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segunda-feira, 25 de maio de 2020

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres - Paulo Roberto de Almeida

O mundo pós-pandemia: resumo para o programa do Livres 

Paulo Roberto de Almeida
Rascunho para debate público online para o Livres, no dia 25/05/2020
na companhia do embaixador Rubens Ricupero e da economista Sandra Rios. 

A presente nota se dedica, numa primeira parte, a resumir o trabalho já elaborado para este debate e ao qual se pode recorrer para maiores detalhes: “O mundo pós-pandemia: contextos políticos e tendências internacionais” – disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43123473/O_mundo_pos-pandemia_contextos_politicos_e_tendencias_internacionais_2020_) –, a que se seguem mais alguns comentários sobre a questão selecionada para debate, bem como sobre a situação recente da diplomacia do Brasil, o atual “homem doente da América do Sul”. 

Adivinhos, oráculos e previsões
Debates online: fadiga pós-pandêmica, ou então substituirão os encontros físicos;
Minhas previsões imprevidentes...; companheiros ajudavam (ética na política...); os atuais fazem besteiras previsíveis;

Mudanças e continuidades, com pandemias que vão e que voltam
A verdade é que não sabemos como será o mundo pós-pandêmico;
Emb. Ricupero alerta que não será muito diferente; pandemias não mudam estruturas longas, à la Braudel;
Depois do terremoto de 14-18, o mundo continuou mais ou menos como antes;
Pacto Briand-Kellog, 1928; Japão invade a Manchúria em 1931; rearmamento alemão em 1933; Itália inicia guerra contra a Abissínia em 1937; 

Contextos nacionais e forças transnacionais
Mudanças já estavam em curso desde antes, entre elas o nacionalismo e os retrocessos protecionistas, que aliás antecedem Trump;
Ou seja, já estávamos em mundo novo antes da pandemia; só o Brasil desapareceu do mundo, e isso também antes da pandemia; agora, então, simplesmente não existimos, ou apenas existimos como mau exemplo;

Globalização micro e macro: qual avança, qual recua?
A verdadeira globalização, a micro;
A antigloblização, a macro;

Da Guerra Fria geopolítica a Guerra Fria econômica: quem perde, quem ganha?
Uma das coisas mais impactantes que constatei nos tempos recentes – e isso não está em meu paper – foi a rendição dos acadêmicos americanos à paranoia do Pentágono
Isso já estava um pouco visível nos debates sobre a Grande Estratégia nos EUA, até em Yale, com o biógrafo de Kennan, John Lewis Gaddis, e em Harvard, Graham Ellison, autor do famoso livro sobre a Essência da Decisão (Cuba, 1962)
John Lewis Gaddis tem aliás um livrinho sobre o fim da Guerra Fria: o Ocidente venceu
Bem, agora saímos da Guerra Fria Geopolítica e estamos na Guerra Fria Econômica.\

Como será, então, o mundo pós-pandemia: muito diferente do atual?
Para ser sincero, não tenho a menor ideia de como será o mundo pós-pandemia
A Grande Depressão pode ser agora uma Super Depressão; Chimerica de Ferguson
Infelizmente, para o Brasil, dada a má qualidade de nossas elites dirigentes, assim como devido à péssima qualidade daqueles que ocupam o poder político no presente momento, esse futuro é o mais incerto possível, oscilando entre o precário e o desastroso. Não consigo detectar governo tão medíocre, tão miserável, tão prejudicial à nação, ao Estado, ao país, quanto o atual desgoverno que teve início em 1º de janeiro de 2019: não sabemos ainda quando terminará...

Mundo pós-pandemia: não muito diferente do atual
O mundo não mudará muito, em suas estruturas fundamentais, mas mudanças tópicas podem ser relevantes;
A pandemia traz desemprego, sofrimento e pobreza, mas não provocará nem uma revolução social, nem grandes rupturas políticas;
Se houver mudanças de governos será mais como resultado do desgaste do existentes, por ineficácia em lidar com as consequências da pandemia;
As mudanças econômicas serão adaptativas aos impactos trazidos pela doença com algumas inovações importantes, em produtos e métodos (todas as guerras fazem isso);
Lideranças medíocres, como a nossa, atrasarão essas mudanças adaptativas no campo econômico e retardarão ainda mais suas sociedades do que o mero impacto da doença.

