Guaidó, e a determinação de Bolsonaro de que qualquer decisão envolvendo o país vizinho deve passar pelo Conselho de Defesa Nacional…
O presidente da Câmara já disse que a declaração de guerra é uma competência exclusiva do Congresso. Se você fosse eleito presidente da República, teria que ter a curiosidade de ler a Constituição, né? Para saber quais são os poderes do Executivo, Legislativo, Judiciário, saber que é o presidente da Câmara quem autoriza os pedidos de impeachment. Sozinho. Aparentemente, essa curiosidade não acometeu o presidente Bolsonaro.
Quanto ao chanceler Ernesto Araújo…
(Interrompendo) Eu só falo sobre política, não falo sobre o Ernesto. O Ernesto é uma coisa deste tamanho (sinaliza algo pequeno com a mão). Uma coisa ridícula. É ridículo. Ri-dí-cu-lo (enfático, separando as sílabas). No discurso de formatura dos alunos do Instituto Rio Branco, o ministro Ernesto Araújo comparou o presidente Bolsonaro a Jesus Cristo. E chorou quando fez isso. Isso não existe na história do Brasil e nem na história do mundo, um ministro ter comparado o chefe de Estado a Jesus Cristo.
Várias coisas parecem ser inéditas no governo.
Em parte. Porque o acordo de salvaguardas tecnológicas [de Alcântara] foi negociado na época de Fernando Henrique Cardoso, que teve como seu precursor Fernando Collor. Teve uma pequena interrupção com Itamar Franco, que foi ridicularizado. Por que ele foi ridicularizado? Porque não seguia a mesma política [externa] de Collor. Depois FHC assinou um ato de não-proliferação [de armas nucleares] que é, digamos, o ato mais grave da história do Brasil na política externa.
Por quê?
Porque nós não éramos membros do tratado e [assim] poderíamos, teoricamente, desenvolver armas nucleares. O mundo é dividido em duas classes de Estados: os de primeira classe, que podem deter armas nucleares e são membros permanentes do Conselho de Segurança, e os demais, que não eram obrigados a assinar o tratado de não-proliferação. A pretexto de que isso ia gerar um desarmamento mundial, o Brasil assinou sem que ninguém houvesse pedido.
Um embaixador bastante experiente relatou ter ouvido de um político de alto coturno do Legislativo que Ernesto Araújo é “esquizofrênico”. O que senhor acha dele?
Não tenho capacidade para inferir se ele é uma pessoa esquizofrênica ou não. Eu acho que ele parte de princípios equivocados, que o Brasil enfrentava os EUA [durante os governos do Partido dos Trabalhadores], só se relacionava com governos de esquerda. Isso é um absurdo. O Brasil fez um contrato de compra de caças com a Suécia. Ao que me consta, a Suécia não é um país comunista de esquerda. Fez o contrato do submarino nuclear com a França. É tudo ignorância.
Voltando a Ernesto Araújo, ele tem sido continuamente desautorizado pelos militares. O senhor se lembra de algum governo, no período democrático, de um chanceler se submeter dessa forma ao setor militar do governo?
Não. No período em que eu estava na secretaria-geral [do Itamaraty], nós tínhamos as melhores relações com o ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, [eles eram] extremamente cooperativos. Não havia nenhuma dificuldade, nunca houve.
Na sua visão, o que há hoje entre o Itamaraty e os militares, em um governo que é formado basicamente por militares?
Não, não é formado basicamente por militares. São sete militares de 23 [ministros].
Mas o núcleo duro, por assim dizer, é militar.
O núcleo duro do governo é o ministro da Economia.
Nesse caso, qual é o papel do Itamaraty?
Não sei, não sou ministro das Relações Exteriores, não sou secretário-geral, não me interesso…
Mas o senhor deve acompanhar, naturalmente.
Quem tem a maior influência no Itamaraty, diz a imprensa, é o deputado [federal pelo PSL de São Paulo] Eduardo Bolsonaro, o assessor Filipe Martins, que tem 35 anos (na verdade, tem 31) e uma vasta experiência em política externa sem ter jamais exercido cargo nesta área. São pessoas com visão [de mundo] baseada em seu orientador espiritual, Olavo de Carvalho, que se expressa no Twitter com palavrões seguidos.
