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segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Carlos Henrique Cardim toma posse no IHG-DF, 27/11/2019

Na próxima quarta-feira terei o prazer de recepcionar meu amigo, colega, grande intelectual, o embaixador Carlos Henrique Cardim, como mais novo membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.
Ele tem como patrono um "diplomata a cavalo", Duarte da Ponte Ribeiro, um dos promotores do uti possidetis, defendido por Alexandre de Gusmão no tratado de Madri (1750), como base para as negociações brasileiras de fronteiras no século XIX.

Estou escrevendo minha alocução de acolhimento.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 25/11/209

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Maquiavel e companhia _ Carlos Henrique Cardim (IHG-DF, 7/19, 19h30)

Aproveito a informação renovada sobre a palestra do professor Carlos Henrique Cardim esta noite, sobre Maquiavel:

para renovar uma chamada antiga de livro meu sobre o ilustre florentino:

O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos (2013; Kindle edition)
O Príncipe, revisitado: Maquiavel para os contemporâneos, 2013
Paulo Roberto  de Almeida









 Kindle edition: http://www.amazon.com/dp/B00F2AC146 

Sumário:
Prefácio 
Dedicatória 
1. Dos regimes políticos: os democráticos e os outros 
2. Das velhas oligarquias e do estado de direito 
3. Da variedade de estados capitalistas 
4. Do governo pelos homens e do governo pelas leis 
5. Da transição política nos regimes democráticos 
6. Da conquista do poder: a liderança política 
7. Da eficácia do comando e da manutenção do poder 
8. Da ilegitimidade política: da demagogia e da força 
9. Das repúblicas democráticas e sua base econômica 
10. Das forças armadas e das alianças militares 
11. Do estado laico e da força das religiões 
12. Da profissionalização das forças militares 
13. Dos gastos com defesa e da soberania política 
14. Da preparação estratégica do líder político 
15. Do exercício da autoridade 
16. Da administração econômica da prosperidade 
17. Do uso da força em política 
18. Da mentira e da sinceridade em política 
19. Da dissimulação como forma de arte 
20. Da dissuasão e da defesa do estado 
21. Da construção da imagem: verdade e propaganda 
22. Dos ministros e secretários de estado 
23. Dos aduladores e dos verdadeiros conselheiros 
24. Da arte pouco nobre de arruinar um estado 
25. Do acaso e da necessidade em política 
26. Da defesa do estado contra os novos bárbaros 
Carta a Niccolò Machiavelli 
Apêndice: O que nos separa de Maquiavel? 
Recomendações de leituras 
Outros livros de Paulo Roberto de Almeida 

Se, por alguma fortuna histórica, Maquiavel retornasse, hoje, ao nosso convívio, com as suas virtudes de pensador prático, quase meio milênio depois de redigida sua obra mais famosa, como reescreveria ele o seu manual hiperrealista de governança política? 
Seriam os Estados modernos muito diversos dos principados do final da Idade Média? Provavelmente não; certo já não se manda mais apunhalar os inimigos políticos na missa dominical, mas traições e golpes escusos ainda fazem parte do cardápio dos candidatos a condottieri. 
Este Maquiavel revisitado, voltado para a política contemporânea, dialoga com o genial pensador florentino, segue seus passos naquelas recomendações que continuam aparentemente válidas para a política atual, mas não hesita em oferecer novas respostas para velhos problemas de administração dos homens. 
Se na época do diplomata florentino, a tarefa básica do príncipe era a construção de um Estado moderno, a missão principal dos estadistas contemporâneos consiste em defender os direitos dos cidadãos, justamente contra a intrusão e a prepotência dos Estados.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Tobias Barreto insurreto: discurso de posse no IHG-DF (14/08/2019)


Tobias Barreto: um intelectual em sua própria escola de inteligência

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: ensaio sobre Tobias Barreto; finalidade: texto para posse no IHG-DF]