O “Homem Doente da América do Sul”? 
Esse conceito de “homem doente” foi empregado pela primeira vez para o caso da China, na última década do século XIX, e esse “homem doente” era o Império Qing, decadente, tanto que veio a termo apenas três anos depois que a Imperatriz Cixi morreu, em 1908. Contemporaneamente, o outro “homem doente” da Ásia, ou da Europa, pele menos parcialmente, era o Império Otomano, que se desfez nos muitos desastres da Grande Guerra, que também desmantelaram três outros grandes impérios europeus: o dos Habsburgos, na Áustria-Hungria, o dos Romanov, na Rússia czarista, e o dos Hoenzollerns, do Reich alemão, prussiano de origem. 
Mas não se pense que o termo possa ser exclusivo dessas situações-limite, decaindo como resultado de grandes conflitos bélicos, de guerras civis, de revoluções ou de ataques de potências estrangeiras, como também no caso da China imperial, e da própria República presidida por Sun Yat-Sen. Lembro-me que no começo deste século a Economist dedicou um editorial, artigos e uma ilustração de capa, para no novo “homem doente da Europa”, a Alemanha, antes que ela começasse as reformas que reforçariam a sua taxa de crescimento, o seu desemprego, o crescimento indesejado do já alto custo do trabalho, impactando sua competitividade internacional. Ou seja, ninguém escapa de cair no qualificativo desonroso, por razões geralmente vinculados a uma fase de declínio.
Pois agora chegou a vez do Brasil. Creio que já se pode chamar o Brasil de o “homem doente da América do Sul”, e não apenas por causa da nossa evolução trágica nos números cumulativos de infectados pelo Covid-19 e pelo volume de mortos. Nossos vizinhos já tinham percebido isso, e por isso mesmo declarado o fechamento de suas fronteiras e outras comunicações com o Brasil. Nosso país se tornou o “homem doente da América do Sul” a mais de um título, sobretudo no plano diplomático, na esfera dos direitos humanos, no respeito às liberdades fundamentais e no respeito à imprensa, assim como no terreno do meio ambiente e do cumprimento de compromissos assumidos no âmbito de acordos internacionais nessa área. Já dizia o embaixador Ricupero, ainda no governo de transição presidido pelo vice-presidente Michel Temer, que ninguém quer tirar foto ao lado do Brasil. Se isso era verdade em 2017, é bem mais atualmente. Como ele também disse, o Brasil virou um “pária internacional”, um verdadeiro proscrito da diplomacia mundial, um personagem anômalo nos foros internacionais e regionais. 
Essa não é, evidentemente, a opinião do chanceler, expressa na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, no Palácio do Planalto. Em meio aos muitos palavrões do presidente, o chanceler declarou que o Brasil poderia fazer parte de uma espécie de novo Conselho de Segurança que seria formado em um mundo pós-pandemia. Ele disse o seguinte, de acordo com a transcrição autorizada pelo ministro Celso de Mello:
Eu  [sic] cada vez mais convencido de que o Brasil tem hoje as condições, tem a oportunidade de se sentar na mesa de quatro, cinco, seis países que vão definir a nova ordem mundial. (...)
Eu acho que é verdade e assim como houve um Conselho de Segurança que definiu a ordem mundial, cinco países depois da... da segunda guerra, vai haver uma espécie de novo é ... [sic] Conselho de Segurança e nós temos, dessa vez, a oportunidade de  [sic] nele e acreditar na possibilidade de o Brasil influenciar e forma... ajudar a formatar um novo é ... cenário. (...)
E esse cenário é, ... eu acho que ele tem que levar em conta o seguinte é ... tamos [sic] aí revendo os últimos trinta anos de globalização. Vai haver uma nova globalização.
Que que aconteceu nesses trinta anos? Foi uma globalização cega para o tema dos valores, para o tema da democracia, da liberdade. Foi uma globalização que, a gente  [sic] vendo agora, criou é ... um modelo onde no centro da economia internacional está um país que não é democrático, que não respeita direitos humanos etc., ? [sic]

