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terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

RFI repercute Le Monde sobre o Itamaraty olavo-bolsonarista

Diplomatas são perseguidos por Bolsonaro, denuncia jornal Le Monde


Diplomatas brasileiros afirmam serem vítimas de um clima de "caça às bruxas" e uma "perseguição ideológica"
Diplomatas brasileiros afirmam serem vítimas de um clima de "caça às bruxas" e uma "perseguição ideológica"  Reprodução / Le Monde

O texto começa lembrando da tradição diplomática do país, com representações em 222 países. "O Brasil possui o oitavo serviço diplomático mais importante do planeta", explica a reportagem, ressaltando que a presença do Itamaraty no mundo ultrapassa nações como Itália, Espanha ou Reino Unido. 
Além disso, a diplomacia brasileira é formada por profissionais altamente qualificados, aponta o jornal. Quase sempre trilíngues, eles são formados no Instituto Rio Branco, após passarem “um dos concursos mais difíceis do país, com 6.400 candidatos para 20 vagas em 2019”, detalha o jornalista. 
No entanto, ressalta o jornal, o Itamaraty "se tornou um alvo para Jair Bolsonaro". O presidente é apresentado pelo Le Monde como um "modesto capitão da reserva, que despreza o que considera uma ‘aristocracia’ orgulhosa e letrada". Para completar, continua o correspondente, a diplomacia seria “um ninho de partidários da esquerda”, marcado por uma “ideologia marxista”, diz o texto, citando uma declaração de Eduardo Bolsonaro. 

Caça às bruxas
"Desde que a extrema direita de Jair Bolsonaro está no poder, qualquer um que desenvolva um pensamento crítico é punido”, desabafa um diplomata entrevistado pelo jornal francês. “Vivemos um clima de caça às bruxas", denuncia o funcionário do alto escalão do ministério das Relações Exteriores, que preferiu manter o anonimato. 
Para as fontes ouvidas, existe uma tentativa de “destruir o ministério”. Em apenas um ano, cinco embaixadas brasileiras foram fechadas no Caribe e outras duas ou três devem deixar de funcionar na África, contabiliza o correspondente.
Segundo diplomatas entrevistados, uma verdadeira “perseguição ideológica” está acontecendo nesse momento no Itamaraty, visando, principalmente, aqueles que integraram a diplomacia durante as gestões de Lula e Dilma. Os funcionários indesejáveis são geralmente mandados para bases menos importantes e quase sempre substituídos por nomes menos experientes, aponta o texto. 
Um exemplo citado é o do diplomata Paulo Roberto de Almeida, ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI), que foi transferido para cuidar dos arquivos do ministério. “Não me deram nenhuma função exata, então eu me ocupo como posso, lendo e escrevendo”, confessa o funcionário, que também teve seu salário reduzido.
Para Almeida, trata-se de uma estratégia de “intimidação”, que ninguém ousa denunciar. “Os corredores estão vazios. As pessoas se trancam em suas salas. A casa ficou silenciosa”, afirma. Outro diplomata diz que tem aumentado o número de casos de depressão entre seus colegas. 
O texto aponta que essa "ofensiva" é liderada pelo chanceler Ernesto Araújo, personagem atípico, capaz de citar Proust e uma réplica de telenovela no mesmo discurso, ironiza o correspondente. E enumera as mudanças de posição da diplomacia brasileira desde o início do novo governo, como o desengajamento na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a nova postura sobre as questões climáticas, ou ainda o abandono das pautas ligadas à defesa dos direitos humanos, bloqueando discussões sobre imigração, gênero e direito ao aborto. 

Na contramão de Washington?
O embaixador do Brasil em Paris, Luís Fernando Serra, ouvido pelo Le Monde, defende a nova estratégia do Itamaraty e fala de um simples “reequilíbrio”. Segundo ele, o país apenas abandonou, entre outras coisas, o “desalinhamento automático com os Estados Unidos” que primava nas gestões anteriores. O representante brasileiro na capital francesa diz que, com Bolsonaro, o país vive agora “uma diplomacia pragmática e aberta”, que não se submete a Washington, mas também não renuncia à Europa”. 
Mas para o professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, Hussein Kalout, o que acontece nesse momento vai além de um simples reequilíbrio. “Há um ano, o alinhamento com Washington é total e incondicional”, afirma, citando como exemplo o voto de Brasília contra o fim de embargo americano em Cuba ou o apoio de Bolsonaro ao assassinato do general iraniano Soleimani. 
“O patrimônio nacional está sendo dilapidado”, insiste um dos diplomatas ouvidos. “Nosso país não é um líder natural, como a França ou os Estados Unidos. Nossa influência é relativa e teve que ser conquistada. Uma hora vamos acordar desse pesadelo e vamos nos dar conta que o soft power brasileiro desapareceu”, desabafa.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Macarthismo Administrativo do Bolsonarismo - Claudio Gonçalves Couto (Valor)