Tobias Barreto foi uma personalidade múltipla: latinista, poeta, jornalista, jurista, orador, político, filósofo, sociólogo, darwinista, feminista, panfletário, abolicionista, polemista, adepto do culturalismo, anticlerical, um dos raros germanistas brasileiros e uma capacidade rara de combinar todas essas qualidades numa inteligência aberta aos mais variados conhecimentos disponíveis em sua época, tudo isso num período finalmente bastante curto, praticamente as últimas duas décadas e meia do regime monárquico, em que pese sua precocidade como poeta e jornalista. Impossível cingir a enormidade de sua produção num ensaio breve como este que se oferece, daí a seleção de alguns traços apenas de sua contribuição intelectual, a que mais apresenta persistência e relevância na perspectiva diacrônica que é a nossa, aos 180 anos de seu nascimento, em 1839, e aos 130 anos de seu falecimento, em 1889.
Na apresentação de um de seus biógrafos, um jornalista sergipano da primeira metade do século XX, em obra publicada no exato centenário de seu nascimento, pode-se ler uma síntese magistral do que ele representou para o pensamento brasileiro:
Tobias Barreto ocupa no mapa geral da cultura brasileira um lugar do mais alto relevo. A sua obra é uma espécie de linha divisória entre duas épocas. A sua vida, com as circunstâncias em que ela decorreu, apenas em parte explica o seu pensamento. Este, realmente, muito raro descia até aquela. Enquanto a vida estava mergulhada num ambiente de miséria, de incompreensão, de necessidade, o pensamento estava entregue às cogitações mais altas do estudo, divulgação e análise do que o espírito humano vinha realizando. Foi um homem que, na falta de ambiente em que pudesse desenvolver-se, construiu um ambiente particular onde lhe fosse possível respirar à vontade. [Omer Mont’Alegre, Tobias Barreto. Rio de Janeiro: Vecchi Editor, 1939]

Sua principal característica intelectual é precisamente esta: a de ter sido único, absolutamente solitário no panorama da inteligência nacional, a ponto de podermos dizer que ele era a sua própria escola de pensamento, jamais igualada posteriormente. Nasceu na monarquia, ao final das regências, converteu-se em republicano, mas faleceu antes da derrocada do Segundo Reinado, em 26 de junho de 1889, e a despeito de ser originário do Sergipe, onde se formou precocemente em Latim e exerceu suas primeiras armas na poesia e no jornalismo em sua terra natal, fez-se famoso no Recife, onde se exerceu como professor, depois de uma vida atribulada, sempre em meio a dificuldades materiais. Como germanista, nos planos da filosofia, da sociologia, do direito, foi um dos poucos no Brasil, talvez único no Nordeste. Mas, como ressaltou Arnaldo Godoy, autor da melhor biografia intelectual sobre o “insurreto sergipano”:

 “Tobias era um germanista que jamais fora à Alemanha, nem mesmo saíra do Nordeste...”. Quando residente em Escada, cidade próxima do Recife, fundou um jornal em alemão, “do qual era provavelmente o único leitor”. [Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Tobias Barreto: uma biografia intelectual do insurreto sergipano e sua biblioteca com livros alemães no Brasil do século XIX. Curitiba: Juruá, 2018, p. 30 e 53; nessa magnífica obra, um capítulo de 50 páginas é inteiramente dedicado a examinar os autores alemães constantes da biblioteca de Tobias Barreto ou referidos em sua atividade intelectual.]
Como mulato e abolicionista não foi o único, nem o maior, dessa pequena tribo de lutadores pela emancipação dos escravos, mas foi, provavelmente, o mais agitado dos agitadores literários e políticos numa conjuntura de agitação social no Brasil, um intelectual dotado de grande densidade intelectual quando comparado a outros homens de letras e de pensamento no Brasil do Segundo Império, bem mais dominado pelo francesismo literário e político da belle époque. Numa época em que o catolicismo romano era a religião oficial do Estado, não hesita em entrar em polêmica contra a Igreja e contra os dogmas religiosos do catolicismo, não uma única vez, mas várias. Abolicionista, democrata, libertário, republicano, contra o patrimonialismo tradicional da sociedade escravocrata – que aliás perdurou na República –, Tobias Barreto pode ser considerado como situado na vanguarda do pensamento brasileiro, e não apenas ao final do regime monárquico, mas exercendo influência em direção ao futuro da República, que ele todavia não chegou a conhecer.
É propriamente incrível a intensidade, a variedade, a profundidade de sua produção intelectual em pouco mais de três décadas de vida ativa, o que se reflete nos dez volumes de suas “obras completas”, editadas sob a responsabilidade do governo do Sergipe, 1925-26, reeditados em sete volumes meio século mais tarde, ademais dos muitos volumes esparsos, organizados por admiradores tão distinguidos quanto Silvio Romero, Graça Aranha, Paulo Mercadante e Antonio Paim. Em sua vida, apenas uma dúzia de seus escritos, dos quais dois em alemão, vieram a público, mas as obras póstumas e edições posteriores cobrem uma biblioteca inteira, numa volumetria quase tão importante quanto sua famosa “biblioteca alemã”, objeto de um artigo de Vamireh Chacon, na Revista Acadêmica, da Faculdade de Direito do Recife (1971), da qual Tobias Barreto foi professor, mas apenas por pouco mais de sete anos.
Clovis Beviláqua, o redator final do Código Civil (que levava vários anos em preparação) e o mais longevo consultor jurídico do Itamaraty, escreveu sobre o papel de Tobias Barreto como renovador dos estudos jurídicos no Brasil: “Em Filosofia do Direito, Tobias Barreto adotara a escola de [Rudolf von] Jhering e Hermann Post, que refletiam no Direito, a teoria genealógica de [Charles] Darwin e [Ernest] Haeckel. Não era, porém, espírito que se limitasse a reproduzir as lições dos mestres. Filiado ao monismo, sabia extrair desse sistema filosófico a interpretação exata do fenômeno jurídico.” Beviláqua considera que a campanha que Barreto dirigiu contra o Direito Natural, em seus Estudos de Direito, e em Questões Vigentes (Obras Completas, vol. IX, 1926), constitui uma das partes mãos brilhantes de sua obra; transcreve ele: “É preciso bater cem vezes e cem vezes repetir: o Direito não é filho do céu, é, simplesmente, um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade.” [Clovis Beviláqua, “Tobias Barreto e a renovação dos estudos jurídicos no país”, in: Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro, Tobias Barreto (1839-1889): bibliografia e estudos críticos. Salvador, 1990, p. 38-44; cf. pp. 39 e 40] Barreto lia e escrevia em alemão, além de dominar várias outras línguas, entre elas inglês, francês, italiano, russo, grego e, obviamente, latim.
Antonio Paim, no mesmo volume de estudos críticos, apresenta a trajetória filosófica de Tobias Barreto, do “surto de ideias novas” do final dos anos 1860, que buscava argumentos em Comte, Renan e Taine, chega ao culturalismo dos anos finais, passando pela recusa do comtismo e da “religião da humanidade” e pela fase monista (haeckeliana) da constituição da Escola do Recife, que evolui para o neokantismo. O germanismo de Tobias Barreto constitui o objeto de um estudo de Paulo Mercadante, que ele atribui ao seu naturalismo científico e não a qualquer subserviência acrítica aos grandes filósofos e juristas alemães de sua época. Este pensador, autor de um famoso estudo sobre a consciência conservadora no Brasil, coordenou com Antonio Paim dois volumes de estudos de filosofia de Tobias Barreto, publicados pelo Instituto Nacional do Livro, do MEC, em 1966, reeditados em 1977. Mercadante ainda se debruçou sobre uma reavaliação de Barreto na cultura brasileira (1972) e Paim a ele dedicou vários de seus escritos, tanto em seu livro de História das Ideias Filosóficas no Brasil (1967), quanto um volume inteiro sobre A filosofia da Escola do Recife (1966).
Arnaldo Godoy enfatiza, em seu capítulo sobre a biblioteca alemã de Tobias Barreto, e baseado no volume de Estudos de Direito, de suas Obras Completas, como ele chegou ao darwinismo pela via dos juristas alemães que ele mais admirava:
Tobias citou recorrentemente Ernest Haeckel, especialmente quanto ao tema da dificuldade de se construir uma ciência social de natureza substancialmente descritiva. Haeckel era admirador de Charles Darwin (1809-1882), que Tobias também assimilou ao estudar Rudolf von Jhering (1818-1892). Tobias foi um veiculador do darwinismo social no Brasil, resultado de sua admiração intelectual perene que o pensador sergipano tinha para com autores como Haeckel e Jhering, introdutores de Darwin nas ciências sociais aplicadas. [Godoy, op. cit., pp. 204-5]