Tanto quanto o ainda presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho 02 do presidente, o chanceler também acredita que o momento do Brasil inspira grande confiança e pode se refletir em prestígio internacional. Não se pode, evidentemente, evitar que determinadas pessoas entretenham ilusões sobre a imagem do Brasil no mundo, ou sobre sua capacidade de influenciar temas e políticas da agenda internacional. O que se pode fazer é manter uma visão realista, sóbria, sobre a inserção atual do Brasil no sistema internacional, e constatar, ou melhor, indagar com quais países, ou em quais áreas, o Brasil poderia manter relações estreitas, assinar novos acordos bilaterais ou plurilaterais, ter confirmadas as suas duas principais ambições do momento – a entrada em vigor do acordo Mercosul-UE e o ingresso na OCDE – ou receber convites e aceitar visitas, de trabalho ou de Estado, com quais chefes de governo ou de Estado dispostos a cultivar relações com o Brasil atual. Numa recente reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para marcar os 75 anos do final da Segunda Guerra Mundial e a vitória das Nações Aliadas contra o nazifascismo, o chanceler aproveitou para lançar um novo ataque a propósito dos riscos do comunismo, tendo ainda recomendado que se evitasse a palavra multilateralismo, uma vez que todos os conceitos terminados em “ismo” poderiam denotar fenômenos essencialmente negativos. 
Registre-se que nas áreas de meio ambiente, de direitos humanos, de luta contra a corrupção, de relações bilaterais com boa parte de importantes países da Europa ocidental, ou até no âmbito do Brics, mas sobretudo no campo das relações regionais, o leque de possibilidades abertas ao engenho e arte da diplomacia profissional tem se reduzido de maneira substantiva desde o início do governo Bolsonaro. Já tendo, de partida, anunciado sua oposição ao multilateralismo – em nome de um difuso e nunca explicado antiglobalismo –, as relações do governo com o sistema da ONU – em especial com a OMS, em plena pandemia – são as piores possíveis, a ponto de obstar a convites para determinados encontros, em vista das críticas do presidente e do chanceler às posturas adotadas nesses organismos, e não apenas em relação à luta contra o Covid-19. 
Sintetizando, como diplomata profissional, posso testemunhar que nunca, em minhas quatro décadas a serviço do Itamaraty – com alguns intervalos, como durante toda a duração dos governos petistas, e atualmente, quando também me encontrei afastado do trabalho executivo –, mas também com base na leitura da história, deparei-me com tal desprestígio do Brasil no plano internacional, com um tal rebaixamento dos padrões profissionais do Itamaraty e com um abandono inédito de teses, posturas e dos métodos de trabalho da diplomacia brasileira e da política externa brasileira: trata-se, seguramente, de uma era deprimente da política externa e das relações internacionais do Brasil, uma fase a que eu não hesito em chamar de EA, a Era dos Absurdos. 
Se olharmos para trás, na longa evolução do Serviço Exterior do Brasil, desde a sua independência, e a dois anos de comemorarmos, em 2022, os primeiros dois séculos da existência da nação independente, podemos certamente constatar, como afirmou o embaixador Rubens Ricupero, em seu livro A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016(2017), que nossa política externa e o pessoal profissional e os estadistas nela envolvidos participaram efetivamente da consolidação de um Estado atuante, um dos mais sofisticados dentre as nações que surgiram do colonialismo ibérico, caracterizado por uma atuação de alta qualidade, de excelência mesmo, como reconhecido inclusive por parceiros de nações avançadas e com diplomacias bem mais longevas. Infelizmente, essa tradição admirável vem sendo deliberadamente constrangida, sabotada, deformada e diminuída desde o início do governo atual. Haverá um trabalho de reconstrução a ser feito como já registrado no chamado “manifesto dos chanceleres”, publicado nos grandes jornais brasileiros no dia 8 de maio de 2020 (ler a versão em português neste link: https://www.academia.edu/43153794/A_reconstrucao_da_politica_externa_brasileira_2020_; a versão em inglês, encontra-se disponível aqui: https://www.academia.edu/43042244/The_Reconstruction_of_Brazilian_Foreign_Policy_-_Former_Ministers).
Uma transcrição de seus principais parágrafos traz algumas evidências quanto à lamentável situação atual da política externa e da diplomacia brasileira: 
É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração. Aliena a independência governo que se declara aliado desse país, assumindo como própria uma agenda que ameaça arrastar o Brasil a conflitos com nações com as quais mantemos relações de amizade e mútuo interesse. Afasta-se, ademais, da vocação universalista da política externa brasileira e de sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, desenvolvidos e em desenvolvimento, em benefício de nossos interesses.
Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero. 
Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos. (...)
Na América Latina, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas, cedendo terreno a potências extrarregionais. Abrimos mão da capacidade de defender nossos interesses, ao colaborarmos para a deportação dos Estados Unidos em condições desumanas de trabalhadores brasileiros ou ao decidir por razões ideológicas a retirada da Venezuela, país limítrofe, de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro, deixando ao desamparo nossos nacionais que lá residem. (..)
A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.

O trabalho de reconstrução será efetivamente duro e demorado. Assim faremos.

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 25/05/2020

segunda-feira, 18 de maio de 2020

“O Brasil está cada vez mais isolado no Ocidente”: Oliver Stuenkel (RFI)

Uma entrevista de Oliver Stuenkel antes da pandemia, mas que se mantém ainda válida cinco meses depois: 



“O Brasil está cada vez mais isolado no Ocidente”, diz cientista político (Oliver Stuenkel)
Radio France International, Brasil, 31/12/2019 - 18:26

Doutor em Ciências Políticas, Oliver Stuenkel é professor de Relações Internacionais na FGV-SP.Arquivo pessoal

Autor de “O mundo pós-ocidental”, Stuenkel fala do isolamento do Brasil no Ocidente e da natural aproximação com a China, passando por questões comerciais, ambientais e de geopolítica. Confira os principais trechos da entrevista.
Sobre a política externa ao longo de 2019, Oliver Stuenkel pontua: “Este ano, a gente viu a maior ruptura na história da política externa brasileira, porque pela primeira vez o Brasil alterou vários dos pilares que guiam a atuação do país no mundo. O mais importante é o apoio ao multilateralismo, que sempre marcou a política externa brasileira, o apoio para a elaboração e manutenção do direito internacional, tudo isso sempre foi a marca registrada do Brasil e isso deixou de ser o caso em 2019”.
“E a outra questão que mudou muito é que o Brasil teve sempre uma previsibilidade bastante grande da sua atuação diplomática. Mesmo durante a ditadura militar, o Brasil sempre foi visto como um ator previsível no mundo, agora a gente tem vários grupos que participam abertamente do processo de criação de política externa: os ideólogos mais perto do presidente da República, os generais que fazem parte de seu governo e também os economistas que buscam uma liberalização. Então tem uma tensão evidente entre estes três grupos e isso cria uma imprevisibilidade”, afirma.
Por conta disso, ele explica, o Brasil deixou de ser um ator confiável: “Isso fica bastante claro no caso argentino: o novo governo não sabia até o último minuto se haveria ou não um representante do governo brasileiro na posse do presidente [Alberto] Fernández. Isso representa bastante bem esta nova forma de fazer política que a gente viu ao longo do último ano”.