O Macarthismo Administrativo é mais amplo ainda do que o mencionado por Cláudio Gonçalves Couto neste excelente artigo: ele começou mesmo antes do governo ter início no Itamaraty, onde o chanceler acidental mandou demitir por telefone, em dezembro de 2018, todos os subsecretários do MRE, embaixadores experientes, nomeando no lugar diplomatas mais jovens, ministros segunda classe, de sua faixa geracional, invertendo a tradicional hierarquia do serviço exterior. Uma situação que os militares descrevem como sendo a de “coroneis mandando em generais”, ou seja, um macarthismo etário. A prática continuou em outras esferas, num arbítrio inédito nos anais do Itamaraty.
Paulo Roberto de Almeida

Enviado por Christian Lynch:

MACARTHISMO ADMINISTRATIVO

(Artigo publicado pelo colega cientista político  Cláudio Gonçalves Couto
hoje, 23/01/2020, no Valor, citando meu caso como exemplo do macarthismo em questão)

Ao controlar até a nomeação de pessoas para cargos de funções sem teor partidário, governo aparelha a máquina pública

Um dia antes da divulgação de performance de inspiração nazista que lhe custou o cargo, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, manifestou-se no Twitter sobre a indicação do cientista político Christian Lynch para a chefia do Serviço de Pesquisa Ruiano, na Fundação Casa de Rui Barbosa. O posto, segundo o emulador de Goebbels, não poderia ser ocupado por Lynch por ter ele “ideias execráveis sobre Jair Bolsonaro”. Mais que isso, sugeriu que apenas não o dispensaria por se tratar de servidor concursado da Fundação em que exerceria o cargo. Assim, determinou à presidente da organização que cancelasse a nomeação do desafeto.

A missão da Casa de Rui Barbosa é preservar não só memória e obra de seu patrono, como promover “a pesquisa, o ensino e a difusão do conhecimento sobre temáticas relevantes para a história do Brasil”. Lynch, como pesquisador do pensamento jurídico, político e social brasileiro, em especial o de Rui, reunia os atributos profissionais e intelectuais exigidos para a ocupação da chefia que fora oferecida - que é, inclusive, do setor em que trabalha naquela entidade. Bolsista de produtividade do CNPq, com projetos e publicações sobre o tema do setor que dirigiria, seria natural exercer a função e ter o comissionamento condizente com a nova responsabilidade.

Comissionamento nem sempre requer laços partidários. Órgãos de pesquisa como esse, assim como fundações, universidades, institutos e autarquias, contam com cargos comissionados cujo exercício depende de nomeação por superiores hierárquicos. São chefias de departamento, coordenações de curso, superintendências e coisas do tipo. A natureza de tais cargos requer a nomeação por superiores não em decorrência da necessidade de alinhamentos pessoais ou político-partidários, mas pelo reconhecimento da competência profissional e da experiência, requerida para se desincumbir da função.

No caso de uma instituição de pesquisa na área de política, nada mais natural que, por sua própria atividade profissional, pesquisadores escrevam textos críticos sobre os mais diversos aspectos desse mundo - como o governo do dia. E foi um artigo de Lynch que levou o secretário, leal escudeiro do presidente, a impedir sua nomeação. Fiel a seu ofício, o autor teceu considerações críticas acerca do bolsonarismo, observando numa passagem: “A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração”. Como observou depois o próprio Lynch, o cancelamento de sua nomeação confirmou tal afirmação.

Mas não se trata apenas da adesão ao extremismo bolsonarista, como também a adulação do chefe. Foram as “ideias execráveis” de um servidor sobre o presidente que justificaram o veto. Da mesma forma, foi a atitude severa de outro funcionário, José Olímpio Augusto Morelli, que gerou, em março de 2019, sua exoneração do cargo em comissão de Chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama. Morelli foi o fiscal que multou Bolsonaro por pescar ilegalmente na estação ecológica de Angra dos Reis. Era, há mais de uma década e meia, servidor concursado do órgão em que exercia sua chefia e foi secretário de Meio Ambiente do município. Ou seja, contava com atributos técnicos e experiência para o cargo, mas foi exonerado por ter-se tornado desafeto do presidente ao cumprir o dever funcional e multar quem pesca ilegalmente.

Em maio do ano passado, o Decreto 9.794 conferia à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a atribuição de fiscalizar a vida pregressa de ocupantes de cargos comissionados em instituições federais de ensino superior, submetendo-as à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Assim, a ocupação de um cargo como de diretor de um centro de ensino, ou de uma faculdade, dependeria de avaliação do gabinete presidencial. Que propósito haveria em controlar tão centralmente a nomeação para um cargo dessa monta, no âmbito de uma instituição universitária que, por sua função e determinação constitucional, goza de autonomia? É demasiado.

