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segunda-feira, 4 de maio de 2020

Francisco Doratioto:?Guerra do Paraguai, 150 anos depois (OESP)

‘Guerra do Paraguai mostra que politização não é boa para Exército’, diz historiador


Francisco Doratioto lembra, 150 anos após a Guerra do Paraguai, como divisões políticas afetaram a condução do conflito

Marcelo Godoy
O Estado de S. Paulo, 3 de maio de 2020

Poucas obras recentes na historiografia brasileira tiveram o impacto que Maldita Guerra teve quando foi lançada há 19 anos. Escrita pelo historiador e professor da UnB Francisco Doratioto, de 63 anos, ela consolidou a visão de que a Guerra do Paraguai, o maior conflito da história da América do Sul, foi fruto de um processo regional, rompendo com a visão que o vinculava à ação do imperialismo inglês. O livro será relançado com novos documentos pela Companhia das Letras em razão dos 150 anos do fim da guerra. Com base no período, Doratioto diz que a profissionalização e o distanciamento da política são fundamentais para o Exército e a para a defesa nacional. Eis a sua entrevista.

Como o conflito se projeta com suas consequências na região do Rio da Prata 150 anos depois? A guerra faz parte da identidade nacional dos países. Em alguns deles com mais intensidade do que outros. No Paraguai, derrotado e com mais perdas humanas e de território, a guerra está entranhada desde o nascimento de cada cidadão. Solano López é um herói nacional. No Brasil é algo inconsciente. Não se fala em Guerra do Paraguai, mas nomes como Humaitá e Itororó estão presentes em todas as partes do País como praças e ruas. Faz parte de nossa identidade. Na Argentina e no Uruguai também. O fundador da República Argentina, em 1862, é Bartolomé Mitre, que vai ser o comandante aliado na Guerra do Paraguai. Nas províncias argetninas que sofreram, como Corrientes, a invasão paraguaia, o sentimento da presença do dia a dia da guerra ainda está lá em mausoléus e cemitérios. Há as mulheres correntinas que foram levadas à força para o Paraguai e são consideradas heroínas. E, no Uruguai, cuja guerra civil foi o estopim da guerra, a guerra do Paraguai está sempre presente. Uma vez o historiador paraguaio Manuel Peña Villamil me disse um coisa interessante: ‘A guerra devia ser vista como primeiro momento da integração, pois foi a primeira causa comum vivenciada pelos quatro países’. Os processos de independência deles foram todos diferentes. E a guerra foi o primeiro evento comum e trágico dos quatro.


O custo da guerra teve alguma influência na escolha da diplomacia para a resolução posterior dos problemas entre os países? 

Não creio. Na minha interpretação da guerra, todos nós hoje no mundo acadêmico que trabalhamos o tema, é raríssimo quem não diga que a guerra não é fruto de um processo histórico regional. E isso está vinculado ao fato de não existirem estados nacionais definidos na região do Rio da Prata. Até Guerra do Paraguai tínhamos tentativas de Estado. Buenos Aires tentava se impor ao interior em 1862 e o Uruguai era uma criação da diplomacia britânica, que antes da guerra tinha 200 mil habitantes. Ele não era um país consolidado com identidade nacional. O Paraguai tinha uma população pequena submetida ao absolutismo de uma família; o Estado era uma propriedade privada. Formalmente era um Estado, mas as estruturas eram muito precárias. Os dois Estados que foram centralizados precocemente na América Latina foram o Império do Brasil, na década de 1840, e o Chile também na década de 40. Não é à toa que esses dois países quando se envolvem em guerras saem vitoriosos; o Chile, na guerra do Pacífico, apesar da desvantagem numérica. Eles tinham Estados mais organizados, com serviço diplomático para defender seus interesses. Nessa visão, a Guerra do Paraguai era o fim de um processo, com o confronto de caudilhos que tinham suas milícias e com o Império, que se organizara contra uma facção argentina, em 1852, contra Rosas. Depois vai ser privilegiada a diplomacia, porque até a Guerra do Paraguai, o Rio da Prata era um espaço vital economicamente para a elite de Buenos Aires, que era agroexportadora. O espaço geoeconômico era vital para os criadores de gado. Mas o final da Guerra do Paraguai coincide com a segunda revolução industrial, com a criação do navio frigorífico, que permite exportar carne fresca, e a compra de cereais. De repente, vão ter início os milagres econômicos argentino e uruguaio. Como consequência, o espaço do Rio Prata, apesar de ainda importante, deixa de ser vital. E o Império brasileiro está em crise política e econômica, em razão dos gastos com a guerra. O Rio da Prata não vale mais uma guerra. E a diplomacia se torna o instrumento. Por fim, uma guerra implicaria na perturbação da agroexportação argentina, o que não interessava às suas elites.

A mentira muitas vezes tem um papel na história. Na Guerra do Paraguai existe a do falso acordo entre Brasil e Argentina para dividir o Uruguai, que se transforma em um dos dentes da engrenagem que leva ao conflito. Qual o seu peso para a eclosão da guerra? 

Eu tenho dúvidas sobre o papel do fator aleatório, do acidente na história. Pois há coisas que parecem acidentes, mas quando você vai ao arquivo, à micro-história, você percebe que tem uma lógica. E o historiador é por definição alguém que busca a lógica dos acontecimentos. Mas há momentos em que há o fator aleatório. Um exemplo: Tancredo Neves pega uma septicemia e morre, mudando a história recente do país. Na Guerra do Paraguai, tomo como exemplo a Batalha do Riachuelo, pois a derrota paraguaia inviabilizou a vitória de Solano López, impedindo o acesso à Buenos Aires. O ataque podia ter sido bem sucedido. A ideia era a flotilha paraguaia chegar aonde estavam fundeados os navios brasileiros ao amanhecer, quando os navios a vapor não estariam com fornalhas acesas e não poderia se movimentar. Só que a pá de um dos navios da flotilha paraguaia teve um problema e atrasou a partida. Ela chegou duas horas depois do planejado e aí já estavam acesas as fornalhas e a frota brasileiro conseguiu reagir. Se não fosse esse atraso o resultados seria outro. E por que não deixaram para o dia seguinte? Aí tem a lógica. Solano López punia qualquer chefe militar que não seguisse uma ordem dele. Preferiu-se então atacar mesmo com o bom senso dizendo que as condições seriam outras. No desencadear da guerra em si não vejo fator aleatório, mas muitos fatores racionais explicados. No caso da mentira, não havia plano de se dividir o Uruguai, mas o fato concreto é que Solano López acreditou nisso e eu não sei se o governo uruguaio não acreditava. Brasil e Argentina nunca haviam agido em acordo antes no Rio da Prata. Seria razoável se pensar que pretendiam dividir o Uruguai. O fato concreto é a convicção de Solano López de que aquilo era verdade e que teria um desdobramento: o ataque ao Paraguai. Solano López já tinha interesse de participar dos negócios do Rio da Prata. Enfim, não é a mentira ou informação duvidosa que leva ele à guerra, mas ela é um pretexto, uma justificativa.

