O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Did the Far Right Breed a New Variety of Foreign Policy? The Case of Bolsonaro's “More-Bark-Than-Bite” Brazil - Dawisson Belém Lopes, Thales Carvalho, Vinicius Santos (Global Studies Quarterly)

 Recebido de Dawisson Lopes, um dos autores:

Car@s colegas,

Neste novo artigo, que acaba de ser publicado em Global Studies Quarterly, periódico da International Studies Association, fazemos balanço amplo da gestão internacional de Jair Bolsonaro. O paper cobre intervalo que vai da campanha pré-presidencial de Bolsonaro, em meados de 2016, até os seus últimos dias no Palácio do Planalto, em dezembro de 2022. Para desenvolvimento do argumento, os autores mobilizaram um modelo baseado na Análise de Políticas Públicas. 

Os autores investigaram a política externa de Jair Bolsonaro sob duplo ângulo: (a) o processo em si; e (b) os seus resultados. Para tanto, farta carga de estatísticas descritivas foi disponibilizada. Também foram realizadas entrevistas com atores-chave da República no período. Os achados do artigo sugerem que a política externa de Bolsonaro foi fenômeno moral e retórico, mas com baixa repercussão nas rotinas empíricas da ação internacional do Brasil; foi intensa, mas superficial e inócua. Ou, como no título do paper, um "cão que ladra e não morde".

Por ora, o acesso ao artigo está liberado no site da revista. Recomendo aos interessados, portanto, que já baixem o PDF e evitem, assim, uma possível cobrança, no futuro. Agradeço, ainda, se puderem divulgá-lo amplamente em suas redes acadêmicas.
https://academic.oup.com/isagsq/article/2/4/ksac078/6960505

JOURNAL ARTICLE

Did the Far Right Breed a New Variety of Foreign Policy? The Case of Bolsonaro's “More-Bark-Than-Bite” Brazil 

Global Studies Quarterly, Volume 2, Issue 4, October 2022, ksac078, https://doi.org/10.1093/isagsq/ksac078
Published:
 
24 December 2022

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Edson Simões: uma "enciclopédia" do constitucionalismo na História e no Brasil - prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Um dos meus principais trabalhos produzidos em 2022 e um dos derradeiros a serem publicados em 2022: 

4065. “Uma enciclopédia da democracia e das constituições, no Brasil e no mundo”, Brasília, 18 janeiro 2022, 7 p. Prefácio ao livro de Edson Emanoel Simões, As Constituições do Brasil (1824 a 1988): da antropofagia à autofagia - as tentativas de democracia no Brasil e no mundo (São Paulo: Almedina, 2022). Revisão em 23/01/2022, para redividir os volumes e falar de Rui Barbosa. Publicado in: Edson Simões, Constitucionalismo e Constituição de 1988, volume 1 da coleção Constituições e Democracia no Brasil e no mundo – da antropofagia à autofagia (São Paulo: Almedina, 2022, p. 7-14; ISBN: 978-65-5627-477-5). Relação de Publicados n. 1488. 

Transcrevo abaixo o meu prefácio:


Uma enciclopédia da democracia e das constituições, no Brasil e no mundo

  

Esta excepcional obra de erudição política e constitucional, dividida em cinco densos livros, poderia ser chamada, seguindo a terminologia desenvolvida pelo historiador francês Fernand Braudel, de trabalho de “longa duração”. De fato, Edson Simões deve ter passado muitos anos compulsando sua imensa bibliografia de referência, ademais de uma leitura atenta dos periódicos, para compor este vasto panóptico analítico-interpretativo sobre a evolução constitucional do Brasil, ademais de um igualmente ambicioso panorama cronológico sobre o itinerário histórico dos regimes políticos, desde os modelos ideais pensados pelos antigos filósofos até as modernas democracias de mercado. O conjunto da obra poderia também ser conhecida por um título grandioso, sem, no entanto, deixar de ser verdadeiro: “tudo o que sempre você quis saber sobre as constituições, em especial as do Brasil, e suas conexões com os diferentes regimes democráticos ao longo da história, da antiguidade à contemporaneidade”. 

O panorama assim traçado é tão vasto que ele precisou ser dividido em nada menos do que cinco alentados volumes, que cobrem praticamente, o amplo espectro das constituições brasileiras, que abrem e fecham a obra, depois de magnífico percurso pela história, pela filosofia e pelo direito dos regimes políticos, desde a antiguidade até a era contemporânea, como resumido a seguir. O primeiro volume é dedicado às constituições do Brasil (1824-1988), do Império à atualidade; o segundo cobre a contribuições de grandes pensadores e suas contribuições à formulação de modelos para a organização dos estados e para a construção das ordens políticas as mais diversas; o terceiro se ocupa justamente da luta pela democracia, da Grécia à finada União Soviética, que deu lugar à Rússia parcialmente democrática de nossos dias; o quarto volta a tratar da história do Brasil, desde o descobrimento até a República Velha; o quinto, finalmente, continua a se ocupar da construção da democracia no Brasil, da era Vargas aos nossos dias, com dois grandes experimentos autoritários no caminho, o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar, que durou pouco mais de duas décadas (1964-1985). 

Pela amplitude, vastidão de tópicos – o que se constatará facilmente pelos sumários detalhados de cada um dos volumes, trata-se de empreendimento inédito no mercado editorial brasileiro, carente de títulos que tratem, simultaneamente e de forma integrada, de temas de direito e de história constitucional, com uma enorme análise, não apenas complementar, mas absolutamente essencial, sobre os conceitos e as realidades dos regimes democráticos, desde suas origens às modernas democracias de mercado. De fato, uma consulta a cada um dos índices dos volumes revela uma profusão verdadeiramente enciclopédica de subcapítulos e de seções em cada uma das suas centenas de partes, algo surpreendente nos dias atuais em termos de esforços ciclópicos, como este que Edson Simões tomou a braços, em face de sínteses bem mais modestas que são publicadas atualmente. 

A bibliografia geral, usada pelo autor, assim como as referências específicas a cada um dos volumes, podem ser consideradas como verdadeiramente esmagadoras para um único autor, pois também revelam uma ampla diversidade de leituras, provavelmente ao longo de anos, senão de décadas. Um somatório tentativo das leituras de Edson Simões – que não é matemático, pois há que considerar todo acúmulo de leituras da mídia diária, o seguimento do noticiário em outros veículos e, desde alguns anos, tudo aquilo que nos entra pelas redes sociais – resulta num inacreditável cômputo final de 565 títulos, sendo que não menos de dez pertencem ao próprio autor (dos quais vários em obras coletivas ou em coautoria), aos quais este prefaciador poderia agregar oito de sua própria autoria, títulos mais propriamente de relações internacionais e de história do que exatamente de ciência política ou direito.

Mas, estes são apenas os aspectos volumétricos, ou quantitativos, desta obra de fato monumental, o que requereu, justamente, sua divisão em volumes, em função de sua dimensão assombrosa. Sem pretender uma comparação quanto ao conteúdo, inclusive porque são de gêneros completamente diferentes, pode-se pensar – quanto ao volume de trabalho que a obra dever ter custado ao autor, numa labuta de longos anos – no famoso Dictionary of the English Language, do não menos famoso Samuel Johnson. O dicionário do inglês, biografado por James Boswell, tomou não menos do que nove anos para ser completado: de 1746 a 1755; sua composição gráfica, com muitas ilustrações e uma infinidade de citações – “examples from the best writers”, entre os quais se incluíam, sobretudo, Shakespeare e Milton –, custou bem mais ao editor que o compôs, em dois volumes, do que Samuel Johnson recebeu para compô-lo. 