Jerusalém
Sobre a anunciada mudança da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, Stuenkel analisa: “Este caso demonstra claramente como funciona a política externa do governo Bolsonaro. Ele quer isso, mas os dois outros grupos que importam na criação da política externa brasileira se opõem. Os militares não querem a embaixada brasileira em Jerusalém porque isso coloca o Brasil no meio de um dos conflitos geopolíticos mais difíceis, mais complexos do mundo”.
“Se isso de fato ocorrer, a relação do Brasil, inclusive de segurança, com o mundo árabe vai piorar bastante. Isso explica por que o vice-presidente Hamilton Mourão tem dito publicamente que ele não apoia esta mudança. Da mesma maneira os economistas neoliberais não apoiam esta medida, porque ela teria possivelmente um impacto negativo para a relação comercial do Brasil com o mundo árabe”, continua.
“A decisão sobre se vai haver ou não essa mudança vai depender da briga interna das facções que compõem o governo Bolsonaro. Eu ainda acho que a mudança traria um custo diplomático enorme. O Brasil sempre foi visto como um ator que consegue manter um diálogo com todos os lados e esta decisão faria o Brasil perder isso, além do impacto comercial importante”, adverte.

Relações com os Estados Unidos
Para Oliver Stuenkel, a aproximação do Brasil com os Estados Unidos é a grande aposta do presidente Bolsonaro. “Isso costuma ser uma empreitada difícil porque, para dar certo, o Brasil precisa oferecer ganhos tangíveis ao governo americano, de natureza sobretudo geopolítica, pelo fato de Brasil não ser uma economia tão grande. No fundo, o que importa para esta parceria ser relevante para um presidente americano é ter algum benefício geopolítico, senão o Brasil simplesmente não é importante o suficiente em Washington”, diz.
“No caso de Bolsonaro com Trump, o americano pediu duas coisas para que esta aproximação pudesse de fato acontecer: a primeira é  apoio para derrubar o regime Maduro, na Venezuela, o grande inimigo do governo americano. Bolsonaro até sugeriu inicialmente o apoio brasileiro a uma possível intervenção militar na Venezuela, mas as Forças Armadas, de novo, conseguiram bloquear isso. E também houve muita resistência no Itamaraty. Então o Brasil não anunciou este apoio e deixou de ter um papel relevante na crise venezuelana”, constata.
“O segundo pedido do governo americano é apoio para reduzir a influência chinesa da América do Sul. Isso é importante para Trump e tornaria o Brasil um aliado importante dos EUA. O problema, obviamente, é que o Brasil depende economicamente da China, é o nosso principal parceiro comercial há dez anos, e muitos grupos econômicos que apoiaram a eleição de Bolsonaro – entre eles a agricultura, têm interesse em manter e fortalecer a relação comercial com a China. Isso dificulta muito para o Brasil reduzir a influência chinesa na região; ao meu ver, isso não vai acontecer, e o governo americano já percebe que esta parceria com o Brasil rende pouco. E Trump, sendo protecionista, tem pouco interesse de permitir mais acesso de produtos brasileiros ao mercado americano”, acrescenta.

Relações com a China
Se com Washington as relações deixam a desejar, com Pequim tudo vai de vento em popa, segundo Stuenkel.
“A princípio, as relações estão ótimas. Eu conversei ao longo do ano com diplomatas chineses e empresários brasileiros que dependem desta relação e acredito que o vice-presidente brasileiro teve um papel fundamental para consertar a relação bilateral entre o Brasil e a China. Havia bastante preocupação no início de 2019 de que esta relação poderia sofrer em função da retórica anti-China de Bolsonaro", conta.
Além disso, ele explica que grupos poderosos que apoiam o governo Bolsonaro deixaram muito claro que “o custo de ter uma relação ruim com a China é altíssimo”. E tem uma outra razão que ajudou o Bolsonaro a parar de falar mal da China: seus eleitores não enxergam a China como uma ameaça, como é o caso dos EUA”, avalia.
“A China é fundamental para atrair investimentos externos e será um parceiro cada vez mais importante. O Brasil exporta para a China mais que o dobro do que exporta para os Estados Unidos. Essa dependência só vai aumentar, porque a China não consegue se alimentar. Isso será o nosso futuro econômico. A China sabe disso e trata o Brasil como um parceiro de longo prazo. Isso explica por que Xi Jinping, ao ser atacado por Bolsonaro, nunca respondeu nem atacou de volta, porque, para ele, a relação com o Brasil é mais importante do que o presidente atual do Brasil”, pontua.

