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terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A institucionalidade do Mercosul: um texto de 1993 - Paulo Roberto de Almeida

Durante a fase de transição do Mercosul (1991-1994), eu me preocupava com a questão da conformação futura do bloco, especulando sobre as instituições permanentes, pós-1994. 
Parece que não se avançou muito desde então.
Em todo caso, reproduzo o meu texto de 1993, no qual refleti debates mantidos pelo Itamaraty sobre o assunto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3/12/2019


A INSTITUCIONALIDADE FUTURA DO MERCOSUL:
Primeiras Aproximações

Paulo Roberto de Almeida
Editor do Boletim de Integração Latino-Americana
Boletim de Integração Latino-Americana
(Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18)
Relação de Trabalhos nº 343
Relação de Publicados nº 131

À medida em que se aproxima o final do período de transição fixado pelo Tratado de Assunção, o debate sobre a futura conformação institucional do MERCOSUL começa a atrair a atenção de crescente número de estudiosos e observadores, para não falar dos próprios negociadores da integração subregional, em primeiro lugar os diplomatas e outros altos funcionários das chancelarias do países membros, que são estatutariamente as responsáveis pela coordenação política desse processo.

O Calendário Institucional do MERCOSUL

Essa preocupação com a institucionalidade futura do MERCOSUL decorre, em primeiro lugar, de razões eminentemente práticas. Com efeito, o Tratado de Assunção afirma em seu Artigo 18: “Antes do estabelecimento do Mercado Comum, a 31 de dezembro de 1994, os Estados Partes convocarão uma reunião extraordinária com o objetivo de determinar a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum, assim como as atribuições específicas de cada um deles e seu sistema de tomada de decisões”.
Já em previsão dessa obrigação, os países membros tinham estabelecido, desde junho de 1992, um calendário tentativo para preparar os documentos de trabalho que servirão de base a essa reunião extraordinária, presumivelmente uma conferência de plenipotenciários que deverá concluir-se pela assinatura de novos instrumentos diplomáticos regulando a administração e o funcionamento do MERCOSUL a partir de 1º de janeiro de 1995.
Assim, no capítulo institucional do cronograma de medidas que deverão ser adotadas antes de 31 de dezembro de 1994 com vistas a assegurar o pleno cumprimento dos objetivos estabelecidos no Tratado de Assunção para o período de transição, mais comumente conhecido como “Cronograma de Las Leñas”, foram estabelecidos alguns prazos tentativos para a implementação de ações correspondentes nos campos da estrutura institucional definitiva dos órgãos do MERCOSUL, de suas atribuições específicas e do mecanismo de tomada de decisões. 
Resumidamente, os prazos são os seguintes:
Junho 93: análise do desenho institucional do MERCOSUL posterior ao período de transição;
Dezembro 93: análise das atribuições específicas de seus órgãos, do mecanismo de tomada de decisões e continuação da análise do desenho institucional em matéria legislativa, executiva e judicial do MERCOSUL “definitivo”;
Março 94: determinação das instituições, definição das atribuições específicas dos órgãos e do mecanismo de tomada de decisões posteriores ao período de transição;
Maio 94: encaminhamento ao Grupo Mercado Comum das três séries de definições para “avaliação e instrumentação”.
Por sua vez, segundo o Cronograma de Las Leñas, o início da preparação da reunião extraordinária está fixado para dezembro de 1993, devendo a reunião realizar-se previsivelmente no segundo semestre de 1994. Para preparar adequadamente essa reunião diplomática, sobretudo do ponto de vista substantivo, isto é, a elaboração dos documentos negociadores que serão finalizados pelas mais altas autoridades políticas dos países membros, o Grupo Mercado Comum decidiu criar, em sua IXª reunião (Assunção, abril de 1993), um Grupo ad hoc encarregado de tratar dos temas institucionais, reportando-se diretamente ao GMC.

Mesa redonda no Itamaraty

Para ajudar a preparar a posição brasileira a ser discutida nessa instância técnica de trabalho e, ulteriormente, nas reuniões diplomáticas que se seguirão, o Itamaraty, como coordenador brasileiro do processo de integração convidou, em meados de maio último, uma dezena de estudiosos e especialistas que, a título individual, puderam debater amplamente a estrutura institucional atual e futura do MERCOSUL. 1 Sob a direção do Secretário-Geral do Itamaraty, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, e do Embaixador Rubens Antonio Barbosa, Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior e Coordenador da Seção brasileira do GMC, os participantes da mesa redonda dedicaram-se a um intenso intercâmbio de opiniões e de argumentos fundamentados sobre os diferentes aspectos institucionais dos processos de integração, em sua dimensão comparada, e sobre a estrutura ideal ou possível que poderia adotar o MERCOSUL.
O debate frutífero que então se travou foi balizado, mas não limitado, por algumas questões básicas que necessitam ser respondidas previamente à formulação de sugestões formais sobre a estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do MERCOSUL e seu processo decisório. Essas perguntas, entre outras subjacentes, foram nomeadamente as seguintes:
1) Interessa ou não ao Brasil a existência, a partir de 1995, de instituições definitivas supranacionais ?;
2) Em caso positivo, quais seriam essas instituições e qual o seu grau de supranacionalidade ? Sua competência seria decisória, propositiva, ou apenas consultiva ?;
3) Em caso negativo, é do interesse do Brasil que todos os órgãos do MERCOSUL sejam de caráter intergovernamental ou alguns deles deveriam dispor de relativa independência em relações aos Estado membros ?;
4) Deverá necessariamente o Tratado de Assunção ser substituído por um novo Tratado ou poderá ele ser modificado por instrumentos jurídicos negociados pelos quatro governos e aprovados pelos respectivos Parlamentos nacionais ?, e
5) Quais os tipos de processo decisório interessam ao Brasil no âmbito do MERCOSUL ? Quais suas modalidades rationae materiae: unanimidade (veto); maioria simples; maioria qualificada ? Neste último caso, que tipo de maioria qualificada ?
Muitas outras questões afloraram no decorrer dos debates, não apenas derivadas das acima citadas, mas em especial preocupações vinculadas ao processo de revisão da Constituição brasileira — a ser conduzido depois de 5 de outubro de 1993, de conformidade com o Artigo 3º das Disposições Transitórias — e que oferece uma chance à sociedade brasileira de adequar o Estado e as normas regulatórias da atividade econômica aos novos requisitos do processo de integração subregional e da inserção internacional. As notas que se seguem não têm a intenção de coligir todas as opiniões emitidas por cada um dos participantes, mas tão somente oferecer um apanhado de argumentos e de proposições que, sem representar a opinião do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro sobre a questão, podem contribuir para a intensificação do debate nacional sobre a institucionalização futura do MERCOSUL e aportar assim elementos de juizo para a formulação preliminar de uma posição negociadora sobre o desenvolvimento institucional do processo de integração subregional.