Nem todo cargo comissionado na administração pública se reveste de caráter político-partidário ou de lealdade pessoal. Quanto mais próximo aos representantes eleitos, mais relevante e legítimo é tal critério; porém, quanto mais próximo da ponta, ou da burocracia do nível de rua, menos adequado é que o preceito pessoal ou partidário dos dirigentes máximos do governo seja determinante. Pelo contrário, nesse nível do aparato governamental o que deve contar, em prol do bom desempenho da gestão, do cumprimento de funções administrativas, do pluralismo e da impessoalidade, são parâmetros de desempenho e experiência no âmbito das atividades exercidas. Noutros termos: em tal patamar, comissionamento não se justifica por confiança política, mas por reconhecimento e responsabilização decorrentes do bom desempenho profissional.

Não seguir tal diretriz - ou pior, violá-la deliberadamente - implica o aparelhamento e na partidarização da máquina pública. Ou, nos termos de Lynch na conclusão de seu artigo: autoritarismo, hierarquia mantida pela violência, personalismo, nepotismo, guerra política, intimidação, espírito de vingança, perseguição e exercício da violência psicológica.

Portanto, o viés autoritário do bolsonarismo não se traduz apenas em ideias antipluralistas, tensionamento constante com os demais poderes do Estado, enaltecimento da violência ou ataque reiterado à imprensa, à ciência e às artes não alinhadas. Ele também se faz presente na forma como o Poder Executivo organiza sua estrutura administrativa até as fímbrias mais remotas, aparelhando-a com aduladores e correligionários, bem como perseguindo críticos ou não alinhados cuja crítica ou não alinhamento decorrem justamente do cumprimento de obrigações funcionais.

A contraface desse aparelhamento é a ideia, presente na proposta de reforma administrativa, de proibir servidores de terem filiação partidária. Ora, se isso é irrelevante para o bom desempenho de suas funções, tal regra tem apenas um propósito: instaurar um macarthismo administrativo.

Cláudio Gonçalves Couto; é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”. Maria Cristina Fernandes volta a escrever em fevereiro

domingo, 5 de janeiro de 2020

Em defesa do Itamaraty: um novo empreendimento intelectual - Paulo Roberto de Almeida

Desafios da diplomacia no Brasil, do lulopetismo ao bolsonarismo: em defesa do Itamaraty