Sabemos que outros autores também foram prolíficos escritores, como, por exemplo, no terreno do Direito, Pontes de Miranda, ou mais ainda, Rui Barbosa (sem que ele, na verdade, tenha publicado um único volume durante toda a sua longa vida), cujas obras completas, aos cuidados da Fundação que leva o seu nome, ainda não se terminaram de publicar, mas já somam mais de uma centena de volumes. Aliás, Edson Simões não cita Rui Barbosa em seus quase seiscentos títulos da bibliografia, mas é porque o grande jurista baiano – conterrâneo, portanto, de Edson Simões – é tomado como um verdadeiro personagem de nossa história constitucional e política, muito mais atuante na vida parlamentar e nos debates de imprensa, do que propriamente como doutrinador. Mas, Rui Barbosa também foi um estadista e um diplomata – sobretudo nas negociações em torno da compra do Acre, depois, de maneira magistral, na segunda conferência da paz da Haia (1907) e, finalmente, como representante brasileira nas comemorações do primeiro centenário da independência argentina, em 1916 –, tendo formulado contra as pretensões dos imperialismos arrogantes, na Haia, um dos princípios basilares do multilateralismo brasileiro e peça básica da doutrina diplomática do Brasil: a igualdade soberana dos estados. Rui Barbosa, mais até do que um advogado de grandes causas, de jurista respeitado internacionalmente e, até mesmo, um estadista de envergadura mundial – foi escolhido praticamente por unanimidade, inclusive pelas grandes potências, para ser o primeiro juiz brasileiro na Corte de Justiça Internacional, só não assumindo por já se encontrar doente –, era um escritor compulsivo, e a maior parte de sua obra entraria, talvez, na categoria do jornalismo erudito. Edson Simões honra a memória do “homem mais inteligente do Brasil” (segundo os baianos certamente).

Em matéria de dicionários, Edson Simões usou extensivamente, ou recorreu para consultas tópicas, a nada menos do que duas dezenas de dicionários de Política (entre eles o famoso de Norberto Bobbio), de História (três da história brasileira, outro da história universal, sendo um da civilização grega e outro da Roma antiga, e um da Revolução Francesa, que possui um estupendo prefácio de José Guilherme Merquior), de Filosofia e dos filósofos (inclusive cobrindo Rousseau, além de um “gramsciano), sem mencionar os que são propriamente da área constitucional e parlamentar, um do “politicamente correto”, ademais daqueles especificamente da língua portuguesa (Houaiss, o grande lexicográfico brasileiro, como o britânico Samuel Johnson, mas ele foi um diplomata cassado pelo regime militar). Edson Simões também se revelou um misto de “dicionarista”, de “enciclopedista”, de cronista dos tempos recuados e modernos em matéria de constituições e democracias, um autor dotado de uma pena surpreendentemente abrangente.

Na verdade, pela amplitude de sua escrita, não se trata apenas de uma “pena quilométrica”, e sim de uma capacidade de digitação fenomenal, uma espécie de Balzac do direito constitucional, um autor tão volumoso e denso quanto, em outros gêneros, o velho Chateaubriand (que vendeu suas “memórias do além-túmulo”, por uma renda permanente, muito antes do esperavam seus editores), ou, em outro exemplo mais literário, quanto Marcel Proust (que era capaz de escrever várias páginas simplesmente sobre o aroma que lhe despertava uma “madeleine” sobre uma xícara de chá). Ainda neste terreno da literatura em grande volume, as centenas de páginas desta respeitável obra em cinco volumes de Edson Simões cobrem facilmente, em extensão, as aventuras que Georges Simenon imaginou para o Comissaire Maigret, em suas 75 pequenas novelas de mistério policial. 

No caso de que nos ocupamos, não há absolutamente nenhum mistério, mas total transparência e lucidez quanto aos critérios do autor na abordagem de seu triplo objeto: os pensadores da Política, do Estado, da Justiça e do Direito; as aventuras da senhora Democracia, da antiga Grécia (a “mãe da democracia”) aos embates entre autoritarismo e democracia, na Alemanha contemporânea, passando pela Inglaterra, França e Estados Unidos, entre outros exemplos; e, finalmente, ao início e ao final, o próprio Brasil, seja na sua sucessão de constituições, desde a mais longeva, aquela outorgada pelo primeiro imperador, até a mais recente, que já é uma “balzaquiana”, mas que carrega mais emendas do que as dezenas de volumes da Comédia Humana, do ilustre novelista francês do século XIX. O caráter enciclopédico da obra é justamente confirmado pela pletora de casos tratados no terreno da política, das desventuras da democracia ao redor do mundo, da Grécia e da Roma antigas às modernas democracias de mercado e, sobretudo, confirmado pela profusão de pensadores das doutrinas e dos regimes políticos abordados, dos sofistas (os primeiros aprendizes de filósofos, mas dotados de pouca lógica) aos contemporâneos, passando por medievais, renascentistas e modernos, sem descurar alguns adeptos do terror político, Robespierre, Marat e Danton en tête (que levaram vários outros a perder a cabeça, antes deles). 

O primeiro volume da obra revela um comentarista erudito, mas também irônico, sobre as constituições do Brasil, que teriam saído da “antropofagia” para chegar à “autofagia”, tantas foram nossas tentativas de democracia, para terminar com o que ele caracteriza como “uma colcha de retalhos”. De fato, a Constituição de 1988, a sétima ou oitava da série, segundo se considere certas anomalias ditatoriais, constitui um vasto conjunto de dispositivos concedendo muitos direitos, mas exigindo poucas obrigações, como sempre lembrou o economista e diplomata Roberto Campos, aqui citado pelas suas memórias, um passeio pela história do Brasil no século XX e por cinco de suas constituições, uma das quais, a de 1967, ele ajudou a elaborar, pelo menos no capítulo econômico. 

E é justamente no capítulo econômico que se situam os principais problemas do arranjo constitucional atual, uma vez que a Carta de 1988 garantiu todos os direitos a que os cidadãos tinham direito (e sempre mais alguns, segundo a generosa disposição dos legisladores de encontrar o verdadeiro caminho da felicidade legal). Mas, ao mesmo tempo, ela forjou uma ordem econômica que gera baixo nível de investimentos para alimentar um processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios de crescimento que não vem, desde exatamente a promulgação da “Constituição cidadã”, do dizer de Ulysses Guimarães. Não exclusivamente por causa de seus dispositivos econômicos – pois também ocorreu a crise da dívida dos anos 1980, as hiperinflações se alternando a planos frustrados de estabilização macroeconômica e uma introversão negativa do aparelho produtivo, isolando o Brasil das pressões competitivas da economia global –, mas sobretudo pela tentativa de distribuir benesses a todos e a cada um, a Constituição tornou-se um óbice a uma maior taxa de investimentos produtivos, ao dirigir boa parte das receitas fiscais ao próprio Estado. Este é um ogro famélico que captura um terço de todas as riquezas criadas por empresários e trabalhadores, muito acima do que justificaria o nível de renda per capita do Brasil no confronto com países de características similares (nossa carga fiscal se situa dez pontos acima, no PIB, à de outras economias emergentes, quase no mesmo nível que os países avançados da OCDE, que possuem uma renda per capita cinco ou seis vezes superior à nossa (aliás, estagnada há vários anos). 

A chave – ou, se poderia dizer, o ferrolho – de todos os problemas brasileiros se situam amplamente nos terrenos político e institucional, temas cruciais de nossos impasses sociais, e que são objeto de profundas considerações do autor tanto ao início quanto ao final desta obra verdadeiramente completa, tão completa que vai dos “antecedentes do descobrimento do Brasil” e da própria “formação e evolução de Portugal”, até Dilma, Temer e Bolsonaro, para mencionar apenas os mais recentes personagens de uma trama que confirma o que Edson Simões chama de “erosão da República e da democracia em pleno século XXI”. De fato, impossível não concordar com ele, quando se contempla a lenta demolição das instituições, que vão das manifestações contra o poder político na década passada, às “contradições do Poder Judiciário”, como também explicitado ao final da primeira parte da obra. Aqui, caberia talvez retornar ao velho Rui Barbosa, crítico contumaz do militarismo da República – tendo ele enfrentado, em 1910, o sobrinho do primeiro marechal-presidente, Hermes da Fonseca, habitual em intervir nos conflitos estaduais –, que ele considerava como o principal perigo à democracia brasileira: de fato, os militares nunca deixaram de intervir nos assuntos políticos, em mais de 130 ano de República.