A Institucionalidade do MERCOSUL

Em que pese a complexidade das tarefas que ainda restam a ser cumpridas para a consecução dos objetivos fixados no Tratado de Assunção, os participantes reconheceram a utilidade e a conveniência de se assegurar uma conformação institucional que sirva para consolidar e fazer avançar os compromissos assumidos pelos Estados Partes em março de 1991, nomeadamente os de uma zona de livre comércio e de uma união aduaneira, pressupostos necessários e irrecusáveis do Mercado Comum do Sul. A continuidade do desenvolvimento institucional do MERCOSUL oferece, assim, um dos elementos de garantia de que aqueles objetivos não sofrerão retrocesso. Aliás, a própria implementação prática do Mercado Comum — hoje fortemente sustentada pela vontade política das máximas autoridades de cada um dos países membros — se encontrará singularmente reforçada se, ao lado da coordenação intergovernamental já assegurada, se puder avançar na concreção de um mínimo de supranacionalidade nesse processo.
Para caminhar nessa direção foi indicada, antes de mais nada, a necessidade de se cumprir com o estipulado no Artigo 18 do Tratado de Assunção, que objetiva à conformação da “estrutura institucional definitiva dos órgãos de administração do Mercado Comum”. O próprio avanço do processo de integração contribui para uma racionalidade superior e um disciplinamento das políticas macroeconômicas nacionais, dando-lhes um marco de gestão tendencialmente estável e funcionalmente harmônico. O MERCOSUL passou a propiciar, às empresas privadas nacionais e multinacionais, um horizonte de planejamento e de investimento produtivo de razoáveis dimensões econômicas, num momento em que a formação de blocos regionais apresenta-se como uma estratégia política de peso no atual processo de reorganização do sistema multilateral de comércio.
Inversamente, uma eventual opção pelo “congelamento” institucional da nova área de integração poderia resultar na perda da credibilidade internacional já alcançada pelo MERCOSUL — não só junto a entidades congêneres existentes e em formação (CEE, Grupo Andino, NAFTA), mas também junto a outros importantes parceiros internacionais (Estados Unidos, Japão) e organismos e foros especializados de tipo econômico (BID, GATT etc.) — com a consequente diminuição da capacidade de barganha política adquirida pelo MERCOSUL nessas instâncias. O processo de integração também passou a representar, e não só para o Brasil, um elemento estimulador de algumas formas de planejamento macroeconômico e da liberalização econômica, com a dinamização consequente de movimentos que poderão no futuro vir a contribuir para o aperfeiçoamento da competitividade tecnológica e da modernização industrial.

Supranacional ou intergovernamental ?

No que se refere ao caráter das instituições definitivas, se intergovernamental ou supranacional, foi lembrado o importante papel histórico e mesmo a funcionalidade estrutural que instituições desse último tipo tiveram em outros processos de integração, em especial o europeu, no sentido de se assegurar o funcionamento adequado das diversas disposições que regem um mercado comum (defesa da concorrência, coordenação das políticas macroeconômicas, setoriais e de comércio exterior, interpretação comum das normas comunitárias etc.). Nossos parceiros mais importantes no processo de integração parecem igualmente encarar como natural e necessária essa transição para a supranacionalidade. O atual Embaixador da Argentina no Brasil, Alieto Guadagni, quando ainda ocupava o cargo de Secretário de Relações Econômicas Internacionais na Chancelaria argentina escreveu que “con toda seguridad [las] instituciones definitivas habrán de ser más fuertes que las actuales, incorporando asimismo algun ingrediente de supranacionalidad. Parece muy dificil imaginar que las instituciones actuales puedan sobrevivir más allá del periodo de transición pues las mismas carecen de la entidad suficiente para llevar a sus últimas consecuencias un proyecto de Mercado Común”. 2
Quanto ao seu grau de supranacionalidade, exprimiu-se o argumento de que essa supranacionalidade está implícita na lógica do processo de integração e já se encontra presente, por exemplo, no sistema provisório de solução de controvérsias, que prevê a aceitação pelos Estados Partes do Protocolo de Brasília de laudos arbitrais formulados por juízes independentes. Ainda assim, esse grau de “cessão de soberania” não pode eludir as condições efetivas em que se realiza o processo de integração no Cone Sul, marcado por avanços reais no programa de liberação comercial, algumas dificuldades para o estabelecimento da tarifa externa comum e uma baixa propensão à coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais.
A esse respeito, o Ministro Sérgio Florêncio, Chefe do Departamento de Integração do MRE e coordenador alterno da Seção brasileira do GMC, formulou uma série de perguntas que apresentam alto grau de pertinência para um adequado encaminhamento do debate. Aqueles que equacionam os avanços no processo de integração à construção da supranacionalidade não deixam de ter sua dose de razão, em função dos resultados aparentemente bem sucedidos do exemplo europeu. Mas, a supranacionalidade, na integração de países dotados de pesos econômicos tão díspares e de estruturas socioeconômicas diferenciadas, tampouco deixa de colocar problemas à boa marcha do processo. A alternativa à supranacionalidade é a continuidade do esquema interestatal atual, no qual o Brasil parece deter maior margem de manobra. Por outro lado, há que se questionar o timing da institucionalização supranacional, em função das assimetrias remanescentes e das políticas divergentes entre os países membros. Nesse sentido, acelerar o processo não significaria eventualmente contribuir para o seu insucesso ?

De que tipo de instituições necessita o MERCOSUL ?