A vida concreta de Tobias Barreto não foi das mais fáceis, para não dizer que foi das mais dificultosas. Sylvio Romero, num depoimento sobre a sua vida, conta que, quando ele morou pela primeira vez no Recife, abriu uma escola secundária para ter “meios de subsistência”, lecionando ao mesmo tempo “francês, latim, história, retórica, filosofia e matemáticas elementares.” Numa segunda fase, já admitido como professor na Faculdade de Direito, “regeu as cadeiras de filosofia do direito, direito público, direito criminal, economia política e prática do processo.” [“Tobias Barreto: breve notícia de sua vida”, na mesma obra de bibliografia e estudos críticos, pp. 86 e 88] Esse volume se conclui pela homenagem que lhe presta Graça Aranha, num ensaio intitulado “O Milagre de Tobias”, sobre o concurso feito para a Faculdade, que vale transcrever pela emoção daquele momento tão bem captada por Aranha:
Abrira-se o concurso para professor substituto da Faculdade. (...) Esperávamos, inconscientes, a coisa nova e redentora. (...) Era dos primeiros a chegar ao vasto salão da Faculdade e tomava posição junto à grade, que separava a Congregação da multidão dos estudantes. Imediatamente Tobias Barreto se tornou ou nosso favorito. Para estimular essa predileção havia o apoio dos estudantes baianos ao candidato Freitas, baiano e cunhado do lente Seabra. Tobias, mulato desengonçado, entrava sob o delírio das ovações. Era para ele toda a admiração da assistência, mesmo a da emperrada Congregação. O mulato feio, desgracioso, transformava-se na arguição e nos debates do concurso. Os seus olhos flamejavam, da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo. Profundo, sugestivo. Abria uma nova época na inteligência brasileira e nós recolhíamos a nova semente, sem saber como ela frutificaria em nossos espíritos, mas seguros que por ela nos transformávamos. Esses debates incomparáveis eram pontuados pelas contínuas ovações que fazíamos ao grande revelador. Nada continha o nosso entusiasmo. A Congregação, humilhada em seu espírito reacionário, curvava-se ao ardor da mocidade impetuosa. Prosseguíamos impávidos, certos de que, conduzidos por Tobias Barreto, estávamos emancipando a mentalidade brasileira, afundada na teologia, no direito natural, em todos os abismos do conservantismo. Para mim, era tudo isto delírio. (...) Quando terminou, recebeu a mais grandiosa manifestação dos estudantes, a cujo entusiasmo aderiram os lentes unânimes. (...) À noite, eu estava em sua casa... Nunca mais me separei intelectualmente de Tobias Barreto. (...)
As nossas afinidades eram principalmente nos problemas sociais, abolição e república. A esses movimentos fui seguramente levado mais pelo sentimento do que pelas ideias. (...)
Foi o milagre de Tobias Barreto em mim. O milagre da libertação [idem, pp. 96 e 98]

O concurso de teses compreendia praticamente todo um amplo espectro de disciplinas que eram ensinadas nas duas escolas de direito do Brasil, a do Recife e a de São Paulo, grade disciplinar que por sua vez refletia, em grande medida, as disciplinas inscritas na Universidade de Coimbra, segundo informa Godoy com base num pesquisador da área. [Godoy, Tobias, op. cit., p. 85] Tobias teria também falado sobre o direito autoral, tema até então inédito no Brasil, se esse assunto tivesse sido arguido na ocasião, embora possa ser argumentado que essa categoria já era conhecido no Brasil e no exterior sob o nome de “propriedade literária”. Omer Mont’Alegre informa em sua biografia sobre a variedade de disciplinas que entraram na lista das arguições a Tobias, então com 42 anos:
Foi grande o número de teses que Tobias apresentou para participar desse concurso. Temas de Direito Natural, Direito Romano, Direito Público, Direito Constitucional, Direito das Gentes [Internacional], Diplomacia, Direito Eclesiástico, Direito Civil, Direito Criminal, Direito Comercial, Direito Marítimo, Hermenêutica Jurídica, Processo Civil, Processo Criminal, Economia Política, Direito Administrativo. [op. cit., p. 249]

