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quinta-feira, 23 de maio de 2019

FMI: guerra comercial EUA-China ameaça crescimento mundial em 2019

FMI: guerra comercial EUA-China ameaça crescimento mundial em 2019

FMI: guerra comercial EUA-China ameaça crescimento mundial em 2019
O Fundo Monetário Internacional (FMI) advertiu, nesta quinta-feira (23), que a escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China ameaça o crescimento global em 2019 - AFP
O Fundo Monetário Internacional (FMI) advertiu, nesta quinta-feira (23), que a escalada da guerra comercial entre Estados Unidos e China “ameaçará” o crescimento global em 2019, o que minará a confiança e aumentará os preços para os consumidores.
“Os consumidores nos Estados Unidos e na China são inequivocamente os perdedores das tensões comerciais”, disse a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, em uma publicação do blog, refutando diretamente a afirmação do presidente dos EUA, Donald Trump, de que as tarifas são pagas pela China e geram receita para os Estados Unidos.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Argentina-FMI sempre discutindo a relacao, e um descontentamento renovado

International Monetary Fund – 15.5.2019
IMF’s reputation on the line in Argentina
Some fear fund’s largest bailout is fraying and might not survive an electoral jolt
Colby Smith and Benedict Mander

New York and Buenos Aires - When the IMF completed its third review of Argentina’s economy in early April, managing director Christine Lagarde boasted that the government policies linked to the country’s record $56bn bailout from the fund were “bearing fruit”. 
Less than a month later, amid darkening political prospects for incumbent president Mauricio Macri, the country’s currency crisis reignited and bond yields spiked, threatening not only the IMF’s Argentina programme but its reputation and that of its leader. 
Argentine assets have stabilised somewhat in recent weeks, with the country’s central bank now allowed to use IMF resources to intervene in the peso. But many analysts and investors are concerned that the programme is fraying and could collapse if the populist opposition, led by former leftist president Cristina Fernández de Kirchner, wins the presidential election in October. A victory would be devastating for the IMF given its strong backing of Mr Macri.
“This is the biggest single programme that they’ve ever put up, and their reputation is on the line,” said Bill Rhodes, a former top Citi executive with wide experience handling past Latin American debt crises.
Even former senior fund officials are concerned by the organisation’s exposure to Argentina, and the potential fallout should its biggest ever programme implode.
“Lagarde has really gone out on a limb for this programme and has been supporting it wholeheartedly,” said Claudio Loser, former head of the IMF’s western hemisphere department during Argentina’s historic debt default in 2001. A failed programme would lead to a “loss of credibility” for the fund, he adds.
Plans have already veered off course significantly, with Mr Macri forced to return to the IMF to revamp the deal scarcely three months after the original agreement was unveiled in May last year. In September, the IMF announced it would lend an additional $7.1bn to Argentina and allow the country to receive more cash upfront in exchange for a harsher austerity programme.
The deal required Argentina to run a balanced budget by 2019 and to shrink its external deficit. On both counts, the country has seen success.
By the end of last year, the primary fiscal deficit sat at 2.6 per cent of GDP — lower than the IMF’s target and a far cry from the 3.8 per cent level posted in 2017. Argentina has also made strides on the trade balance, which has swung from a large deficit to a surplus of $1.18bn as of March, amid a deepening recession.
 “There have been significant changes in the Argentine economy — from reliable official data to important fiscal and external sector improvements — and we want to help Argentina continue this process of transformation,” said one IMF official involved in the programme. “It is challenging and we feel a sense of responsibility in trying to help the country in this effort.”
Yet on other metrics, Argentina has struggled. Inflation remains elevated at nearly 55 per cent, despite the central bank tightening the monetary screws. Poverty levels have also skyrocketed to more than 30 per cent of the population, dredging up haunting memories of past crises and IMF programmes. 
For many locals, the IMF has become a comic-book villain given its long and chequered history with the country. Since it first sought the fund’s help in 1958, Argentina has signed 22 agreements with it, most of which ended with bitterness on both sides. 
Few forget the disastrous finale of the IMF’s last Argentina programme, when, just two months before the country defaulted in 2001, it borrowed another $8bn from the fund — most of which was used to buy pesos from institutional investors wanting to get out of Argentina. 
“Obviously, the IMF does not want to make the same mistake again,” said one former IMF staffer. “But it is a very different organisation from when it last got burnt in Argentina.”
For one, the IMF has placed an inordinate emphasis on “protecting society’s most vulnerable” when discussing its austerity package. In fact, the IMF’s current programme is the first to allow the country to exceed its fiscal deficit target if the additional spending is to be used for social assistance. 
In light of recent market ructions, the IMF has also shown flexibility in the government’s economic policies, with both the IMF and Donald Trump, US president, expressing their support as recently as last week of the course of action taken by Mr Macri.
In mid-April, Argentina relaunched a controversial programme of price controls in the hope of providing some reprieve for locals. Weeks later, the central bank announced it had full discretion to intervene in the currency market whenever it saw fit, a sharp diver.
gence from the free-floating currency principle once espoused by the fund. “We are working with the authorities to overcome the current difficulties and this implies a degree of flexibility to adapt when circumstances change to maintain the core objectives of the programme,” said the IMF official.
Mr Macri’s approval ratings have tanked with the economy. But according to Mark Sobel, a former senior US Treasury official and executive director at the IMF, staying the course with the fund’s programme is his best bet to beat Ms Fernández should she choose to run.
“If this programme is carried out, Argentina will turn around,” he said. “But if Kirchner wins and we see a return to the woefully errant policies of her and her husband, many will blame the fund and its reputation will suffer.”

(Grato a Pedro Luiz Rodrigues pela informação)

sexta-feira, 19 de abril de 2019

O recuo do Brasil na economia mundial - FMI, FSP, Ricardo Bergamini

Ricardo Bergamini, sempre atento à atualidade econômica, sintetiza as más (inevitáveis) notícias sobre a perda de peso do Brasil na economia mundial, não exatamente porque os outros foram mais rápidos e dinâmicos – o que também aconteceu –, mas porque nós recuamos, e não deixamos de estagnar. Ao final, matéria da FSP sobre o mesmo assunto.
Paulo Roberto de Almeida


Brasil perde importância econômica no contexto mundial

Em 2018, o PIB CORRENTE (US$ 1.860,4 bilhões) e PIB PER CAPITA (US$ 8.923,00) do Brasil, retornaram aos patamares próximos ao ano de 2008 com PIB CORRENTE (US$ 1.693,0 bilhões) e PIB PER CAPITA (US$ 8.839,00), cabendo alertar que uma tragédia dessa magnitude levará, no mínimo, dez anos de austeridade fiscal para colocar o Brasil nos patamares do ano de 2011, com PIB CORRENTE (US$ 2.614,5 bilhões) e PIB PER CAPITA (US$ 13.237,00).