Muito embora se tenha sublinhado a necessidade de inovar institucionalmente, e mesmo de se procurar definir órgãos de administração mais conformes às reais necessidades do processo de integração no Cone Sul, também se reconheceu que, nesse terreno, parece difícil fugir ao “modelo europeu” de institucionalidade. Ainda que a arquitetura interna no MERCOSUL possa ser bastante diferente da complexa edificação institucional da CEE, basicamente não se pode escapar às funções essenciais a todo processo integracionista: a) comando político intergovernamental; b) execução técnica de tipo comunitário; c) controle, fiscalização e apelo de tipo arbitral ou judicial e d) representação e participação societária de tipo parlamentar ou por delegação setorial.
Em outros termos, a institucionalidade mínima requerida em processos desse tipo comanda a definição e o estabelecimento dos seguintes tipos de instituições comuns:
1) um órgão superior de caráter intergovernamental, detendo o essencial do processo decisório, em forma ponderada;
2) um outro órgão, de tipo executivo, caracterizado por uma supranacionalidade estritamente necessária a seus fins de proposição de decisões e de controle da implementação de medidas;
3) uma instância de vigilância e apelo, tipo Corte Arbitral, e
4) um foro consultivo com ampla participação da sociedade.
Esse modelo quadripartite, involuntariamente calcado no exemplo europeu — que não foi, todavia, o adotado no caso do Grupo Andino — poderia portanto ser desdobrado, em sua máxima extensão, numa estrutura institucional compreendendo os seguintes órgãos e funções:
a) um Conselho, de natureza política, com representação paritária dos países membros, mas provido de um sistema de tomada de decisões refletindo o peso específico de cada um deles no esquema integracionista;
b) uma Comissão, de caráter supranacional, ou seja, um órgão executivo dotado de poderes e atribuições propriamente comunitárias, e não mais simplesmente intergovernamentais;
c) um Tribunal de Justiça ou Corte de Arbitragem, que funcionaria não só como instância de solução de controvérsias entre os países membros e seus agentes econômicos, mas também como foro constitucional e instância de controle e de apelo e cujos laudos teriam aplicabilidade direta nos Estados Partes; e
d) um Parlamento comunitário, com poderes consultivos e de representação (mas não legislativos) e provavelmente constituído, numa primeira fase, por via indireta, isto é, a partir dos legislativos nacionais, e, numa fase ulterior, por via eletiva direta;
e) um Comitê Consultivo, de natureza econômica e social.
Ainda assim, esse “modelo básico”, de tipo europeu, talvez vá muito além do que os requerimentos do MERCOSUL, em sua fase atual e mesmo futura, parecem exigir e, por isso, se poderia pensar numa estrutura menos elaborada, na qual, ao lado de um Conselho (e, eventualmente, de um Grupo intergovernamental, que atuaria como foro de representantes permanentes), se teria uma Autoridade comunitária reduzida à sua expressão mais simples (um Comissário ou uma pequena Comissão de 3 ou 5 membros), com poderes propositivos, e uma Corte Arbitral dotada de funções de apelo e de controle. A Comissão Parlamentar continuaria existindo, durante certo tempo, no seu formato e responsabilidade atuais.
Em todo caso, é possível que, realisticamente, se tenha de continuar operando, durante algum tempo após o período definido como de transição no Tratado, com base no atual formato intergovernamental, que poderíamos chamar de “modelo BENELUX”. A passagem para o “modelo da CEE” — não a do Ato Único e muito menos a dos acordos de Maastricht, mas tão simplesmente a do Tratado de Roma de 1957 — se daria numa fase ulterior, quando se tivessem cumprido plenamente as metas econômicas e os objetivos políticos da união aduaneira.
Como bem lembrou o Professor Vicente Marotta Rangel, titular de Direito Internacional Público da FDUSP e ex-Consultor Jurídico do Itamaraty, a formulação do Artigo 18 do Tratado de Assunção deixa certa margem à interpretação criativa: “estrutura institucional definitiva” não quer necessariamente dizer que os novos “órgãos de administração do Mercado Comum” tenham de ser implantados de forma imediata e começar a funcionar desde 1º de janeiro de 1995. O futuro Tratado, ou um Protocolo ao atual, poderia prever a implementação calendarizada — ou cumpridos determinados condicionantes a um salto de etapa — das instituições permanentes do Mercado Comum.
Essa trouvaille do Prof. Rangel não deixaria, por certo, de receber o aplauso dos que estão hoje legitimamente preocupados com as fortes limitações de caráter político-institucional e as ainda maiores incertezas de tipo econômico do atual processo de integração. Essa implementação escalonada e gradual do capítulo institucional do Mercado Comum do Sul reverteria, assim, em dispor de um MERCOSUL comunitário “virtual” — no sentido informático da palavra — embutido no MERCOSUL “real” do modelo BENELUX. Em todo caso, não há porque adotar-se um modelo prêt-à-porter ou então procurar o “produto adequado” no supermercado da integração latino-americana, mas sim modelar a vestimenta institucional do MERCOSUL em função de suas reais dimensões e das necessidades do processo empírico.
Como também não deixou de sublinhar o Professor Luiz Olavo Baptista, da mesma Faculdade, o Tratado fala de “órgãos de administração”, o que lhes daria um estrito caráter de gestão do processo de integração e não obrigatoriamente o papel de liderança política que instituições supranacionais, ou pelo menos comuns, têm em outras áreas. Luiz Olavo lembrou ainda o caráter ibérico de nossas formações sociais e estatais, o que dificultaria sobremaneira qualquer pretensão a ter um processo de tipo europeu, com total independência da burocracia “comunitária”. Mas, não se pode pretender tampouco eludir algum tipo de controle parlamentar desse processo.
Resumindo essa parte do debate, o Ministro Sérgio Florêncio apontou as qualificações do Artigo 18: a reunião extraordinária ali prevista destina-se a determinar os órgãos definitivos do Mercado Comum, mas não sua implantação imediata; esses órgãos são de administração e não necessariamente de direção política e, ao se falar em “órgãos de administração”, pensou-se mais na gestão dos assuntos correntes típicos de uma zona de livre-comércio, que era o horizonte de trabalho dos “constituintes” do Tratado de Assunção, do que na complexa direção de uma estrutura comunitária acabada.
Caso não se implemente, de imediato, a supranacionalidade explícita no “modelo da CEE”, poder-se-ia, ainda assim, constituir órgãos subordinados dotados de relativa independência em relação aos Estados membros. Em todo caso, pode-se pensar num Secretariado Executivo, dotado de atribuições precisas no que concerne a implementação dos objetivos de completa liberalização de comércio, bem como num Conselho Superior das Aduanas, no estilo BENELUX, de caráter intergovernamental, mas dotado de capacidade de iniciativa, com vistas a cumprir os requisitos necessários ao funcionamento de uma união aduaneira.
Por outro lado, como enfatizou o Professor Werter Faria, Presidente da Associação Brasileira de Estudos da Integração (Porto Alegre, RS), se se quer avançar na direção de um mercado comum, seria importante ir criando jurisprudência comunitária em matéria de liberalização de mercados e defesa da concorrência, para o que se afigura como absolutamente indispensável um Tribunal Arbitral dotado de um mínimo de supranacionalidade e, de preferência, um Tribunal de Justiça com poderes de controle e de fiscalização sobre as ações dos Estados membros. No exemplo europeu, lembrou o Prof. Werter, a construção do mercado comum foi praticamente a obra — não solitária, mas pelo menos substancial — da Corte de Luxemburgo, com suas incontáveis ações de controle da legalidade dos atos dos países membros da CEE e seu papel fundamental na eliminação das barreiras não-tarifárias (normas técnicas, medidas sanitárias etc.) que os Estados passaram a erigir no lugar dos recém derrubados direitos aduaneiros.