Algum tempo antes desse triunfo na capital de Pernambuco, Tobias Barreto tivera de se refugiar de uma primeira incursão frustrada em Recife, em Escada, no seu Sergipe natal. Lá decidiu criar, em 1877, um Clube de Cultura Popular, pronunciando ali o seu célebre Discurso em Mangas de Camisa, publicado dois anos depois em um opúsculo, no qual divulga o programa do clube, reproduzido pouco depois num jornal do Recife. Hermes Lima, em sua apresentação a uma reedição de 1970 desse famoso discurso, declara de pronto que se trata de “obra prima da sociologia brasileira”, e especula que “se toda a obra de Tobias Barreto houvesse desaparecido e dela só houvesse restado o Discurso, por ele se poderia levantar o perfil intelectual do chefe da Escola do Recife.” [Tobias Barreto. Um Discurso em Mangas de Camisa. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1970, p. 13] Hermes Lima então destaca um dos trechos mais claramente sociológicos desse opúsculo:
Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na Corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos costumes e do servilismo. [p. 13]

Tal atitude, praticamente revolucionária naquele ambiente canhestramente conservador, logo levanta contra ele problemas e animosidades que são destacados na biografia de Omer Mont’Alegre: “a sua indisposição com o meio vinha do choque com a aristocracia açucareira; tornou-se logo em advogado dos humildes contra o poderia dos ricos; e nos seus jornais não poupava a pele dos que lhe caiam em desagrado. Tinha bastante razões, pois, para se indispor com o meio...” [op. cit., p. 191] Continua esse biógrafo: “Examina [Barreto] a situação particular do município, dividido em classes, em castas, cheio de privilégios; e prevê: o município, a província, o país inteiro, anseia a vinda de qualquer grande acontecimento: ‘não sei qual seja, mas ele há de vir’.” [p. 192]
Nesse mesmo discurso feito no Clube Popular Escadense, depois de tecer considerações sobre a célebre trilogia da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, Barreto revela uma percepção já meridianamente clara sobre a tensão natural entre os dois primeiros conceitos:
A liberdade entregue a si mesma, à sua própria ação, produz naturalmente a desigualdade, da mesma forma que a igualdade, tomada como princípio prático, naturalmente produz a escravidão. (...) A igualdade é aquele estado da vida pública, no qual não se confere ao indivíduo predicado algum particular, como não se lhe confere particular encargo. Igual dependência de todos, ou igual sujeição de todos. O mais alto grau imaginável da igualdade – o comunismo, – porque ele pressupõe a opressão de todas as inclinações naturais, é também o mais alto grau da servidão. A realização da liberdade satisfaz ao mais nobre impulso do coração e da consciência humana; a realização da igualdade só pode satisfazer ao mais baixo dos sentimentos: a inveja. Que uma e outra não se harmonizam, que são exclusivas e repugnantes entre si, prova-o de sobra a revolução francesa, que tendo começado em nome da liberdade, degenerou no fanatismo da igualdade, e reduziu-se ao absurdo nas mãos de um déspota. [Tobias Barreto. Um Discurso em Mangas de Camisa, op. cit., pp. 22-23]

O Partido Liberal inclui o seu nome, em 1878, na composição da chapa para deputados estaduais, e ele resulta eleito; o Partido Conservador, após longo domínio, havia sido apeado do poder, e com isso a verificação dos poderes também mudara de lado. Mas ele foi um liberal contra o partido, pois lutava pelos direitos da mulher, pela reforma das instituições. Um de seus artigos, no jornal que ele mesmo fundou, chamado Contra a Hipocrisia, revela-se especialmente contundente naquele contexto:
Eu desejo a abolição de todas as instituições caducas, que são outras tantas afrontas à dignidade do homem; desejo a extinção de todas as excrescências, de todos os órgãos rudimentares e deturpantes da sociedade humana. Neste caso, está sem dúvida a escravidão. Porém, entendamo-nos, neste caso também está a monarquia. [Mont’Alegre, p. 205]

Num dos discursos na Assembleia de Pernambuco, em 22 de março de 1879, Tobias luta pela educação das mulheres, pregando a sua admissão nas faculdades de medicina, a exemplo do que já ocorria em determinados países:
É de esperar, e eu espero da assembleia, eu comece desta vez a abrir a porta da ciência ao belo sexo de Pernambuco, que muito necessita de instrução: e talvez seja esta mesma a mais urgente necessidade da província. [“Educação da Mulher”, in: Tobias Barreto, Estudos de Sociologia. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1962; p. 87]