Paulo Roberto de Almeida
  
Acompanho a política internacional e as relações exteriores do Brasil desde quando fui precocemente apresentado aos grandes problemas mundiais por ocasião de uma palestra do grande professor e jornalista Oliveiros da Silva Ferreira aos jovens ginasianos que éramos, no Colégio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, em São Paulo, algum tempo depois da crise dos mísseis soviéticos em Cuba e o dramático prenúncio de uma possível e devastadora guerra nuclear entre as duas grandes potências. Ainda adolescente, portanto, passei a ler as edições dominicais do jornal O Estado de S. Paulo, onde aquele especialista era um dos mais reputados editorialistas, sobretudo porque aos domingos o jornal trazia um suplemento de artigos e resenhas de livros traduzidos dos mais importantes órgãos da imprensa internacional (dos Estados Unidos e da Europa, predominantemente). Foi assim que travei conhecimento com brilhantes ensaios de Raymond Aron, Stanley Hoffman, Irving Kristol, Karl Deutsch e outros eminentes scholars das grandes universidades de países avançados. 
O processo político brasileiro – início do regime militar e a aguda polarização entre “direitistas”, ou aliados do governo, e “esquerdistas”, logo catalogados de “subversivos” – também contribuiu para uma precoce politização, e uma inclusão quase imediata no campo dos esquerdistas, o que acentuou a busca pelo conhecimento das experiências alternativas ao capitalismo periférico, naquele momento não tanto no modelo soviético, mas mais próximo da experiência cubana, que parecia refletir a situação continental de “países dominados pelo imperialismo americano”, e necessitados de adotar a via nacionalista e, mais precisamente, a construção do socialismo, se possível num modelo autogestionário, como parecia prometer o caminho adotado pela Iugoslávia, aparentemente um socialismo não totalitário e até aliado de outros países em desenvolvimento, como as “iniciativas não-alinhadas” sugeriam. 
Uma longa estada na Europa, a partir dos anos de chumbo da ditadura militar, no início dos anos 1970, sedimentaram um grande conhecimento, mediante o estudo aplicado de todas essas experiências nacionais, com viagens a diversos países do socialismo real (em alguns casos surreal) e do capitalismo ideal, o que arrefeceu a proposta de um planejamento estatal centralizado em favor de um modelo mais identificado com o socialismo democrático ao estilo da II Internacional. Poucos meses após a volta ao Brasil, no primeiro trimestre de 1977, o ingresso na carreira diplomática abriu e consolidou de vez o estudo especializado nas relações internacionais, na política externa e na diplomacia brasileira, com diversos trabalhos que começaram a ser publicados em revistas da área: Política e Estratégia, na qual colaborou Oliveiros da Silva Ferreira (hoje desaparecida), a Revista Brasileira de Política Internacional (que tive o privilégio de salvar de um desaparecimento quase certo, e de transferi-la para a capital federal, onde existe até hoje) e, mais adiante, a Contexto Internacional e a Política Externa (hoje igualmente desaparecida, infelizmente). 
Fui acumulando, ao longo dos anos, uma visão própria, tanto da política internacional, quanto da economia mundial – fruto de um mestrado em economia do desenvolvimento –, assim como das relações internacionais do Brasil e de sua política externa, tanto é que essa minha visão nunca se subordinou, e jamais coincidiu, exatamente, com a política externa oficial do Itamaraty, ou com as principais orientações acadêmicas na área internacionalista. Minhas concepções sobre essas diferentes temáticas, campos de análise e de propostas de políticas sempre guardaram uma saudável distância da política externa governamental ou de certas concepções acadêmicas sobre os mesmos temas e políticas, por força de um ecletismo de leituras e de reflexões próprias sobre as realidades do mundo e do Brasil. 
Daí a minha permanente opção de preservação de uma atitude que eu, desde a juventude, acostumei-me a chamar de ceticismo sadio, ou seja, uma indagação crítica sobre qualquer análise ou proposta de políticas – não só a externa, mas também as econômicas, por exemplo – apresentadas como as melhores do ponto de vista do interesse nacional, ou alegadamente expressando a melhor racionalidade possível. Sempre procurei penetrar na realidade dos números e dos dados disponíveis, indagar sobre as melhores alternativas de políticas, assim como questionar as verdades oficiais, quaisquer que fossem as orientações dos governos de plantão. Numa fase posterior, passe a identificar essa atitude como sendo a de um contrarianista, ou seja, a de um contestador do senso comum, ou da versão consagrada. 
Tanto é assim que um dos meus livros mais recentes, entre uma dúzia e meia daqueles especificamente dedicados aos temas internacionalistas, se chama Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018). Como vários outros publicados nas últimas três décadas e meia, ele consolida aquele diálogo entre a diplomacia e a academia – como já preconizou, ainda nos quadros do regime militar, um diplomata dos mais conhecidos nessa vertente, Gelson Fonseca – que reputo indispensável ao trabalho bem conduzido dos diplomatas profissionais, como também exemplificado na trajetória de dois outros intelectuais – Rubens Ricupero e Celso Lafer – que constituem brilhantes exemplos de vocações duais, que se situam nessa interface simbiótica entre a pesquisa acadêmica e a ação prática. Sem exibir a reputação desses grandes intelectuais e profissionais da diplomacia, acredito ter contribuído para o estudo e a reflexão das interfaces externas do Brasil, no contexto da economia mundial e da política internacional e regional. 
Tendo já exercido uma trajetória profissional na diplomacia por quatro décadas, e acumulado um pouco mais do que isso no estudo e na produção de ensaios e livros nessas vastas áreas de interesse para a projeção externa do Brasil, creio poder oferecer mais uma contribuição ao conhecimento e reflexão sobre nossa trajetória internacional nas duas primeiras décadas deste século, quando passamos de uma diplomacia claramente identificada com e embasada no Itamaraty para uma diplomacia partidária situada naquele mesmo universo mental no qual eu me situava na primeira metade dos anos 1960, chegando na atualidade a uma diplomacia bizarra, que pode até ser chamada de “antidiplomacia”, tal o número de incongruências em relação aos padrões tradicionais da diplomacia profissional do Itamaraty tal como o conhecemos desde longas décadas. 
As análises que pretendo conduzir na presente conjuntura se dedicarão a um exame sintético das características principais da diplomacia brasileira, com destaque para as orientações enviesadas de que foi acometida sob os três mandados e meio de duração do “lulopetismo diplomático”, a volta temporária a uma diplomacia quase “normal” durante um curto período de transição (2016-18), e o ingresso, desde o início de 2019, no desafio mais relevante ao Itamaraty enquanto instituição, com a inauguração de uma mal definida “Bolsodiplomacia”, aliás indefinida por definição, se cabe a redundância no reconhecimento de uma ausência completa de exposição clara sobre as metas, diretrizes e métodos de uma política externa bizarra e destruidora de algumas boas tradições de nossa diplomacia tradicional. Este é o meu próprio desafio intelectual, uma espécie de síntese de muito do que já escrevi ao longo das últimas décadas, e que ainda pode oferecer um testemunho válido dessa ponte que considero benéfica que junta o melhor da pesquisa acadêmica com o trabalho prático na diplomacia profissional. 
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de janeiro de 2020

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Concurso da carreira diplomática: bagunça do governo se estende ao Itamaraty -

Transcrevo comunicado do clippingcacd.com.br sobre a trapalhada feita pelo instituto contratado SEM LICITAÇÃO pelo Itamaraty para fazer o concurso deste ano: 