Novo Tratado ou modificação do atual ?

A maioria dos participantes da mesa redonda, com a solitária exceção deste articulista, manifestou-se em favor da continuidade do atual instrumento básico do MERCOSUL, com a introdução das modificações que se fizerem necessárias para cumprir o articulado do Artigo 18 e as demais exigências de uma plena união aduaneira, com a possível definição de novas normas contratuais no terreno das políticas setoriais (industrial, agrícola etc.) ou macroeconômicas (fiscal, tributária, defesa da concorrência etc.).
O Tratado de Assunção, como uma espécie de “Carta constitucional” da nova área de integração, é suficientemente flexível para abrigar as necessidades atuais e futuras dos países membros na construção do espaço econômico comum. Assim, ele deveria ser escoimado de seus elementos provisórios, modificado em todas aquelas seções que já não mais corresponderem aos novos requisitos da integração em sua fase de consolidação comunitária e continuar a apresentar esse caráter maleável que o qualifica como instrumento adequado da integração sub-regional.
Para argumentar contrariamente à necessidade de um novo Tratado de integração no Cone Sul, o Ministro Sérgio Florêncio fez uma série de ponderações que merecem registro. Em primeiro lugar, um segundo instrumento geraria inevitavelmente um efeito comparativo com o primeiro e todas as comparações costumam ter o seu lado negativo. A complementação do atual Tratado, e não sua substituição integral, permitiria pontualizar o foco das discussões mais importantes para a continuidade do processo negociador e evitar, em consequência, o inferno jurídico que uma abertura de todos os pontos poderia suscitar. Em termos contratuais práticos, o Tratado de Assunção deriva basicamente do programa estabelecido pela Ata de Buenos Aires e pelo ACE-14 e, portanto, não deveria desviar-se de seu eixo original. Por fim, o próprio exemplo europeu ilustra a continuidade básica institucional ali seguida: todos os instrumentos que complementaram e aperfeiçoaram o mercado comum tiveram o formato de emendas, modificações ou adições aos Tratados da CECA de 1951 ou aos de Roma de 1957 (CEE e Euratom), notadamente o Ato Único de 1986 e o Tratado da União Europeia aprovado em Maastricht.
Note-se que a sugestão de se proceder à substituição do atual Tratado prendia-se à percepção de que a modificação de seus termos, em especial no que concerne à estrutura do processo decisório, poderia gerar alguma resistência por parte de certos setores em determinados países, particularmente nos meios parlamentares, mas tal preocupação não foi julgada relevante para justificar todo o trabalho de se empreender uma negociação de um novo instrumento diplomático. Como observado pelo Ministro Renato Marques, Secretário de Comércio Exterior do MICT, a opção pela regra do consenso, constante do atual Tratado, era lógica e necessária, uma vez que se dava início a um processo, necessariamente intergovernamental, de construção embrionária de um espaço econômico comum. Na fase seguinte, de consolidação comunitária, quando se afirmam os critérios da supranacionalidade, é natural que sejam mudadas as regras de funcionamento institucional da área de integração.

O processo decisório no MERCOSUL

Trata-se de um dos elementos mais importantes no debate político intra-MERCOSUL, com repercussões sobre a formulação e implementação de políticas e decisões comuns nos mais diversos campos, notadamente nos campos da defesa da concorrência e de restrição às práticas desleais de comércio.
Sem cair no jogo de palavras, houve consenso, entre os participantes, de que a atual regra do consenso deve ser substituída através da adoção de um processo qualificado de tomada de decisões, provavelmente sob a forma de um “decision-making mix”, ou seja, operar uma combinação de mecanismos decisionais na qual:
a) determinadas decisões requeiram a unanimidade, como as de tipo constitucional, por exemplo: mudança do Tratado, interesse nacional relevante etc.;
b) outras uma maioria simples, como aquelas decorrentes de medidas rotineiras: convocatória de órgãos e reuniões;
c) outras ainda uma maioria qualificada, ou seja aquelas que visam propriamente a uma tomada de ação nos campos político e econômico.
A experiência das Comunidades Europeias, com a adoção evolutiva de diversas instâncias e sistemas decisionais, oferece, nesse terreno, um modelo e um laboratório avançado sobre o funcionamento dos diversos mecanismos possíveis de tomada de decisão. No MERCOSUL, igualmente, se terá de operar com base num sistema de votação ponderada, que deverá atribuir um número diferenciado de pontos aos países membros, segundo os princípios da equidade e da justiça, mas também da importância relativa do aporte efetivo de cada um deles ao espaço econômico comum.