Relações com a França
Para o especialista, as relações com a França e com o continente europeu tendem a piorar, com a exceção dos países governados pela extrema direita, com os quais Bolsonaro se identifica.
“O Brasil a partir de agora é visto como um ator imprevisível. O atual presidente não se deixa controlar facilmente, utiliza muito as mídias sociais – e isso vale também para o presidente americano – e os próprios diplomatas brasileiros ficam sabendo de mudanças da política externa brasileira pelo Twitter”, diz.
“Houve pedidos dos principais assessores de Bolsonaro para que pudesse haver uma distensão da relação do Brasil com a França, sobretudo no auge dos incêndios na Amazônia”, conta.
“Parece que não vai melhorar muito em 2020, porque o tema do meio ambiente é cada vez mais importante, sobretudo na Europa, isso não vale apenas para a França. O tema ambiental é cada vez mais central e isso vai dificultar toda a relação destes países com o Brasil, porque o Brasil é visto como um vilão nesta questão ambiental, em função de vários comentários do presidente e seus assessores questionando a existência da mudança climática”, analisa.
Para Stuenkel, dificilmente o Brasil chegará a ter, nos próximos três anos, uma boa relação com países europeus governados por centristas. “O Brasil tem uma ótima relação com governos de extrema direita, como é o caso da Hungria, mas a relação com a maioria dos outros governos será muito difícil”.
“Dificilmente esta reputação que Bolsonaro adquiriu ao longo do último ano vá mudar. Ele é muito mal visto pela maioria da população europeia e seria um custo muito alto para um presidente francês ou alemão receber Bolsonaro na Europa”, avalia.
Outra novidade da política externa brasileira, segundo o professor, é a inclusão do tema religioso. “Isso também é cada vez mais relevante na política externa de países como Hungria e Polônia. No passado vimos isso também no caso da Itália. Isso certamente vai aumentar ainda mais para satisfazer demandas de grupos internos. Igrejas evangélicas estão tendo participação cada vez maior na articulação da política externa – e este também é o caso nos EUA – então isso me parece que vai se tornar uma nova marca registrada do Brasil”, prevê.

Risco de isolamento?
“Me parece que o Brasil já está bastante isolado, sobretudo no Ocidente. Isso fica bastante claro. Ao longo do último ano eu visitei várias capitais do mundo ocidental e a gente vê claramente que o Brasil é visto como um parceiro difícil, pouco popular em geral, a associação que a maioria dos europeus faz do Brasil hoje é negativa, principalmente pelo tema ambiental. Mas eu não diria que o mesmo é o caso na Ásia, por exemplo, ou na África, onde o tema ambiental não é tao relevante”, explica.
Stuenkel acredita que “por conta desta mudança da reputação brasileira no Ocidente, o governo brasileiro será lembrado por sua aproximação com a Ásia, porque lá esta atuação controversa em relação ao meio ambiente ainda não teve um impacto negativo sobre a reputação do Brasil”.
“O Brasil está cada vez mais solado no Ocidente e isso vai aproximá-lo ainda mais da China”, afirma.
Para ele, em 2020 será importante manter uma boa relação tanto com Washington quanto com Pequim.  
“Outras questões importantes para 2020 é ver como se dará o Brexit, que terá um impacto importante na política global, na economia europeia, que ainda é importante para o Brasil; e qual será o resultado das eleições dos estados Unidos em novembro. Se Trump não for reeleito, me parece que há uma necessidade de reorientar a política externa brasileira porque Bolsonaro perderia sua grande inspiração”, finaliza.


domingo, 17 de maio de 2020

Política externa bolsonarista - Celso Lafer

Resumindo: inconstitucional, contrária aos interesses nacionais, mantém o Brasil isolado do mundo e da própria região.

Política externa bolsonarista
Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais
Celso Lafer
O Estado de S. Paulo, 17 de maio de 2020

Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional. 
Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade. 
O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto. 
O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018. 
Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria. 
São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado. 
O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas. 
A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente. 
Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais. 
A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro. 
O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente. Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição. 
Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19. 

PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP; FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)

terça-feira, 12 de maio de 2020

Grosserias de Ernesto Araújo empurram o Brasil para a irrelevância, diz embaixador - CEBRI

Grosserias de Ernesto Araújo empurram o Brasil para a irrelevância, diz embaixador

Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores

Sputnik - O presidente emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Luiz Augusto de Castro Neves, foi embaixador do Brasil na Argentina, Japão e China, entre outros países, além de ter sido secretário de Assuntos Estratégicos do Ministério das Relações Exteriores.
À Sputnik Brasil, Neves defendeu a nota publicada pelo Cebri no último sábado (9), na qual os rumos da política externa brasileira sob o governo do presidente Jair Bolsonaro são criticados.
Entre outras afirmações, o documento se refere a "um acumulado de erros recentes e que atingiram agora um patamar de disfuncionalidade e de prejuízo para o país ao seguir o caminho oposto do que seria natural durante a crise provocada pelo novo coronavírus".
"[O que motivou a nota] foi a disfuncionalidade crescente da política externa brasileira está tendo como consequência a irrelevância da atuação internacional do governo brasileiro, o que é grave e altamente prejudicial aos interesses brasileiros", disse Neves à Sputnik Brasil.
O presidente emérito do Cebri é um dos 27 signatários do comunicado, que ressalta que "em datas recentes o governo brasileiro, através do Itamaraty [...] tem feito declarações gratuitas e inconsequentes, proferido votos e adotado posições que nos enfraquecem e isolam sem com isso, de forma alguma, fortalecer a defesa de nossos interesses".
"Se acumulam as queixas e ressentimentos com posições nossas que se desviam de nossa longa tradição de cooperação construtiva com a sociedade internacional. Tudo isso tem um preço que pode vir a nos ser cobrado quando mais precisamos de uma coisa que já tínhamos merecidamente conquistado e que era o mais amplo respeito da sociedade internacional que via no Brasil um parceiro amistoso, confiável e, acima de tudo, generoso", acrescentou a nota.
Neves pontuou que parece claro que a política externa brasileira esteja sem rumo, "com algumas manifestações esparsas, grosseiras e inconsequentes". Presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o diplomata não mencionou diretamente, mas o órgão lida com o maior parceiro comercial do Brasil, o mesmo atacado por ministros e filhos de Bolsonaro recentemente.
"Além das 'declarações gratuitas e inconsequentes', o Brasil tende à pior forma de isolamento, que é aquele decorrente da irrelevância de sua atuação em suas relações internacionais; acrescente-se a conduta errática de algumas autoridades em relação a países com os quais o Brasil tem parcerias estratégicas relevantes para o maior interesse nacional, que é o de promover seu desenvolvimento econômico e social", completou o ex-embaixador.
Na sexta-feira (8), vários ex-chanceleres brasileiros – incluindo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – divulgaram em jornais de grande circulação um manifesto contra a atual situação do Itamaraty, que é associado mais ao alinhamento automático com os EUA e o negacionismo do que com o multilateralismo que sempre regeu a política externa do país.
Em resposta, Ernesto Araújo usou as suas redes sociais e atacou tanto o manifesto quanto a nota do Cebri. O chanceler recentemente foi criticado por associar a China à covid-19, tecendo o termo "comunavírus" para associar a pandemia a um suposto levante comunista no planeta.