O amontoado heteróclito de problemas institucionais, constitucionais, econômicos e sociais recomendaria uma ampla reforma política, que reverteria a atual fragmentação partidária e limitaria a chantagem recíproca que se exercem os poderes executivo e legislativo, na disputa por nacos de um orçamento quase que totalmente comprometido com gastos obrigatórios. De fato, como se sabe, o orçamento brasileiro reserva muito pouco das receitas a investimentos produtivos, ou para a correção das imensas desigualdades distributivas, e no período recente vem sendo objeto de um verdadeiro estupro orçamentário, ao acomodar dois fundos ilegítimos – o partidário e o eleitoral, já que partidos são de direito privado – e uma pletora de “emendas orçamentárias” que simplesmente distorcem qualquer sentido de planejamento racional de despesas públicas, ao fragmentar bilhões de recursos em projetos paroquiais que nunca deveriam ser de responsabilidade federal. Mas é justamente essa reforma política que se revela praticamente impossível em face de um parlamentarismo de fato, não de direito, feito de superpoderes do estamento político, especialmente dedicado a disputar os despojos do Estado e pouco voltado para a correção dos inúmeros impasses quanto ao funcionamento das instituições. 

Às vésperas do bicentenário da formação de um Estado independente, em setembro de 2022, a construção da nação permanece inacabada, pois, assim como ela permaneceu refratária à abolição do tráfico e da escravidão no momento oportuno, ela se mostrou impérvia à implantação de um verdadeira sistema de educação de massas de qualidade, assim como, num passado não muito remoto, esqueceu-se da distribuição da propriedade e da integração dos antigos escravos e dos rurícolas marginais aos benefícios da alfabetização e dos cuidados elementares de saneamento básico, e até hoje permanece indiferente ao grau elevado de violência urbana, que atinge sobretudo as populações pobres das favelas. O Brasil do bicentenário de sua independência nos aflige, profundamente, e a maior parte das razões estão muito bem descritas, esmiuçadas, explicadas e criticadas nesta obra monumental. 

A feliz coincidência de que esta obra multivolumes esteja sendo publicada às vésperas do bicentenário oferece, precisamente, um guia, um manual seguro, um diretório dos nossos impasses democráticos e constitucionais, um manancial de informações e de argumentos que podem nos ajudar a identificar os problemas e traçar um roteiro de sugestões para sua correção ao início do terceiro centenário de nossa vida independente, como Estado soberano. O diagnóstico, não apenas constitucional, mas sobretudo compreensivo, no sentido weberiano da expressão, para que possamos congregar esforços na busca de caminhos democráticos, consensuais, para superar os atuais impasses da nacionalidade. Apenas com uma compreensão sofisticada dos problemas que se colocam à “brasilidade” será possível formular as prescrições adequadas para a adoção das medidas corretivas que devem ser aprovadas pela representação política.

O diagnóstico já foi feito por Edson Simões, a crítica dos erros passados também, os modelos oferecidos pelas democracias de mercado exitosas comparecem nesta sua obra que pode ser considerada uma síntese perfeita de uma trajetória intelectual das mais completas. Tive enorme prazer em percorrer suas densas páginas, o que me fez relembrar de quando, jovens adolescentes em São Paulo, trocávamos sugestões e exemplares de livros para enriquecer nossa formação inicial: entre esses autores estava Stefan Zweig, que havia projetado um futuro luminoso para o Brasil, em 1941, uma esperança até aqui frustrada em várias de suas dimensões. Aos 80 anos do suicídio do escritor, em pleno Carnaval de 1942, em Petrópolis, cabe esperar que o “país do futuro” almejado pelo grande intelectual austríaco, possa realizar-se no curso das próximas décadas, como nossos filhos e netos têm todo o direito de almejar. Com esta afetiva rememoração, encerro meus cumprimentos ao Edson Simões, seguro de que ele ofereceu o melhor de si nestes magníficos volumes.

 

Paulo Roberto de Almeida

Fevereiro de 2022


Entrevista com Rubens Ricupero: "Lula sempre soube usar a política externa para obter prestígio" (Terra Notícias)

 "Lula sempre soube usar a política externa para obter prestígio"


Terra Notícias, 5 jan 2023

Ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero afirma que meio ambiente deverá ser principal trunfo do novo governo no cenário internacional. Postura em relação a regimes autoritários é ponto fraco do petista, diz.Após um cenário de isolamento internacional do Brasil sob Jair Bolsonaro, as expectativas no exterior em relação ao novo governo Luiz Inácio Lula da Silva são grandes. Logo após a posse do presidente, líderes de vários países manifestaram o desejo de fortalecer parcerias com o Brasil, com destaque para o meio ambiente. A esperança depositada no petista em relação à proteção da Amazônia e do clima já havia ficado clara antes mesmo de ele assumir o poder, durante a COP27.

"Com sua ida à COP27, junto com a [atual ministra do Meio Ambiente] Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa", aposta o ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero em entrevista à DW.

Já nos primeiros dias de seu novo governo, Lula anunciou o destino de suas primeiras viagens internacionais: Argentina, no fim de janeiro, e depois Estados Unidos, Portugal e China.

"Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. Diferentemente de Bolsonaro, Lula se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso", comenta Ricupero, que foi representante do Brasil junto aos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).

Para o diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda, o acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e uma possível adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) deverão ser encarados com reserva pelo novo governo brasileiro.

Na opinião de Ricupero, o ponto fraco de Lula é sua postura em relação a regimes autoritários como Nicarágua e Venezuela. "A esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo. Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo", afirma o diplomata, atual presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e diretor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

DW Brasil: Bolsonaro saiu do país antes da posse de Lula. Como o senhor avalia esse acontecimento?
Rubens Ricupero: Creio que nunca houve na história do Brasil um caso parecido. Talvez só se pareça com o fim do governo militar. O último presidente militar, o general João Figueiredo, não quis passar a faixa, pois considerava o José Sarney um traidor. É um episódio parecido, até mesmo em relação aos personagens, com a recusa de reconhecer a vitória do outro.

No caso do Bolsonaro, é ainda mais grave, pois ele deixou o país. E antes de viajar, nas últimas semanas, havia uma espécie de vácuo, um vazio. Bolsonaro tinha desaparecido, como se não existisse mais. A impressão que as pessoas tinham era de que o novo governo já estava governando, mesmo sem os instrumentos de poder.

Mas, desde o início, Bolsonaro nunca se comportou pelos padrões normais, com a sua falta de cortesia. Assim, a saída dele não surpreendeu. Ele se comportou como é. E o modelo dele é o Donald Trump, e até o fim ele teve uma atitude parecida à do Trump. Só que aqui ele não conseguiu produzir um movimento violento como o da invasão do Capitólio. Pois aqui tinha as ações do [ministro do Supremo Tribunal Federal] Alexandre de Moraes, que também atuou de forma pouco comum, com um ativismo muito forte.

Assim, é um fim muito melancólico esse do governo Bolsonaro.

Logo depois da sua eleição, Lula viajou à COP27. A questão ambiental será importante no governo dele?
Com sua ida, junto com a Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. É um tema dos sonhos, pois ele pode ter ganhos e dividendos muito grandes de imediato, antes mesmo de fazer alguma coisa. E o custo para ele é muito baixo, pois é só aplicar a lei.

O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa do governo Lula. Nenhuma outra iniciativa pode chegar perto do meio ambiente na caraterística de produzir grandes benefícios, grandes dividendos quase que automaticamente. Basta ele fazer o que fez quando era presidente.

A diplomacia é um ponto forte de Lula?
Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. A popularidade que ele tinha no exterior, o fato de que ele foi festejado por causa da sua biografia, ele utilizou de forma inteligente, para ganhar prestígio. Nisso ele é muito diferente do Bolsonaro, que nunca deu atenção à política externa e teve uma política de isolamento.

Lula, diferentemente, se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso. E ele não se intimida pelo fato de não falar línguas. Pois em sua carreira como líder sindical ele estava acostumado a lidar com pessoas ricas e poderosas. Claro, um líder sindical que se amedronta diante dos poderosos não tem futuro. Ele sabe que ele é bom nisso, e tem uma autoconfiança muito grande. E é muito sensível nas questões diplomáticas, tem muita intuição.

Governos na Europa, principalmente os social-democratas como o da Alemanha, querem trabalhar com Lula. Isso é uma grande vantagem…

Para Lula, os interlocutores naturais são os social-democratas. Como candidato, fez uma viagem à Europa um ano atrás, e foi recebido por esses social-democratas. Ele sabe que tem afinidade com eles.

