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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Florestan Fernandes: a organicidade do mestre

Alguém me lembra do mestre Florestan Fernandes, enviando um video feito em honra do grande sociólogo paulista. Apreciei o video, mas nem tanto, pois os depoentes, em grande parte amigos do intelectual e militantes do PT se derramam em elogios a FF, como se ele fosse um santo, ou uma personalidade inatacável sob qualquer ponto de vista.
Ora, reconheço nele uma grande figura, um grande sociólogo, um professor dedicado, uma pessoa de elevada ética e comprometimento real com a coisa pública, valorizando enormemente a integridade e a honestidade intelectual -- e que nunca concordaria, por exemplo, com as baboseiras ensinadas pelo MST numa escola que leva o seu nome --, mas que jamais concordaria, por exemplo, com o panegírico pouco crítico, e que se submeteria de bom grado ao exame honesto de suas propostas e argumentos. Ou seja, ele nunca estaria acima das críticas, e não creio que todos os seus argumentos devam ser aceitos de forma beata.
Foi o que tentei fazer num colóquio dedicado a ele na UNESP de Marília, nos anos 1980. Para quê? Fui vaiado por professores e alunos ao final de minha exposição, como se eu devesse estar ali apenas para fazer elogios incontidos ao mestre.
Meu texto foi este aqui:

O PARADIGMA PERDIDO: A Revolução Burguesa de Florestan Fernandes
In: Maria Angela d'INCAO (org.),
O Saber Militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes
(São Paulo-Rio de Janeiro, UNESP-Paz e Terra, 1987), p. 209-229

(vou disponibilizar esse texto dentro em breve)

Algum tempo depois me pediram um artigo sobre ele, e este está disponível online.
Eu o transcrevo parcialmente aqui, remetendo ao link para sua leitura integral.

Florestan Fernandes e a idéia de revolução burguesa no pensamento marxista brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
Revista Espaço Acadêmico (n. 52, setembro de 2005).

1. Itinerário teórico-prático da revolução burguesa no Brasil
A idéia de revolução burguesa é consubstancial ao próprio desenvolvimento do marxismo no Brasil, conhecendo seus momentos de ascensão teórica ou de declínio prático, de projeção exclusiva no establishment intelectual ou de concorrência com outros modelos analíticos típicos da academia, pari-passu aos progressos teóricos ou percalços práticos da ideologia marxista no País. Essa noção perpassa grande parte da produção intelectual situada no campo teórico do marxismo, alcançando seu ponto máximo, enquanto “tipo-ideal” da conceitualização marxista sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro, na obra do sociólogo Florestan Fernandes. O sociólogo paulista foi um dos mais brilhantes representantes do marxismo acadêmico no Brasil, elevando a interpretação marxista da história brasileira a um plano certamente elevado de conceitualização, sobretudo com o clássico A Revolução Burguesa no Brasil.

Depois do grande triunfo da “concepção marxista da História” na academia brasileira, entre os anos 50 e 80 — movimento coincidente com as vitórias materiais, militares e ideológicas do “socialismo realmente existente” —, o abandono teórico da idéia de revolução burguesa parece ter sido acelerado pela derrocada econômica e política dos países que, entre os anos extremos de 1917-1945 e 1989-1991, encarnaram a suposta materialização prática das idéias marxistas, países estes que curiosamente iniciam, ou retomam, em princípios dos anos 90, suas próprias “revoluções burguesas” práticas. [1] Mas, antes mesmo do “final da História” e da erosão prática do socialismo real, [2] a concepção da revolução burguesa como noção explicativa do desenvolvimento capitalista no Brasil vinha sendo substituída por novos modelos teóricos, alguns baseados na idéia gramsciana de “revolução passiva”, outros na abordagem “bismarckiana” da revolution von Oben e da modernização conservadora, outros ainda, de forma mais incisiva e original, pela afirmação de uma vertente reacionária e mesmo autocrática da revolução burguesa no Brasil, típica do capitalismo dependente da periferia latino-americana. Esta última concepção, de evidente paternidade “florestânica”, representa, na verdade, uma inversão do modelo original marxista e uma espécie de inovação conceitual sobre as concepções tradicionais a respeito da revolução social no Brasil, mas ela representa, de fato, o final da parábola da idéia de revolução burguesa no Brasil.
(...)
Notas: [1] Procedi a uma tentativa de análise “marxista”, da derrocada dos regimes de tipo soviético “Retorno ao Futuro, Parte III: Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: vol. 35, janeiro-junho 1992, nºs 137-138, p. 51-71). Uma análise “liberal” sobre as razões do sucesso e ulterior erosão da idéia comunista no século XX pode ser encontrada em François Furet, Le Passé d’une Illusion: essai sur l’idée communiste au XXe siècle (Paris: Robert Laffont /Calmann-Lévy, 1995), analisada por mim em “A Parábola do Comunismo no Século XX”, Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: vol. 38, n° 1, janeiro-junho 1995, p. 125-145).