Cancelamento das provas discursivas pelo Iades: entenda o que aconteceu

Para os candidatos ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) que aguardavam o resultado final do concurso, chegou a comunicação do Iades no sentido de que haverá:
 nova avaliação das referidas provas, por nova banca avaliadora.
De acordo com o comunicado do Iades, o número de inscrição dos candidatos figurou nas folhas de respostas das provas de Segunda Fase do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), em desconformidade com o item 14.5.1 do Edital que estabelece que:
14.5.1 Não serão identificadas, para efeito de correção, as provas do concurso.
Analisamos neste post o contexto em que ocorreu esse comunicado e, também, as consequências que pode ocorrer daqui para frente.
O post ficou dividido assim:
  • O que motivou o comunicado do Iades
  • O que foi dito até agora pelo IRBr e Iades
  • O (x) da questão
Vamos a análise bem pragmática desses pontos 🔎

1. O que motivou o comunicado do Iades?

O comunicado do Iades teria sido motivado não por um erro de procedimento identificado pela própria instituição, mas por uma manifestação da Procuradoria da República, que determinou, de ofício, que a banca organizadora e o próprio IRBr prestem esclarecimentos acerca de eventuais irregularidades narradas no âmbito de uma representação de Notícia de Fato. Pelo momento, o que se tem acesso é um trecho do ofício da Procuradoria que vem correndo grupos de whatsapp e as redes sociais:
De acordo com o representante, na folha de resposta da segunda fase do certame constava o número de inscrição de cada candidato e o respectivo local de prova. Essas informações, segundo ele, tornam possível a identificação dos candidatos por parte da banca examinadora, pois o mesmo número de inscrição estaria vinculado ao nome dos candidatos divulgados no Edital de Resultado Final da Primeira Fase e Convocação para a Segunda Fase. Diante disso, em caráter de urgência, determino a expedição: A) de ofício Diretora-Geral do Instituto Rio Branco Maria Stela Pompeu Frota, solicitando esclarecimentos acerca da representação; B) de ofício ao Instituto Americano de Desenvolvimento (Iades), para que preste esclarecimento acerca do conteúdo da representação.
O Iades foi escolhido como banca realizadora do CACD 2019 mediante dispensa de licitação. De 1996 a 2002 o CACD foi realizado pelo próprio IRBr. De 2003 até 2018, o Cespe foi a banca realizadora do certame. Em 2019, o Iades foi a instituição escolhida para substituir o Cespe. Não houve, até o momento da publicação deste artigo, manifestações públicas do Instituto Rio Branco ou do Ministério das Relações Exteriores sobre as motivações para essa troca de banca. No entanto, comparações do extrato de dispensa de licitação do CACD 2018 com a dispensa de licitação para o CACD 2019, permitem depreender que a decisão tenha sido motivada, sobretudo, por critérios orçamentários.

2. Isonomia nas (re)correções?

Parte da comunidade de candidatos, professores e cursinhos questionam sobre a manutenção da isonomia face a uma nova avaliação por uma nova banca avaliadora nesse momento, já que os espelhos circularam entre candidatos e professores que, normalmente  se apoiam no momento da confecção dos recursos anualmente.
Segundo levantado por matéria do Correio Web, o Itamaraty se manifestou no sentido de que procedimento similar já foi adotado pelo Iades em outros concursos, questionamentos semelhantes a esses já foram feitos anteriormente ao Ministério Público e, posteriormente, arquivados após prestados os esclarecimentos pertinentes. A matéria citada traz a seguinte manifestação:
“Consta das folhas de respostas distribuídas aos candidatos campo no qual estão registrados número sequencial indicando o local de prova e o número de inscrição no concurso. Ressalte-se que procedimento similar foi adotado pelo IADES em outros concursos públicos. Quando da realização de concurso para a Assembleia Legislativa de Goiás, concluído no ano em curso, houve questionamento, junto ao Ministério Público, por parte de candidato, que questionou a segurança da prova. Inquérito Civil Público subsequente foi arquivado após reunião no Ministério Público, que considerou terem sido prestados os esclarecimentos pertinentes”
A posição do Iades colhida pelo e veiculada pelo Correio Web é no sentido de que:
Cumpre salientar que, na folha de resposta do candidato, para a sua própria segurança, consta um código sequencial indicando o local de prova e o número de inscrição, não contendo qualquer identificação nominal. Ressalta-se que, após a avaliação de cada examinador, as notas são lançadas nos campos de cada quesito, com sequenciais alfanuméricos na planilha eletrônica, a qual é identifica com respectivo código da questão. A transcrição das notas que estão na planilha eletrônica para a folha de resposta do candidato é feita em momento posterior pela coordenação pedagógica e antes de disponibilizar a folha de resposta para os candidatos. Por fim, esclarecemos que, todo o corpo de Examinadores assina um termo de compromisso, parentesco e confidencialidade referente ao concurso, resguardando assim, os princípios da moralidade, ética e compromisso em avaliar de forma isonômica, técnica, ética e aderente ao Edital do certame. A composição de nota final na segunda fase de cada candidato não é realizada por somente um examinador, pois conforme acima mencionado, cada uma das questões foram avaliadas por mais de três examinadores, o que impossibilita o risco de qualquer prática antiética nociva ao certame.
A julgar pelos pronunciamentos do Iades e do Itamaraty publicados o Correio Web não está ainda claro como, quando e  mesmo se essas (re)correções seriam efetivamente feitas.