E ele tem sorte de ter sido eleito numa época com Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. Em termos americanos, Biden é quem mais se aproxima de ser um social-democrata. É um contexto mais favorável do que se ele tivesse sido eleito numa época como a do Donald Trump. Ele vai aproveitar isso, vai usar muito essa cartada.

Mas vejo também uma outra coisa: o acordo de livre comércio [do Mercosul] com a União Europeia e a ideia de o Brasil se tornar membro da OCDE serão encarados com mais reserva pelo novo governo brasileiro.

Pois o PT está mais à esquerda que a social-democracia europeia. Aqui ainda há mais resistência a uma ideologia totalmente liberal ou neoliberal como a da OCDE.

E no caso do acordo UE-Mercosul: como o governo do PT vai tentar, de novo, dar força à indústria, eles encarem esse acordo com certa reserva. Pois, na minha opinião, o acordo é muito desequilibrado, favorecendo muito a indústria europeia, e concede muito pouco em termos de agricultura aos países do Mercosul. Se eu estivesse no governo, também reabriria esse acordo. E o Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores de Lula]) já declarou isso várias vezes. Então, nessa área deve haver dificuldades.

E a postura frente a regimes autoritários na América Latina, como Nicarágua e Venezuela? Isso não vai atrapalhar?
É o ponto fraco de Lula. Tenho a impressão de que isso, no caso do PT, representa mais uma herança simbólica e histórica e não propriamente uma prática. Pois o PT sempre aceitou o jogo democrático. Não é um partido de vocação ditatorial como em Cuba, Nicarágua e Venezuela. Mas a esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo.

Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo. Eles têm dificuldade de condenar a Rússia, porque tendem a ver o conflito [na Ucrânia] em termos ainda da presença norte-americana. Mas tem exceções:Gabriel Boric, no Chile, é de uma esquerda mais evoluída. Ele condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Mas o PT é mais atrasado, Lula vai ter dificuldade nessa área. Já durante o antigo governo dele, ele tomou decisões favoráveis a esses países, como as obras da Odebrecht em Cuba. Naquela época já foi um desgaste para ele. Mas agora o Brasil mudou, há uma presença de uma direita muito mais forte do que naquele momento. Por isso, ele precisa tomar cuidado nessa área.

Como será a relação com a China? Hoje, a China cresce muito menos que 20 anos atrás…
Pois é. Eu acho que o grande desafio do Lula é o desafio de toda pessoa que volta ao governo depois de ter tido êxito e de ter saído durante muito tempo. Ele está voltando ao poder 12 anos depois de deixá-lo. Em 2010, o mundo e o Brasil eram muito diferentes. Basta ver o caso da China.

O êxito de Lula no primeiro governo dele foi a sorte de ser presidente durante o boom das commodities. A alta dos preços das commodities coincidiu com os dois governos dele. Em 2009, no penúltimo ano de mandato dele, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Então, ele capturou aquele período em que a cada ano os preços subiam mais. E foram os anos do descobrimento do pré-sal. Os três principais produtos que o Brasil exporta para a China são soja em grão, minério de ferro e petróleo bruto.

Mas agora já não tem aquele dinamismo de antes. Mas vai haver prioridade para a China, procurando consertar o estrago feiro pelo governo Bolsonaro, que foi muito hostil em relação à China, com ofensas pessoais do filho do presidente. Lula consertará isso, mas não terá mais aquela centralidade. Pois esse período passou.

Lula vai pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU para o Brasil?
Ele vai querer colocar esse tema em pauta. Mas as grandes potências não têm interesse. A China não tem interesse nisso, pois sabe que o alargamento do Conselho de Segurança significaria, no mínimo, o ingresso do Japão e da Índia. Os americanos de vez em quando dizem que são favoráveis a essa reforma, mas na prática tampouco se interessam.

Além disso, a respeito da guerra na Ucrânia, Lula vai continuar mais ou menos com a linha de Bolsonaro. Em uma votação recente no Conselho de Segurança, do qual o Brasil temporariamente faz parte, o Brasil se absteve. E isso não ajuda. Acho que o Brasil deveria claramente condenar a agressão russa. A atual posição cria dificuldades para o PT. Eu gostaria de uma política externa menos voltada a esse ranço e essa herança esquerdista, que seguramente vai marcar alguns aspectos deste governo.

E como será a importância dos Brics, dos quais o Brasil faz parte?
Os BRICS sempre ficaram frustrados no sentido de que eles não conseguiram definir uma plataforma comum para a reforma da governança do mundo. Eu não acredito que estes Brics tenham um grande papel no futuro. De todos esses grupos que foram criados, o único que me parece ter potencial é o G20. Pois reúne tanto as economias mais avançadas, o G7, como as principais economias emergentes, indo além dos Brics. O potencial dos Brics, portanto, é limitado.


Itamaraty inicia nova gestão com adesão a acordo de migração e críticas a Israel (Brasil 247; Correio Braziliense)

 Mauro Vieira inicia gestão no Itamaraty com adesão a acordo de migração e críticas a Israel

Novo chanceler busca trazer o Brasil de volta ao mundo
Brasil 247, 5 de janeiro de 2023 

247 - O Itamaraty comunicou à Organização das Nações Unidas (ONU), nesta quinta-feira (5), que o Brasil voltará a fazer parte do Pacto Global para a Migração Segura. O País assinou o pacto em dezembro de 2018, mas, no mês seguinte, no início do mandato de Jair Bolsonaro, se retirou, alegando que o acordo lesava a soberania nacional.

O novo governo, que tem Mauro Vieira como chanceler, disse em nota que o Pacto está alinhado com a Lei da Migração brasileira, por exemplo, ao garantir o acesso de migrantes a serviços básicos. Ainda segundo a nota, “o retorno do Brasil ao Pacto reforça o compromisso do governo brasileiro com a proteção e a promoção dos direitos dos mais de 4 milhões de brasileiros que vivem no exterior”.

Política externa ativa e altiva
O Itamaraty já vem demonstrando que conduzirá uma diplomacia distinta do antigo governo Jair Bolsonaro. Em um comunicado divulgado na terça-feira (3), o MRE brasileiro criticou a visita do ministro de Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, à mesquita Al Aqsa, em Jerusalém.

Na mesma data, Gvir visitou o Monte do Templo, onde fica a mesquita Al Aqsa --um dos locais mais reverenciados pelo Islã. A visita provocou a condenação de grande parte do mundo muçulmano, incluindo Arábia Saudita, Catar, Jordânia e Emirados Árabes Unidos. O Monte do Templo é reverenciado como um local sagrado por todas as fés abraâmicas.

O comunicado do Itamaraty expressa a preocupação do Brasil com a incursão de Ben Givr na Esplanada das Mesquitas. “À luz do direito internacional e tendo presente o status quo histórico de Jerusalém, o governo brasileiro considera fundamental o respeito aos arranjos estabelecidos pela Custodia Hachemita da Terra Santa, responsável pela administração dos lugares sagrados muçulmanos em Jerusalém, tal como previsto nos acordos de paz entre Israel e a Jordânia, em 1994. Ações que, por sua própria natureza, incitam à alteração do status de lugares sagrados em Jerusalém constituem violação do dever de zelar pelo entendimento mútuo, pela tolerância e pela paz”, diz o Itamaraty.



Brasil volta ao Pacto para Migração da ONU, anuncia Itamaraty

Assinado pelo Brasil em 2018, o Pacto foi deixado de lado em 2019 pelo governo Bolsonaro. O texto prevê diretrizes para o trato aos migrantes

Victor Correia
Correio Braziliense, 05/01/2023 
   
O Ministério das Relações Exteriores anunciou nesta quinta-feira (5/1) o retorno do Brasil ao Pacto Global para Migração Segura, da Organização das Nações Unidas (ONU). O comunicado foi enviado pelo governo federal a dirigentes da ONU e da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

"O retorno do Brasil ao Pacto reforça o compromisso do Governo brasileiro com a proteção e a promoção dos direitos dos mais de 4 milhões de brasileiros que vivem no exterior", disse o Itamaraty em nota à imprensa.

O Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular foi assinado em 2018 pelos 164 Estados-membro da ONU, inclusive pelo Brasil. Em 2019, porém, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) declarou que não participaria. O chanceler à época, Ernesto Araújo, chegou a declarar que "a imigração não deve ser tratada como questão global, mas de acordo com a realidade e a soberania de cada país”.

"Compromissos já contemplados pela Lei de Migração Brasileira"
Segundo as Nações Unidas, o Pacto para Migração "não é vinculativo e fundamenta-se em valores de soberania do Estado, compartilhamento de responsabilidade e não-discriminação de direitos humanos". O texto estabelece diretrizes para o trato aos migrantes e cooperação internacional em prol do tema.

"O documento contém compromissos já contemplados pela Lei de Migração brasileira, considerada uma das mais avançadas do mundo, como a garantia do acesso de pessoas migrantes a serviços básicos", declarou também o Itamaraty

Empossada ontem, a secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores, Maria Laura da Rocha, primeira mulher a ocupar o segundo cargo mais alto da pasta, declarou que "o Brasil terá de reconstruir pontes com países e grandes foros de debate, a começar pela sua própria região sul-americana, e na América Latina e Caribe, além de colocar em marcha uma nova dinâmica no relacionamento com a África, com a Ásia e com parceiros prioritários como a Europa, os Estados Unidos, a China e os demais membros do BRICS".


O que Lula fará com o Brics? - Guga Chacra (O Globo)

 Permito-me remeter, sobre a questão do Brics, ao meu livro recentemente publicado: 

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira, Brasília: Diplomatizzando, 2022, 277 p.; ISBN: 978-65-00-46587-7; Edição Kindle: 1377 KB; ASIN: B0B3WC59F4; At Amazon.com, link: https://www.amazon.com/dp/B0B3WC59F4

O que Lula fará com o Brics?

Cenário geopolítico atual, com guerra na Ucrânia e linha dura de Xi, levanta dúvidas sobre sentido do bloco que há uma década parecia se consolidar como representação das potências não ocidentais

O Globo, 05/01/2023
Guga Chacra

Quando Lula deixou o governo 12 anos atrás, o Brics parecia consolidar-se como o bloco das potências não ocidentais. Vladimir Putin ainda era um líder respeitado no Ocidente e estava num hiato fora da Presidência da Rússia, exercendo o cargo de premier. Hu Jintao governava a China, mas não como um autocrata. A Índia seguia nas mãos do Congresso Nacional Indiano, uma agremiação mais centrista. A África do Sul vivia a transição de Thabo Mbeki para Jacob Zuma e permanecia nas mãos do Congresso Nacional Africano desde o fim do apartheid. E o Brasil vivia um de seus melhores momentos econômicos, além de ter sido escolhido como sede da Copa e da Olimpíada.

As mudanças em pouco mais de uma década foram gigantescas e, na maior parte, para pior nesse bloco que visava unir-se como uma força separada, mas não antagônica, do Ocidente. Putin anexou a Crimeia em 2014 e invadiu no ano passado a Ucrânia no maior conflito militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra. Repudiado no Ocidente, o líder russo vê sua ofensiva fracassar, com os EUA e as nações europeias se unindo a favor dos ucranianos liderados pelo presidente Volodymyr Zelensky.

A China, depois da pandemia, perdeu o fôlego, crescendo a patamares bem inferiores aos de anos atrás. Mais grave, Xi Jinping mudou as regras para permanecer um terceiro mandato e se tornou um autocrata. As ameaças a Taiwan se intensificaram e ainda pesam as acusações de genocídio contra minorias como os uigures. A Índia emerge como uma das grandes vitoriosas do período pós-pandemia e superará a China como a nação mais populosa do planeta nos próximos meses. Ao mesmo tempo, seu primeiro-ministro é o nacionalista e supremacista hindu Narendra Modi, com uma agenda bem mais polarizada do que seus antecessores.

O único do Brics que não mudou muito foi a África do Sul. Afinal, mesmo o Brasil de Lula vive um contexto bem diferente do de 2011. A economia luta para superar uma década perdida, o país segue dividido e sua imagem se deteriorou após quatro anos de governo de um pária internacional como o extremista Jair Bolsonaro.

Diante desse novo cenário geopolítico global, cabe a pergunta se o Brics ainda faz sentido, se é que fazia no passado. Qual o interesse de Brasil, Índia e África do Sul de integrarem um bloco junto com a Rússia, vista como inimiga no mundo ocidental? Naturalmente, esses países mantêm e manterão relações comerciais e diplomáticas com Moscou. Como disse o chanceler da Índia ao New York Times, "a Europa importou seis vezes mais petróleo da Rússia do que a Índia desde fevereiro", ao dizer que os indianos devem defender seus interesses. Mas tratar como aliado? 2023 não é 2010.

Uma alternativa razoável para o Brasil seria seguir a defender seus interesses no cenário geopolítico internacional, mas sem deixar de lado seus valores. É óbvio que o país precisa seguir com o comércio com a China. Não há necessidade, porém, de adular Xi. Deve condenar a Rússia por sua agressão à Ucrânia nos fóruns internacionais, mas levando em conta os interesses brasileiros no comércio bilateral. E é importante o novo governo Lula investir numa aproximação com a Índia no âmbito comercial, ainda que mantendo uma certa distância de Modi.

Já o Brics como bloco deveria ser extinto, ainda que não formalmente. Lula não pode se sentar ao lado de um criminoso de guerra como Putin. Seria um desrespeito a todas as vítimas do conflito na Ucrânia.



Primeira SG mulher na história do Itamaraty: Maria Laura da Rocha

 Maria Laura da Rocha se torna 1ª secretária-geral do Itamaraty e promete atuar por diversidade

Mulheres diplomatas vestiram roupas lilás na cerimônia de transmissão de cargo em Brasília

Folha de S. Paulo, 4.jan.2023
Renato Machado

BRASÍLIA - A diplomata Maria Laura da Rocha assumiu na tarde desta quarta-feira (4) o posto de secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores. Ela se torna, assim, a primeira mulher na história a ocupar o cargo —o segundo mais importante da hierarquia da diplomacia brasileira.

A cerimônia de transmissão de cargo foi realizada no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Em seu discurso, a auxiliar do chanceler Mauro Vieira prometeu trabalhar para aumentar a diversidade na pasta.

"Como primeira mulher a ser nomeada secretária-geral, não medirei esforços para evidenciar o que a casa ganha em múltiplas dimensões valorizando as suas funcionárias mulheres e a diversidade dos seus quadros. O objetivo da igualdade de gênero deve pairar sobre todas as ações do ministério", afirmou.

"Vamos cuidar para que o Itamaraty seja um ator engajado, em parceria com outros órgãos e com a sociedade civil, para ampliar o número de mulheres, negras e negros, pessoas menos favorecidas e candidatos de todas as regiões do país recrutados para as nossas carreiras."

A cerimônia de transmissão de cargo também foi marcada por um movimento de diplomatas mulheres, que vestiram roupas lilás para celebrar o fato de Maria Laura ser a primeira secretária-geral do sexo feminino. A cor é associada ao movimento sufragista e ao feminismo.

Durante os trabalhos do gabinete de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), chegou-se a cogitar a possibilidade de uma mulher ser nomeada ministra das Relações Exteriores, o que seria inédito. No final, porém, Lula optou por Vieira, que já havia sido chanceler no governo de Dilma Rousseff (PT) —o que frustrou parcela da diplomacia.

Em entrevista à Folha após ser escolhida para o cargo, Maria Laura defendeu as demandas de diversidade na área. "Queremos continuar esse caminho, ter muitas profissionais no topo da carreira, mais mulheres em posições de comando. Vai chegar um momento em que teremos uma ministra das Relações Exteriores. É inevitável."

Na cerimônia desta quarta, discursou na mesma linha do novo chanceler, ao mencionar o projeto de reconstrução da diplomacia brasileira e a reaproximação com países e blocos multilaterais, citando a necessidade de "reconstruir pontes".