A integração e a revisão constitucional brasileira

A mesa redonda não se ocupou especificamente dessa questão, mas caberia talvez lembrar, a título meramente informativo, a oportunidade que se abre para o Brasil no segundo semestre de 1993. A Carta Constitucional brasileira de 5 de outubro de 1988, ao trazer inscrita em suas disposições transitórias a perspectiva de sua revisão, oferece a possibilidade de uma adaptação de diversos dispositivos constitucionais aos requerimentos políticos da integração regional e a de uma oportuna readequação dos instrumentos de intervenção do Estado às exigências dos processos de inserção econômica internacional e de liberalização comunitária. É sobretudo no campo econômico — Títulos sobre a organização do Estado e a Ordem Econômica — que a Constituição pode revelar-se como relativamente disfuncional para o pleno cumprimento dos objetivos listados no Artigo 1 do Tratado de Assunção, particularmente a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos no território econômico comum aos quatro países membros. O capítulo econômico da Constituição, por exemplo, naquelas seções que consagram monopólios constitucionais ou tratamentos favorecidos para empresas brasileiras de capital nacional, poderia ser repensado com vistas a possibilitar, plena e concretamente, a implementação de uma interdependência ativa entre as economias do quatro países membros, que é disso que trata um mercado comum. Em não sendo isso possível, caberia revisar o parágrafo integracionista (Artigo 4, par. único), de forma a dar-lhe preeminência sobre as demais disposições de caráter particular e afirmar claramente o objetivo integracionista regional, além de seu mero efeito declaratório.
Se bem que, como alertou o Deputado Nelson Jobim, não se pode esperar uma revisão radical de toda a Constituição, alguns dispositivos poderiam ser modificados de forma a facilitar o estabelecimento da interdependência acima referida. De um modo geral, pode-se pensar na introdução de um artigo tratando da aplicabilidade direta no direito interno de normas e tratados internacionais, bem como de dispositivos que resultem na aceitação inconteste de decisões, resoluções e laudos de órgãos supranacionais, de caráter político (Conselho e Comissão) ou jurídico (Tribunal do MERCOSUL).
A questão da discriminação dos atos internacionais que necessitam de apreciação parlamentar também poderia ser considerada durante a revisão constitucional. Grosso modo, quais decisões ou resoluções dos órgãos do MERCOSUL dependeriam de aprovação legislativa, mantida a processualística atual dos atos internacionais ? Segundo a própria Constituição, todos os “tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (Artigo 49, I), mas, adicionalmente aos “tratados” estrito senso, todas aquelas decisões dos órgãos comunitários do MERCOSUL que, não só acarretem compromissos gravosos, mas que também impliquem na mudança eventual de dispositivos constitucionais ou de leis aprovadas pelo Parlamento brasileiro.
No quadro de uma mudança eventual da Constituição, o Congresso poderia perder o papel meramente referendador de atos internacionais negociados e firmados pelo Executivo, que ele tem hoje, para assumir uma postura mais participativa. Em todo caso, como observou o Deputado Jobim, que tipo de vincularidade teriam decisões emanadas do Conselho de Ministros do MERCOSUL e qual seria seu caráter obrigatório para o Brasil na ausência de explícita aprovação parlamentar ?

As próximas etapas do debate
Sem pretender chegar a conclusões ou orientações definitivas para a marcha ulterior do debate, os participantes da mesa redonda, pela voz do Emb. Rubens Barbosa, exprimiram o desejo que o rico intercâmbio de ideias travado no Itamaraty pudesse continuar em etapas futuras do trabalho de elaboração institucional do MERCOSUL. Recomendou-se a propósito que se procurasse estreitar a colaboração com o Instituto Latino-Americano de São Paulo que, sob a direção do ex-Governador Franco Montoro, vem impulsionando suas atividades em diversos campos de interesse relevante para o processo do MERCOSUL, em especial no estudo das dimensões jurídicas da integração.
Alguns dos participantes prontificaram-se a encaminhar contribuições tópicas sobre alguns dos pontos em debate, como é o caso, por exemplo, das instituições de caráter judicial, procedendo-se, mais tarde, à coordenação dos diversos “papers” na própria Subsecretaria-Geral de Assuntos de Integração do Itamaraty. Acordou-se igualmente solicitar a algumas entidades patronais (FIESP/CNI) estudos específicos sobre temas econômico-comerciais, como seria o do funcionamento das regras de origem para a fase ulterior ao período de transição, ou a órgãos como o CADE algum trabalho sobre a defesa da concorrência no âmbito comunitário.
De uma forma geral, as intervenções foram marcadas pelo caráter realista dos argumentos desenvolvidos pelos participantes, todos preocupados em fazer avançar a integração no MERCOSUL atendendo-se, contudo, ao necessário gradualismo institucional e à flexibilidade política desse processo. Seguindo o tradicional aforismo popular, poder-se-ia dizer que, no caso do MERCOSUL também, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
_____________________

1. Participaram desse encontro o Secretário-Geral das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe Lampréia, que presidiu a primeira parte da reunião, o Subsecretário-Geral de Assuntos de Integração, Econômicos e de Comércio Exterior, Emb. Rubens Antonio Barbosa, que coordenou os trabalhos, e as seguintes personalidades e especialistas independentes, ademais de funcionários do Itamaraty: Deputado Nelson Jobim, Emb. Luiz Augusto Souto Maior, (....).
2. Cf. Alieto Guadagni, “MERCOSUR: una herramienta de desarrollo”, in El Mercado Comun del Sur (Buenos Aires, Centro de Economia Internacional, Secretaria de Relaciones Económicas Internacionales, MREC, 1992), pp. 27-28.
______________
[Brasília, 2ª: 21.05.93]
[Relação de Trabalhos nº 343]
Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.

343. “A Institucionalidade Futura do Mercosul: Primeiras Aproximações”, Brasília: 21 maio 1993, 14 pp. Artigo consolidando os debates da mesa redonda realizada em 17.05.93 no Itamaraty. Publicado no Boletim de Integração Latino-Americana (Brasília: nº 9, Abril-Junho 1993, pp. 13-18). Relação de Publicados nº 131.


quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Memórias Intelectuais (2009) - Paulo Roberto de Almeida


Memórias Intelectuais
Uma biografia das ideias que permearam a minha vida

Paulo Roberto de Almeida
Concepção e primeira redação em 18.10.2009
(numa dessas noites de insônia)
Revisão resumida: 22.12.2009
Postado nesta versão no blog DiplomataZ (1.01.2010;