Participação do Brasil na economia global atinge o pior nível em 38 anos
Fatia do país em bens e serviços é de 2,5%
Já foi de 4,4% em 1980 e 3,1% em 2011
Neste século, o pico da participação brasileira na economia global foi em 2011, quando o Brasil representava 3,1% do total

PODER360 , 19.abr.2019 (sexta-feira) 

Levantamento do FMI (Fundo Monetário Internacional) mostra que a participação do Brasil na economia global atingiu o pior nível em 38 anos. Em 2018, a fatia do país na produção de bens e serviços globais foi de 2,5% – a 7ª queda anual seguida.

A informação foi publicada nesta 6ª (19.abr.2019) pelo jornal Folha de S.Paulo. 

Parte inferior do formulário
A maior marca deste século foi atingida em 2011, quando o Brasil representava 3,1% do total. De lá para cá, no entanto, não parou de cair. O pico da participação brasileira nos setores foi em 1980, quando detinha 4,4%.

O resultado fez com que país perdesse o posto de 7ª maior economia global – mantido desde 2005 – para a Indonésia.

De acordo com as projeções do Fundo, o Brasil deve perder espaço nesse quesito pelo menos até 2024, quando a parcela do país na economia mundial recuará para 2,3%.

Ricardo Bergamini


Participação do Brasil na economia global cai ao menor nível em 38 anos

Fatia do país na produção de bens e serviços no mundo foi de 2,5% no ano passado, segundo o FMI

Dados recém-divulgados pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) mostram que o Brasil completou, em 2018, o sétimo ano consecutivo de perda de participação na economia global.
A fatia do país na produção de bens e serviços do mundo, que era de 4,4% em 1980, chegou, entre altos e baixos, a 3,1% em 2011 e, desde então, caiu sem parar, atingindo 2,5% no ano passado, o nível mais baixo ao longo das quase quatro décadas na série histórica que mostra as trocas realizadas entre Brasil e o resto do mundo.
Os dados se referem à participação no PIB (Produto Interno Bruto) global em dólares ajustados pela paridade do poder de compra (PPC), que reflete as diferenças de custo de vida entre os países.
Por essa medida, que é mais estável, o Brasil perdeu, no ano passado, o posto de sétima maior economia do mundo, que detinha desde 2005, para a Indonésia, caindo para o oitavo lugar.
No ranking feito a partir da conversão simples do PIB em dólares, que é mais volátil, a posição brasileira sempre variou bastante e, em 2018, o país voltou a recuar também da sétima para a oitava posição, ultrapassado pela Itália.
Segundo as projeções do Fundo, a tendência de perda de espaço do Brasil se manterá pelo menos até 2024, quando a parcela do país na economia global, pelas projeções realizadas na instituição, recuará para 2,3% (em PPC).
Esse padrão histórico de encolhimento não é uma exclusividade brasileira.
Desde 1980, quase todos os gigantes econômicos cederam espaço para a China passar, movida por suas taxas de crescimento que chegavam a dois dígitos. A exceção foi a Índia, que também se expandiu a um ritmo acelerado em todo o período.
Mas outras comparações —como a análise da trajetória de países emergentes na década atual— evidenciam que a deterioração brasileira no contexto global tem características peculiares e bem particulares.
Desde 2010, a perda de 0,64 ponto percentual de participação do país no PIB mundial só foi inferior aos recuos registrados por Estados Unidos e Japão, que, na esteira da crise financeira de 2008, cresceram, em média, muito abaixo da taxa global.
Os dois são, porém, economias avançadas, com patamar já elevado de renda per capita, em que a estabilidade do progresso em indicadores sociais, como o nível de pobreza, é menos sujeita às oscilações de diferentes ciclo econômico.
Muitas das nações em desenvolvimento, que dependem de taxas razoáveis de crescimento para melhorar o padrão de vida de suas populações, têm apresentado desempenho superior ao brasileiro.
Nos últimos oito anos, vizinhos latino-americanos como Colômbia, Peru, Chile, Uruguai e Paraguai conseguiram, pelo menos, manter suas fatias do PIB mundial (em PPC). Outros emergentes como Indonésia, Turquia, Filipinas, Vietnã e Malásia aumentaram suas participações no período.
“Eu não me preocuparia com a perda de participação do Brasil na economia global se estivéssemos crescendo”, diz o economista Alexandre Cunha, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
“O problema é que não estamos crescendo, e esse recuo relativo a outros países também se manifesta em outros indicadores”, diz o pesquisador.
Ele ressalta que a renda per capita brasileira como percentual da norte-americana —medida muito usada para analisar se um país está se desenvolvendo— nunca retornou ao nível de quatro décadas atrás.
Em 1980, o rendimento médio do brasileiro (em PPC) equivalia a 39% do americano. Em 2018, esse percentual era 25,8%.
Nações como Chile, Taiwan e Coreia seguiram a trajetória inversa no período —os dois últimos, aliás, passaram a ser considerados países desenvolvidos.
Segundo Cunha, embora nenhum economista detenha uma receita mágica para o crescimento econômico sustentado no longo prazo, há grande convergência entre acadêmicos das principais universidades do mundo sobre a importância da estabilidade fiscal nesse processo.
“Não existe na história registro de algum país que tenha conseguido crescer por 20, 30 anos estando quebrado”, diz o pesquisador.
Por isso, para ele, é crucial aprovar a reforma da Previdência e avançar em medidas para reequilibrar as contas públicas deficitárias do Brasil.
Outros passos, diz Cunha, são a estabilidade democrática e das leis.
“Acho que houve um retrocesso nesses aspectos no Brasil. Nosso Congresso, por exemplo, não tem iniciativa de apresentar propostas relevantes para o país nem fiscaliza o Executivo como deveria”, afirma o professor.
O economista Jorge Arbache, vice-presidente do Banco de Desenvolvimento da América Latina, diz que a região se tornou mais dependente da exportação de commodities nos últimos anos e que isso freia seu desenvolvimento em relação a outras partes do mundo, como a Ásia.
“Não é que as commodities não sejam importantes. Elas são muito. Mas estamos vivendo a era da economia do intangível, em que os serviços sofisticados ganham espaço até na produção de manufaturas como automóveis”, diz.
Segundo Arbache, há avanços tecnológicos recentes na economia digital que ainda nem são mensurados nas contas nacionais e, se fossem, revelariam, provavelmente, um retrocesso ainda maior do Brasil no contexto global.
“Precisamos avançar na economia digital para voltar a crescer e ganhar espaço”, diz o economista.
Para isso, ressalta Arbache, além do foco em agendas como a estabilidade fiscal e a de melhoria do ambiente de negócios para as empresas, é necessário avançar em inovação e aumentar a participação do Brasil nas cadeias globais de comércio.

domingo, 2 de setembro de 2018

Os companheiros e o FMI: uma obsessão mal informada - Paulo Roberto de Almeida

O FMI sempre foi o bode expiatório preferido da esquerda brasileira, desde quando JK recusou um programa de austeridade para poder construir Brasília torrando o dinheiro que não tinha (ou seja, provocando inflação). Vieram com o tal slogan FMI = Fome e Miséria Internacional.
O desconhecimento do que seja o FMI, suas funções, seus limites, era proverbial ao início do governo Lula, talvez até hoje. 
Em setembro de 2003, ainda em Washington, li um artigo no boletim Periscópio, do PT, e me dei ao trabalho de comentar exaustivamente. Nunca ficou conhecido esse meu trabalho, pois não foi publicado em lugar nenhum.
Permito-me assim transcrever em primeiro lugar o artigo publicado pela Fundação Perseu Abramo, e depois transcrevo o meu longo comentário a esse artigo.