Os principais atores tinham consciência para onde se dirigiam nos momentos que antecedem a guerra? 

Eu acho quer ninguém acreditava na guerra. Do lado brasileiro e argentino como pensar em um país como Paraguai, com 400 mil habitantes, isolado dentro do continente e sem armamento moderno, fosse atacar o Brasil, que tinha 9 milhões de habitantes, um comércio externo muito maior que o Paraguai e tinha marinha de guerra e a Argentina, que tinha uma população de 2 milhões de habitantes e com saída para o mar? Não era razoável supor que haveria esse ataque. Nem a elite brasileira - nem a argentina - acreditava a guerra. Os blancos uruguaios tinham esperança no socorro militar paraguaio, mas Solano López fica adiando. Ele tinha 70 mil homens em armas e um serviço de espionagem, mas talvez não acreditava que fosse ter usar essa força efetivamente. E, quando ele dá o ultimato em agosto de 1864 ao governo brasileiro, ele acredita que aquilo ia resolver. López não acreditava muito que o Brasil fosse intervir no Uruguai.

Qual o peso da pressão dos fazendeiros gaúchos no Uruguai e da subsequente intervenção brasileira naquele país para a decisão de Solano López iniciar o conflito? 

É muito importante. Têm as circunstâncias da época. De 1844 a 1862, o poder no Rio era controlado pelo Partido Conservador e foi ele que montou a política externa do Brasil para o Rio da Prata, que vigorou até recentemente, até o processo de integração Brasil-Argentina. E seu objetivo era conter Buenos Aires. As elites do Império temiam que essa república grande e forte no sul acabasse desintegrando o Brasil. O objetivo delas era ainda garantir a livre navegação do Rio Paraná e o acesso à Mato Grosso. Essa elite do Partido Conservador tinha uma visão de Brasil, não estava submetida às elites econômicas, ela ia além disso. O Visconde do Rio Branco, pai do Barão do Rio Branco, era um sujeito da maçonaria, um político profissional, um quadro weberiano no sentido da burocracia do Estado. O Partido Conservador defendia os grandes fazendeiros? Sim, porque todo mundo os defendia. Era uma realidade da época. Mas não era um instrumento dócil. Não era, numa visão marxista clássica, uma corrente que retransmitia os interesses dos senhores de escravos. Também fazia isso, mas não só isso. Ele cai em 1862 e sobe ao governo o Partido Liberal, que, por sua vez, vai incorporar dissidentes do Partido Conservador. O Partido Liberal assume e logo tem de enfrentar a Questão Christie, que foi uma desmoralização, com os navios britânicos na Guanabara ameaçando bombardear o Rio e, sob a mira dos canhões ingleses, o Brasil pagou a indenização exigida pela Inglaterra. Depois houve uma quebra de bancos no Rio. Havia um governo frágil, precisando melhorar sua popularidade e sem política externa definida. E aí vem os fazendeiros do Rio Grande do Sul, que tinham propriedades no Uruguai e tinham tomado um lado na guerra civil, o dos colorados, pois o governo uruguaio, que era blanco, tinha proibido a escravidão e proibido a exportação de gado em pé para o Rio Grande do Sul, pois o charque gaúcho era feito com gado uruguaio. O governo liberal de então não tinha condições de resistir à pressão da elite gaúcha. Assim, o papel dos fazendeiros é grande, pois leva o Rio de Janeiro a se envolver em uma assunto que interessava a Buenos Aires, mas não ao Brasil.

Sartre aborda em Questão de Método o papel do indivíduo na história. Como podemos classificar o papel de Solano López na história da Guerra? É possível dizer que a guerra não existiria sem a figura de López? 

É um tema altamente complexo e qualquer resposta seria defensável . Se você me perguntasse há 20, 30 anos atrás eu diria que não, que o homem não faz a história. Hoje temos dois pensadores diferentes: Marx diz que os homens fazem a história, mas não como gostariam e Ortega y Gasset que diz que o homem é ele mesmo e seu contexto. Um guerra é sempre fruto de um contexto. Um homem nunca a faz sozinho. Mas aí tem de pensar o contexto do que era o Paraguai. Sempre tinha vivido ditaduras e não tinha uma elite que se exprimisse em Parlamento. E o estado funcionava quase como uma propriedade pessoal de Solano López e de sua família. Durante a guerra, o maior fornecedor de gado ao exército paraguaio eram as fazendas da família López. As outras não conseguiam fornecer porque os homens foram todos convocados no começo da guerra, menos a família López. E a ideia de que um homem podia mandar e fazer o que queria era a realidade de López. O processo decisório era nenhum. A guerra é fruto do contexto, mas também é fruto da postura do governante. Sem ele aquele processo histórico não adquiriria a forma que adquiriu e, principalmente, a continuidade da guerra em si. A única explicação é a relação de Solano López com o poder. Ele sabe que vai perder, que não tem saída e sacrifica um país inteiro, uma população inteira. Pode-se falar em uma liderança carismática? Esse é um ponto polêmico. Há autores paraguaios, que se dividem entre lopistas e antilopistas, que vão dizer que ele era um tirano e eu concordo. Em alguns momentos, ele parecia carismático, mas não se sabe até onde ele era carismático ou era o terror que infundia e levava as pessoas a segui-lo. O fato concreto é que, como os paraguaios não tinham jornal e acesso á informação comum, eles acreditavam piamente que lutavam pela independência do país e que Brasil e Argentina iam anexá-lo. Durante a guerra, os soldados paraguaios foram muito corajosos.

Como muda a imagem dos chefes militares brasileiros depois da guerra do Paraguai? No caso dos chefes militares brasileiros, desde sempre eles foram apresentados como pessoas dignas de admiração. Não que não houvesse críticas, mas a maior parte das críticas em relação a Tamandaré ou a Caxias se davam em razão da política partidária. Caxias era senador do Partido Conservador e Osório era de uma facção liberal do Rio Grande do Sul que era detestada pela outra, a do (visconde de) Porto Alegre e do (almirante) Tamandaré. O que há de mudança é sobre a figura do herói máximo da guerra. No século 19 e no começo do 20 não havia a figura do patrono do Exército brasileiro. O maior herói era Osório e não o Caxias. Osório era verdadeiramente popular, inclusive na Argentina e no Uruguai. O que houve foi essa alteração. Osório tinha vindo de baixo para cima, ficava com a soldadesca, contava piada e Caxias era uma figura aristocrática, distante do soldado comum, disciplinador. Essa é a grande alteração que vejo. Mas não vejo surgir nenhum vilão nem um vilão se tornar herói. Todos eram respeitados como chefes militares.

No livro o senhor descreve a morte de Solano López e diz que ele não foi apenas lanceado, mas também recebeu um tiro de fuzil. E que os soldados brasileiros em Cerro Corá perderam o controle e o combate se transformou em degola. O que leva a esse comportamento na Guerra do Paraguai? 