[2] A referência inevitável aqui é ao artigo original de Francis Fukuyama, “The End of History?”, The National Interest (n° 16, 1989, p. 3-18)

(...)

2. Florestan Fernandes e a revolução burguesa na periferia
Florestan Fernandes é, sem dúvida alguma, o representante principal do que se poderia chamar, a falta de melhor designação, de “teoria social brasileira” e sua obra mais importante — A Revolução Burguesa no Brasil — constitui o esforço mais acabado empreendido na academia brasileira para elaborar uma teoria regional do desenvolvimento capitalista na periferia da “economia-mundo” capitalista.

Egresso de uma das primeiras turmas de Ciências Sociais da USP, onde recebeu aulas de mestres franceses — dos quais tornou-se assistente —, Florestan realizou pesquisas sobre o folclore em São Paulo e terminou, em 1947, seu mestrado pela Escola de Sociologia e Política, com uma tese sobre a organização social dos tupinambá. Sua tese de doutoramento, já pela USP em princípios dos anos 50, representou uma continuidade desse trabalho, tendo examinado a função social da guerra entre os tupinambá. Sua aproximação ao marxismo, ainda durante os anos de estudos universitários, bem como às correntes de pensamento socialista se deu basicamente em função de sua própria condição social de “oprimido”, tendo sido aperfeiçoada em leituras, em traduções de Marx — Contribuição à Crítica da Economia Política , por exemplo — e em contatos freqüentes com grupos de socialistas e trotskistas dos meios jornalísticos e intelectuais.

Mas, nessa primeira fase de sua vida acadêmica, em que atuou como professor assistente de Fernando Azevedo e depois de Roger Bastide, e como responsável pela cadeira de Sociologia-I na USP, Florestan seguiu o ecletismo típico de seus mestres franceses: uma pitada de cada teórico acadêmico — com destaque para Durkheim, Weber e Marx — e um diálogo constante com os grandes mestres contemporâneos: Mannheim, Freyer, Sombart, Tönnies, Linton e vários outros expoentes das escolas européias e norte-americanas. Uma pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo formou a base de seus grandes trabalhos sobre o problema da integração do negro na sociedade de classes. Desde cedo, contudo, ele também é levado a pensar os problemas do subdesenvolvimento e da dependência, que era por ele chamado de heteronomia, conceito derivado de Marx e Weber. Estava tendo início ali um pensamento original dentro do que se poderia chamar de Sociologia Brasileira ou, de forma mais ampla, de Sociologia Latino-Americana, bastante conectada às contribuições econômicas “periféricas” e “desenvolvimentistas” de Raúl Prebisch e Aníbal Pinto — da chamada escola cepalina — e aos aportes propriamente sociológicos de José Medina Echavarria e de Rodolfo Stavenhagen.

A análise interpretativa dos problemas raciais e das relações de classe no Brasil conduz Florestan ao estudo da formação econômica e social e às especificidades da “transformação burguesa” no País, base ulterior de seu grande trabalho sobre a “revolução burguesa” no Brasil. Com efeito, detentor isolado do copyright do conceito de revolução burguesa na produção sociológica brasileira, o grande intérprete da mudança social em nosso País não encontrou, até agora, muitos seguidores nesse campo minado da reflexão histórico-social. O único discípulo a adotar o conceito e a problemática da revolução burguesa na análise do desenvolvimento histórico brasileiro, Octavio Ianni, vincula, na verdade, essa noção ao estudo das formas assumidas pelo Estado, mas no trabalho de Ianni o conceito designa, na verdade, o seu contrário, isto é, a “contra-revolução burguesa”, o que é, pelo menos, um contra-senso heurístico.

O opus magnum de Florestan, A Revolução Burguesa no Brasil (1975), integra, mediante instrumentos conceituais recolhidos nas melhores fontes da sociologia — sobretudo em Marx, em Durkheim e em Weber —, o essencial da produção historiográfica, sociológica e política relativa aos diferentes aspectos do processo de modernização econômica e social do Brasil. Trata-se, nada mais nada menos, do que interpretar todo o processo histórico de (trans)formação da sociedade brasileira, buscando em nosso passado dependente, escravocrata e periférico — ou seja de capitalismo incompleto e tardio e subordinado ao imperialismo e de insuficiente “mutação burguesa” das estruturas de dominação política — as razões e as raízes das deformações do período contemporâneo, marcadas pela ditadura militar — uma “autocracia burguesa” no entendimento de Florestan — e por um desenvolvimento econômico desigual, retardatário e caudatário dos principais centros da economia mundial.