1113. “O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários”, Washington, 15 setembro 2003, 4 p. Comentários breves a matéria homônima no boletim Periscópio n. 29, set. 2003, da Fundação Perseu Abramo. 

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 2/09/2018

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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas

Periscópio, Edição nº 29 - setembro de 2003

Ao defender publicamente que um novo acordo com o FMI, se for preciso e se for realizado, não pode obstaculizar as políticas e investimentos necessários ao crescimento do país, o governo Lula aponta de modo decisivo para o caminho de superação gradativa dos enormes constrangimentos que têm limitado a sua histórica vocação desenvolvimentista e social. 

Em uma entrevista a dez jornalistas, concedida no dia 20 de agosto, o presidente Lula afirmou “que o Brasil não precisa de um outro acordo com o FMI”. Sugeriu que só haverá um novo acordo com a instituição se os termos forem favoráveis ao país. “Pela lógica, o Brasil não precisa renovar o acordo. Assinar ou não um novo acordo depende da vontade, do acordo e das condições que forem negociadas”. Foi informado também que Lula coordenará pessoalmente a renegociação do acordo, se este se fizer necessário.

No dia 1º de agosto, o próprio ministro da Fazenda, Antonio Palocci, já dera uma declaração em sentido semelhante, afirmando que “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas”. O jornal O Globo noticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção. 

No dia 21 de agosto, como fruto de suas duas últimas reuniões, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), coordenado por Tasso Genro, apresentou publicamente dez medidas voltadas para o crescimento da economia. Entre elas, a adequação da taxa de câmbio em um patamar propício ao crescimento das exportações, estímulos à aquisição de equipamentos pelas indústrias, crescimento dos investimentos públicos, hoje contingenciados. O CDES também apoia a meta do governo de chegar a 2004 com uma taxa real de juros de 8,24% e propõe reduzir de 4,25% para 4,0% o esforço fiscal do governo para o próximo ano (meta de superávit primário).

O relator do Orçamento de 2004, Jorge Bittar, indica as questões a serem renegociadas com o FMI, caso um novo acordo se faça necessário. A primeira seria a retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário. Esta reivindicação, aliás, tem sido reiterada publicamente pelo presidente do BNDES, Carlos Lessa, nos marcos do planejamento de longo prazo do país. Nos países europeus, por exemplo, é incluído como déficit público relacionado a um determinado investimento apenas a parcela do empreendimento a ser amortizada naquele ano (principal e juros) e não o valor total do projeto. Hoje, no Brasil, apenas os investimentos da Petrobrás não são incluídos no cálculo do superávit primário. Os investimentos das empresas estatais são vistos pelo governo como imprescindíveis para gerar um novo ciclo de inversões em infra-estrutura, necessária para a retomada do investimento.

A segunda questão é a da emissão dos Títulos da Dívida Agrária (TDA), fundamentais para a realização da reforma agrária. “Se são títulos de dez anos, não devo considerar grave a sua emissão para o perfil da dívida pública brasileira porque estou emitindo dívidas de longo prazo para urgências, como diminuir a tensão social no campo e desenvolver a agricultura familiar no país”, afirma o relator do Orçamento. 

A terceira questão seria a mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios de todo o país em 200 milhões de reais. Trata-se, na verdade, de mais um absurdo ataque ao setor público brasileiro. Por esta resolução, empréstimos em torno de 5 bilhões a 6 bilhões de reais da Caixa Econômica Federal, essenciais por exemplo, para saneamento e habitação popular, não podem ser disponibilizados mesmo para os cerca de dois mil municípios que dispõem de equilíbrio orçamentário. Jorge Bittar referiu-se a este tipo de restrições como “entulhos monetaristas”, a serem desfeitos pelo novo governo.

A importância das relações do governo brasileiro com o FMI é certamente decisiva para a América Latina. A Argentina, em particular, em uma situação de extrema fragilidade, está em uma negociação publicamente conflituosa com o FMI. O prêmio Nobel de Economia e ex-vice presidente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, repete aos brasileiros, em entrevista ao jornal Valor Econômicode 12 de agosto, o conselho que deu aos argentinos: “o conselho que eu dei à Argentina a um ano e meio foi: se vocês conseguirem um bom programa com o FMI, se puderem ter algum benefício, sigam em frente. Senão, é melhor não ter nenhum programa do que ter um ruim. O que a Argentina achou é que o FMI não negociaria um programa com o país e decidiu ir em frente sem o Fundo. Eles se deram muito melhor do que com o programa do FMI, revitalizaram a economia (...) Se for um programa que estrangule a economia, então, é melhor ficar sem dinheiro a ser estrangulado.”

Três erros
Um processo de negociação com o FMI exige uma visão clara da identidade e função desta instituição, de sua evolução histórica, de sua atual coesão e legitimidade internacional. Há aqui três erros fundamentais a serem evitados. 

O primeiro deles seria o de pensar uma homologia ou convergência de interesses entre o Brasil e o FMI, como se fosse possível reduzir a dimensões técnicas ou de cálculo econômico os seus programas condicionadores de empréstimos. O FMI defitinivamente não é um hospital ou uma UTI, que primordialmente zela pela salvação e qualidade da saúde do paciente. 

Em seu livro “A globalização e seus malefícios”, Joseph Stiglitz, um keynesiano moderado e propositor de uma “globalização com rosto humano”, demonstra que o FMI é exatamente o contrário desta imagem ao mesmo tempo interessada e ingênua. A sua tese é simples: o FMI hoje reflete os interesses e a ideologia da comunidade financeira internacional, em particular de Wall Street. Esta identidade é garantida pela composição, modos de deliberação, mecanismos de proteção ao controle público e pelos interesses privilegiados nas políticas adotadas. Escreve Stiglitz: “Como já observamos, muitas das pessoas-chave no Fundo provêem da comunidade financeira, e muitas destas pessoas, tendo servido bem a estes interesses, saíram para assumir cargos bem remunerados na comunidade financeira. Stan Fischer, o vice-diretor gerente que desempenhou tal papel durante os episódios descritos neste livro, saiu diretamente do FMI para se tornar vice-presidente do conselho do Citigroup, a vasta empresa financeira norte-americana que inclui o Citibank. Um dos presidentes do conselho do Citigroup (presidente do Comitê Executivo) foi Robert Rubin, que, como Secretário do Tesouro, desempenhou um papel importante na formulação das políticas do FMI”.