Também disse que o setor fará o país voltar à posição de "grande nação em desenvolvimento e que detém a maior floresta tropical do mundo", prometendo que o Brasil contribuirá para cumprir as metas do Acordo de Paris sobre Mudanças Climáticas.

A embaixadora afirmou, por fim, que vai dar especial atenção para a reconstrução de uma unidade do Itamaraty para atender e dar proteção e assistência a brasileiros que vivem no exterior. Falando aos servidores, disse que vai estar à frente de uma secretaria-geral "amorosa", aberta a ouvir desafios do trabalho do serviço externo.

Maria Laura da Rocha é diplomata de carreira, tendo ingressado nos anos 1970 no Instituto Rio Branco. Seu último cargo no exterior foi de embaixadora do Brasil em Bucareste, na Romênia. Ela também chefiou as missões brasileiras junto à FAO e à Unesco —órgãos das Nações Unidas para alimentação e agricultura e para educação, ciência e cultura, respectivamente.

Nos primeiros governos de Lula, foi chefe de gabinete do então ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim —ainda hoje principal conselheiro do petista para a área internacional e padrinho da indicação de Vieira.

Durante a cerimônia desta quarta, o novo chanceler teceu diversos elogios a Maria Laura, destacando sua experiência e dizendo que ela tem "refinada habilidade política". Ressaltou também a luta das mulheres e das minorias para exercer a carreira diplomática e as propostas do atual governo para corrigir injustiças.

O chanceler ainda ressaltou o fato que a chegada de Maria Laura à secretaria-geral se dá mais de um século após o ingresso de Maria José de Castro Rebello, primeira diplomata e funcionária pública concursada do Brasil.

"A diversidade não pode ser entendida apenas de forma instrumental. Por um lado, é inegável que um corpo de funcionários diverso e inclusivo aumenta a excelência do trabalho diplomático [...] Por outro, resta óbvio que a maior presença de colegas negras e negros, mulheres, indígenas, pessoas LGBTQIA+, com deficiência e oriundas de distintas regiões do Brasil, constitui o alicerce maciço sobre o qual se assenta a própria democracia", afirmou.

Vieira disse ainda que "práticas autoritárias que macularam a história do país" impactaram a evolução na carreira de mulheres. Citou a data de 1938, quando mulheres foram impedidas de ingressar no serviço exterior, e criticou a perseguição a diplomatas homossexuais.

"É igualmente justo homenagear a memória dos colegas que foram expurgados da carreira por sua orientação sexual e por razões ideológicas, em diferentes momentos da nossa história", afirmou.

O chanceler também disse que sua gestão vai estudar maneiras de reabrir representações encerradas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). "Faz-se necessário assegurar lotação adequada de postos C e D e de postos consulares, e estudar maneiras e meios de reabrir embaixadas que foram fechadas na África e no Caribe."



Estaremos dispostos a solucionar desafios globais, diz embaixadora

Maria Laura tomou posse como secretária-geral das Relações Exteriores, cargo número 2 do Itamaraty

JESSICA CARDOSO 
PODER 360, 04.jan.2023

A diplomata Maria Laura da Rocha, 67 anos, tomou posse nesta 4ª feira (4.jan.2023) como a nova secretária-geral do Ministério das Relações Exteriores. A função auxilia diretamente o ministro do Itamaraty e é responsável pela gerência das estruturas internas do órgão.

Essa é a 1ª vez que uma mulher ocupa o 2º cargo mais importante da pasta. Em homenagem a esse feito, as diplomatas presentes no evento foram vestidas de lilás, cor adotada pelo movimento sufragista, em 1908, na mobilização pelo direito ao voto.

Na cerimônia realizada no Itamaraty, Rocha disse que a política externa do Brasil terá o objetivo de mostrar um país “pronto” e “disposto” a dar sua contribuição para superar os desafios globais.

“A diplomacia brasileira voltará a refletir a posição do Brasil como grande país em desenvolvimento detentor da maior floresta tropical do mundo, buscando contribuir para as metas do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima como parte de uma estratégia de desenvolvimento que garanta renda, empregos de qualidade e melhores condições de vida”, afirmou.

Rocha disse ainda que as questões de Orçamento e de recursos humanos terão prioridades no diálogo com os outros órgãos do governo. O Itamaraty também pretende adotar uma gestão mais moderna, com mais transparência e planejamento estratégico.

“Temos de seguir investindo em condições de trabalho adequadas, em treinamento e aperfeiçoamento profissional, em saúde e em ambientes livres de qualquer tipo de assédio e preconceito”, disse.

Em entrevista ao Poder360, a secretária-geral disse que o prazo para as mudanças será o mais rápido possível.

“Se espera do Brasil sempre respostas muito rápidas e para isso nós temos que modernizar nossa rede porque nós somos presentes no mundo inteiro. Nós coordenamos o trabalho no mundo inteiro, então temos que aproveitar melhor e para isso temos que repensar juntos um plano feito por todos os setores, colocando a necessidade de cada área”, afirmou ao jornal digital.

QUEM É MARIA LAURA DA ROCHA
Nascida no Rio de Janeiro em 1955, a diplomata atuou como chefe de Gabinete do ministro das Relações Exteriores de 2008 a 2011. Antes de ser anunciada como secretária-geral, foi embaixadora do Brasil na Romênia.

Rocha também foi embaixadora na Hungria de 2017 a 2019. Também atuou em missões em Berlim, Roma, Moscou e Paris. Entre 2010 e 2014, foi chefe da Delegação Permanente do Brasil junto à Unesco. Depois, foi representante do Brasil na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).


Por uma frente ampla diplomática - Editorial O Estado de S. Paulo

Por uma frente ampla diplomática

Isolamento promovido pela militância ideológica bolsonarista denunciada pelo novo chanceler só será revertido se o governo lulopetista renunciar à sua própria militância ideológica

Editorial O Estado de S. Paulo, 5/01/2023 


Não se pode negar que a exposição dos desafios da política externa brasileira apresentada pelo novo chanceler, Mauro Vieira em seu discurso de posse, alicerçada em uma longa experiência como funcionário de carreira do Itamaraty, foi lúcida e ampla. Mas entre as palavras e os atos, há que se desfazer um complexo de incertezas, cujo maior epicentro é justamente o Palácio do Planalto.

Ao avaliar o legado do último governo, Vieira criticou o alijamento do cenário internacional “por força de uma visão ideológica militante”. De fato, Jair Bolsonaro submeteu a política externa aos seus instintos confrontacionais e sectários. Como já dissemos neste espaço, no editorial Entre párias e megalomaníacos (9/7/22 [transcrito abaixo]), o legado do governo anterior nas relações internacionais é fiel ao imperativo, enunciado por Ernesto Araújo, dublê de chanceler e ideólogo do bolsonarismo, de fazer do Brasil um orgulhoso pária. Para isso, o País desprezou direitos humanos, aderiu ao negacionismo científico em plena pandemia e também nas questões ambientais, brigou com valiosos parceiros comerciais por mera birra ideológica e alinhou-se a extremistas de direita sem qualquer contrapartida.

Essa dilapidação do soft power (poder brando) do Brasil, em especial de seu protagonismo nas instâncias multilaterais, não poderia ter ocorrido em pior hora. Como destacou Vieira, o Brasil navega em “um dos mais conturbados momentos no cenário internacional”. As tensões entre grandes potências, a guerra na Europa, as sequelas da pandemia, tudo isso cria um quadro de incertezas nas cadeias de suprimento, no abastecimento de energia e na segurança alimentar.

Essa “crise de governança global sem precedentes” é agravada pela paralisação de mecanismos como a Organização Mundial do Comércio ou o Conselho de Segurança da ONU. O quadro é ainda mais tenebroso, quando se pensa na indispensabilidade da cooperação internacional ante os grandes desafios do século 21, como a revolução digital ou as mudanças climáticas.

“Existe uma clara demanda do mundo pelo Brasil”, apontou Vieira. De fato, sem uma atuação construtiva do Brasil, não há como equilibrar o tripé que alicerça uma economia global sustentável: a segurança ambiental, energética e alimentar.