Ele foi lanceado, mas a causa da morte vai ser o tiro. Depois que eu publiquei o livro, pesquisando para uma biografia do Osório, fiz contato com um tetraneto do general, professor de história da Universidade de Pelotas, Mário Osório Magalhães. Ele era parecidíssimo com o Osório e me cedeu os originais que tinha do senador Homem de Mello que, em 1869, foi ao Paraguai. Ele esteve com o cabo Chico Diabo, que lanceou o Solano López. Ele o descreve como uma pessoa extremamente simples, primária, que não articulava pensamento e que falava que a grande arma da guerra era a lança, que ela vencia canhões. A ordem do imperador era não matar Solano López. O objetivo era tirá-lo do Paraguai. Se você pegar o Chico Diabo, ele teve dificuldade de receber prêmio e não ganhou nenhuma condecoração e nenhum reconhecimento do império. Isso prova que não se queria matar Solano Lopez. E o tiro foi dado à revelia do general (José Antônio Correia da) Câmara. Um soldado veio e deu o tiro. Essa violência toda em Cerro Corá – não chega nem ser uma batalha propriamente dita, visto a diferença de forças entre um lado e outro - tem a ver e é fruto dos cinco anos de guerra, as condições em que o conflito foi travado. As violências foram de parte a parte também, dos dois lados. Há ‘n’ descrições de soldados aliados feridos sendo mortos em Curupaiti. Foi algo muito violento e, no final de 1969, teve uma enorme fome na tropa, faltou comida na tropa aliada. As descrições, como a do diário do conde D’Eu, mostram que a fome da tropa é inacreditável. Teve muita deserção. Não tem controle mais para se manter a ordem. O sujeito (Solano Lopez) que durante cinco anos foi apresentado como cruel e desumano está na sua frente e aí a soldadesca perdeu o controle. Em outros momentos também perdeu, como em Peribebuí e no saque de Assunção. Cerro Corá não foi o único momento.

Como a falta de unidade de comando e as lutas entre conservadores e liberais paralisaram as forças brasileiras no começo da guerra e qual o papel do imperador para contornar essas divisões? 

A Constituição permitia que os oficiais fossem filiados a partidos políticos e tivessem mandatos. Caxias era senador. O problema é que na frente de batalha o comandante de um partido privilegiava filiados à sua agremiação. E depois havia as acusações. A imprensa liberal atacava os chefes militares conservadores e vice-versa. Isso dificultou o processo decisório na frente de batalha. O caso maior foi Curupaiti e o período entre 19865 e 1866, em que não havia um comandante em chefe das forças brasileiras. Existiam três oficiais generais da mesma patente, dois do partido liberal que eram primos, o visconde de Porto Alegre e o Tamandaré e havia Polidoro Jordão, que era do partido conservador. Tinha uma imobilidade no processo decisório que, em parte não era o fator principal, mas que agravava as dificuldades de se montar uma estratégica frente a algo que não se conhecia bem, que era o complexo defensivo paraguaio de Humaitá. Esse processo apareceu ainda na invasão paraguaia do Rio Grande do Sul até Uruguaiana, porque não interessava a setores do partido liberal gaúcho fortalecer outro setor que estava no poder. O imperador teve de ir até Uruguaiana para pôr ordem naquilo. E é dali a única foto que temos dele vestindo uniforme militar. A intervenção dele também foi vital depois da derrota de Curupaiti, quando ele retira o Tamandaré, que foi afastado por ordem do imperador e teve de voltar ao Rio. E manda Caxias, que consegue unificar o comando para enfrentar o inimigo. O terceiro momento acontece a partir do segundo semestre de 1868, quando o Brasil só continua na guerra porque o imperador ameaça abdicar do trono se fosse diferente. Isso está comprovado por documentação de diplomatas estrangeiros que contavam o que estava acontecendo. Pois se dependesse das lideranças políticas, inclusive do partido conservador, o Brasil sairia do conflito. Em 1868, o próprio Caxias escreve: ‘Vamos parar essa guerra, não temos mais nada a ganhar, o inimigo está destruído e partir de agora, se continuarmos, não sabemos quanto vai custar em vida e em dinheiro para o Brasil'. E a ordem do imperador foi uma só. A guerra vai até o fim. São três intervenções vitais. A primeira para derrotar a invasão do Rio Grande do Sul, que não se estava conseguindo. A segundo para evitar a débâcle do exército aliado após a derrota de Curupaiti e, depois, a finalização da guerra. Apanhar Solano López só foi possível pela posição intransigente de d. Pedro II, que encontra, por sua vez, uma posição intransigente do lado oposto, que é Solano López, que diz que a guerra tem de ir até o fim e, quem não concordava, ele mandava matar.

A queda do gabinete liberal de Zacarias de Góes ocorre após o conflito com o Duque de Caxias. Sua ação teria servido de exemplo para os militares nos anos subsequentes? Como figuras como Caxias ajudam a moldar o comportamentos dos militares no Império e na República? 

No Segundo Reinado não há intervenções militares na política. A única que houve claramente é o golpe de Estado de 1889, que foi feito por uma uma minoria, vinculado a uma minoria civil e à revelia – apesar de o Deodoro estar à frente – da oficialidade mais antiga. É um pessoal que adquire espírito de corpo na guerra – capitães e majores – que vão dar o golpe. Essa questão de junho de 1868 é bem debatida. Não é que o Caxias impôs a queda do gabinete. O gabinete queria sair de um lado e o imperador, por sua vez, queria tirar o gabinete, queria fazer um rodízio para conseguir resultados concretos na guerra. As cartas do Visconde de Rio Branco para o Barão de Cotegipe, expoentes do Partido Conservador, mostram que eles não queriam o poder em 1868, pois a guerra é um abacaxi e o partido só iria se desgastar. Caxias tampouco queria derrubar o gabinete, mas está exaurido e não acredita mais na guerra. Depois ele que tomou a fortaleza de Humaitá, Solano López deixou de ser uma ameaça. A guerra não tem mais sentido e só prossegue porque o imperador ordena. Caxias era um chefe militar obediente à hierarquia. E isso é uma coisa interessante, porque a imagem que foi construída dele durante todo o século 20 e, principalmente depois de 1964, é do Caxias militar e durão, disciplinador, mas se esqueceu totalmente que o Caxias era obediente à Constituição, subordinado ao Poder Civil. Ele era um chefe militar que não intervinha no processo político. Ele intervinha como político, porque a Constituição permitia ele fosse senador. Em 1868, Caxias estava sendo atacado constantemente no Rio pela imprensa ligada ao gabinete. Sentiu-se boicotado e injustiçado. Ele estava havia dois anos na frente de batalha em meio a péssimas condições e queria ir embora. Caxias não introduz a intervenção dos militares no processo político interno. Na verdade, o gabinete se autoderrubou. Depois, o que vai acontecer é que, com a guerra, passa a haver um espírito de corpo entre os militares que não havia. Os soldados do pré-guerra eram desqualificados. Não havia um exército coeso, com hierarquia. Iso vai ser construído na guerra e vai continuar depois. O Exército adquire uma identidade que não tinha e esse espírito de corpo vai ser fundamental para ele se tornar uma instituição armada moderna.