O Tesouro dos Estados Unidos, no papel de maior acionista do FMI e o único com poder de veto, tem um papel preponderante na determinação das políticas do FMI, diz Stiglitz. O jornal The Economist de 18 de setembro de 1999, reconheceu que, nos anos recentes, o FMI e o Banco Mundial foram crescentemente instrumentalizados pelo seu acionista majoritário. Durante a grave crise financeira no Leste Asiático em 1997, o Japão ofereceu cem bilhões de dólares para criar um Fundo Monetário Asiático, com o objetivo de financiar ações necessárias para estimular a economia na região. O FMI e o Tesouro dos EUA posicionaram-se fortemente contrários a tal iniciativa, que acabou prosperando de forma discreta com o apoio da China. 

Stiglitz afirma, além disso, que o FMI e o Banco Mundial “têm padrões de divulgação muito menores do que os do governo em democracias como os Estados Unidos, a Suécia ou o Canadá. Eles tentam esconder relatórios importantes; é somente sua incapacidade de evitar que as informações vazem que, em geral, força a divulgação”.

Mas, sobretudo, as políticas preconizadas pelo FMI, segundo Stiglitz, visam não os interesses dos cidadãos ou das economias em seu conjunto, mas fundamentalmente os interesses dos credores. Mesmo os empréstimos de socorro, a juros mais baratos que os disponibilizados pelo mercado, visam garantir, em última instância, o pagamento das dívidas. Não são os contribuintes dos EUA que pagam a conta, responde Stiglitz à crítica dos conservadores em seu próprio país. Se uma economia nacional passar por problemas, o FMI, apoiado nos termos dos acordos assinados, é o credor preferencial, mesmo em relação a outros credores estrangeiros. E é raro que ele não receba o que emprestou. 

As reviravoltas do FMI
Um segundo erro é entender a ortodoxia do FMI como composta de verdades inabaláveis, estabilizadas no tempo e dotadas de coerência lógica. O artigo de Fernando Cardim Carvalho, “The changing role and strategies of the IMF”, publicado na Revista de Economia Política, vol. 20, nº 1, janeiro/ março de 2000, é uma excelente crítica a este entendimento. 

Como instituição nascida no contexto do pós-guerra, em plena hegemonia das correntes próximas ao keynesianismo, os princípios, objetivos e estratégias do FMI eram muito diversos dos atuais. O item 2 do seu estatuto, por exemplo, afirmava como um dos seus objetivos centrais: “facilitar a expansão e crescimento equilibrado do comércio internacional e, assim, contribuir para a promoção e manutenção de altos níveis de emprego e de rendimentos reais e para desenvolver os recursos produtivos de todos os membros como objetivos centrais de política econômica”. 

Nos seus inícios, o FMI apenas zelava pelo equilíbrio das transações correntes entre os países. A conta de capitais dizia respeito às políticas internas dos países, que podiam acertadamente impor controles sobre o fluxo de capital em casos de pressão sobre as taxas de câmbio. De fato, nos anos sessenta, os próprios EUA e a Grã-Bretanha impuseram controles ao movimento dos capitais de curto prazo. As políticas recessivas eram recomendadas pelo FMI apenas no caso de déficits crônicos nas transações correntes de bens e serviços, de molde a pretensamente diminuir a demanda agregada e, assim, diminuir as importações e elevar as exportações do país em questão.

Neste período inicial, o foco do FMI era os países chamados desenvolvidos, os últimos programas de apoio tendo sido dirigidos à Itália e à Grã-Bretanha em 1977. Mas até meados dos anos oitenta, mesmo após a bancarrota do México e do Brasil, os programas de ajuste recomendados pelo FMI não implicavam em reformas estruturais. Estas passaram a compor as condições fundamentais impostas pelo Fundo apenas nos anos noventa, tornando-se até mais importante do que o ajuste fiscal.

Foi neste contexto nos diz Cardim, que as visões do FMI sobre “o controle de capitais sofreram uma dramática reversão. De um lado, o fundo começou a duvidar tanto da eficácia como da desejabilidade do controle de capitais; de outro lado, prestou-se mais atenção à eficiência dos setores financeiros domésticos em lidar com um volume crescente de recursos”.

Frente às últimas oito crises financeiras internacionais nos últimos anos, o discurso do FMI sofreu uma nova mudança. Trata-se de reconhecer agora a inevitabilidade da liberalização dos fluxos financeiros e procurar diminuir os seus impactos negativos. Como afirma Stiglitiz, “há hoje uma consciência dos perigos dos fluxos de capital de curto prazo e da liberalização prematura do capital e do mercado financeiro, reconhecidas de tempos em tempos até mesmo pelos oficiais seniores do FMI”.

Em busca da legitimidade perdida
Um terceiro grande erro seria conceber o FMI como uma instituição coesa, respeitada em seus diagnósticos e profundamente legitimada no cenário internacional. O Secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, Otaviano Canuto, lembrou recentemente em entrevista que “o Fundo é um ativo de credibilidade para a política econômica”. Será? 

A divulgação do Relatório do Independent Evaluation Office, ligado à gerência do FMI, de nome “FMI e crises recentes nas contas de capitais – Indonésia, Coréia, Brasil”, reconhecendo erros reiterados da entidade, é claramente uma tentativa de renovar a sua credibilidade após erros crassos em vários cantos do mundo onde a política do FMI teve influência. O relatório reconhece que o Fundo errou em relação à crise brasileira de 1998, ao não apontar as vulnerabilidades do Plano Real, como o alto nível de endividamento do setor público e ao não recomendar o abandono da política cambial, de super-valorização do Real, praticada pela dupla Malan/Franco. Aliás, crítica feita à época e generalizada entre os economistas brasileiros não neoliberais. Já uma análise recém divulgada pelo General Accounting Office, do Congresso norte-americano, afirma que o FMI antecipou apenas 15 das 134 recessões ocorridas em 87 países em desenvolvimento no período que vai de 1991 a 2001, o que representa 11% do total.

Um estudo do economista Walden Bello, da ONG “Focus on the global south”, “The crisis of the globalist project and the new economics of George W. Bush”, publicado em junho passado, é importante para atualizar a avaliação da ilegitimidade atual do FMI. 