O senhor já escreveu que, dado o número de vizinhos, a disparidade de dimensões, os ressentimentos históricos do processo de formação do território brasileiro são motivos para o Brasil nunca interferir nos processos políticos dos Estados vizinhos. Qual o tamanho do erro que pode estar sendo cometido pelo Brasil ao tentar interferir em assuntos internos venezuelanos?
‘Se você for uma pessoa que não tem experiência, para os outros países é uma festa.’
Tentar, não. Está interferindo, sem poder e sem força para tal. Servindo apenas como ajudante dos EUA. É um erro enorme. O Brasil é 50% da América do Sul em território, mais ou menos. Dos outros países, o que tem maior dimensão territorial é a Argentina, que tem um terço do território brasileiro. Os outros são ainda menores. A população do Brasil é cerca de 50% [da do continente], 210 milhões, os outros têm 40 milhões. O Chile tem 15 milhões de habitantes. [Mas] Todo dia nos jornais dizem que nós temos que seguir o modelo do Chile, um país pequeno. O Brasil é um país diferente. Quem já foi ao Paraguai e leu o jornal ABC sabe o que eles pensam do Brasil, que eles foram espoliados, destruídos (na Guerra do Paraguai). E há os ressentimentos entre eles, entre Argentina e Uruguai, entre Argentina e Chile, entre Chile, Peru e Bolívia, entre a Colômbia e o Equador, entre a Colômbia e a Venezuela. Esses países às vezes procuravam a ajuda do Brasil, a mediação do Brasil, o que é uma coisa muito delicada. Isso permitiu ao Brasil, por exemplo, ter ótimas relações com a Colômbia durante o mandato do presidente [Alvaro] Uribe, e depois aquele outro, [Juan] Manuel Santos. (Irônico) E não me consta que o presidente Uribe fosse marxista cultural, nem que fosse ao Foro de São Paulo, e nem que o Foro de São Paulo tivesse essa importância toda. O Foro de São Paulo era uma reunião dos partidos democráticos de esquerda.
O PT não cometeu esse mesmo erro ao dar suporte ao chavismo e, posteriormente, a Maduro?
Na Venezuela, foram realizadas 23 eleições. Todas, exceto as mais recentes, com aprovação do Centro Carter, todas consideradas legítimas, tudo direitinho.
A última não.
Eu fui observador ali, havia candidato da oposição, teve 5 milhões de votos, e os jornais dizem aqui que não houve candidato de oposição. [Houve] Os que não quiseram concorrer!
Alegando que as condições eram desiguais.
Eu estive na Venezuela, toda a imprensa é livre. As televisões, os jornais circulam livremente, esculhambam – esculhambam não, criticam o governo ferozmente. Você deve consultar um estudo do Jeffrey Sachs, economista americano, (irônico) um comunista conhecido, não é? [Dele] e do Mark Weisbrot, que calcularam o número de vítimas decorrentes das sanções americanas. São 40 mil pessoas que morreram por causa das sanções. Isso foi causado pelo governo do Maduro? Só o governo Trump não cometeu erros. Ele [e os presidentes Emmanuel] Macron e [Mauricio] Macri, aliás, muito populares na França e na Argentina. O Macri com 38% da população abaixo da linha de pobreza! (Na verdade, segundo levantamentos mais recentes, são 32%).
Mas o governo Maduro também cometeu erros, não?
Mas quais são os erros de Maduro? Eu quero que você me diga quais são. Você não sabe, porque não tem. É tudo uma onda de propaganda extraordinária que parte do seguinte princípio: o governo é autoritário. Quantos políticos estão presos na Venezuela?
Leopoldo López estava preso.
Leopoldo López! Um!
Mas um preso político já é muita coisa, não?
Esse sujeito é um criminoso, estava preso por razões criminais. Cometeu crimes e depois foi solto. Se você tem num país um sujeito que diz que vai derrubar o governo, o que acontece em geral? Você acha que é uma infração à lei. Acho que é, né? E agora foi solto. Mas quero que você me dê a lista dos presos políticos na Venezuela. (A ong venezuelana Foro Penal estimou, há alguns dias, que mais de 2 mil pessoas foram presas por motivos políticos no país, das quais 857 seguem detidas.)
O senhor acha então que é tudo uma armação contra Maduro?
Mas é claro que é!