CEBRI se manifesta sobre a ausencia de politica externa e diplomacia destrambelhada

O CEBRI finalmente saiu de sua timidez e hesitação “tucana” (ou seja, ficar em cima do muro) para simplesmente dizer a verdade sobre o horror que é a diplomacia destrambelhada do inepto chanceler acidental, conduzindo de maneira canhestra uma política externa que basicamente NÃO existe — pois nunca foi exposta claramente (pela incompetência e ignorância de seus verdadeiros patronos amadores) — e que atua CONTRA os interesses da nação. O CEBRI tem entre seus apoiadores financeiros grandes empresas brasileiras e estrangeiras. Isso significa que, se o Grande Capital (essa figura mítica dos marxistas) ainda não rompeu totalmente com o desgoverno do capitão apalermado, ao menos já rompeu com a antidiplomacia da EA, a Era dos Absurdos.




quarta-feira, 6 de maio de 2020

A Amazônia Legal e a politica externa brasileira - Paulo Roberto de Almeida e Américo Alves de Lyra Jr. (7/05)

Recebi, junto com o professor Américo Alves de Lyra Jr., convite da Federação Nacional de Estudantes de Relações Internacionais do Brasil (FENERI), entidade que atua há anos promovendo diversos debates acadêmicos sobre as Relações Internacionais no Brasil, para participar de um ciclo de palestras, com diversos doutores e pesquisadores das Relações Internacionais do Brasil, que tem por objetivo inaugurar e promover a revista FENERI.
O ciclo de palestra, que se inicia amanhã, dia 7/05/2020, às 19hs, foi pensado como um impulso para a revista que ainda não foi lançada, mas breve o será (recebi convite para colaborar, o que pode ser feito por meio do paper que preparei para esta minha palestra inaugural).
O público alvo, segundo os organizadores, são os estudantes de graduação e pós graduação em RI, que possivelmente, assim que for lançada oficialmente a revista, farão submissões e contribuirão para esse projeto avançar ainda mais. 
A atividade desta quinta-feira será constituída, primeiro, de uma fala inicial do mediador, seguida de 20 minutos para minha exposição e mais 20 minutos para a exposição do prof. Américo. Em seguida passamos para as perguntas do público em geral. 



Aproveito para anunciar novamente o texto que preparei para esta oportunidade, mas que não pretendo ler: os interessados poderão fazer perguntas a partir de alguns dos meus argumentos.

A Amazônia legal e os desafios da política externa brasileira
 Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/42945592/A_Amazonia_legal_e_os_desafios_da_politica_externa_brasileira_2020_). Anunciado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/05/a-amazonia-legal-e-os-desafios-da.html).


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Politica Externa Bolsonarista: ameaça aos interesses do Brasil - Editorial O Globo

Quando um grande jornal toma posição sobre um item da política externa, ainda que seja sobre uma questão aparentemente tópica, é porque esse Editorial também tem escopo conceitual e pretende firmar posição sobre questões fundamentais que atingem os interesses do país como um todo.
Há muito tempo que a diplomacia olavo-bolsonarista vem causando constrangimentos ao Brasil, não apenas à sua imagem lá fora, que já está terrivelmente diminuída – como poderiam atestar TODOS os diplomatas em postos no exterior, se pudessem falar livremente –, mas também aos interesses concretos de setores econômicos DENTRO do país.
Parece que o comitê de tutela militar sobre o Itamaraty, e sobre o próprio presidente, que andava um pouco desativado nos últimos meses, vai ter de voltar ao trabalho, para evitar desgastes ainda maiores, não só à nossa imagem, mas sobretudo aos interesses de exportadores e empresários em geral. Parece que o ministro da Economia já andou reclamando da área ambiental; deveria se preocupar com a área diplomática também.
Apenas um reparo a esse Editorial do Globo, "Guinada do Itamaraty põe em risco os interesses do país": quando se fala de Itamaraty, o coletivo está ERRADO. Não se trata do Itamaraty, e sim do chanceler acidental, em sua fidelidade sabuja a um dirigente totalmente incompetente em matéria de política internacional, de relações exteriores e de diplomacia.
Reproduzo aqui textualmente o último parágrafo, cujo argumento está reproduzido no lead: 
"As atuais posições político-religiosas na política externa refletem os ideais totalitários de uma ala que, ocasionalmente, ocupa áreas-chave no governo. O problema é que tais imposições começam a redundar na multiplicação de riscos aos interesses nacionais."
Paulo Roberto de Almeida.