Caxias e Osório eram militares e ao mesmo tempo políticos. O primeiro Conservador e o segundo do Liberal. Depois, na República, assistimos à ascensão e à queda do que Oliveiros Ferreira chamou de 'partido fardado'. Hoje há uma volta de militares à política. A presença de militares na política contribui para o fim do Império e se manteve na República. Por quê? Se você pegar a República Velha, de Prudente de Moraes e do Campos Salles até o tenentismo, temos duas décadas em que a presença militar é normal. Mesmo entre 1945 até 1963, so uma parte dos militares estava envolvido no processo político; a maior parte da tropa e da oficialidade estava cuidando de sua carreira, dos afazeres profissionais. Creio que assim como não existe só o lado militar na figura do Caxias, o processo político do século 20 não teve só intervenção militar. Agora, de fato, tivemos duas décadas de regime militar a partir de 1964 e isso nos impacta por motivos óbvios.

Quais as lições que a guerra do Paraguai deixa para os militares ainda hoje? 

O que se viu em 1864 - e acho que é uma lição - é que você precisa ter Forças Armadas preparadas profissionalmente porque. mesmo em situações aparentemente tranquilas. você não sabe qual é o futuro. Se em 1862 alguém dissesse que o Paraguai ia atacar o Brasil e ficaríamos cinco anos em uma guerra, seria ridicularizado. No entanto, isso aconteceu. Quando acontece tem a dificuldade de defender o Rio Grande do Sul por causa da atividade política dos oficiais, dos comandos politizados e partidarizados, e sa dificuldade no teatro de operações. Você precisa ter Forças Armadas preparadas para exercer a soberania. Precisa ter um núcleo militar profissional, treinado, bem armado para exercitar a defesa do País. A outra liação é que cada vez que os militares se envolveram em assuntos políticos, independente das intenções, por melhores que ela possam ser, eles tiveram menos tempo para se preparar profissionalmente para uma emergência. A politização das Forças Armadas não é boa para as Forças Armadas por um lado – não é à toa que o Castelo Branco fez as reformas que fez – e por outro lado não é boa para o País, pois você perde um instrumento eficaz de defesa, vide o caso das Malvinas (guerra em 1982 em que a Inglaterra derrotou a Argentina), o que aconteceu com a Argentina. Não fosse a politização, as disputas internas, a história seria outra.

Professor, o senhor acredita que ainda existam aspectos que precisem ser melhor iluminados sobre o conflito com o Paraguai. O que pode ainda desafiar os historiadores?

Existe uma enormidade. Você sabe que quase todo mundo decidiu ser historiador porque era péssimo em matemática. Eu conheci o Oliveiros Ferreira na (Ciências) Sociais da USP, que eu fiz história e depois ciências sociais. Lá nas Sociais tinha estatística 1 e 2 que eram matérias obrigatórias. Era um horror. Passei sempre raspando. São poucos os historiadores que dominam estatísticas instrumental e matemática. Não sabemos exatamente, só temos números aproximados de quantos soldados foram enviados para a guerra, de quantos morreram e como morreram. È preciso estudar as perdas da população paraguaia e argentina. Há ainda os dados sobre os gastos com a guerra - fiz um cálculo a grosso modo que dava mais de 600 toneladas de ouro pelos padrões de época. Também há o cotidiano do soldado - o que nós temos, normalmente, é dado pelo relato de oficiais, porque o soldado era analfabeto; fora que o ato de escrever era penoso, era com pluma e tinha de carregar um estojo grande com tinta e tinha de ter papel. Enfim, com novas metodologias e novas teorias talvez se consiga avançar. A Justiça militar na guerra não foi estudada. Não temos estudos sobre a Justiça Militar na Guerra do Paraguai e na Segunda Guerra Mundial também. A Justiça militar seria um caminho, apesar de seus registros sintéticos. E a retaguarda? Tinha banco, bordel? Isso não está estudado. A questão dos negros está razoavelmente estudada. Um coisa que me chama atenção é o estudo sobre os processos decisórios na Argentina, no Uruguai e no Brasil, um estudo comparativo sobre como funcionavam as políticas externas dos países e como isso pode ter contribuído ou não para o encadear da guerra. E mesmo a história econômica. Bem, desde que escrevi o livro apareceram inúmeras fontes inéditas. Apareceu, por exemplo, toda a correspondência do chanceler argentino da época, com 3 mil documentos. E de um chanceler do Solano López surgiram fragmentos escritos. Você tem centenas de publicações sobre a guerra e, no entanto, 150 anos depois continuam aparecendo documentos.

Marcelo Godoy

domingo, 3 de maio de 2020

Rubens Ricupero: "O cenário da política externa é um cenário de ruínas" - Consultor Jurídico

CENÁRIO DE RUÍNAS

"A 'lava jato' acabou, pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade"

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero —ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela diplomacia brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa atual e o legado da "lava jato".
Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 
O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.
Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um "partido togado", que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas "operações" que se arvoraram como combatentes da corrupção. 
Revisitando o assunto, diz que a "lava jato" perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. "Aqueles filhotes da 'lava jato' que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a 'lava jato' hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade", afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 
Se a "lava jato" é passado, o "partido da toga" legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.
"O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas", afirma.
A entrevista foi feita antes de Sergio Moro ter se demitido do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Confira a entrevista na íntegra: 
ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à "lava jato" em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da "lava jato"?
Rubens Ricupero —
 Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A "lava jato" acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a "lava jato" acabou, assim como a "mãos limpas" acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da "lava jato" que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a "lava jato" hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 
ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela "lava jato" teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?
Rubens Ricupero —
 Como consequência política, a "lava jato" teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da "lava jato", que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 
O saldo da "lava jato" é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a "lava jato" como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a "lava jato" deixou de existir.
ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?
Rubens Ricupero —
 É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 
O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.
ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?
Rubens Ricupero —
 Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.
Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 
ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?
Rubens Ricupero —
 Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de "origem do mal", quando nada disso corresponde à realidade internacional. 
ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?
Rubens Ricupero —
 O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.
Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 
ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?
Rubens Ricupero —
 Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.
O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 
ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?
Rubens Ricupero —
 A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 
ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?
Rubens Ricupero —
 Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.
Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 
ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?
Rubens Ricupero —
 Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída. 
 é repórter da revista Consultor Jurídico.
 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.