Os venezuelanos que chegam ao Brasil, em Roraima, relatam que passavam fome.
Eles podem relatar o que for, inclusive para receber abrigo. Porque, se disser: “Olha, eu estou muito bem lá…”
Mas quem pede abrigo está passando necessidade, não?
‘Ele [Araújo] disse que a Polônia é um país de enorme potencial econômico. No reino da fantasia, tudo é possível.’ 
Eu acho que o 1,5 milhão de brasileiros que foram para o exterior deviam estar numa situação muito séria também, não? [A Venezuela] É um país que está sob intervenção! Há uma série de sanções, que naturalmente criam grandes dificuldades para a economia, dificuldades de emprego e assim por diante. Você quer o quê? Se fizessem isso com o Brasil, em meia hora o país já tinha se entregado. Meia hora. Tem que entender como funciona o sistema internacional, que não é formado por estados soberanos e iguais. Existe um império, um só, o império americano. Dentro dele, há os Estados Unidos, o centro do império, e os estados que são soberanos, entre aspas, que são províncias de diferentes níveis. Então, sempre que há uma província rebelde, o império tem que reenquadrá-la. Você acha que a Venezuela representa algum risco de segurança para os EUA? Que o exército venezuelano apresenta risco de segurança ao exército americano? Que a Venezuela pode invadir os EUA? Mas é preciso ser exemplar, compreende? Como na escola, quando um menino joga uma bolinha de papel na professora, ela tem que reagir com firmeza, botar de castigo. Senão, amanhã vai estar todo mundo jogando bolinha de papel. Depois de amanhã, apagador de giz; depois, pedra. Há três províncias rebeldes hoje em dia: a Venezuela, o Irã e a Coreia do Norte, onde tem que haver mais cuidado, porque [o país] tem arma nuclear. Se o Iraque tivesse armas de destruição em massa, como foi anunciado na época, não teriam invadido. Há também as províncias de primeiro nível, que têm capacidade legal de ter armas nucleares: Inglaterra, França, China e Rússia – essas duas estão fora do império, são adversárias dele. Se você ler as declarações do (chefe do Comando Sul das forças armadas norte-americanas,) almirante Craig Faller, ele nomeia quem são os países adversários dos EUA. Achar que a Venezuela é um adversário dos EUA é uma coisa absurda.

Pinheiro Guimarães e a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2007, quando ainda estava no Itamaraty. Ao longo de quase duas horas de conversa ele defendeu as bandeiras da política externa do governo Lula, inclusive o alinhamento com o chavismo na Venezuela.
Foto: Sérgio Lima/Folhapress

O senhor acredita que acabará havendo uma intervenção militar estrangeira na Venezuela?
Em hipótese alguma. Para invadir o Iraque, os EUA concentraram na fronteira [do país do oriente médio] 600 mil homens. Antes de invadir. Não se invade um país assim. É complicado. (Na verdade, foram 177 mil soldados, dos quais 130 mil eram norte-americanos. Ainda assim, é quase um terço da população de todo o estado de Roraima, estimada em 576 mil pessoas em 2018.) Isso que houve ataques aéreos antes para destruir as defesas e depois a invasão. E até hoje não se conseguiu dominar a situação. Eles [os EUA] querem montar uma força multilateral, com o Brasil e outros Estados da região, eles naturalmente fornecendo tudo e liderando e querem provocar dentro da Venezuela, com as dificuldades humanitárias e econômicas de todo tipo – eles cortaram tudo, até acesso aos bancos. Para lá enfrentar a China e a Rússia. Tudo isso é um jogo muito difícil, muito complicado, muito delicado.
Qual o risco para o Brasil de ter um tabuleiro dessa nova guerra fria na sua fronteira?
Não tem nenhuma vantagem para nós. Vamos supor que o Macri perca na Argentina, o que é uma probabilidade, segundo os jornais. E o presidente Bolsonaro já aproveitou a oportunidade para intervir na política interna da Argentina, ao declarar que [a eventual eleição de Cristina Kirchner] seria criar “uma nova Venezuela ao sul do Brasil”. Um absurdo, contraria todos os nossos interesses. A Argentina é um dos principais parceiros comerciais, de investimentos, grande parte do turismo no Brasil é de argentinos. Não se dá palpite, cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia. Isso é que permite haver um certo sistema internacional, ou pelo menos a aparência dele, para organizar certas coisas até um certo limite. Então, tudo isso só nos prejudica no longo prazo. [O Brasil] Não ganha nada, não ganhou nem a questão da OCDE agora, apesar de fazer uma concessão enorme. O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos. Tem o México, que os EUA botaram para dentro devido ao Nafta. Mas não é um país desenvolvido, basta acompanhar o noticiário.