Florestan Fernandes pretendia, com seu monumental “ensaio de interpretação sociológica”, resumir as principais linhas da evolução do capitalismo e da sociedade de classes no Brasil. Mas, ao colocar no centro de sua interpretação o conceito específico de “revolução burguesa”, a summa sociológica de Florestan não deixa de apresentar algumas especificidades em relação a uma pretendida “filiação” marxista, tanto de forma como de substância. Algumas características propriamente “heterodoxas” dessa grande obra são de natureza estilística: uma redação que se estendeu durante cerca de uma década (1966-1974) justifica provavelmente insuficiências como a ausência de unidade global e de uniformidade no texto, o caráter descosido ou fragmentado de alguns capítulos e mesmo mudanças propriamente conceituais no desenvolvimento do discurso, como a substituição da abordagem classicamente weberiana e durkheiminiana da primeira parte pelo enfoque mais claramente “leninista” dos capítulos finais. A adesão de Florestan ao que ele mesmo chama de “sociologia engajada e radical” faz com que sua análise da “revolução burguesa” no Brasil acuse, em diversas passagens, o dilema entre a objetividade científica e a opção política.

(...)

Qualquer que seja o destino futuro do marxismo acadêmico no Brasil, sua trajetória faz parte da própria história intelectual no País, tendo ela sido profundamente marcada pelas contribuições que ofereceram, em seus respectivos campos de atuação, pensadores como Caio Prado, Werneck Sodré e Florestan Fernandes. Eles foram paradigmáticos de uma certa época e plenamente representativos de um determinado debate de idéias, assim como foram, para suas respectivas gerações, “lideranças carismáticas” na descoberta de “campos virgens” de exploração teórica, na condução de pesquisas empíricas, na orientação de leituras, na identificação de caminhos explicativos, na organização científica dos conceitos e outros instrumentos analíticos, na apresentação de “contribuições relevantes”, assim como na própria mobilização política para o “bom combate”. A eles muito deve o vigor da teoria social brasileira nos últimos sessenta anos e sobre sua obra deve repousar, em parte, o esforço de reconstrução de uma teoria histórico-social adaptada ao estágio atual de transformação da sociedade nacional.

Orientações de leitura sobre Florestan Fernandes:

Almeida, Paulo Roberto de. Classes Sociales et Pouvoir Politique au Brésil: une étude sur les fondements méthodologiques et empiriques de la Révolution Bourgeoise (Bruxelas: Université Libre de Bruxelles, 1984, 2 vols.; Thèse présentée en vue de l’obtention du grade de Docteur en Sciences Sociales)
———. “O Paradigma Perdido: a Revolução Burguesa de Florestan Fernandes”, in Maria Angela d’Incao (org.), O Saber Militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes (São Paulo-Rio de Janeiro: UNESP - Paz e Terra, 1987, pp. 209-229)

Fernandes, Florestan. A Etnologia e a Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958)
———. Mudanças Sociais no Brasil (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960)
———. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo (São Paulo: Anhambi, 1961)
———. A Sociologia numa Era de Revolução Social (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963
———. A Integração do Negro na Sociedade de Classes (São Paulo: Dominus-USP, 1965);
———. Educação e Sociedade no Brasil (São Paulo: Dominus-USP, 1966)
———. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1968)
———. The Latin American in Residence Lectures (Toronto: University of Toronto, 1969-70)
———. O Negro no Mundo dos Brancos (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972)
———. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1973)
———. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Rio de Janeiro: Zahar, 1974)
———. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional” (São Paulo: Hucitec, 1975)
———. “A Revolução Burguesa no Brasil em Questão”, Contexto (São Paulo: ano I, n° 4, 1977, pp. 141-8)
———. A Sociologia no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1977)
———. A Condição do Sociólogo (São Paulo: Hucitec, 1978)
———. Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana (São Paulo: T.A. Queiroz, 1979)
———. Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo” (São Paulo: Hucitec, 1979)
———. A Natureza Sociológica da Sociologia (São Paulo: Ática, 1980)
———. Poder e Contrapoder na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1981)
———. Reflections on the Brazilian Counter-Revolution: essays (New York: M. E. Sharpe, 1981)
———. “Esboço de uma trajetória”, depoimento concedido a equipe coordenada pela Prof. Mariza Correa, em 29 de março de 1984, Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (Rio de Janeiro: ANPOCS, n° 40, 2° semestre 1995, pp. 3-25)
(...)