segunda-feira, 30 de março de 2020

Entrevista do chanceler sobre a Covid-19 - Fernando Rodrigues, SBT, Poder 360


Liderança de combate à covid-19 é de países, não da OMS, diz Ernesto Araújo

Isolamento total é draconiano
Não há conflitos com a China
Ministro foi ao Poder em Foco
Poder em Foco com Fernando Rodrigues em parceria editorial do Poder 360 com o SBT, entrevista ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo. Sérgio Lima/Poder360 17.dez.2019

30.mar.2020 (segunda-feira) - 0h01
atualizado: 30.mar.2020 (segunda-feira) - 7h46
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Henrique Fraga Araújo, 52 anos, diz ser contra a liderança da OMS (Organização Mundial da Saúde) no combate à pandemia da covid-19 –doença causada pelo novo coronavírus.
Para o chanceler, apesar de a propagação da doença ter se estabelecido como uma crise global, “isso não significa necessariamente que a solução tenha que ser única”. O ministro defende a liderança dos países. Considera que deve ser levada em conta a especificidade demográfica e econômica de cada nação.
“A liderança disso [do combate à covid-19] tem que ser dos países, pois cada governo nacional sabe qual é a sua situação e pode avaliar, sobretudo países que têm a capacidade de ação, como nós temos, que têm serviços de saúde, que têm ao mesmo tempo uma economia com as características que a gente tem”, defende Ernesto Araújo em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, apresentador do programa Poder em Foco, uma parceria editorial do SBT com o jornal digital Poder360.
“Acho importante que as pessoas vejam a OMS como algo que facilita a coordenação entre os países”, diz. Para ele, o  organismo mundial não tem condições de impor políticas globais para todos os seus membros.
Assista à entrevista gravada em 27 de março de 2020 (47min01s):
O ministro defende que os órgãos internacionais atuem somente como 1 espaço para que as nações se coordenem, compartilhem estudos e facilitem a resolução dos problemas com novas ideias. No entanto, essas entidades multilaterais não devem se “sobrepor aos países”.
“Em qualquer ramo, 1 organismo internacional [que venha a] se sobrepor aos países, aos governos nacionais, que sabem o que eles precisam, não é a melhor prática. Respeitamos muito a OMS, mas talvez parte desse problema seja oriundo dessa percepção de que aquilo que a OMS diz tenha que ser uma regra mundial”, afirma.
Ernesto Araújo afirma que a OMS é uma “organização importantíssima” e está cumprindo seu papel de “chamar a atenção para o tema”, divulgando informações relevantes diariamente. Porém, segundo ele, a entidade deve ser vista como “1 intercâmbio de ideias sobre o que os países estão fazendo” e não 1 órgão que centraliza as medidas que devem ser adotadas no mundo.
“É claro que essas organizações têm prestígio, mas esse prestígio não deve levar [ao pensamento de] que se tenha essa obrigação de se ter políticas mundiais. Acho que está claro isso, [quando se percebe] que os grandes países no mundo estão com políticas diferentes. Alguns fecharam logo as fronteiras, outros não. A própria OMS, se eu não me engano, era contra [ao fechamento das fronteiras]”, diz.

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Na entrevista, o chanceler também fala sobre como o governo se posicionou em reunião do G20 –grupo das 20 maiores economias do mundo– e como as medidas adotadas pelos países em relação ao coronavírus podem servir de exemplo ao Brasil.
Segundo Ernesto Araújo, além do Brasil, apenas 6 dos 20 países do grupo adotaram o isolamento horizontal (para toda a população). O presidente Jair Bolsonaro é contrário à medida, que foi implementada pelos governos estaduais, e defende o isolamento vertical (somente para os grupos de risco).
Ao tratar sobre o processo de repatriação dos brasileiros, o ministro afirma que até o momento houve 14.000 pedidos de assistência para retorno ao país. Já foram atendidos 7.000.
O chanceler comentou as declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que culpou a China pela pandemia da covid-19. Segundo ele, a declaração do filho do presidente “não é a opinião do governo”. Indagado sobre se os chineses teriam demorado em informar ao mundo sobre a doença, o ministro disse que não adianta olhar para trás, pois o momento agora é “de evitar o colapso econômico” e se concentrar no combate ao novo coronavírus.
Ernesto Araújo afirma que a aproximação de Bolsonaro do governo dos Estados Unidos não afeta as relações comerciais com o país asiático. “Nossa aproximação dos Estados Unidos, que tem sido muito intensa e produtiva, não significa problema ou afastamento da China”, diz.
O ministro descreve ainda como é sua relação com Olavo de Carvalho e a influência que o escritor conservador brasileiro radicado nos EUA tem sobre a política externa do país. A respeito de Nicolás Maduro, afirma que o governo venezuelano tem “simbiose com o narcotráfico”.

SÓ 6 DOS 20 PAÍSES ESTÃO EM ISOLAMENTO

Ernesto Araújo diz que, além do Brasil, apenas 6 países do G20 fazem isolamento horizontal (confinamento de toda a população para conter a propagação do coronavírus): África do Sul, Argentina, Itália, Espanha, Índia e França. Os Estados Unidos e a Alemanha têm quarentena total em alguns Estados. Para o chanceler, a adoção da medida “depende da realidade de cada país”.
“Cada país sabe o que é melhor para a sua população de acordo com sua estrutura demográfica e econômica”, defende.
Ao se posicionar contra o isolamento integral no Brasil, o ministro diz que o confinamento promovido em alguns países europeus não deve ter 1 impacto econômico tão grande quanto pode haver ao realizado no Brasil em 1 mesmo período.
“Alguns países europeus em confinamento integral têm a população com a estrutura etária bem mais idosa e com todo tipo de mecanismos sociais. São países que praticamente não têm uma economia informal. Então, uma pessoa [desses países] ficar em casa 1 ou 2 meses recebendo algum tipo de subsídio é uma coisa. Outra coisa é no Brasil, com a quantidade de pessoas que são autônomas e que dependem de estar na rua, de haver uma circulação de pessoas para conseguir desempenhar sua função e conseguir renda”, argumenta.
Depois da gravação da entrevista, o ministro conversou por telefone com o Ministro de Relações Exteriores do Reino Unido, Dominic Raab, que confirmou que também adotou o isolamento compulsório total. Com isso, 7 países do G20, além do Brasil, adotam o isolamento horizontal. São eles: África do Sul, Argentina, Itália, Espanha (não faz parte do G20, mas é convidada para as reuniões do grupo), Índia, França e Reino Unido.