Mostramos, há alguns dias, que o BID tem um plano preparado para irrigar a Venezuela com bilhões de dólares assim que Nicolás Maduro seja derrubado. É uma notícia que o surpreende? Qual a força do governo dos EUA num organismo multilateral mas sediado em Washington e do qual os próprios EUA são os principais acionistas? Até que ponto instituições como o BID são usadas pela Casa Branca para atingir seus interesses?
‘[O Brasil] está no compartimento de bagagens.’
[O governo dos EUA é o] Principal acionista e comandante da área operacional, tanto do Banco Mundial quanto do BID. Há muitos anos atrás, creio que no governo [do republicano Ronald] Reagan, se falou em mudanças sobre o Fundo Monetário Internacional. Daí o secretário do Tesouro norte-americano foi ao congresso de lá dar um depoimento sobre a importância do FMI e explicou o seguinte: o Fundo permite que os EUA imponham a sua política sem aparecer. O Departamento do Tesouro tem enorme influência sobre esses organismos. Nada é aprovado sem os EUA, nada. Sempre foi assim. (Irônico) Desculpe, eu estou muito radical hoje (ri). Deveria estar menos radical. Mas você viu o editorial da Folha de hoje? É de uma violência extraordinária: [fala em] ‘bando de lunáticos” que cercam o presidente. Bando de lunáticos!
O senhor concorda?
Estou só dizendo o que diz o editorial da Folha. Os editoriais da Folha, do Estado, têm sido muito críticos, muito contundentes. Como eu dizia lá atrás, há províncias de primeiro grau, que se sentam na classe executiva. Mas o piloto não vai à classe executiva perguntar como deve conduzir o avião. Nunca os EUA perguntam à França, à Inglaterra, o que fazer. Vão lá e fazem. Depois vem um pessoal tipo Japão, Alemanha, que foram adversários na guerra, mas também não são muito escutados. Em seguida, aqueles europeus tipo Itália, Espanha, Portugal (novamente irônico), aquele lixo mestiço, católico, papista. Depois a Europa oriental, que [para os EUA] não têm a menor importância…
Usando a metáfora que o senhor fez há pouco, o Brasil está na classe econômica do avião?
Não. Está no compartimento de bagagens.
Um veterano embaixador nos disse que Ernesto Araújo promoveu uma “revolução cultural como a chinesa” no Itamaraty, ao subverter a hierarquia colocando gente com menos tempo de carreira para comandar diplomatas veteranos. São ministros de segunda classe mandando em embaixadores, ou coronéis mandando em generais. Qual o efeito disso num órgão afeito à tradição e à hierarquia como o Itamaraty?
Não é que é afeito à hierarquia, é que [em relações exteriores] experiência conta. Quando você entra no Itamaraty, ainda que seja um gênio, você será um subordinado. Depois, vira chefe de divisão, depois de departamento, depois subsecretário. Ao exterior, primeiro se vai como secretário, depois conselheiro, depois ministro, e vai adquirindo experiência observando os outros, vendo as diferentes situações. Se você for uma pessoa que não tem experiência, para os outros países é uma festa.
Tem sido?
É claro, é só você observar. Uma festa. Nenhum ministério tem uma visão global [do governo] além do Itamaraty e, um pouco, das forças armadas. A chancelaria desenvolve a experiência no trato com os outros estados, que têm os seus interesses. Existe a experiência na negociação. Se você chega e tira as pessoas mais experientes, enfraquece o órgão central de contato com outros estados. Isso prejudica o país, e é tudo que os outros querem.
O atual Itamaraty está sendo ingênuo, então?
Não. Se você parte de uma visão de mundo em que existe o marxismo cultural e que a ONU está aí (começa a rir) para prejudicar o Brasil… É uma visão simplista, ingênua, equivocada.
O chanceler Ernesto Araújo tem um auxiliar de fora do Itamaraty: Filipe Martins, indicado por Olavo de Carvalho.