Uma pequena introdução que se poderia chamar de metodológica
Comecei a conceber a redação destas “memórias intelectuais” numa dessas noites de insônia que me acontecem frequentemente. Não que eu seja um insone ou que tenha dificuldades para dormir, ao contrário: como estou sempre lendo, ou escrevendo, no limite de minhas possibilidades físicas, quando vou dormir já estou dormindo em pé, ou sentado em frente ao computador, não sendo raro que eu cochile quase em cima do teclado, abatido pelo cansaço do dia, das muitas leituras, da fadiga visual em face da tela, da falta de sono enfim. Quando vou para a cama, portanto, caio como uma pedra e durma apenas o suficiente, pois necessariamente tenho de acordar antes de ter feito o ciclo completo de sono, antes de gozar daquele sono reparador que todos os médicos recomendam, seja porque tenho de trabalhar, seja porque tenho de dar aulas, o que para mim não é exatamente o mesmo que um trabalho, e sim o equivalente de um hobby, uma atividade que assumo voluntariamente, mais por prazer do que por necessidade.
Ocorre, porém, que, em algumas ocasiões, eu não consigo pregar o sono de imediato, seja porque minha cabeça fervilha com novas ideias adquiridas ao sabor das leituras cotidianas, seja porque algum outro problema perturbou o meu sono, apenas algumas horas depois de tê-lo iniciado.  

Pois aqui estou eu, tentando dar início a uma nova obra que vai, provavelmente, ocupar outras noites de insônia ao longo dos próximos meses e anos à frente, na redação paulatina, gradual, lenta e necessariamente interrompida do que eu chamei de “memórias intelectuais”, que nada mais são, como indica o subtítulo, do que uma história das ideias que permearam a minha vida. Por que isso? Por que esse título e não uma simples biografia ou memórias de vida, como todo mundo faz? Já explico.
Como qualquer leitor contumaz, também li muitas histórias de vida: grandes e pequenas biografias, autobiografias, relatos de vidas de homens (e mulheres) famosos, extratos de aventuras fabulosas (algumas verdadeiras, outras semi-inventadas), notas pessoais, currículos, enfim, uma variedade de escritos pessoais que sempre me interessaram mais pelo lado das ideias do que propriamente pelos feitos ou eventos. Sou assim, fascinado pelas ideias e pelos processos mentais, mais até do que pelos feitos e acontecidos. Interesso-me particularmente pelas reflexões e elaborações mentais dos homens (e mulheres, para não deixar de ser politicamente correto) que representaram alguma importância na história da humanidade. Lembro-me de ter lido, ainda em minha infância ou primeira adolescência, diversas biografias de grandes homens (e algumas mulheres) de autores como Hendryk Van Loon, Stefan Zweig, Monteiro Lobato (este mais um adaptador, do que um verdadeiro biógrafo) e vários outros autores.
Nunca imaginei, pelo menos até alguns anos atrás, escrever minha própria biografia, e continuo achando que não tenho nada de particularmente interessante a dizer em matéria de relato de vida: a minha não foi suficientemente relevante no plano nacional, ou interessante no plano individual, para merecer uma biografia no sentido clássico, inclusive porque não sou um homem de grandes realizações práticas ou de qualquer impacto na vida nacional. Tampouco prestei depoimentos, até o presente momento, nem jamais mantive diários ou anotações regulares quanto a minhas atividades e ocupações. Sou, sim, um homem de leituras e de anotações, mas isso de livros, basicamente, o que faço de forma totalmente desorganizada e anárquica – o que parece redundante, mas não é – sem qualquer preocupação com o ordenamento sistemático dessas notas ou seu alinhamento cronológico. Simplesmente, me interesso por tanta coisa, e leio tantos livros diferentes, que sempre me foi impossível manter uma linearidade nas anotações de maneira a sustentar qualquer relato ordenado sobre a minha vida, se ela fosse relevante, ou sobre as minhas ideias, se por acaso eu tivesse um punhado delas representativa de alguma grande “filosofia” particular, o que obviamente não é o caso. Meu anarquismo literário e redacional nunca me permitiu manter notas organizadas o suficiente para escrever o que se chama classicamente de biografia, ainda que de simples ideias.
Por que, então, me permito chamar estas minhas anotações de “Memórias Intelectuais”, um título aparentemente prometedor e, ao mesmo tempo, enganador? Não sou um intelectual, pelo menos não oficialmente: não me reconheço como tal, e não creio que eu seja conhecido como tal. Sou simplesmente um homem de leituras e de escritos, os mais diversos, tocando um pouco em todas as áreas das humanidades, o que faço mais de metido do que de sabido. O adjetivo “intelectuais” apegado ao substantivo memórias quer dizer simplesmente que este meu relato não é de vida, propriamente, nem de eventos ou de processos reais que aconteceram comigo, mas sim de elaborações mentais, de ideias, como aliás confirmado pelo subtítulo, como já escrevi acima. Ou seja, eu pretendo, sobretudo, tratar das ideias que eu defendi, que eu “freqüentei”, que permearam a minha vida ao longo de cinco ou seis décadas (dependendo de quando se deve começar a contar minha vida “intelectual”).
Não são todas ideias minhas, está claro, e sim ideias que movem o mundo, como já disse, a propósito de um livro seu, o historiador Felipe Fernandez Armesto (ver o seu Ideas That Changed the World, publicado em 2003, um livro que já resenhei, em sua edição brasileira). São, especialmente, ideias que movimentaram o meu mundo, ou que pelo menos influenciaram a minha formação, o meu pensamento, e algumas das minhas ações (sim, também as houve, e as relato aqui, conforme apropriado, mas sem muita ênfase, preferindo ficar mesmo no terreno das ideias). Não sei se sou um homem de ideias, mas sou, sim, um homem que viveu com ideias, para ideias e em função de ideias, embora (pelo menos acredito) sempre com um sentido prático, isto é, sempre com a intenção de colocá-las em “funcionamento”, ainda que poucas tenham de verdade “funcionado”. Isso nunca me deixou frustrado, ao contrário, pois eu atribuo às ideias as mais importantes transformações do mundo, ainda que nem todas tenham tido esse poder. Vale uma pequena elaboração a esse respeito, o que faço agora, à maneira de parênteses.