ISOLAMENTO TOTAL É DRACONIANO

Ernesto Araújo rebate críticas à estratégia defendida por Bolsonaro de isolar somente as pessoas que estão no grupo de risco (idosos, diabéticos, hipertensos e quem tem insuficiência cardíaca, renal ou doença respiratória crônica) da covid-19.
O posicionamento do presidente foi manifestado em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV na última 3ª feira (24.mar.2020). Ao menos 13 governadores criticaram e lamentaram a fala do chefe do Executivo.
Para o ministro, o isolamento integral, adotado nos Estados por determinação dos governadores, é uma medida draconiana.
“De repente, começou-se a achar que todos os países começaram a determinar a quarentena integral e só o Brasil e só o presidente Jair Bolsonaro que quer uma solução diferente. Não é. A maioria dos países, dentro do G20, pelo menos, estão implementando outro tipo de medida que não essa medida tão draconiana, que digamos [que seja] a quarentena integral”, diz.
Segundo o ministro, a proposta de fazer com que a população deixe o isolamento horizontal e seja implementado o confinamento só para os mais vulneráveis à doença ainda está em estudo. “Há 1 esforço de todo o governo. Estamos fazendo 1 esforço de coordenação diária, várias reuniões por dia. Isso [o fim do isolamento horizontal] tem que ser visto”, afirma.
Na última semana, o governo lançou nas redes sociais vídeo com o slogan “O Brasil não pode parar”. O comercial reforça mensagens pregadas nos últimos dias pelo presidente Jair Bolsonaro, que critica a paralisia da economia em nome do isolamento social para prevenção à covid-19.
A Justiça mandou o Planalto suspender a campanha porque a medida propagada pelo presidente “pode violar os princípios da precaução e da prevenção”, impactando e colocando em risco “os grupos vulneráveis, notadamente os idosos e pobres”.
O governo contratou por R$ 4,8 milhões a agência iComunicação para cuidar de serviços digitais. A contratação foi classificada como “emergencial” e realizada sem licitação.
Em nota, o governo negou que a campanha fosse oficial, embora o site do próprio Planalto tenha divulgado (e depois apagado) o slogan.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Jean-Christophe Rufin: entrevista a Marcelo Lins



IDEIAS DO MILÊNIO

"Infelizmente a ajuda humanitária é usada como vitrine por políticos"

Entrevista concedida pelo médico e escritor francês Jean-Christophe Rufin, autor de Vermelho Brasil, ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (4h05).
Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2019