De acordo com Walden Bello, o projeto globalista, cujo maior trunfo foi o estabelecimento da OMC (Organização Mundial do Comércio), encontra-se em uma crise evidente. Os três momentos deflagradores desta crise teriam sido justamente a crise financeira asiática de 1997, o impasse das negociações na OMC, em Seattle em dezembro de 1999, entre os EUA e a União Européia, e a crise gigantesca do mercado de ações norte-americanas no final da gestão de Clinton. A política unilateralista de Bush só teria aprofundado estes impasses. 

Escreve Walden Bello: “como apontou Robert Brenner, as políticas de Bill Clinton e do Secretário do Tesouro, Robert Rubin, punham ênfase na expansão da economia mundial como base da prosperidade da classe capitalista. Por exemplo, em meados dos anos noventa, eles puxaram a alta do dólar como meio de estimular a recuperação das economias japonesa e alemã, de tal modo que elas pudessem servir de mercado para as mercadorias e serviços dos EUA. Antes, a mais nacionalista gestão Reagan, havia empregado uma política do dólar fraco para reconquistar competitividade para a economia americana às expensas da japonesa e alemã. Com a gestão George W. Bush, voltamos às políticas econômicas, incluindo a do dólar fraco, voltadas para animar a economia norte-americana às custas de outras economias centrais e enfatizar os interesses da elite das empresas do país ao invés das elites globais do capitalismo”.

Ainda segundo Bello, a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente. Entre eles, Jeffrey Sachs, antes conhecido por sua defesa de um “choque de livre mercado” na Europa do Leste no início dos anos noventa; o professor da Universidade de Columbia, Jagdish Bhagwadi, que conclamou à adoção de controles globais sobre o fluxo de capitais; e até mesmo Georges Soros, que tem condenado a ausência de controles sobre o sistema financeiro global, que o enriqueceu. 

O autor conclui, após longa análise da geopolítica mundial, que o poder dos EUA deve ser “saudavelmente respeitado” mas seria um grande erro superestimá-lo. 

Risco moral
O acordo atual do Brasil com o FMI é o que envolve as mais vultosas somas de empréstimo da instituição no mundo. Com a relevância geopolítica do Brasil e a projeção internacional do governo Lula, entende-se a importância que a renovação do acordo tem para a legitimidade internacional da instituição.

A primeira defesa da renovação do acordo com o FMI veio de Paulo Leme, do Banco Goldman Sachs, seguido dias depois, por Henrique Meireles, presidente do Banco Central, afirmando que, apesar de não ser uma necessidade estritamente técnica, seria recomendável a renovação.

Os argumentos de quem defende a renovação do acordo passam por dois caminhos. Um deles é o da precariedade das reservas internacionais do país, estimadas em cerca de 14 bilhões de dólares, que poderia colocar o Brasil em dificuldade diante de uma eventual conjuntura de aumento dos rendimentos dos títulos dos EUA e de deterioração do ambiente de liquidez mundial. Na verdade, há muita incerteza nestas previsões e muitas condicionalidades a serem avaliadas. 

O segundo argumento, talvez mais decisivo, e que aparece reiteradamente exposto por economistas neoliberais, dentro e fora do governo, é o papel de um novo acordo com o FMI para preservar as linhas predominantes na política econômica no primeiro período do governo Lula. Como, por exemplo, no artigo de Desmond Lachman, analista residente do American Enterprise Institute, publicado no jornal Valor Econômicode 31 de julho: “um programa sucessor pactuado entre o FMI e o Brasil daria uma grande contribuição para um substancial fortalecimento da confiança dos investidores no Brasil. Um novo programa do FMI, em continuidade de apoio ao Brasil – ao proporcionar um arcabouço de política macroeconômica de médio prazo e um roteiro para o prosseguimento de reformas estruturais – poderia assegurar aos investidores ser improvável que o presidente Lula venha a avançar num rumo mais populista em termos de política econômica”. 

O sentido muito político e ideológico da defesa da renovação do acordo com o FMI fica patente nas declarações de Joaquim Levy, Secretário do Tesouro Nacional, e Fábio Gambiagi, co-autor do livro “Finanças Públicas – Teoria e prática no Brasil”. O primeiro afirma que o obstáculo ao crescimento “não é o FMI mas o tamanho da nossa dívida”, como se as políticas recomendadas pelo FMI nada tivessem a ver com a evolução da dívida e seu cálculo. bio Gambiagi, autor de um livro texto neoliberal de uso generalizado nas faculdades de Economia, argumenta enfaticamente contra a proposta de retirar o investimento das estatais do acordo com o Fundo. “Isto seria um tiro no coração da política econômica”, diz ele, em uma retórica inflamada. No jornal Valor Econômicode 21 de agosto, o colunista propõe que se caminhe para uma nova coalizão nas eleições presidenciais de 2006, formada pelo PT, PSDB e PFL! Diz ele que “a luta fratricida entre os reformistas é uma estratégia suicida”. 

De modo sensato, o governo Lula tem evitado dar um tom dramático e espetacular às suas relações com o FMI. A sua opção clara é a de diagnosticar o acordo nem como imprescindível nem como incondicional. 

Os empréstimos do FMI são considerados mais baratos do que os das outras fontes no mercado internacional. Mas esta vantagem relativa pode ser anulada ou invertida frente aos constrangimentos impostos à política econômica.

Do ponto de vista político, um novo acordo com o FMI poderia alienar parte importante da soberania do governo em decisões chaves a maior parte de seu mandato, em anos eleitorais decisivos em que seu projeto estará em disputa. Um acordo com o FMI poderia, deste ponto de vista, congelar a transição do governo Lula a novos padrões de política econômica mais compatíveis com suas potencialidades históricas.

Mas há certamente também o risco ético-moral. De junho de 2002 até o final dos seis primeiros meses do governo Lula, segundo dados do Banco Central, o pagamento dos juros da dívida pública chegou a 142 bilhões de reais. Este valor equivale a mais de 17 vezes à soma do orçamento previsto para todos os programas sociais emergenciais em 2004. O governo Fernando Henrique sabia ser fraco com os fortes e forte, insensível, cruel e até mesmo brutal com aqueles que têm menos poder diante do mercado. Isto dizia tudo sobre a sua qualidade moral. 

A vocação ético-moral do governo Lula é outra e se alimenta do cotidiano dramático, mas cheio de esperanças do povo brasileiro.

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O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas: comentários

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 setembro 2003, 4 p.

            A propósito do artigo “O governo Lula, o FMI e a transição de paradigmas”, publicado no boletim Periscópio(nº 29, setembro de 2003, Link: http://www.fpa.org.br/periscopio/cartas/carta02.htm), na página da Fundação Perseu Abramo, (link: http://www.fpabramo.org.br/periscopio/092003/texto01.htm). 