Não o conheço, nunca o vi na minha vida…
O papel de Marco Aurélio Garcia, que ocupou o mesmo cargo no governo Lula, não foi o mesmo?
Não, não. Ele nunca influiu no Itamaraty, nunca pretendeu [fazer isso], que eu saiba, sempre teve uma posição muito cooperativa. Tinha grande influência junto ao presidente [Lula], desde 1980, na área internacional do PT.
O governo Bolsonaro e seu chanceler dizem que as relações brasileiras com os EUA foram “negligenciadas” nos últimos anos, que a política sul-sul era movida por ideologia. O que o senhor pode dizer a respeito?
Que não é verdade. O presidente Lula conhecia perfeitamente a importância dos EUA – o que não significa subserviência. Ele foi várias vezes aos Estados Unidos, foi recebido com a maior consideração, houve manifestações de [Barack] Obama sobre Lula, antes por [George W.] Bush. Mas as pessoas inventam coisas. O Brasil sabia, em sua campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança [da ONU], que o apoio dos EUA era fundamental, assim como da França, Inglaterra, Rússia e China, os cinco membros permanentes. Pode ver os números de comércio com os EUA, a Europa, não caíram. O ministro Celso Amorim tinha as melhores relações com os secretários de estado, inclusive com [a republicana] Condoleeza Rice.
O governo brasileiro tem negado a importância da ONU e de organismos multilaterais surgidos após o fim da segunda guerra. Em fevereiro, Ernesto Araújo foi à Polônia participar de um encontro convocado pelo governo Trump para pressionar o Irã. Lá, ele expressou interesse em “desenvolver relações próximas com outros países do Grupo de Visegrado e com a Itália”, países governados pela extrema direita ou por coalizões de que ela faz parte…
(Irônico) Ele [Araújo] disse que a Polônia é um país de enorme potencial econômico. No reino da fantasia, tudo é possível.
O senhor acha que há, agora, um grau inédito de politização da política externa brasileira?
Eles fazem o que acusam os outros de fazerem! O sogro dele (de Ernesto Araújo, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa) exerceu altas funções [no Itamaraty] durante o governo do PT, um homem conservador – e meu amigo, aliás. Um homem correto, educado, conservador, que exerceu funções normais. Ninguém foi perseguido.
Já ouvimos que Seixas Corrêa está bastante embaraçado com o que Ernesto Araújo vem dizendo…
Claro, com um louco dentro de casa… Ele não me disse nada, nem eu ia perguntar, é uma coisa constrangedora. O marido da filha, você tem que defender minimamente.
Um embaixador graduado com quem conversei me disse ver organismos multilaterais como a ONU em risco como nunca desde seu surgimento. O senhor concorda?
A carta das Nações Unidas é o único tratado que estabelece as normas da convivência internacional: autodeterminação dos povos, soberania, igualdade entre os Estados, assim por diante. A gente sabe que não é bem assim, mas está lá. E tem mecanismos de negociação e cooperação em prol da segurança e da paz internacional, aos quais também podemos fazer observações. Os países, na ONU e nas agências especializadas, negociam acordos, muitos dos quais são do interesse do Brasil: sobre florestas, meio ambiente em geral, acordos comerciais. Então, você precisa de apoio de outros países.
Um Itamaraty que é parte de um governo que visa combater o comunismo pode azedar a relação do Brasil com a China, o país comunista que é nosso principal parceiro comercial?
‘No cardápio político, hoje em dia, Bolsonaro está sendo servido. O prato alternativo que se pode escolher é Mourão.’
Acredito que os chineses sabem da importância que tem para eles a relação com o Brasil, a importância do comércio, a perspectiva de investimentos chineses no Brasil, até para garantir o abastecimento deles com produtos primários como minério de ferro, soja. Eles não vão criar nenhum caso. Nenhum. Sabem que tudo é passageiro, e pode ser até que passe mais depressa do que se pense.

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O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães durante audiência sobre a entrada da Venezuela no Mercosul, em novembro de 2007. Ele foi o número 2 do Itamaraty durante o governo Lula.
Foto: Sérgio Lima/Folhapress

O senhor acha isso? Qual sua impressão?
Julho.
O que, em julho? Um impeachment? E aí assume Mourão.