É comum hoje ressaltar a importância de qualquer profissional multiplicar suas habilidades, desempenhar várias tarefas, e esta é a marca, faz tempo, da carreira do escritor francês Jean-Christophe Rufin. Médico, trabalhou em hospitais e depois foi um dos pioneiros da ONG Médicos Sem Fronteiras. Também foi diplomata, servindo na África e no Brasil. Mas fez fama, chegou à Academia Francesa, virou sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras e ganha a vida com a paixão de sempre: a literatura. São quase 20 livros, entre eles vários romances históricos, e um desses, Vermelho Brasil, lhe valeu o maior prêmio da literatura da França. Narra a partir da aventura de dois garotos, uma empreitada colonial no século 16, que deveria estabelecer no Rio de Janeiro a chamada França Antártica. De passagem pelo Rio, Jean-Christophe Rufin falou ao Milênio.
Marcelo Lins — Qual é a melhor definição para Jean-Christophe Rufin?
Jean-Christophe Rufin — Eu diria que sou um médico que escreve, é isso. Ou seja, sou muito apegado à identidade médica, porque aos 20 anos aprendemos apenas uma coisa que nos dá a visão do mundo. Depois, podemos exercer várias atividades, mas o que aprendi naquela idade foi a medicina. Eu sigo sendo médico e escrevo também porque gosto de compartilhar minha experiência. Gosto de contar histórias, é isso.
Marcelo Lins — Você começou cedo a trabalhar com ajuda humanitária. Estava lá no começo do Médicos Sem Fronteiras. Como foi esse momento e essa passagem de estudante de medicina a jovem médico que vai trabalhar com ajuda humanitária?
Jean-Christophe Rufin — Foi também o efeito de uma época. Quer dizer, houve naquele momento, final dos anos de 1970, uma espécie de explosão, na França e na Europa em geral – esse continente que por décadas tinha recebido ajuda internacional. Afinal, nós é que tínhamos passado por guerras, fome, epidemias... De repente, ficamos ricos o bastante e suficientemente em paz e prósperos para ajudar os outros. E, para isso, criamos novas instituições – que, aliás, nem eram instituições, e sim grupos de amigos. Eu estava voltando de uma experiência na Tunísia, onde tinha trabalhado como colaborador, tinha descoberto uma medicina bem mais próxima daquela do meu avô. Ou seja, uma medicina simples, direta, próxima da população, e não dentro dos grandes hospitais parisienses. E adorei participar dessa aventura.
Marcelo Lins — É fácil, quando falamos de ajuda humanitária, ter uma visão meio romântica do tema. Na sua experiência você viu muita coisa, na África, nas Filipinas... Você esteve em Ruanda, nos países bálticos... Você chegou a escrever um livro, com o título "A Armadilha da Ajuda Humanitária". Que armadilha é essa e o que você viu nesse trabalho de ajuda que o desagradou?
Jean-Christophe Rufin — Não é que tenha me desagradado, mas é que sempre tentei ser lúcido em relação ao que fazíamos. E a visão romântica não ajuda. Imaginar que fazemos o bem assim, porque chegamos com remédios e alimentos. Isso é falso, não é assim que acontece. A ajuda humanitária faz parte da política, das situações políticas. De alguma forma, para chegar às vítimas, às pessoas que realmente estão precisando, é preciso ter os olhos abertos, estar consciente do que está sendo feito. E a armadilha é que a ajuda humanitária pode, de certa forma, ser uma espécie de vitrine usada pelos políticos. Infelizmente, é o que acontece cada vez mais.
Marcelo Lins — Algumas vezes até mesmo a Cruz Vermelha, para citar uma instituição que tem uma grande presença histórica, e já foi acusada de fazer política, quando deveria ser independente...
Jean-Christophe Rufin — Ou de ficar cega. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, a Cruz Vermelha Internacional não compreendeu o que estava acontecendo. Ela fez visitas a campos de concentração nazistas, sem se dar conta de que não eram campos de prisioneiros, mas, sim, de campos de extermínio. E esse erro, essa falta de lucidez, não coloca em xeque a ajuda humanitária. Mas, ao contrário, impõe que se tenha um espírito crítico e uma grande lucidez. 
Marcelo Lins — Para citar dois exemplos atuais, pois neste mundo bastante tumultuado, sempre existe a necessidade de ajuda humanitária. Há duas situações que, hoje, atraem a atenção do mundo. Uma aqui ao lado, na Venezuela. Quando se fala de crise humanitária no Brasil, por exemplo, pensamos logo na Venezuela de Maduro, essa Venezuela em crise total, sem saída à vista no momento. A outra crise humanitária, bem diferente, é a guerra do Iêmen. A ONU afirma que é o maior drama humanitário da atualidade. Como você vê essas duas crises?
Jean-Christophe Rufin — São muito diferentes, claro, mas existe um ponto em comum nos dois casos: a diminuição do espaço para ajuda humanitária. Quer dizer, o espaço – principalmente para as organizações independentes, para as ONGs, esse tipo de organização – é quase inexistente nessas duas crises, porque os governos assumiram o controle total sobre essas ações. Dá para ver isso, por exemplo, na Venezuela. A questão humanitária é, em grande medida, política. Quer dizer, para a oposição é um meio de conseguir ajuda internacional e, para alguns, de permitir a entrada do apoio estrangeiro no país. Já para o governo, a ajuda humanitária só é aceitável se tiver o controle sobre ela. No final das contas, não há mais espaço.
No Iêmen, é uma situação diferente, mas ao mesmo tempo há uma forte implicação política e militar dos países vizinhos, que torna quase impossível a presença de organizações independentes ou de voluntários independentes. E essa é uma das novidades atuais. Diferentemente das guerras que vi de perto, naqueles anos finais da Guerra Fria, onde, apesar de tudo, havia um certo vácuo, e conseguíamos entrar meio clandestinamente e, no fim das contas, chegar a uma ação humanitária direta. Hoje, o espaço está muito mais restrito e a ajuda humanitária torna-se, de certa forma, refém dos políticos.
Marcelo Lins — Você acredita que o trabalho humanitário, sendo necessário, precisa se adaptar às circunstâncias atuais?
Jean-Christophe Rufin — Não dá para, numa sociedade democrática, dizer: "Esse aí a gente vai deixar morrer." Existe necessariamente algo que tem a ver com compaixão, com sofrer junto. Se as nossas sociedades ficarem, abertamente, absolutamente indiferentes à desgraça dos outros, o que vai mudar é a natureza dessas sociedades. Ou seja, somos, de certa forma, condenados a alimentar essa abordagem humanitária. Mas garantir os meios e conseguir ser eficaz, levando ajuda às vítimas, é cada vez mais difícil.
Marcelo Lins — Voltando um pouco à sua carreira, à sua vida: em um segundo momento, você se tornou diplomata, passou a representar a França. Notadamente representante da França na África – uma ex-colônia francesa – o Senegal. O que você guarda dessa experiência na África?
Jean-Christophe Rufin — Muitas frustrações, porque ser livre, principalmente para quem é escritor, que é hoje a minha atividade principal, é fundamental. Então, dá para ser livre numa série de situações, mas quando você vira diplomata, não. Fica-se submetido... A palavra de um diplomata é controlada pelo contexto político, pelas instruções recebidas. Isso foi bastante difícil para mim, porque é preciso deixar de lado as opiniões e ideias. Ao mesmo tempo é fascinante, porque é também um jeito de mergulhar numa realidade diferente e de aprender muita coisa, de conhecer muita coisa. Raymond Aron dizia que é preciso pensar do lado do poder. Isso é sempre interessante. Não quer dizer tomar o poder, mas compreender como pensa o poder, e isso é, sem dúvida, muito útil quando a gente escreve. E a diplomacia nos dá acesso a essa compreensão.
Marcelo Lins — Como vê a diplomacia hoje?
Jean-Christophe Rufin — Se você fala das redes diplomáticas, é difícil fazer um julgamento. Acho que isso sempre existiu e que está aí para manter certos laços. Se falamos da diplomacia como uma dimensão da ação política de um Estado, é claro que é crucial. O futuro do nosso continente, o futuro mesmo do nosso país, depende da forma pela qual conseguiremos, ou não, manter essa construção europeia. Há consequências reais aí. A diplomacia não é uma questão de bolinhos, colheres e gente tomando chá, mesmo que haja muito disso, mas a questão é a responsabilidade dessas pessoas e desse conjunto. No fim das contas diz respeito aos indivíduos. Diz respeito a cada um de nós, de certa forma o resultado dessas ações e dessas políticas.
Marcelo Lins — E qual é, na sua opinião, a prioridade máxima da diplomacia francesa neste momento?
Jean-Christophe Rufin — Então, eu volto à Europa, porque de certa forma é aí que as coisas acontecem. Estamos num período decisivo, porque até agora vivemos uma espécie de fortalecimento permanente, seja pelo crescimento, seja pela consolidação institucional, ou ambos, do processo de construção europeia. Agora, pela primeira vez, isso foi colocado em questão. Não faço parte dos alarmistas, não digo que está tudo indo pelos ares, mas há forças centrífugas, com a Inglaterra, claro, sua saída, mas também com as posições de um grupo de países, principalmente no leste, que colocam em questão os princípios da União Europeia. Não quer dizer que tudo vai explodir, porque fiz uma viagem recentemente ao longo do Danúbio, para explorar um pouquinho mais a posição desses países, e eles permanecem em grande medida fortemente europeus, no fundo. Mas no discurso eles sobem o tom para fazer aumentar a consideração dos outros. Mas suas economias permanecem muito europeias, suas populações também permanecem bem europeias. Ou seja, nada de pânico, mas ao mesmo tempo, acredito que entramos numa nova fase da história da Europa e o que estamos vivendo é algo totalmente novo, e será necessário proteger as conquistas desses 50 anos, que nos deram a paz, não podemos esquecer.