O mundo, na concepção marxista e materialista – à qual eu aderi, voluntária e conscientemente, por boa parte de minha juventude e da vida adulta – é movido por forças materiais, por processos objetivos, que emergem do entrechoque de interesses sociais (de classe, obviamente) e do confronto entre relações sociais, algumas decadentes, outras, as vencedoras, avançadas, ou correspondendo a uma etapa superior das forças produtivas. No máximo os homens são prisioneiros de ideias do passado, segundo a fórmula de Marx no Dezoito Brumário. Keynes também disse algo semelhante, a respeito de ser a geração atual (qualquer uma) prisioneira de economistas mortos, o que se aplica perfeitamente ao seu próprio caso e à geração atual, ainda presa às suas ideias dos anos 1930, ou seja, de duas gerações passadas.
As ideias são algo importante, e coisas vivas, no entanto. São elas que dão sentido à nossa existência consciente, são elas que guiam as nossas ações, são elas que nos impelem a novas aventuras do espírito ou empreendimentos práticos, são elas, finalmente, que sustentam a defesa de alguns princípios e valores que julgamos relevantes, seja para a “economia política” de nosso comportamento, seja para a elaboração de algum julgamento moral sobre nossas próprias ações e as dos outros. Ideas do matter, dizem os ingleses, ou americanos, whoever... As ideias têm importância, e elas tiveram uma tremenda importância em minha vida, toda ela feita de leituras, reflexões, escritos e debates em torno de ideias, todas elas, as minhas, ou seja, as que eu adquiri com leituras ou pessoas mais espertas, as emprestadas ocasionalmente, as dos outros, com as quais eu poderia concordar, ou não, assim como ideias que eu já defendi e que depois vim a recusar, até mesmo rejeitar, e que passei a combater, como foi o caso com boa parte de minha formação intelectual marxista da primeira juventude (depois explico como foi isso).
Não tenho nenhum problema em aceitar, confessar, reconhecer essa mudança de ideias, de percepções, de atitudes em minha vida juvenil e adulta, posto que a vida é um processo continuo de incorporação de novas ideias, de sua submissão aos testes da lógica formal e da realidade, e da sua sustentação ou rejeição em função dos resultados desses “testes”, que nada mais são do que experiências de vida, novos aprendizados, incorporação de conhecimentos, aceitação de novos princípios e fundamentos para a ação social. Repito aqui o que Keynes parece ter dito, uma vez, a um interlocutor que o acusava de ter mudado frequentemente de ideias: “sim, eu mudo de ideias cada vez que muda a realidade; e você, o que faz?”

Este livro, portanto, não se ocupa apenas de minhas ideias, ainda que seja difícil distinguir o que é meu e o que pertence aos seus autores originais, na minha incorporação particular, individual, das ideias que li ou ouvi ao longo de uma vida extremamente bem recheada de leituras e de palestras, a que assisti ou de que participei, interagindo com membros da mesa ou com o público inquisidor (sim, sempre acreditei que aprendemos muito com nossos interlocutores, mesmo os que nos contestam, como ocorre ocasionalmente com alguns alunos e mais frequentemente com outros debatedores). São ideias que “estavam no ar”, que eu peguei, usei, transformei, reelaborei, introduzi em novas ideias que eu mesmo possa ter elaborado e que sai por aí, distribuindo à vontade, em meus escritos, aulas e palestras. Fiz isso durante toda a minha vida adulta, seja na profissão diplomática, seja nas lides acadêmicas, assumidas em caráter voluntário e em tempo parcial durante quase todo o tempo em que fui diplomata de carreira.
Sim, sou daqueles que acreditam e defendem ideias próprias, mesmo trabalhando numa corporação de ofício, a casta dos diplomatas, que tem algo de Vaticano em sua maneira de ser e em sua forma de proceder. Na veneranda Casa que foi minha durante várias décadas, um funcionário subalterno é suposto acatar ideias dos superiores, quando não defendê-las como se fossem suas. Consoante meu espírito anarquista e libertário, eu nunca fiz isso, jamais; sinceramente não me lembro de ter alguma vez acatado, em sã consciência ideias “superiores” apenas porque elas emanavam dos semi-deuses que nos governavam, quando eu era secretário: conselheiros, ministros, embaixadores. Sempre formulei alguma observação, seja para assinalar minha concordância (quando eu efetivamente concordava com o que estava sendo exposto), seja para argumentar em algum outro sentido (quando eu tinha alguma objeção de princípio ou alguma observação tópica a fazer a respeito do assunto em pauta). Nunca fui daqueles que quando parte para o trabalho deixa o cérebro em casa, ou deposita a sua capacidade de reflexão na portaria, ao adentrar no serviço: sempre levei comigo minha disposição a pensar com minha própria cabeça e a levantar elementos factuais ou argumentos opinativos, sempre quando o tema tratado me parecia padecer de alguma inconsistência formal ou de deficiência substantiva. Nunca tive qualquer hesitação em contestar chefes ou outros superiores em reuniões de trabalho, acumulando com isso (pelo menos suspeito) sólidas inimizades ao longo da carreira (não de minha iniciativa, mas provavelmente da parte dessas personalidades contestadas, que provavelmente nunca toleraram a arrogância desse mero secretario ou conselheiro que ousava discordar de suas brilhantes ideias e propostas).
Sou assim, e não me escuso de sê-lo, pois acredito que devemos ser, publicamente, como somos na intimidade, ou seja, nos comportar exatamente como comandam nossos instintos, modo de ser, vocação inata. Eu nasci para ser um leitor, um “absorvedor” e um processador de ideias, e tendo a expressar as minhas, conforme julgo apropriado ou oportuno. Se os demais, os superiores, não concordam com elas, não me importo minimamente, pois considero que num mundo de ideias, como o que vivemos, devemos sempre lutar para que as boas ideias prevaleçam sobre as más, ou inadequadas. Não sou, nem me considero, um “salvador” da humanidade, pelas ideias ou pelas ações, mas considero, sim, que a humanidade pode e deve avançar pela defesa das boas ideias, pela sua prevalência sobre as más, ou negativas, pela promoção das soluções “corretas” aos enormes problemas da humanidade, de pobreza, de desigualdade, de injustiça, de infelicidade. Sim, também tenho esse lado um pouco milenarista ou messiânico de pretender “melhorar” a humanidade pela ação consciente dos homens de bem, dos cientistas, dos engenheiros, dos humanistas, que buscam algo mais na vida do que o simples prazer pessoal ou a satisfação individual. Considero-me comprometido com uma causa superior, que é, em primeiro lugar, a elevação espiritual, ou “mental”, da humanidade, base indispensável para sua elevação material, ou para a busca incessante de melhores padrões de vida para o maior número.
Talvez seja esse o legado de meu passado socialista ou marxista: pretender “melhorar” a humanidade, ainda que eu tenha há muito desistido de qualquer projeto de “engenharia social”, ou seja, a pretensão de mudar os homens para mudar a sociedade, como ocorreu na triste história do socialismo real ao longo do século 20. O “homem novo” deve ser simplesmente construído em nível individual, pela educação de qualidade, livre, diversificada, totalmente liberta de qualquer crença fundamentalista – como o marxismo esclerosado, por exemplo – e não imposto por qualquer programa de “reeducação social” mediante projetos autoritários de transformação social, como os conhecidos nessa triste experiência político-messiânica. Dessas ideias eu creio que me libertei, a partir da juventude tardia e da entrada na etapa adulta de minha vida, ainda que eu não tenha conseguido me libertar desse ideia básica de pretender promover o “bem comum” e a “felicidade dos povos” (mas, aqui e agora, sem qualquer sentido autoritário ou mandatório). De todas as minhas visitas e experiências no socialismo real – o que poucos intelectuais do mundo capitalista realmente fizeram – retirei a certeza de que o sistema criado pelo partido de vanguarda trouxe mais infelicidade do que bem-estar aos povos que pretendeu transformar, e nem sempre num sentido meramente material, de disposição de bens correntes; no mais das vezes, a miséria moral e a degradação dos indivíduos foram bem mais relevantes do que a penúria de bens e serviços.