Li com atenção o texto em questão mas tenho sérias dúvidas sobre algumas das afirmações ali contidas.
Por exemplo, em primeiro lugar, a de que se for feito um novo acordo com o FMI este não pode obstaculizar políticas de desenvolvimento. Ora, não são os acordos com o FMI (exatamente três até aqui, talvez quatro, dentro em breve: em 1998, em 2001 e em 2002) que têm introduzido constrangimentos ao processo de desenvolvimento brasileiro. Esses constrangimentos precedem de muito os acordos com o FMI e têm sido uma constante desde os anos 80, pelo menos. Pode-se pensar, pela afirmação, que a ausência desses acordos teria sido uma situação melhor, de "liberdade" para crescer, do que sua efetivação, a pedido do Brasil. O País não é certamente obrigado a pedir ajuda ao FMI, mas se o faz, deve haver alguma razão, e ela não se prende à necessidade de crescer, mas sim a de evitar um problema maior. Não se deve olvidar que os acordos foram todos preventivos, evitando situações de default e moratória, como as que enfrenta hoje a Argentina. Esta teria sido uma melhor solução para o Brasil? Não me parece...
Parece-me, por outro lado, absolutamente caótico, para a imagem de seriedade do governo, esta situação descrita no próprio artigo com base em artigos de imprensa: “se houver a necessidade de um acordo – é uma discussão não feita ainda – uma série de questões novas podem ser colocadas. O jornal O Globonoticiou no dia 13 de agosto que, se depender dos ministros da Casa Civil, José Dirceu, e do Planejamento, Guido Mantega, em outubro o governo redesenhará seu acordo com o FMI. No dia seguinte, os ministros Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, Humberto Costa, da Saúde, deram declarações na mesma direção.”
Isto, sem mencionar declarações de meia dúzia de parlamentares, da esquerda, da "direita" e do centro do PT, alem de outros lideres políticos de todos os quadrantes possíveis. Não creio que uma discussão pública sobre como deve ser ou não ser o futuro acordo com o FMI agregue algo em termos de esclarecimento público ou de coerência nas posições do governo. Deveria haver uma opinião de governo sobre assunto tão importante e não "achismos" individuais de pessoas não envolvidas com a administração financeira do País. A cacofonia e a dispersão de posições deveriam ser apontadas na matéria em questão como fatores de debilitamento, não de fortalecimento, da postura negociadora do Brasil.
Que o ministro encarregado do CDES, por exemplo, fique dizendo qual deve ser o patamar de juros, de superávit e de cambio, me soa totalmente surrealista, contribuindo mais uma vez para o que o PT quer mais evitar: volatilidade. Esta, ao contrário do que pensam alguns, não é um alienígena que ataca o Brasil desde o exterior, mas é criada basicamente pelas políticas e práticas internas, made in Brazil...
Mais surrealista ainda é o relator do Orçamento indicar, ele próprio, quais são as questões que devem ser renegociadas com o FMI, que ele mesmo aponta como sendo: “retirada do investimento das estatais da contabilidade do superávit primário”; “emissão dos Títulos da Dívida Agrária”; “mudança na resolução do Conselho Monetário Nacional, que limita o endividamento dos municípios”. Propriamente inacreditável. Por acaso o relator do orçamento é responsável pelas negociações com o Fundo, é o guardião da moeda? Creio que ele tem por dever, em primeiro lugar, de zelar pelo equilíbrio do orçamento que sair da Câmara, mas me parece pouco preparado para estabelecer condicionalidades sobre as quais ele não tem o mínimo envolvimento. Ele contribui assim para o aumento da volatilidade... 
            O conselho de Stiglitz aos argentinos me parece totalmente dispensável ou então ridículo: ele não é o responsável pelas contas argentinas e o melhor que teria a fazer, como economista responsável, seria ficar quieto, pois a decisão compete absolutamente aos argentinos...
O autor da “teoria dos três erros” se apóia em Stiglitz para dizer que o FMI não é um hospital. Talvez não, mas o Brasil, ou a Argentina, poderiam então tentar viver sem essa UTI, o que significa viver com meios próprios e sem esse emprestador de última instância que constitui o FMI. Que ele reflita a visão da chamada comunidade financeira internacional  é a mais absoluta verdade, mas a questão é a de saber se o Brasil pretende viver à margem dessa comunidade. Pode viver sem depender, o que depende inteiramente dele, não dessa mal-vista comunidade.
Fundos regionais, como reconhecem outros economistas tão ou mais importantes do que Stiglitz, contribuem para o que se chama de “moral hazard”, ao aumentar a exposição dos mesmos paises que normalmente iriam parar na UTI do FMI. Que este pratique confidencialidade, não é de se estranhar, na medida em que lida com dados sensíveis, comparáveis ao cadastro de um cliente privado. Ou o autor do artigo gostaria, por exemplo, que seus dados bancários e de patrimônio estivessem expostos ao conhecimento público em quaisquer circunstâncias?
Compreende-se a visão estreita do FMI em favor dos credores: condenável moralmente, mas pode-se perguntar: em caso de necessidade um país vai tomar dinheiro dos “cidadãos ou das economias em seu conjunto”, ou será que o único dinheiro disponível não é, basicamente, os dos “credores”? E estes vão pensar nos interesses dos cidadãos e da economia em geral ou nos seus próprios interesses? A indignação moral pode ser bonita como posição pública, mas resolve muito poucas dificuldades concretas de paises desequilibrados. E, ao contrario do que diz a matéria ("E é raro que ele não receba o que emprestou"), inadimplências e renegociações são muito mais freqüentes do que se pensa...

A ortodoxia do FMI não é melhor ou pior do que qualquer outra ortodoxia: pode funcionar em certas circunstâncias e não funcionar em outras. O duro é ter de depender de qualquer ortodoxia, mas ninguém é obrigado a seguir a do FMI ou a de qualquer outro parceiro externo: basta ter independência e não precisar de credito externo.
O artigo de Fernando Carvalho retrata uma realidade keynesiana que se tornou inaplicável, anacrônica e equivocada. O FMI, em seu início, meio ou fim, nunca zelou pelo “equilíbrio das transações correntes entre os países”, mas tão simplesmente pela liberalização dos pagamentos para sustentar essas transações correntes, deixando a critério dos países seus meios de financiamento (IDE, empréstimos, rendas do capital, etc). O FMI sempre interveio, antes, durante e depois desse mundo keynesiano, quando algum país em desequilíbrio necessitava de uma transfusão temporária de liquidez, apenas e tão somente isso (ele tinha o papel de guardião cambial também, mas isso acabou em 1971-73).  
Ele nunca teve foco em países desenvolvidos ou em desenvolvimento: ele está apenas a serviço de seus membros, sejam estes pobres, ricos ou remediados. Não se deve confundir situações conjunturais com mandato preferencial...
O FMI nunca sofreu reversão nenhuma quanto ao controle de capitais, pois que ele nunca teve mandato para cuidar dessa área. Quem pressionou o FMI a entrar na área foram os paises desenvolvidos, como os EUA e alguns europeus, contra a opinião de outros desenvolvidos e outros europeus. A crise asiática se encarregou de enterrar essas propostas, que não são absurdas em si, apenas talvez prematuras...