3. O (X) da questão

A julgar pelas informações a que se tem acesso até o momento da publicação desse post, a questão principal é entender assiste razão ao autor da representação feita à Procuradoria da República.
O número de inscrição seria o bastante para que ficasse caracterizado a identificação dos candidatos e, por consequência, a violação do item do Edital  14.5.1, que estabelece que “Não serão identificadas, para efeito de correção, as provas do concurso“?

Eis a questão!
Com base nas informações que temos, alguns cenários possíveis vem sendo debatidos pela comunicade de candidatos:
  • a) Walk on the wild side: Rolará uma (re)correção das provas discursivas, com potencial de impactar significativamente o resultado final;
  • b) False alarm: Ao comunicado oficial do Iades se sobreporá novos esclarecimentos do IRBr ou do próprio Iades e não haverá (re)correção.
  • c) Apocalipse zumbi: CACD fica embargado judicialmente e questionado ex tunc, desde a origem;
Independente do que acontecer daqui para frente, toda solidariedade aos CACDistas e professores. Sigamos, ansiosos, no aguardo de novas informações.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Transgressões no Itamaraty - Fabio Koifman (FSP, 2013)

Como o Itamaraty cortou a assinatura da Folha de São Paulo e eliminou o jornal de seu clipping diário, o que configurava uma das mais abjetas censuras já vistas na Casa de Rio Branco. Nem na ditadura militar ocorreu tal tipo de discriminação, só compatível com personalidades autoritárias e seus vassalos obedientes.
Por isso mesmo, não apenas em solidariedade, mas como leitura obrigatória, assinei o jornal.
Acabei verificando o que já tinha sido publicado em torno de meu nome no jornal, o que postei neste mesmo blog.
Entre os materiais, este artigo do historiador Fabio Koifman que fala dos dissidentes do Itamaraty, entre eles este que aqui escreve...
Paulo Roberto de Almeida