Marcelo Lins — Você ficou surpreso com os resultados para o Parlamento Europeu? Onde essa subida, essa chegada da extrema-direita não se confirmou totalmente, onde outros atores apareceram, ocupando espaço?
Jean-Christophe Rufin — A extrema-direita, que aliás é muito fragmentada, muito dividida, representa um grupo relativamente modesto. O Parlamento Europeu não está dividido em dois grupos nos extremos, não é verdade. O extremismo existe, cresceu, mas, felizmente até, isso não resume a paisagem política. Essa paisagem política da Europa de hoje segue composta por gente com quem dá para trabalhar, gente que quer que a Europa funcione.
Marcelo Lins — Você trabalhou no Brasil como adido cultural no final dos anos de 1980, virada para 1990, viveu aqui por alguns anos. O Brasil foi tema de alguns de seus livros, Vermelho Brasil lhe rendeu um Prêmio Goncourt, e gostaria de saber qual a sua relação com o Brasil e como começou.
Jean-Christophe Rufin — Bom, começou por acaso, já que fui nomeado adido cultural em Recife, no Nordeste, ou seja não era só Recife, mas o Nordeste todo. Não conhecia o país, não falava ainda a língua, aprendi na marra, e foi uma descoberta muito rica. Não rendeu um livro de cara, porque foram necessários vários anos. Só depois da minha volta à França, para que afinal essas lembranças brasileiras tomassem corpo, e eu sentisse a necessidade de transformá-las em livro.
Marcelo Lins — Falando um pouco do livro Vermelho Brasil, que também foi lançado aqui, saiu aqui, nos anos 2000, como foi o processo de pesquisa? Foi difícil encontrar documentos, coisas históricas sobre o período retratado e qual a sua visão do Brasil daquela época e, digamos, da aventura francesa na chamada França Antártica?
Jean-Christophe Rufin — Descobri, ao me interessar, um pouco por acaso também, essa relação entre a França e o Brasil, me dei conta da existência desse episódio. Que, aliás, não é único, teve também São Luís do Maranhão e outros lugares onde essa relação se construiu, mas aqui no Rio foi um momento muito importante, não exatamente da história política do país, porque a França não permaneceu no Brasil, não colonizou o Brasil, mas sim na história das ideias. Os franceses chegaram aqui com as ideias da época, de que os índios eram selvagens, canibais, que era preciso trazer a civilização para eles. E finalmente, nessa baía do Rio, os franceses é que se portaram que depois foi desenvolvida por Montaigne e depois por todos os filósofos iluministas, que no fundo resultou nessa ideia do bom selvagem. Que surgiu aqui, nasceu aqui, da observação dos índios, que depois vai ser idealizada. Não apenas eles não serão mais vistos como pessoas que precisavam da civilização, como também Montaigne dirá que talvez essas pessoas, esses índios, fossem mais civilizados do que nós. E houve essa mudança completa, que está na origem das ideias iluministas, de toda essa ideia do paraíso perdido, do bom selvagem. Isso nasceu no episódio que conto em Vermelho Brasil.
Marcelo Lins — Como é que você vê as relações Brasília-Paris hoje e como vê esse Brasil de hoje? Duas perguntas em uma.
Jean-Christophe Rufin — As relações com a França, neste momento, estão um pouco marcadas por uma certa desconfiança, porque creio que há uma incompreensão, do lado francês, do que está acontecendo no Brasil. Não sabemos exatamente o que está acontecendo e não entendemos. Há uma tendência hoje de lermos a situação brasileira como se estivesse no mesmo saco, digamos, do que pode acontecer em países autoritários como a Hungria, como na Itália. Ver o Brasil como um dos países que vivem uma evolução conservadora, muito nacionalista e radical. Ou seja, em vez de compreender o Brasil como algo único, ele vira apenas mais um entre outros. Acho que isso não é bom, acredito que a situação brasileira tem suas especificadas, mas os franceses as conhecem mal.
Marcelo Lins — Talvez também pelo fato de que o Brasil faz também algumas sinalizações de aproximação com a Hungria, a Polônia, a Itália de Salvini, e isso dê essa impressão.
Jean-Christophe Rufin — Sem dúvida. Jogaram essa carta, mas ao mesmo tempo, a situação, da Hungria, onde estive recentemente, não tem nada a ver, e o poder da Hungria é algo totalmente diferente. Mas isso não importa, o que quero dizer é que o que preocupa os franceses hoje e é compreensível, é o que acontece por perto, o que acontece na Europa, e a situação do Brasil é vista com os óculos da Europa, é isso. Mas há também outras coisas, que sinalizam uma incompreensão. Como a maneira francesa de encarar a ecologia – o que fez com que a recepção ao cacique Raoni, se transformasse em uma manifestação. Mais uma vez, a partir de uma preocupação com uma política bem mais global, uma preocupação nossa, que foi expressa também nas eleições, em relação ao aquecimento global, ao desaparecimento da biodiversidade, todas essas prioridades ecológicas. Colocamos o Brasil como um exemplo negativo, sem, no entanto, entender a situação específica. Acredito que haja muita incompreensão, talvez de parte a parte.
Marcelo Lins — E já que estamos nos aproximando do final dessa entrevista, gostaria de voltar um pouco à literatura, gostaria de saber qual é a sua paixão hoje, se você está escrevendo um novo livro ou sobre o que gostaria de escrever?
Jean-Christophe Rufin — Bom, hoje o essencial da minha atividade, para não dizer a totalidade, é escrever livros, sobretudo romances. É quase como uma droga. Depois que a gente experimenta – pelo menos foi assim comigo – tem grande dificuldade de voltar aos ensaios e aos livros mais técnicos. O romance tem uma grande força, na medida em que permite falar de tudo e atrair leitores que não conhecem um tema para uma problemática na qual se identifiquem com algum personagem. Isso é algo que gosto de fazer. Publico com certa regularidade, e agora acabo de terminar um livro que vai ser publicado no ano que vem e tem a ver com a montanha. Sou bastante ligado à montanha. Fisicamente, sinto necessidade...
Marcelo Lins — Você mora na montanha boa parte do ano...
Jean-Christophe Rufin — Sim, moro na montanha uma grande parte do ano, preciso do alpinismo, preciso da montanha. Sinto não ter podido escalar o Pão de Açúcar desta vez. Enfim, gosto disso. E eu tinha vontade, há anos, de escrever um livro que se passasse na montanha e com a montanha. Onde montanha fosse personagem, de verdade. Foi que acabei de fazer e será lançado no ano que vem.
Marcelo Lins — Você tem 66 anos, se não me engano. Dito isto, a ideia do tempo que passa, da nossa finitude, da morte, é algo que o preocupa? É um tema sobre o qual gostaria de escrever, ou prefere deixar de lado, ou não é algo que preocupe o escritor Jean-Christophe Rufin?
Jean-Christophe Rufin — Não, mas como médico... Comecei minha carreira como médico. Muito jovem, tive que me deparar com a morte, o sofrimento, a doença. Era o meu trabalho quando era bem jovem. Eu tinha 23 anos quando assumi minhas primeiras responsabilidades na medicina, em hospitais de Paris. Quando escolhi escrever, foi para encontrar um outro mundo, um mundo de felicidade, de luz, energia, de força. Então, é claro que eu sei, melhor do que qualquer um talvez, que a morte e o sofrimento existem, mas tento levar uma outra vida e, pelo menos nos romances, criar uma vida que seja feita de outras coisas. Mesmo sabendo, claro, como todo mundo, para onde estamos indo todos, etc... Mas o que compartilho com os outros é uma forma de otimismo e de alegria de viver.
Marcelo Lins — Então, só para acabar, por esta resposta, vemos que você não é um pessimista, e mesmo viajando muito, acumulando uma grande experiência no mundo, você viu muita coisa. O que alimenta as suas esperanças num mundo melhor do que esse no qual estamos hoje?
Jean-Christophe Rufin — Acredito que há uma única coisa que eu me proíbo de pensar, é que era melhor antes, é isso. Quer dizer, é fácil, sobretudo quando envelhecemos, de dizer que era melhor no passado, que tudo era mais fácil, mais brilhante, mais claro. Não é verdade. Não é verdade. Acabo de escrever um romance que ainda não foi traduzido para o português, mas que retoma, a partir de dois personagens, a história de cinquenta anos, dos últimos cinquenta anos. E quando a gente retoma essa história, que eu vivi, se dá conta de como a gente veio de uma sociedade que era também muito difícil. Eu nasci sete anos depois de uma guerra que matou dezenas de milhões de pessoas. Então eu rejeito essa ideia de uma volta ao passado. Acredito que temos uma espécie de condenação à nossa frente, que é uma boa condenação aliás, de enfrentar o futuro, seja ele qual for. Ele nunca é fácil e, sobretudo, nunca é conhecido. E isso é bom.