domingo, 16 de fevereiro de 2020

Consequência da adesão a Washington: "Morte de general do Irã fez Brasil se preparar para guerra" (OESP)

Morte de general do Irã fez Brasil se preparar para guerra

Assassinato de Qassim Suleimani em ataque americano, em janeiro, fez embaixada brasileira em Bagdá estocar comida e combustível

A morte do general iraniano Qassim Suleimani, em janeiro, fez a embaixada brasileira em Bagdá entrar em alerta. Telegramas enviados ao chanceler Ernesto Araújo - obtidos pelo Estadão -, apontaram para o risco de guerra e mostram que os diplomatas adotaram medidas de segurança para proteção dos brasileiros, incluindo a compra de combustível e de comida.
O general iraniano foi morto na madrugada do dia 3 de janeiro, à 1 hora no horário local (19 horas do dia 2 de janeiro, em Brasília). O primeiro relatório da embaixada foi emitido com caráter "urgentíssimo" e relatava o que havia sido reportado pelo noticiário, reproduzia a primeira justificativa dos EUA para a morte - "deter planos iranianos de ataque" - e oferecia ao Itamaraty uma análise da nova conjuntura do Iraque.
Suleimani era chefe de uma unidade especial da Guarda Revolucionária do Irã e o militar de mais alto escalão do país. A ofensiva americana também matou Abu Mahdi al-Muhandis, comandante do Comitê de Mobilização Popular, uma milícia xiita iraquiana apoiada pelo Irã.
Iranianos com bandeiras do Irã comemoram 41º aniversário da Revolução Islâmica em Teerã
11/02/2020 Nazanin Tabatabaee/WANA (West Asia News Agency) via REUTERS
Iranianos com bandeiras do Irã comemoram 41º aniversário da Revolução Islâmica em Teerã 11/02/2020 Nazanin Tabatabaee/WANA (West Asia News Agency) via REUTERS 
Foto: Reuters
"As circunstâncias da morte do general Suleimani e do comandante Abu Mahdi al-Muhandis constituem grave escalada, em território iraquiano, nas disputas envolvendo Irã e EUA e, certamente, deterioram, em muito, o já delicado quadro político-militar no Iraque. Não é descabido temer a eclosão de conflagração interna", diz o comunicado.
A crise no Oriente Médio teve repercussão no Brasil. Jair Bolsonaro prestou solidariedade ao governo dos EUA logo após o ataque. O Brasil disse apoiar a "luta contra o flagelo do terrorismo" e ignorou a morte do militar iraniano. A mensagem foi interpretada com um alinhamento ao discurso de Donald Trump e criticada pela comunidade muçulmana.
Os telegramas a Araújo foram escritos pelo diplomata Flávio Antônio da Silva Dontal, encarregado de negócios da embaixada. Quando a crise começou, o embaixador brasileiro em Bagdá, Miguel Júnior França Chaves de Magalhães, estava de férias. Mesmo assim, todas as ordens para as providências partiram dele.
"Por instrução do titular do posto, que se encontra de férias, determinei às empresas que nos prestam serviços de segurança e logística o reforço de pessoal e coordenação com a polícia federal iraquiana; e aquisição de óleo diesel e de mantimentos adicionais, talvez precauções que se mostrarão excessivas, mas recomendáveis no momento", escreveu Dontal.
Um segundo relatório "urgentíssimo" foi enviado ao Brasil na tarde do dia 3. Nele, a diplomacia brasileira descreveu a escalada da tensão e os protestos em Bagdá. O governo brasileiro foi alertado sobre a decisão de uma empresa de segurança privada americana de retirar 900 funcionários do Iraque por precaução. As tropas dos EUA estavam sendo reposicionadas em países vizinhos e havia expectativa de reação de milícias xiitas no Iraque.
Paralelamente, a embaixada brasileira recebia "inúmeros pedidos de orientação" de brasileiros que vivem no Iraque. Grupos no WhatsApp e no Facebook foram divulgados para facilitar a comunicação. A embaixada também sugeriu a reprodução da nota enviada a esses grupos no site do Itamaraty, o que foi atendido.
"No atual quadro de incertezas e especulações, a embaixada do Brasil recomenda aos portadores de passaporte brasileiro que monitorem as notícias por meio de fontes confiáveis, evitando tomar decisões com base em rumores e especulações que, como sabemos, são comuns e se espalham rapidamente nessas horas de crise", dizia o comunicado.