Quanto ao terceiro erro, parece que se confunde duas coisas: consistência ou inconsistência das receitas do FMI e o fato de ele ser ou não um ativo de credibilidade para o Brasil. Ele pode ser, ou não, uma ou outra coisa, mas não se pode negar que o mercado o vê como um ativo, por mais inconsistentes que possam ser suas recomendações... Às vezes a versão é mais importante do que o fato...
Contrariamente ao que se diz na matéria, o FMI recomendou SIM a desvalorização cambial para o Brasil (e para a Argentina), apenas não pretendeu ser impositivo demais com esses países, que insistiram em praticar a estabilidade cambial. E a recomendação não foi feita apenas por economistas não-neoliberais: posso apontar pelo menos meia dúzia de economistas liberais, dentro e fora do Brasil, que criticaram a política cambial e recomendaram desvalorização.
Que um economista pouco conhecido por sua obra teórica (alguma para ser citada?) diga que FMI e OMC carecem de legitimidade, não confere legitimidade a esse tipo de afirmação: ela é tão válida como a afirmação contrária, a menos que venha sustentada em argumentos sólidos e provas empíricas. O FMI tem hoje 189 membros e a OMC 148, com mais entrantes a cada vez. Isso por acaso faz delas entidades pouco legitimas? 
O economista Bello não quer a prosperidade da classe capitalista? Talvez ele devesse indicar uma classe socialista como alternativa? Ou ele está pensando nos simples cidadãos das economias capitalistas? Isso os converte em anti-capitalistas?
Belas palavras: "a crise asiática teria minado a coesão do paradigma neoclássico na economia, com intelectuais chaves passando a criticá-lo publicamente". Sim, e a partir daí? O economista Bello pretende que os paises asiáticos tenham passado a adotar um paradigma oposto e alternativo? Qual seria ele?

Por fim, apontar as fragilidades das reservas brasileiras, como o faz Paulo Leme, aparece como algo duvidoso, a ser confirmado na prática? Quanto à preservação das políticas econômicas predominantes, trata-se de uma inferência razoável a ser feita, a menos que se aponte alternativa melhor, o que me parece não foi feito na matéria em questão. 
O que me parece frágil é a simples classificação como neoliberais de dois tecnocratas típicos do Estado (Levy e Giambiagi) sem oferecer uma argumentação mais consistente para contradizer suas afirmações, que se dirigem não a rótulos, ou slogans, mas a situações concretas: fragilidade das contas publicas e do balanço de pagamentos.

Como afirmado ao início, o governo pode escapar aos constrangimentos de um acordo com o Fundo, simplesmente não fazendo. Se escolher fazer, foi porque chegou à conclusão de que seria melhor, não com base em apreciações subjetivas de duvidosa qualidade política, mas com base em uma análise objetiva da situação econômica. Os governos em geral, diferentemente de economistas acadêmicos, são muito pouco, ou nada, ideológicos, e se guiam mais pelo senso pratico...

Quanto ao risco "ético-moral", ele se prende a uma situação muito concreta: se o governo pagou “x” de juros, foi porque havia “y” de dívidas, do contrário estaria sendo ingênuo ou inconseqüente. Mas, se o autor da matéria tem uma solução melhor para a situação da divida pública, esta sendo muito ingênuo em não expô-la, para que possa ser debatida ou até adotada pelo governo. O que fica parecendo inconseqüência é criticar sem propor uma solução alternativa.
Estas são as minhas observações objetivas sobre a matéria em questão.  

Paulo Roberto de Almeida



quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil - exchange Samuel Pinheiro Guimaraes (2002)

Mais de um ano antes das eleições de 2002, o então diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, ou já depois de ingloriosamente defenestrado do IPRI, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, costumava me remeter seus artigos para Carta Maior, pedindo comentários. Como nunca fui de desprezar a produção intelectual de amigos, sempre me esforcei para apresentar minhas observações críticas aos seus textos. O que vai abaixo é um exemplo, entre vários outros, de exchange a propósito de questões relevantes de políticas econômicas e de política externa do Brasil.
Talvez ele seja um, entre vários outros, que me colocaram na mira do futuro SG-MRE do governo Lula, a partir de janeiro de 2003, quando fui vetado pela primeira vez para exercer um cargo na Secretaria de Estado (haveria outros vetos, aliás durante os 13,5 anos do regime lulopetista).
Transcrevo primeiro o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, depois os meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 agosto 2018

A Argentina, o Brasil e o futuro do Mercosul 
Artigo para o site Carta Maior
www.agenciacartamaior.com.br <http://www.agenciacartamaior.com.br
Samuel Pinheiro Guimarães 
11 de janeiro de 2002.

1.         A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já libertou a Argentina de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade para ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos. É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos em que se tornou.

2.         A crise, que antes do acelerar da crise argentina, já atingia a Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas nos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intrazonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e as consequências inibidoras dos atentados de setembro. 

3.         Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul levara à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.

4.         Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível atingir abandonando a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando a ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul. 

5.         As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado, algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.

6.         A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias serem, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.

7.         A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns ou a criação de uma moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.

8.         As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são mera decorrência e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agroexportadoras.

9.         A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um polo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da ALCA faria malograr esta oportunidade. Com a ALCA, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte americano e os Estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.

10.       A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas: 

a) a Argentina, em situação de moratória, não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo; 
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o Governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá; 
d) o Governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o Governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc.);
f) esta política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai).
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da ALCA, pois a ALCA destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.

11.       Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o Governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim a de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração econômica e política. Este projeto deve ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada. A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completariam o quadro econômico do projeto. Na esfera política, a oportunidade é única para estabelecer as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleça a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um polo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abra seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas Grandes Potências, como é a ALCA. A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.

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Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil
Comentários a texto de Samuel Pinheiro Guimarães

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 8 fevereiro 2002

-----Original Message-----
From: Paulo Roberto de Almeida 
Sent: Friday, February 08, 2002 16:30
To: 'samuelpgn@uol.com.br'
Cc: 'palmeida@unb.br'
Subject: Argentina, Brasil e futuro do Mercosul

            Meu caro Samuel,

            Tenho por você a maior admiração e apreço, intelectualmente, moralmente, como cidadão, como diplomata, como pessoa humana. O que não quer dizer que devamos concordar em tudo. Mercosul é um terreno de minha predileção, no qual coincidimos talvez em 90 p/c das recomendações, mas persistem algumas divergências que talvez sejam mais táticas do que estratégicas. Vamos portanto ao seu texto que requereu toda a minha atenção.
            Comento topicamente, parágrafo por paragrafo, que já estão numerados, e depois venho ao geral.
1. Concordo em que a crise permitira a Argentina se desvencilhar da camisa de forca da lei de conversibilidade, mas não acredito ser realista esse preconizado distanciamento dos EUA e do FMI: eles simplesmente não podem se permitir tal independência, pois não têm os meios e são e continuarão totalmente dependentes dos aportes financeiros de Washington nos próximos meses e anos. Sua linguagem é aqui muito dura, mas creio que você tem atualmente a liberdade para empregar palavras fortes (pró-cônsules). Não creio que haverá alinhamento incondicional, mas a dependência, isso sim, continuará. Portanto, minha única observação seria essa. Não seria o caso de agregar uma frase do tipo?: "ainda que tal independência fosse recomendável, não seria realista esperar o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos nos próximos meses e mesmo anos, em virtude da situação de extrema fragilidade financeira e de dependência efetiva em relação ao dinheiro de Washington."
            