Transgressões no Itamaraty
FÁBIO KOIFMAN 
Folha de S. Paulo, 15/09/2013 03h05

RESUMO Dentro de um ministério regido por hierarquia e normas próprias como o Itamaraty, atos de rebeldia são pouco comuns. Historiador das relações internacionais faz um apanhado de casos em que representantes do país atuaram contra as regras estabelecidas, com motivações diversas, da convicção ética à pequeneza pessoal.
*
Como em uma orquestra, vige no Itamaraty, ministério hierarquizado e dotado de regras próprias, um ritual de obediência que visaria desmotivar, cercear e eventualmente punir a dissidência. A Casa --como muitos chamam o MRE-- não estimularia a independência de pensamento.
A desobediência não é fato tão comum na história do ministério. A maioria dos diplomatas é disciplinada e segue as regras. Quase sempre é quando as ordens ferem os princípios de um diplomata que pode surgir um transgressor.
Em 2008 fui chamado a falar sobre o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) aos alunos do Instituto Rio Branco em Brasília. Era um sinal positivo e curioso que a Casa convidasse alguém para falar aos futuros diplomatas sobre um embaixador que fez o que eles não deveriam de modo algum fazer: deixar de cumprir as orientações e ordens da chefia.
Representante do país na França ocupada, Souza Dantas não seguiu as orientações do Estado Novo (1937-45) de Vargas e praticou ajuda humanitária, emitindo vistos a perseguidos do nazismo.
Alguns articulistas, acadêmicos e jornalistas têm se referido a Souza Dantas quando opinam a respeito do recente caso envolvendo o diplomata brasileiro Eduardo Saboia, que ajudou na fuga do senador boliviano Roger Pinto Molina, asilado na Embaixada do Brasil em La Paz por quase 500 dias.
Em uma primeira análise, os casos de Souza Dantas e de Saboia têm pouco em comum. Enquanto Souza Dantas encontrou dificuldades morais em seguir a determinação da Secretaria de Estado, Saboia aparentemente teria enfrentado o silêncio quanto a como proceder para contornar a situação envolvendo o senador boliviano.
Nem todas as transgressões ocorridas no MRE deixaram registros escritos; alguns casos de diplomatas rebeldes só puderam ser apurados nos corredores da Casa. Nem todas, também, se deveram a motivos de consciência ou humanitários -várias tiveram mesmo origem em fatos comezinhos.
PERU
Eram fins de 1902 quando Manuel de Oliveira Lima foi indicado para a nossa representação no Peru. Desagradado com o destino, postergou o quanto pôde sua volta do Japão, onde estava lotado, apesar de o barão do Rio Branco ter solicitado com máxima urgência seu retorno ao Brasil --a demora se estendeu por mais de seis meses.
O desentendimento com o barão do Rio Branco agravou-se ao longo de 1903, com a publicação de artigos de Oliveira Lima em jornais expressando críticas às decisões da política externa brasileira. Citando o visconde de Cabo Frio, teria afirmado: "Peru só na mesa, assado, e para quem gosta. Eu não gosto".
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, em seu discurso de posse em julho de 1903, na presença do presidente da República e de outras autoridades, Oliveira Lima teceu críticas à situação da carreira diplomática brasileira. Desejava ir para a Europa, mas acabou sendo enviado para a Venezuela onde permaneceu por três anos.
A intempestividade em público também atingiu Rui Barbosa.
Sem ser diplomata de carreira, em 1916 ele foi escolhido para representar o Brasil em importantes cerimônias comemorativas na Argentina. Naquele momento, o governo brasileiro ainda se mantinha neutro em relação ao conflito que seria conhecido mais tarde como Primeira Guerra Mundial.
Em 14 de julho, sob o argumento de que já estavam concluídas as cerimônias oficiais e que se expressava não como representante diplomático --embora tivesse exigido um salário mensal de embaixador--, Rui Barbosa pronunciou um discurso no qual assumia posição favorável a um dos lados em conflito, o dos aliados.
Nessa época, Luiz Martins de Souza Dantas respondia interinamente pelo Ministério das Relações Exteriores. Mesmo com antigas ligações de amizade entre as famílias, a defesa de posição divergente produziu acusações mútuas, bate-bocas nos jornais e o rompimento definitivo entre os dois.
Curioso foi o caso em que uma rebeldia foi respondida com outra.
Mário de Pimentel Brandão era embaixador na Bélgica quando os alemães invadiram o país, em 1940. Bruxelas estava sob bombardeio, o que levou o governo belga e todo o pessoal diplomático a fugir -Brandão inclusive. Do Rio, o secretário-geral do Itamaraty, embaixador Maurício Nabuco, dirigiu a Brandão uma repreensão por ter abandonado o posto sem a devida autorização do governo brasileiro e a divulgou por circular.
A resposta de Brandão, também aberta, foi de que se na antiga Roma de Calígula um cavalo havia sido feito cônsul, não era de se admirar que no Brasil moderno outro cavalo (algumas versões mencionam "burro") houvesse chegado a embaixador e a secretário-geral.
Sem conseguir do governo punição de Brandão pela resposta, Nabuco passou a transgressor: simplesmente abandonou o posto e viajou para Petrópolis e lá permaneceu. Foram precisos meses (e pedidos cordiais do presidente da República) para que o secretário-geral voltasse ao trabalho.
CÉLULA
Em 1952, com o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, cinco diplomatas foram, a partir de uma denúncia, acusados de criar uma "célula comunista" dentro do MRE. Eram eles João Cabral de Melo Neto, Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira.
Em 20 de março de 1953 foi publicado o despacho do presidente da República: Vargas seguiu o parecer do Conselho de Segurança Nacional e a proposta do ministro das Relações Exteriores, assinando decretos que colocavam os cinco "em disponibilidade inativa" --ou seja, sem remuneração.
O processo ainda foi enviado à chefia de polícia para promover a apuração "da responsabilidade criminal dos indicados". Os cinco impetraram ações no Supremo Tribunal Federal e só no ano seguinte seriam reintegrados ao Itamaraty. Houaiss e Almeida Rodrigues seriam aposentados compulsoriamente depois do golpe de 1964.