Creio que os parágrafos acima já oferecem um resumo do que são as ideias que pretendo discutir neste ensaio de biografia intelectual, basicamente uma historia das ideias para consumo próprio, uma espécie de balanço de uma vida de leituras, de reflexões e de escritos, que foi tudo o que me foi dado fazer ao longo de uma carreira diplomática e acadêmica sem muitas emoções ou grandes acontecimentos. Talvez as poucas ideias aqui contidas possam servir de motivo de reflexão aos mais jovens, aqueles que como eu começam ou começaram a sua vida cheios de entusiasmo juvenil por grandes projetos de transformação do Brasil e do mundo. Eu fiz a minha parte, tentei, sim, transformar o Brasil – nem sempre no bom sentido, confesso, como quando pretendia fazer do país uma economia socialista, seguindo o exemplo cubano – e tentei, depois, ajudar na transformação do mundo, seja como diplomata, seja como professor, seja ainda como autor de alguns escritos que podem ter influenciado a formação de alguns poucos jovens que tiveram contato com esses escritos.
Uma coisa é certa: ainda que eu possa ter errado algumas (ou muitas) vezes, eu sempre tentei ser honesto comigo mesmo e com as ideias que estavam à minha disposição, ou seja, ao usá-las de modo racional e sempre visando ao bem comum. A honestidade intelectual não é apenas uma virtude, para mim, mas uma necessidade imperiosa, uma condição inseparável de minha personalidade e disposição de vida. Nunca consegui defender ideias nas quais não acreditava, nunca fui hipócrita no trabalho diplomático ou acadêmico, sempre defendi (e expressei) o que pensava, mesmo ao risco de prejuízos materiais ou morais. Nunca me escondi atrás de “falsas ideias”, apenas para contentar um superior ou sugerir uma ilusória concordância intelectual com quem quer que seja na academia, e por isso mesmo devo ter granjeado inimizades e criado alguns problemas para mim mesmo, aqui e acolá. Isso nunca me importou: sempre preferi estar em paz com minha consciência do que ganhar algum favor de um superior por submissão a ideias que não defendo ou que rejeito. Nunca fui carreirista, numa ou noutra “profissão”, aliás, nunca me classifiquei apenas como diplomata ou como acadêmico; sempre disse que eu era diplomata, ou professor, mas em meus escritos e palestras eu me apresentei sempre como sociólogo ou “doutor em ciências sociais”, conforme o caso, o que são títulos, não condições profissionais. Acho que nunca escrevi como diplomata – ou seja, a langue de bois, ou o bullshit, típicos da profissão e da linguagem diplomática – e tampouco me comportei como acadêmico, ou seja, apenas um pesquisador ou professor de uma instituição de ensino e pesquisa.
Sempre fui um ser livre, tanto quanto me permitiram minha condição de servidor público e de contratado de uma instituição de ensino, ou seja, cumprindo minhas obrigações mínimas, mas me reservando o direito de pensar com minha própria cabeça e de expressar o que me ia na cabeça, por vezes de forma algo agressiva, reconheço. Mas é porque o meu entusiasmo pelas ideias, meu cuidado em recolhê-las dos livros e colocá-las à disposição dos demais, meu empenho em “ensinar” aos outros as “boas ideias” são tais que em algumas (ou varias) ocasiões eu acabei me chocando com ideias antigas, conservadoras, inadequadas, incorretas, francamente equivocadas. Isso seria porque minhas ideias eram melhores do que as dos outros? Talvez, e aqui confesso algum orgulho de estar um pouco à frente de meus contemporâneos, exclusivamente em função de minha obsessão pela informação, pelo conhecimento, pela argumentação lógica e bem fundamentada. Sim, eu me impaciento com a lentidão de algumas pessoas (talvez a maioria) em perceber a realidade, que está ali, à disposição de quem quer ver, bastando se informar corretamente – mas a maioria das pessoas lê pouco e se informa de maneira deficiente – e refletir com base em preceitos mínimos da lógica formal e da argumentação bem sustentada. Não tenho culpa se sempre tive mais informações do que a média de meus colegas de trabalho e de academia: isso foi alcançado ao custo de muito sacrifício, de muitas noites de leitura, de muito esforço em buscar e apreender os dados da realidade. Como estou fazendo agora mesmo, neste momento de reflexão e de registro de minhas memórias intelectuais. Mas, encerro no momento, pois já são 9h25 de uma manhã de domingo, e eu vou dormir um pouco antes de retomar minhas leituras e lides acadêmicas um pouco mais tarde. Boa noite (ou bom dia).

Brasília, 18.10.2009
Revisão: 22.12.2009