Ler a íntegra deste artigo neste link.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Politica industrial: more of the same? - ABDI

Cada vez que leio algo do gênero, penso cá comigo: "Xi!. Lá vem mais política industrial, aquela que protege a indústria brasileira da concorrência estrangeira, que transfere dinheiro do resto da sociedade, via BNDES, para os industriais ricaços da FIESP e que insula completamente nossa indústria dos estímulos criados pela concorrência estrangeiro...
Se for isso, podem ter certeza, vão culpar o câmbio e a concorrência desleal dos chineses e continuar fazendo o que sempre fizeram no último meio século (ou mais).
Quando é que esse pessoal vai reconhecer que todos os problemas que atuam contra nossa competitividade são puramente "made in Brazil", são provocados pelas mesmas políticas de Estado pela qual eles tanto lutam?
Paulo Roberto de Almeida

Pensamento do dia: (Jornal da Ciência, SBPC, 23/02/2011)
"A indústria brasileira enfrenta ameaças à sua competitividade em um momento em que o Brasil retoma taxas de crescimento significativas. O desafio está em superarmos esses gargalos e, por isso, uma política industrial de Estado é de fundamental importância."
Autor: Mauro Borges Lemos, novo presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), em manifestação reproduzida pela Assessoria de Comunicação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) quando de sua posse no cargo nesta terça-feira (22).

"É preciso leiturizar"!!! - Seria verdade??? -- destruindo a educacao no Brasil

Que tal se as pedagogas brasileiras simplesmente recomendassem o aprendizado da leitura, ao velho estilo, tradicional?
Acho que a educação brasileira está nesse estado lastimável em que ela se encontra -- e tenham certeza de que a qualidade do ensino, no Brasil, é muito, mas muuuuito pior do que vocês possam sequer imaginar -- em grande medida devido a essas pedagogas de araque, que vivem teorizando sobre o nada, em lugar de se concentrar naquilo que é realmente essencial: ensinar Português básico, matemáticas elementares e ciências nos seus aspectos essenciais, apenas isso.
As pedagogas freireanas que "leiturizam" muito estão destruindo a educação brasileira.
Graças a elas, o ensino é essa porcaria que é.
Chego a ter dó de nossas crianças.
Cada vez que encontro um artigo desses que vai, lamentavelmente, transcrito abaixo, tenho absoluta certeza de que vamos passar por todas as (piores) fases da Lei de Murphy: o que já é ruim continuará piorando, da pior forma possível, pelo tempo mais longo imaginável.
Aguardem: teremos pela frente mais 20 anos de decadência educacional, pelo menos, com gente como essa nossa "leiturizadora".
Lamentem, chorem, resignem-se...
Paulo Roberto de Almeida

É preciso leiturizar
Araci Asinelli-Luz *
Gazeta do Povo (PR), 21/02/2011

É preciso buscar interpretar e descobrir o que está além do que aparece, o que está além do que está dito e feito.

O termo leiturização foi apresentado por Jean Foucambert, do Instituto de Pesquisas Pedagógicas da França, em entrevista à Revista Nova Escola (1993). Suas preocupações estavam centradas em como se dá o processo de alfabetização que, frequentemente, coloca a criança diante da transcrição oral da escrita e, quase nunca, ante o funcionamento real da escrita, reduzindo em muito as possibilidades de se formarem leitores, ou seja, pessoas capazes de aprender que a linguagem escrita não é a representação da realidade e sim um ponto de vista sobre essa realidade.

Seus escritos permitem identificar três comportamentos diante do texto ou realidade a ser lida: o ledor/a ledora, aquele e aquela que decifra linearmente os códigos e signos apresentados da linguagem escrita, sem qualquer sinal de proatividade e interação com a mensagem ali expressa. Um bom exemplo de ledor é o sujeito que faz a "leitura" da água em minha casa. Observa o relógio da água, digita alguma coisa em uma maquininha que traz consigo e em seguida me entrega um protocolo onde está impresso o quanto foi consumido de água no período e o quanto devo pagar na data que ali se encontra. Sua função não lhe permite ler, além disso. É incapaz de perceber que na casa de uma professora não pode ter um consumo de água nesse valor, alguma coisa deve estar errada. É também o personagem da televisão, o Zeca Diabo, que sabia ler de "carreirinha".