A agenda delineada por Vieira é ambiciosa. O chanceler aludiu a desafios ambientais, direitos humanos, reforma do Conselho de Segurança da ONU, acordos para facilitação do comércio e neutralização de barreiras protecionistas, revalorização do Mercosul, equilíbrio das relações com parceiros tradicionais como EUA e União Europeia e ampliação das relações com o bloco Ásia-Pacífico.

A fórmula de Vieira para nortear essa agenda, a “ideologia da integração”, pode ser considerada o equivalente na política externa à “frente ampla democrática” propagada na campanha do presidente Lula da Silva para a política doméstica. E aqui começam as incertezas. Na formação do governo, a “frente ampla” se mostrou mais reduzida do que esperavam muito de seus apoiadores, e está, simbolicamente, restrita às figuras do vice-presidente Geraldo Alckmin; da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; e da ministra do Planejamento, Simone Tebet.

Na política externa, Lula tem capital político e prestígio com a mídia e muitos governos estrangeiros. Mas nem o histórico do PT no poder nem as palavras do presidente até o momento permitem supor que a “ideologia da integração” de Vieira, em tese muito “ativa e altiva”, não será subvertida, na prática, pela “visão ideológica militante” lulopetista, que, a seu modo, também condicionou a política externa ao sectarismo e, a seu modo – seja priorizando o viés “sul-sul”, seja renegando acordos com países desenvolvidos (cujo maior emblema é o descaso com o ingresso do Brasil na OCDE, o “clube dos ricos”) – também desperdiçou oportunidades para o País.

“O Brasil está de volta”, repete sem cessar Lula, ecoado por Vieira. Mas, para que isso seja realidade e não mera idealização, é preciso que o velho ranço ideológico fique petista fique no passado.

============

 

Entre párias e megalomaníacos

Para contrastar o ‘orgulho’ bolsonarista de ‘ser pária’, o PT ameaça retomar a política externa partidária e ideológica que fez a alegria de tiranos esquerdistas nos governos lulopetistas

Editorial O Estado de S. Paulo, 9/07/2022 

Tradicionalmente a política externa é tema sem relevo nas eleições. Mas, seja pelas transformações estruturais do mundo, seja pelas condições conjunturais do Brasil, nunca foi tão importante subverter essa tradição.

Aos desafios do século 20 – como as ameaças nucleares ou o terrorismo – o século 21 acrescentou novos, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – mudanças climáticas, ajustes na saúde e seguridade com as transformações demográficas, as crises migratórias –, além da interdependência econômica e cultural promovida pelas tecnologias digitais. A pandemia mostrou a importância da cooperação internacional ante esses desafios. Mas guerras comerciais – especialmente entre EUA e China – ameaçam fragmentar o mercado global, e conflitos como o da Ucrânia ameaçam o retorno da guerra fria.

Tradicionalmente pacífico, o Brasil é a segunda maior democracia do Ocidente e, em que pesem as mazelas de seu passado escravagista, é um exemplo de pluralismo multiétnico. A riqueza de seus biomas é decisiva para solucionar dois desafios planetários: a sustentabilidade ambiental e a segurança alimentar.

Por suas dimensões continentais e populacionais, o País é uma potência regional e pode se tornar uma potência global. O fato de estar alijado de instrumentos tradicionais de poder – como armas e dinheiro – torna a diplomacia mais, não menos importante. Transformando essas carências em ativos, o País construiu, com base nos princípios constitucionais de adesão aos direitos humanos e às soluções negociadas e no profissionalismo do Itamaraty, uma consistente tradição de “pluralismo de contatos”.

A dilapidação desse soft power brasileiro será um dos legados mais perniciosos do governo de Jair Bolsonaro. Traduzidos para a política externa, os instintos personalistas, sectários e confrontacionais que pautaram sua carreira militar e parlamentar fomentaram não a propalada “independência” do País, mas seu isolamento. O desprezo pelos direitos humanos; o negacionismo na pandemia; o antiambientalismo; a subserviência ao desvairado presidente americano Donald Trump e as consequentes hostilidades ao sucessor de Trump, Joe Biden; a adulação a líderes autoritários; os atritos gratuitos com líderes como Angela Merkel ou Emmanuel Macron ou com parceiros comerciais como China e Argentina: tudo isso é mero corolário de uma doutrina exprimida de forma lapidar por seu chanceler predileto: o “orgulho de ser pária”.

O petista Lula da Silva, por sua vez, promete fazer tábula rasa dessa doutrina. Mas não se corrige um erro com outro: 13 anos no poder mostraram o que é a política externa “ativa e altiva” que o lulopetismo pretende ressuscitar. Não foi ativa, mas ativista; não foi altiva, mas megalomaníaca.

O voluntarismo ideológico traduzido no emblema “Sul-Sul” desperdiçou oportunidades comerciais com as grandes potências ocidentais, privilegiando negócios periféricos com parceiros irrelevantes, cujo traço comum era seu feroz antiamericanismo. Esse terceiro-mundismo militante da diplomacia lulopetista atravancou a inserção internacional do País.

Mesmo políticas mais ou menos social-democratas adotadas internamente foram renegadas no plano internacional pelo alinhamento doutrinário com tiranias socialistas, que prejudicou a integração do Mercosul e produziu episódios lamentáveis, como a conivência com a invasão de uma instalação da Petrobras na Bolívia, em 2006, ordenada pelo então presidente Evo Morales, amigão de Lula.

Paradoxalmente, do ponto de vista de política externa, a pauta mais importante que os partidos políticos poderiam oferecer é justamente a despartidarização da diplomacia. Por antagônicos que sejam, o lulopetismo e o bolsonarismo compartilham do mesmo apetite por submetê-la aos seus interesses ideológicos. Em um aspecto o resultado foi idêntico: a degradação da isonomia e do profissionalismo da Casa de Rio Branco, a começar pela escassez orçamentária precipitada pela irresponsabilidade fiscal de ambos. Nem um nem outro foram capazes de promover – ao contrário, obstinaram-se em perverter – os princípios da diplomacia nacional definidos pelo Conselho do Império e corporificados na Constituição de 88: “Inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”.


Pau que nasce torto morre torto: sobre a paralisia e a dissolução final do governo Bolsonaro - Christian Lynch

 PAU QUE NASCE TORTO MORRE TORTO

Uma análise da paralisia, do esboroamento e da final dissolução do governo anômalo de Jair Bolsonaro

Por Christian Lynch

04/jan/2023


O governo Bolsonaro foi coerente até o fim em sua anormalidade congênita. Quando estão para terminar, governos normais reconhecem o resultado eleitoral e se limitam a tocar a rotina administrativa, limitando suas ações políticas em facilitar o advento do novo governo. O presidente que sai cede protagonismo ao que entra. Mas não poderia terminar normalmente um governo que se elegeu em circunstâncias anormais e viveu na anormalidade e de anormalidade. Hoje está mais do que claro que Bolsonaro nunca passou de um parasita; um reacionário muito limitado intelectual e emocionalmente, que encontrou na lacração reacionária um meio de viver da política e o ensinou aos filhos. Natural que acreditasse, portanto, que sua mais do que improvável chegada ao cargo mais elevado da República, que aliás ocorreu por muitos fatores aleatórios, resultasse de alguma forma dos insondáveis desígnios do Senhor.

Não por outro motivo, recebeu sua derrota, mais do que com fúria, com absoluto estupor. Caiu prostrado como um tolo dirigente de grêmio estudantil; um principiante que nunca houvesse cogitado a possibilidade de ser vencido, usual tanto no esporte como na política. Prostração típica dos negacionistas contrariados, que atribuem seus reveses não às suas limitações, mas à alguma maquinação conspiracionista — no caso, a satânica fraude eleitoral operada pelo Poder Judiciário para eleger Lula. Depois da prostração, porém, veio o pânico diante da perspectiva de privação da imunidade e do foro privilegiado, que por mais de três décadas lhe serviram de barreiras à possibilidade de responder por seus crimes, e da impossibilidade de continuar aparelhando a Polícia Federal para impedir as investigações.