Álvaro de Barros Lins não era diplomata de carreira, mas em setembro de 1956 foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa por Juscelino Kubitschek. Desgastou-se com a ditadura salazarista por criticar o Tratado de Amizade e Consulta entre Brasil e Portugal, que considerava "lesivo" aos interesses brasileiros.
Em 1959 o Brasil concedeu asilo político ao general Humberto da Silva Delgado, líder oposicionista português. O governo português não reconheceu o asilo. Considerando a reação de Kubitschek ao fato insuficiente e acusando-o de cúmplice com as ditaduras, saiu do posto em outubro do mesmo ano. Delgado foi assassinado pela polícia política de Salazar próximo á fronteira espanhola em 1965.
Foi contra a nascente ditadura brasileira que se insurgiu, em 1964, o embaixador Jayme de Azevedo Rodrigues. Em serviço em Genebra na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ao receber o comunicado da deposição do presidente João Goulart, telegrafou ao Itamaraty: "Não sirvo a governos gorilas". No dia 2 de julho, sua aposentadoria foi publicada com base no primeiro dos atos institucionais militares.
ZUM-ZUM
O regime militar brasileiro teria no diplomata Manoel Pio Correa um aguerrido defensor da ordem. Em 1966, ao assumir a função de secretário-geral, Pio Correa deixou claro que não gostava de diplomatas "pederastas", "vagabundos" e "bêbados" --os termos são do próprio diplomata, conforme citados em suas memórias ("O Mundo em que Vivi").
Logo descobriu que Vinicius de Moraes, lotado ali, não era assíduo ao trabalho. Além disso, era contratado da casa noturna Zum-Zum, em Copacabana, onde se apresentava todas as noites.
Convocou-o propositalmente em uma manhã bem cedo para lhe dar duas opções: ou largava o trabalho noturno e assumia uma função ou pedia licença sem vencimentos. Vinicius foi obrigado a licenciar-se. O AI-5 o aposentaria compulsoriamente em 1968.
A atividade artística quase foi daninhas a outro homem de letras. José Guilherme Alves Merquior foi, desde cedo, muito presente no meio intelectual de sua época.
Em 1962, aluno do Instituto Rio Branco, ele participou da organização de um festival de cinema russo. No ano seguinte (ao fim do qual tomaria posse como terceiro secretário do Itamaraty), foi convidado a dar um curso de introdução à estética no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e chamou a falar o marxista Leandro Konder. Teria ainda coordenado uma exposição de fotógrafos cubanos.
Designado para servir em seu primeiro posto internacional em 13 de maio de 1966, teria sido inquirido a respeito dessas atividades que flertavam com a ideologia comunista --segundo conta-se, por pouco não foi cassado.
Uma disputa de cunho pessoal quase coloca o Brasil em um grave incidente com a Síria de Hafez al-Assad --pai do atual ditador sírio, ele havia tomado o poder via golpe de Estado em 1970.
Entre 1969 e 1972, Roberto Luiz Assumpção de Araújo era embaixador em Damasco. Assad passou a cobiçar a casa na qual Assumpção estava instalado, tentando convencê-lo a se mudar. O embaixador não cedeu, e os dirigentes sírios passaram a utilizar outros meios de pressão, que incluíram o corte sistemático de energia e água da residência. Sem sucesso, obstruíram o esgoto, o que produziu uma situação insustentável.
Assumpção, ao invés de dar-se por vencido, arriou a bandeira brasileira e seguiu com o protocolo de rompimento de relações diplomáticas com o país árabe. O caso produziu alvoroço na comunidade sírio-brasileira, que se lançou em reclamações contra Assumpção. Uma ordem expressa de Brasília finalmente convenceu o embaixador a deixar a casa.
Para alguns, os atos de José Maurício Bustani quando diretor-geral da Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq) o qualificam como transgressor --e, se não o foi com relação ao Itamaraty, certamente pode-se dizer que ele entrou em choque com o governo norte-americano.
Eleito para a Opaq no período 1997-2000 e reeleito para o quadriênio seguinte, 2001-2005, ele agiu de maneira independente a fim de tentar fazer fazer com que as regras valessem do mesmo modo para todos os países.
O governo George W. Bush passou a vê-lo como obstáculo, e Bustani não chegou a concluir o segundo mandato: menos de um ano antes do início da segunda guerra do Iraque, os Estados Unidos passaram a articular pela sua remoção do posto, o que acabou por ocorrer em abril de 2002.
DESALINHO
Com a inauguração do governo Lula e sua diplomacia influenciada pela perspectiva do PT, diversos funcionários tidos como contrários à nova política foram marginalizados na carreira e em suas funções. Um dos casos mais notórios foi o do também acadêmico Paulo Roberto de Almeida, conhecido autor de diversos artigos em "desalinho" com as novas orientações ideológicas.
Ainda há muita nebulosidade em relação ao ocorrido no caso recente envolvendo o nosso diplomata Saboia e o senador boliviano. No momento não é possível saber em que medida instruções informais foram ou deixaram de ser cumpridas. Houve consulta preliminar sobre eventual saída clandestina? Houve resposta negativa e Saboia descumpriu a ordem? Não existiu qualquer ordem e ele atuou no limite ou além de sua competência? Quais foram precisamente as orientações e ações da secretaria de Estado para solucionar o impasse? Os apelos para uma solução foram respondidos?
O distanciamento temporal dos fatos e o acesso suficiente às informações são elementos fundamentais para o esclarecimento das ideias e das ações e bons balizadores de toda e qualquer transgressão, potencialmente transformando os transgressores em egocêntricos, vítimas --nem sempre do Itamaraty, mas também dos governos--, idealistas ou até heróis.

Fábio Koifman, 49, doutor em história e professor da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), é autor de "Quixote nas Trevas: o Embaixador Souza Dantas e os Refugiados do Nazismo"(Record).