2. Eu diria que a crise  antes de Cavallo não era propriamente do Mercosul, mas dos países membros: Brasil, Argentina tinham suas próprias crises. Ela so se tornou do Mercosul quando Cavallo começou a adotar medidas frontalmente contrarias ao espirito da UA. Concordo que havia muita fricção anteriormente, e mesmo desrespeito as normas, mas nada de muito grave. Cavallo representou uma contestação conceitual, filosófica aos fundamentos essenciais do Mercosul. Fiz esse tipo de analise num artiguinho inédito que não publiquei, pois não deixaram (quando o Lampreia aderiu às teses “cavallinas” em setembro passado). Depois incorporei num texto maior que mando em anexo.

3. Eu não acredito que a crise, dos países membros ou do Mercosul, tenha ressuscitado as rivalidades históricas de toda ordem como você diz. Isso simplesmente não existe. Não podemos tomar declarações esparsas de homens políticos como demonstrativo de um revivalde eras passadas. Por outro lado, falar em "organizar politicamente a periferia sul-americana" me revela uma atitude semi-imperial que condenamos no Big Brother e não acredito que ela beneficie o Brasil no subcontinente. Podemos até ser líderes, mas não deveríamos proclamar isso. Organizar periferia soa como arrogância imperial...

4. Abandonar a visão neoliberal pode até ser (ainda que eu ache que o neoliberalismo é mais proclamado do que praticado; eu fiz um texto sobre isso que mando agora), mas achar que a "ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno" vai resolver os problemas econômicos imediatos, isso para mim é muito otimismo. Um projeto de longo prazo ou pelo menos de efeitos delongados não pode servir de paliativo para os problemas do presente.

5. Concordo e se trata de simples constatação, mas o parágrafo não traz propostas concretas, ou seja não é substantivo, meramente indicativo de algo que não sabemos o que é.

6. Concordo totalmente, mas creio que a supranacionalidade nem está em causa no momento, entre os países membros, sendo um punhado de juristas acadêmicos que a defendem. O Uruguai e Paraguai defendem o tribunal permanente e eu concordaria com a ideia de uma corte arbitral "permanente" (com árbitros à disposição, por períodos rotativos de 3 a 4 anos) para julgar rapidamente os casos. Seria um pequeno grão de "supranacionalidade" numa estrutura que para mim deve permanecer intergovernamental pelo futuro previsível.

7. Concordo também, e nenhum dirigente realista está advogando a moeda única agora, mas creio que os similares de critérios de Maastricht (que já existem parcialmente, desde Florianópolis) podem começar a ser monitorados em escala nacional para a futura coordenação quadrilateral. Mas não morro pela União Monetária do Mercosul...

8. A constatação econômica é realista, mas não concordo em que uma forte economia agroexportadora seja uma utopia retrograda. A agricultura hoje é uma grande indústria, mais, ela combina serviços, software, biotecnologia, marketing, financiamento, tudo, e muito mais que fazem dela uma atividade essencialmente moderna e avançada. Concordo em que a elasticidade-renda (menor de um) não recomenda uma estratégia exportadora baseada em agro como NORMA GERAL, mas o Brasil tem chances únicas de aumentar rapidamente exportações nessa área substituindo outros fornecedores e deslocando competidores. Isso podemos fazer. Sou consciente do protecionismo, mas isso não pode demover-nos de explorar nossas vantagens comparativas que neste caso são totalmente dinâmicas....

9. A superação da crise argentina depende quase que inteiramente deles, não do Mercosul. Podemos ajudar, e eu seria favorável a que o Brasil estendesse uma linha de credito de 1 bi para mover os negócios novamente. Mas o essencial tem de ser feito por eles. Será duro, muito duro, mas o papel do Mercosul tem de ser outro, situado mais no terreno politico-diplomático (e estratégico-hemisférico) do que no campo econômico financeiro.

10. Concordo com algumas ideias, mas sou cético em relação à recomendação f), de subsidio as exportações e de elevação de tarifas (de quem, dos países membros, como hoje, ou da TEC?). Não sei se eles insistirão, como fazia Cavallo, com h), isto é, transformar o Mercosul de UA em ZLC. Eles precisam do Brasil e farão o que nós queremos e portanto não posso concordar também com o que vem em 11.

11. Discordo radicalmente, fundamentalmente da ideia de abandonar a UA, e isso não por motivos estritamente econômicos, mas por razoes de processo diplomático/negociatório nos próximos anos. Sou favorável a manter a UA pelo menos ate 2005. Sou favorável a iniciar desde já uma reflexão com os argentinos para mudar o Mercosul, quem sabe até permitindo a saída da UA e a volta a uma ZLC, a partir de uma conferencia diplomática no final de 2004 (que nós coordenaríamos), como está indicado (mas ainda não desenvolvido) no meu trabalho 811 que segue anexo. Nos simplesmente não podemos ficar sem a UA agora, pois isto significaria uma ordem dispersa no Mercosul e a fraqueza frente ao Império (além de impossibilitar negociações com a UE). CONCORDO TOTALMENTE em que a gente abra o nosso mercado sem reciprocidade (o que a UA do Mercosul atrapalha um pouco reconheço), pois esta é a garantia da Alcsa, que precisaríamos ter (mas sou cético porque a CAN e' uma bagunça monumental, e vão ceder ao Império no primeiro aceno).
            Formalmente esse paragrafo esta muito longo e deveria ser dividido nas questões financeiras, comerciais, de politicas setoriais, diplomacia etc.

            Meu caro Samuel, tenho algumas ideias a respeito do Mercosul, mas seria difícil expô-las agora. Ainda não coloquei no papel essas ideias, inclusive porque não me deixariam publicar. Mas gostaria de debater com você. 
            Estou indo ao Brasil em março, segundo o roteiro anexo. Podemos sentar e conversar?
            Eu até coloquei, tentativamente, uma palestra na FGV, Palestra:
"Alca, OMC e negociações comerciais: desafios para o Brasil" ??, mas estava justamente querendo falar contigo. 
            Abração,
Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor
Brazilian Embassy
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