Dali por diante, Bolsonaro emudeceu. Passou a fazer um jogo duplo: enquanto conspirava com seus generais aposentados pelo golpe que o salvaria da cadeia, impedindo a posse de Lula, o ex-presidente se fazia de pobre diabo, doente e deprimido, para que o mesmíssimo “sistema” viesse a ter pena dele, em caso de fracasso no golpe. Há quem diga que a mobilização da porção mais fanática de seus eleitores nas portas dos quartéis, que partiram do golpismo até chegar ao terrorismo, bloqueando estradas, incendiando veículos e explodindo bombas, tinha por finalidade criar o ambiente de caos e de legitimidade que permitisse a invocação do art. 142 da Constituição. Como se sabe, a interpretação golpista do bolsonarismo permitiria às Forças Armadas, neste caso, fechar o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e manter Bolsonaro no poder. Valdemar Costa Neto se incumbiria de sossegar a turma do Centrão. Segundo a imprensa, o golpe teria fracassado por falta de apoio externo e pela ação enérgica do ministro Alexandre de Moraes, que impôs ao partido do presidente uma multa de valor astronômica diante da tentativa de usar o Judiciário para melar sem provas o resultado da eleição.

A verdade é que a possibilidade de um golpe exitoso nunca passou de um delírio de reacionários que pouco entendem de política, e ainda acham que a sociedade brasileira está onde estava 60 anos atrás.

Desde que a possibilidade do golpe se esvaiu, consultando advogado atrás de advogado, obcecado com a certeza de que seria preso no momento em que Lula subisse a rampa do Planalto, Bolsonaro começou a planejar sua fuga para a Flórida. Seu governo, já paralisado, se esboroou e enfim se dissolveu à luz do dia de forma tão escandalosa como silenciosa. Toda a responsabilidade pela gestão da República recaiu sobre um governo eleito cujo quadro de ministros sequer estava completo. Enquanto os filhos do presidente também preparavam sua saída do país antes do ano novo, ministros saíam de férias ou pediam para ser exonerados, para não sofrerem a humilhação de serem exonerados por Lula — os ministros mais identificados com o bolsonarismo, como Heleno, Guedes, Faria, Queiroga. Acusado de ter coibido a locomoção do eleitorado lulista no dia da eleição e subsequente leniência com os bloqueios das estradas cometidos pelos bolsonaristas, o diretor da Polícia Rodoviária Federal foi rapidamente aposentado com proventos integrais. O estratagema visou prevenir sua eventual demissão a bem do serviço público e a confissão das ordens recebidas, o que não convém ao bolsonarismo já encrencado com a polícia. Aliados de Bolsonaro justificaram a fuga com o temor de um “pacote de maldades” com chegada de Lula. Pacote este que, olhando de perto, não passa de um “choque de legalidade” sobre a prática diuturna de crimes contra a república por parte de um governo que acreditou que jamais deixaria o poder.

Em seus estertores, os poucos atos praticados pelo governo foram os mais vergonhosos jamais praticados por qualquer governo na história brasileira. Enquanto tentava agradar a Lula revogando a portaria que impedia a entrada do presidente da Venezuela no Brasil, Bolsonaro criou sinecuras no exterior para premiar servidores da Polícia Federal que se prestaram ao papel de colaboracionistas e embalá-los na ilusão de que o braço da sindicância não chegaria à Europa. A possibilidade da revogação da benesse pelo novo governo já estava nos planos do velho, que contava assim com aumentar a frustração dos colaboracionistas, para que doravante sirvam de infiltrados vazando informações sigilosas em benefício dos bolsonaristas na oposição.

Mas a esvaecimento da cúpula bolsonarista nos últimos meses tem outra explicação, para além da repulsa ideológica e do medo. Todos sabiam que não tinham competência nem qualificação para ali estarem; que foram recrutados para ocupar seus cargos, parte por oportunismo, parte por falta de pessoal disposto a colaborar. Estavam ali tão espantados quanto a opinião pública, aproveitando a situação especial criada pela existência de um governo absolutamente anormal. Uma vez moribundo este governo, nada mais lógico que se retirassem rapidamente de cena, voltando para o buraco de onde haviam saído ou sido saídos. De modo que, quando chegou a última semana, já não havia quem respondesse pelo governo Bolsonaro. Não havia sequer autoridade para lamentar oficialmente a morte de Pelé, o brasileiro mais famoso de todos os tempos. Os meios de comunicação tiveram de entrevistar a futura ministra dos esportes, designada de véspera, porque já não havia ninguém no governo ainda vigente oficialmente.

O último pronunciamento de Bolsonaro seguiu seu hábito de se dirigir diretamente ao país por meio de uma “live” informal no YouTube e já entrou para a história brasileira como a manifestação mais patética jamais proferida por um presidente às vésperas de ceder o poder. Em síntese, tratou-se de um deprimido e acovardado lamento de um populista reacionário, que buscava explicar ao seu eleitorado seu fracasso no projeto de derrubar a república e, ao mesmo tempo, cheio de temores e cautelas de dizer qualquer coisa que pudesse incriminá-lo ainda mais. Enquanto defendeu a suposta “liberdade de expressão” dos bolsonaristas de bloquear estradas e pedir o golpe militar na porta dos quartéis, Bolsonaro tentou simultaneamente eximir-se de responsabilidade por todos os atos subversivos por eles praticados, como explodir bombas, tocar fogo em ônibus e assassinar adversários. Tentou, em suma, explicar ao seu eleitorado por que não conseguiu dar o golpe, sem dar pretexto para ser preso.

No fim, Bolsonaro chorou como um impotente, suscitando perplexidade, riso e desprezo de um lado e decepção e fúria de sebastianistas fanáticos que por dois meses aguardaram o golpe que não veio.

Poucas horas depois, na tarde do dia 30 de dezembro, Bolsonaro embarcou pela última vez no avião presidencial com destino à Flórida, onde foi encontrar se encontrar com a família no “exílio”. O confesso objetivo era de descansar, entendendo-se por tal passear na Disneylândia e ouvir conselhos de Donald Trump sobre como continuar a enganar seu eleitorado fora do poder e escapar tanto da inelegibilidade quanto da prisão. A história da fuga de Bolsonaro é, claro, reflexo fiel de sua própria história como militar e político: aquela de um homem abaixo do medíocre, de caráter fascistóide e covarde, que descobriu como viver às custas do contribuinte, vivendo um casamento moralista de fachada, cercado por uma camarilha de militares de baixa patente, que o alimenta dia e noite com teorias da conspiração.

Quando se imaginava que nada pior poderia ainda acontecer até a posse do novo presidente, o respeitável público foi surpreendido com a notícia de que o vice-presidente, o general Mourão, aproveitaria o vácuo de poder de 24 horas para ocupar como presidente interino no dia 31 de dezembro o vazio deixado por Bolsonaro. Desejoso de catalisar para si a frustração do eleitorado radical com a fuga ignominiosa do “Mito” para seu exílio na Disneylândia, Mourão se comportou como herdeiro dos generais-presidentes da ditadura militar e convocou uma cadeia nacional de rádio e televisão, na qual buscou apresentar-se ao público conservador como um Figueiredo redivivo: autoritário, mas pretensamente comprometido com a ordem constitucional.

Era um modo de contrastar com a imagem patética de golpista molambento e chorão ostentada por Bolsonaro na véspera. Depois de criticar simultaneamente o Centrão, o Supremo Tribunal Federal e o próprio Bolsonaro, que teria jogado a responsabilidade de sua incompetência sobre as Forças Armadas, Mourão concluiu colocando-se à disposição dos bolsonaristas arrependidos como “o verdadeiro Bonaparte”, ou seja, um militar autoritário respeitável, autêntico herdeiro do regime militar, capaz de capitanear como senador eleito a oposição conservadora a Lula e, quem sabe, ganhar seu voto como candidato a presidente da República daqui a quatro anos. Nada disso retirou do pronunciamento o caráter do mais fantástico oportunismo. No fim das contas, Mourão aproveitou seus quinze minutos como interino para fazer uso dos poderes presidenciais para propaganda eleitoral, de forma escancaradamente antirrepublicana.

O fato de que o antirrepublicanismo tenha no final se voltado contra o próprio Bolsonaro só foi possível porque este foi um governo disfuncional de fio a pavio; um governo que nasceu anômalo e anômalo morreu. Como já dizia minha avó, pau que nasce torto morre torto.

* Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor IESP-UERJ