Um dos projetos apresentados em sua rápida carreira parlamentar visava justamente a criação no Recife de um estabelecimento de ensino dedicado especialmente ao sexo feminino. Segundo ressalta Godoy, em relação a esse debate:
Em passo interessante de nossa história parlamentar, Tobias adiantou uma reflexão comparativa entre homens e mulheres, concluindo que mulheres deteriam mais disposições naturais do que os homens para a dedicação aos estudos. Afirmava que não negava que nas mulheres havia predomínio da sentimentalidade, mas justificava a assertiva justamente porque, alegava, a educação feminina era essencialmente uma educação sentimental. Por isso, era o argumento de Tobias, a sentimentalidade feminina era o resultado da educação, e não uma predisposição natural. [Godoy, Tobias Barreto, op. cit., p. 65]

Não surpreende que, nas eleições seguintes, o Partido Liberal o tenha excluído da chapa; não voltou mais à política. O mesmo Arnaldo Godoy discute amplamente as posturas políticas de Tobias Barreto, assim como seu suposto republicanismo:
Tobias enfrentava os chefes políticos de Recife que impunham listas fechadas a todo o interior. Os caciques da política pernambucana deixavam poucas opções para os eleitores. No caso de Escada, domicílio eleitoral de Tobias, os nomes já vinham prontos da capital. Havia uma disciplina partidária que incomodava Tobias, que defendia maior discricionariedade do eleitorado, no sentido de escolher efetivamente os políticos com os quais queria se comprometer. Ainda que essa forma autoritária de fazer política não fosse exclusiva de Escada, era mesmo nacional. Criticava os chefes do partido, as imposições que se faziam aos eleitores, ainda que sua ascensão se tenha dado exatamente dentro dessa moldura, então denunciada.
Curiosamente, não discutia a troca de regime. Definitivamente, Tobias não era um republicano. [idem, pp. 69-70]

Mais adiante, na sua magnífica biografia intelectual daquele que foi chamado de “feiticeiro da tribo” – segundo a designação de Paulo Mercadante –, desta vez apoiado em biografia elaborada pelo jurista Hermes Lima, quando do centenário do nascimento de Tobias Barreto, Godoy retoma sua postura em relação aos dois grandes problemas do final do Império, a abolição e o regime republicano:
Lima... tocou [em seu livro Tobias Barreto: a época e o homem] no delicado assunto relativo às atitudes de Tobias para com a escravidão; lembrou que Tobias possuía escravos e que deliberadamente ignorou o problema social da escravidão. O filogermanismo de Tobias de igual modo chamou a atenção de Lima... (...) A força e a disciplina da cultura alemã teriam reforçado uma hostilidade que Tobias nutria para com os dogmas liberais. Tobias viveu os anos mais intensos da propaganda republicana; no entanto, também registra Hermes Lima, ‘(...) Tobias nada escreveu por onde se pudesse inferir, de sua parte, sequer uma vaga simpatia republicana.’
Comparado com Rui Barbosa, por exemplo, que era abolicionista e republicano, Tobias revela-se como absolutamente apático para com os dois grandes problemas de seu tempo, em relação aos quais seu filogermanismo não ofereceu nenhuma munição para expressar seus pontos de vista, se é que os tinha nesses delicados temas, ainda que, prossegue Lima, ‘nem a monarquia lhe pareceu signa de defesa, nem a república de adesão’. [Godoy, op. cit., pp. 183-84]

Arnaldo Godoy termina seu apelo à biografia de Tobias por Hermes Lima sintetizando os traços mais característicos da personalidade irreverente do germanista nordestino:
O Tobias da obra de Hermes Lima é cético, irreverente, diferente. De acordo com essa leitura, Tobias permanentemente rompia com as concepções dominantes, ‘insubmisso aos moldes vigentes, constituindo, por isso mesmo, um desaforo, quase um escândalo’. O desaforo e o escândalo são, de fato, características recorrentes na trajetória de Tobias. [idem, p. 185]