Funeral

O corpo de Muhandis foi enviado a Najaf, no sul do Iraque. O de Suleimani, a Teerã. A procissão começou ainda no dia 4. O enterro do general só ocorreria três dias depois, com o trágico desfecho de dezenas de pessoas mortas pisoteadas na multidão que foi às ruas prestar homenagens ao militar, considerado um herói nacional.
Contudo, rumores detectados pelo serviço de segurança da embaixada brasileira davam conta de que, na verdade, os restos mortais de Suleimani haviam sido enviados a Teerã antes mesmo do cortejo. No documento elaborado no dia 5, o funeral transcorreu "com razoável normalidade" e o telegrama ganhou prioridade normal nas linhas de comunicação da embaixada com o Itamaraty.

Repercussão

A manifestação oficial do governo brasileiro sobre o episódio provocou reação por parte do Irã. O Ministério das Relações Exteriores iraniano chegou a convocar a encarregada de negócios do Brasil em Teerã, Maria Cristina Lopes, para explicar a posição. Em Brasília, o governo temia possível represálias terroristas em razão da posição em favor dos EUA.
Dados da empresa AP Exata, publicados pelo Estadão no sábado, mostram que o dia do ataque foi o que mais rendeu comentários negativos contra o presidente desde a posse. Internautas que temiam o alinhamento do Brasil com os americanos criaram a hashtag #BolsonaroFicaCalado. O mau humor das redes foi crescente nos dias seguintes. Outro pico de críticas ocorreu no dia 8, quando Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo para acompanhar a fala do presidente americano.

Política externa bolsonarista: impregnada de religião

Governo deixa religião guiar política externa sob argumento de que Brasil é 'país cristão'

Diplomatas e lideranças evangélicas falam em corrigir 'erro histórico'. Especialista critica viés religioso na presidência de Jair Bolsonaro

O Globo, 16/02/2020

BRASÍLIA - O discurso em nome da fé cristã se tornou um dos nortes da política externa brasileira no governo do presidente Jair Bolsonaro. Para aqueles que argumentam que, pela Constituição, o Estado é laico, os diplomatas mais próximos ao Palácio do Planalto têm uma resposta pronta: todos os credos e religiões devem ter o mesmo tratamento, mas a realidade é que o Brasil é um país cristão.
Essa nova vertente da diplomacia brasileira se consolidou há cerca de dez dias, em Washington, quando BrasilEstados UnidosHungria e Polônia lançaram oficialmente a Aliança pela Liberdade Religiosa. O objetivo central desse “chamamento global” é combater a perseguição de cristãos no mundo.

Mas há outros movimentos na política externa. Brasil e Hungria discutem a criação de um fundo para financiar comunidades cristãs que vivem no Oriente Médio. Outro passo foi dado em março de 2019, quando o Brasil e mais sete países conseguiram aprovar uma resolução, na ONU, declarando 22 de agosto como o Dia Internacional em Memória das Vítimas de Atos de Violência baseados em Religião ou Crença.

Embaixada em Israel

No horizonte, existe a promessa de Bolsonaro de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. A medida, que segundo o presidente será tomada até 2021, tem a questão religiosa como pano de fundo — denominações evangélicas apoiam Israel no desejo de transformar Jerusalém em sua única capital.
O setor oriental de Jerusalém é considerado território ocupado pela ONU e reivindicado pelos palestinos como capital de seu futuro Estado. Se a transferência se concretizar, as relações do Brasil com os países islâmicos podem ser prejudicadas.
A guinada na política externa se repetiu em relação aos direitos humanos. O caso mais simbólico e polêmico nesse sentido ocorreu em março passado. A delegação brasileira nas Nações Unidas se recusou a assinar um documento sobre saúde reprodutiva da mulher, alegando que, por trás desse debate, estava embutido o direito ao aborto.
Uma fonte do governo Bolsonaro afirmou que, hoje, corrige-se um “erro histórico”: o Itamaraty defenderia os direitos humanos em todos os organismos multilaterais que participava, menos quando os direitos violados eram de cristãos. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, costuma dizer que a política externa, hoje, “tem alma”.
Em uma deferência à bancada evangélica no Congresso, Bolsonaro e Ernesto Araújo costumam levar esses parlamentares em viagens internacionais. No início de janeiro, acompanharam Araújo para um périplo por países africanos os deputados Helio Lopes (PSL-RJ), Marco Feliciano (Podemos-SP) e Márcio Marinho (PRB-BA) — os dois últimos bispos da Universal. Todos são da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara.

Feliciano ressalta que a “a igreja evangélica é missionária” e que “o internacionalismo está em seu DNA”. Ele diz, porém, que não há ingerência na política interna de outros países. Na África e na América Latina, há forte presença de igrejas brasileiras.
— Como parlamentares, juramos defender a Constituição, a qual salienta o direito à autodeterminação dos povos — afirma.
Para Nelson Franco Jobim, professor de pós-graduação em Relações Internacionais das Faculdades Hélio Alonso, se o Estado é laico, a política externa não deve ter viés religioso. Para ele, a contaminação da política pela religião traz o risco do fundamentalismo.
— Vamos discriminar países muçulmanos? A religião é dogmática, não pode fazer concessões em diversas áreas. É uma boa desculpa para adotar políticas radicais em nome de Deus — afirma.