Naturalmente. No cardápio político, hoje em dia, Bolsonaro está sendo servido. O prato alternativo que se pode escolher é Mourão. Outros pratos, como revolução socialista e proletária, estão em falta. Assembleia nacional constituinte? Também não está sendo servido. O que tem é o Mourão. Você pode não gostar, achar que é a volta dos militares, achar o que quiser.
Não o preocupa uma eventual volta dos militares ao poder?
De forma alguma. Por várias razões. Primeiro porque temos um governo ideológico e que divide o país, promove o antagonismo social todos os dias. Agora, liberou as pessoas a transitarem com armas carregadas. É uma coisa inacreditável. Temos 63 mil mortes por ano, em toda a Guerra do Vietnã os EUA não perderam o que morre no Brasil por ano. É um governo que promove ódio racial, todo tipo de confronto na sociedade. Isso é uma coisa muito perigosa. O governador do Rio subiu num helicóptero para acompanhar uma ação em que sujeitos iam matar pessoas. Isso é uma loucura. O general Mourão, desde que tomou posse – antes, não – só fala a coisa certa. Até julho o governo tem que aprovar a [reforma da] previdência, alguma coisa tem que aprovar, porque estão achando que vai ser um milagre, se aprova a previdência e tudo vai se resolver.
‘[Os militares] Passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles. Veio o Bolsonaro e o tempo todo relembra a ditadura.’
Vamos supor que Bolsonaro de fato deixe o cargo, sofra um impeachment. Não é arriscado termos os militares de volta no comando do país?

Não. Em qualquer país do mundo que se respeite, os militares fazem parte da sociedade, não são contra a sociedade. Nos EUA, você acha que o establishment critica os militares? Na França? Na Alemanha? Na Inglaterra? Mas aqui criou-se essa ideia de sociedade civil de um lado e os militares do outro. Foi o príncipe dos sociólogos quem fez isso (irônico, se referindo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). Isso criou uma situação em que, primeiro, se tirou a responsabilidade dos civis que apoiaram a ditadura e que muito se beneficiaram, mais do que os militares, que ficaram com a culpa, mas não ficaram ricos. A Globo se criou durante a ditadura, são multimilionários. Os bancos, a mesma coisa. Esse conceito permitiu dizer: “Olha, a ditadura foi uma coisa militar. Aqui estamos nós, os civis, que nunca nos beneficiamos com ela, nunca enriquecemos nela.” Enriqueceram, e muito. Com aquele crescimento muito alto (da economia nos primeiros anos da década de 1970, época do chamado “milagre econômico” brasileiro) com arrocho salarial, eles ficaram milionários, empresários como Gerdau ficaram milionários.
O senhor não vê nenhum risco de uma “recaída” dos militares, um novo AI-2 (o segundo ato institucional decretado pela ditadura, de 1965, que acabou com as eleições diretas para presidente, extinguiu partidos políticos e permitiu uma intervenção do poder Executivo no Judiciário)?
Para quê? Não vale a pena. [Os militares] Passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles. Veio o Bolsonaro e o tempo todo relembra a ditadura. Eles ficam horrorizados com isso. As pesquisas de opinião mostram que os militares são um dos grupos que têm mais confiança da população brasileira. Conseguiram isso, e o Bolsonaro passa o tempo todo lembrando da ditadura, do [ditador chileno Augusto] Pinochet, do [ditador paraguaio Alfredo] Stroessner, do [coronel Carlos Alberto] Brilhante Ustra (um dos principais comandantes da tortura de adversários do regime militar).
Mourão também fez elogios a ele.
Antes de ser vice-presidente. De lá para cá, ele é monitorado pelo alto-comando. Ele não fala por ele, tanto que não é contestado, reparou? Não há nenhum general, da ativa ou da reserva, que tenha contestado Mourão publicamente. Pode ser que eles discutam [internamente], mas publicamente não vi nenhuma declaração. Porque eles sabem que [um eventual fracasso do governo Bolsonaro] vai bater lá neles, entende? Essa confusão que o Bolsonaro está armando, esse caldo de antagonismo, vai bater neles. E não interessa a eles [uma nova ditadura], porque não é mais moda no mundo, não é? Teve a moda das ditaduras militares na América Latina, Brasil, Argentina, toda parte. Hoje em dia, não é mais assim.