As críticas de Tobias Barreto à monarquia eram relativamente bem conhecidas dos contemporâneos, assim como suas diatribes contra representantes da Igreja católica, como refletidas num discurso de paraninfo, já como professor no Recife. Arnaldo Godoy, em sua biografia intelectual completíssima, sintetiza uma vez mais o lado crítico de Tobias Barreto:
Esse discurso acentuava as características iconoclastas de seu pensamento. Tobias era um destruidor de mitos e verdades pré-estabelecidas. Chama a atenção em Tobias a atitude iconoclasta e crítica que manifestou para com algumas instituições, a exemplo do poder moderador, bem como para com ilustres personalidades do Império, a exemplo de José de Alencar, Joaquim Nabuco, Zacarias de Goes e Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Pimenta Bueno, Coelho Rodrigues, Tavares Bastos, aos ministros de D. Pedro II em geral, assim como ao próprio Imperador. [idem, p. 124]

Sua postura, durante todo o seu percurso intelectual, quer na política, quer na vida acadêmica, sempre foi invariavelmente crítica, seja em relação ao ambiente em que vivia, seja em relação aos próprios grandes mestres que analisava em suas obras. Como sublinha Godoy, mesmo antes de ingressar na Faculdade de Direito do Recife, “Tobias dividia as opiniões, provocando, ao mesmo tempo, uma crítica feroz e uma defesa apaixonada e radical” [idem, p. 75]. Invariavelmente, destoava do meio intelectual que lhe era dado contemplar. Por exemplo, na sua “Recordação de Kant”, incluída nas Questões Vigentes de Filosofia e de Direito – uma das poucas obras que publicou em vida, em 1888, ou seja, um ano antes de falecer –, começa por um argumento depreciativo sobre a pouca propensão de seus colegas pela reflexão filosófica:
Não há domínio algum da atividade intelectual, em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo, como no domínio filosófico.
É certo que todas as outras manifestações da nossa vida espiritual dão também testemunho de uma singular e incomparável fraqueza. Mas é sempre dar testemunho de alguma coisa. Um certificado de doença é em todo caso menos triste que um certificado de morte.
Assim, não temos poetas, nem artistas de merecimento; mas a poesia e as artes se cultivam entre nós. Não podemos lisonjear-nos de possuir um só jurista de estatura europeia, ...; porém ao menos é certo que o direito constitui uma das nossas mais constantes ocupações intelectuais.
Ciência, história, literatura – tudo isto é muito fútil; mas seria uma injustiça querer exprimir tudo isto por meio de uma fórmula absolutamente negativa. No fundo da crítica fica sempre algum resíduo, que ainda pode servir de fermento a mais sérias e mais dignas produções futuras.
Com a filosofia o caso é bem diverso. Se nas outras esferas do pensamento, somos uma espécie de antropoides literários, meio-homens e meio-macacos, sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade, – no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não ocupamos lugar algum, não temos direito a uma classificação. [Tobias Barreto, Obras Completas, IX, Questões Vigentes. Rio de Janeiro: Edição do Estado de Sergipe, 1926, pp. 245-6]

Em todo caso, sua crítica não se dirige apenas aos brasileiros e sua pouca aptidão para a reflexão filosófica. Numa longa nota de rodapé ao mesmo ensaio “Recordação de Kant”, Barreto acusa Auguste Comte de nunca ter lido Kant e de, ainda assim, “falando de oitiva”, ousar interpretar equivocadamente o autor da Crítica da Razão Pura (op. cit., pp. 253-54). Tobias Barreto possuía uma predisposição natural para a polêmicas, tanto é assim que um volume inteiro de suas obras completas, o segundo da série, de 426 páginas, tem justamente por título Polêmicas. Arnaldo Godoy menciona duas outras peculiaridades de Tobias Barreto, que seriam a “vaidade incontida e soberba intelectual ilimitada”. [Godoy, Tobias Barreto, op. cit., p. 26]
Sua trajetória de professor, brilhante e também sujeita a várias polêmicas, foi precocemente interrompida pela doença, aparentemente de “lesão cardíaca” [Jornal do Recife, 27/06/1889; apud Godoy, p. 154]; ele vem a morrer aos exatos cinquenta anos, deixando na miséria sua mulher e nove filhos. O governo de Sergipe, desejoso, ainda que tardiamente, de homenagear tão distinto filho – depois de transladar, em 1920, seus restos mortais do cemitério Santo Amaro, no Recife, para uma praça de Aracaju, que recebeu o seu nome –, tratou de mandar editar, em 1923, as obras completas de Tobias Barreto. Arnaldo Godoy é quem oferece, nas Considerações Finais de sua estupenda biografia de Tobias, uma excelente avaliação sintética sobre um dos personagens mais extraordinários do pensamento político brasileiro, na verdade da inteligência e da cultura brasileira do último século e meio:
Definido como um Rousseau às avessas por um de seus biógrafos, Tobias foi um pessimista moldado por intenso realismo, o que somente ocorre com aqueles que conhecem as vicissitudes da vida e que sabem que entre as canduras das promessas da metafísica e os acidentes da vida real há uma distância que, percorrida, nos imprime dolorosamente o verdadeiro sentido da existência. Essa tensão é permanente nas ambiguidades que Tobias viveu com a religião. Incrédulo, era ao mesmo tempo um estudioso das sutilezas teológicas, um oponente de padres obtusos, um benemérito de ordens religiosas, um atento e disciplinado leitor das Escrituras.
Foi, enfim, como ele mesmo percebeu, a serpente que deveria matar a serpente: a força foi sua condição de existência, o meio hostil sua razão de luta pela sobrevivência, a autoimagem o resultado de sua insurgência. [p. 256]

Em 1925, o jornal O País, do Rio de Janeiro, transcreveu em sua edição de 7 de julho de 1925, o rascunho das “Notas a lápis”, que Barreto havia rabiscado num caderno de 1872, posteriormente incluídas em edições diversas de suas obras, algumas delas dignas de reflexão ainda em nossos dias:
Parece que cada povo deve ter sua liberdade política, isto é, que cada um deve entendê-la a seu modo.
Qualquer obra deve conter, para ser apreciada, ou fatos novos, ou novamente descobertos, ou princípios novos ou novas observações sobre princípios já conhecidos; brilhando em todos esses pontos a verdade.
A Alemanha ensina a pensar e a França a escrever.
Se a igreja ainda luta com a ciência, é que esta não chegou a uma altura bastante para impor silencio à sua adversária.
Um povo que ama a liberdade, infalivelmente há de produzir de si mesmo a forma sob a qual ela se lhe torne familiar.
O desgosto da vida não é mais do que a incapacidade de criar um ideal.
Os escritores que não têm ideias próprias são como os que não têm capital e tomam emprestado a um para negociar com outros.
O Estado quer saber se os meninos aprendem – e por que, antes, não procura saber se eles comem?
A razão é tão incompetente para corrigir as ilusões do coração como os ouvidos para corrigir as ilusões do olfato.
Eu não sou bastante forte para fazer à minha imagem e semelhança a sociedade em que vivo; mas esta, por sua vez, não é também bastante forte para me levar em sua corrente. Daí uma eterna irredutibilidade entre nós.
Um dia virá em que a escola dar-nos-á mães e esposas republicanas e reanimará o vigor dos costumes sem os quais não pode existir um povo verdadeiramente grande. [“Notas a lápis”, in: Tobias Barreto, Estudos de Sociologia, op. cit.; pp. 283-86]

Finalmente, numa coleção de avulsos, retirados de uma preleção feita em 5 de julho de 1884, e coletados no volume X de suas Obras completas: Vários escritos, pode-se ler esta pérola sintética que certamente fará pensar mais de um diplomata, mas recolhendo provavelmente o pleno assentimento de um soldado:
A soberania é um fato, não é um direito. [idem, op. cit., p. 277.]

Se ele foi, ou não, um dos fundadores de uma propalada “Escola do Recife” essa é uma questão a ser debatida entre especialistas, não apenas do Direito, mas da cultura, de modo amplo. A certeza que se pode ter, ao cabo deste exame perfunctório sobre sua extraordinária trajetória intelectual, é que Tobias Barreto constituiu, ele mesmo, uma escola singular no contexto da cultura brasileira do último terço do século XIX, um trabalhador intelectual que construiu, ele próprio, uma escola de inteligência em quase nenhum aspecto similar ao que se tinha no Brasil daquele época. Ele foi único naquele ambiente cultural e jurídico, mas de certa forma continua único, inclassificável na nossa “República das Letras”; um acadêmico dissidente, iconoclasta, que se insurgia contra a academia e contra o establishment de modo geral. Como bem resumiu Arnaldo Godoy no subtítulo de sua biografia, foi um intelectual insurreto. Sem dúvida! Tobias Barreto continua vivo, aos 180 anos do seu nascimento e aos 130 anos de sua morte.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de junho de 2019