Há também o leitor/a leitora, a maioria das pessoas que teve acesso a um bom processo de alfabetização e letramento e, na escola formal, teve oportunidade de ler textos diferenciados e literatura interessante. A leitora e o leitor entendem perfeitamente a mensagem expressa no texto e são capazes de interpretar e resumir o que o autor quis expressar. Quando muito hábeis vão um pouco além e costumam posicionar-se sobre o texto, expressando sua crítica. Um bom exemplo são os universitários, os pós-graduandos e suas produções acadêmicas a partir das "revisões de literatura".

Foucambert, no entanto, propõe que sejamos leiturizadores. A leiturização exige uma leitura crítica de intenções, dos entremeios, das entrelinhas, sob suspeição. "Olhar um texto é forçosamente se perguntar o que pretende a pessoa que o escreveu". Exige mais do que interpretar, exige se perguntar o porquê daquela palavra, daquela forma de expressar a mensagem, o que pode advir dos significados ali expressos. "Não significa que todos os textos tenham más intenções", mas é preciso ir além da linearidade do que está dito ou escrito.

Paulo Freire falava em "leitura de mundo", para exercer a cidadania plena e postulava a educação como ato político. Em se tratando de política, com a interdependência entre os políticos que temos, o que dizem e fazem, as políticas públicas e a rede de múltiplos fatores que aí se encontram, é necessário leiturizar. Um bom exemplo é buscar interpretar e descobrir o que está além do que aparece, o que está além do que está dito e feito. Assim, compartilho um exercício para aprendizagem: o que pretende um político vaidoso autodenominar-se benemérito ao tentar transformar um fato imoral em ato formal de caridade? Que intenções estão por trás da anunciada "moralização da Assembleia" se quem a escreve até pouco tempo era contrário a ela?

Como gerar motivação para o trabalho nomeando líderes com histórias em que falta a ética no trabalho? Como acreditar em valorização da educação se a acolhida dos estudantes no seu primeiro dia de escola é cheia de vazios? Como entender a não criação da Defensoria Pública no Estado, em nome da contenção de gastos, e aprovar aumentos questionáveis em causa própria? Como interpretar a gratificação aos policiais que protegem deputados em detrimento aqueles que protegem toda uma população?

Se "ler o mundo", com seus desastres bioecológicos, seus sistemas de governo, suas alianças políticas e de poder, a generosidade dos povos frente às catástrofes, a beleza da natureza como dádiva de Seu Criador, a inteligência humana na ciência, nas tecnologias e nas inovações, ainda é muito complexo para grande parte da população, leiturizar o mundo vai exigir muito esforço, reflexões e intencionalidade. O resultado? Quem sabe um Brasil mais ético, mais criterioso e menos desigual.

*Araci Asinelli-Luz, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é doutora em Educação.

Os amigos se vao... e nao deixam saudades, por supuesto...

Meus amigos é que não são. Mas eles eram amigos, vocês sabem de quem...

O decadente tirano da Líbia
Larbi Sadiki
Conectando Leitores, 23/02/2011

A Líbia não vai se livrar da infecção dos ventos revolucionários democráticos soprando por todo o Oriente Médio e Norte da África. Se o duradouro líder Muamar Kadafi cair, será uma doce vitória para os herdeiros de Omar AL-Mkhtar, o lendário herói anti-fascista e anti-colonial. Mas muito sangue ainda irá jorrar antes que o coronel Líbio abandone o barco.

Depois de Saddam Hussein no Iraque e Ben Ali na Tunísia, Kadafi é o pior sobrevivente entre os governantes ilegítimos árabes. Ele agora está colhendo o que semeou: terror, nepotismo, política tribal e abuso de poder.

Na Líbia de Kadafi, o chamado Congresso do Povo, universidades e outras organizações afiliadas ao regime tiveram que seguir a linha oficial: culto ao “irmão líder”, leitura do seu Livro Verde, e o rótulo de Pan-Africanismo que nenhum líbio, exceto Kadafi e seus comparsas, acredita.

Ao visitar o país com um grupo de estudantes da Exeter University, os slogans vazios da “Grande Revolução” de Kadafi cobriam todos os espaços públicos. “Parceiros não remunerados”, disse alguém. Outro afirmou “Governo do povo” (sultat AL-shab’ab). Nada poderia estar mais longe da verdade.

Kadafi tem governado o país com a grandeza delirante de um homem que subiu ao poder em um golpe em 1969 com ideais políticos cativantes que se foram abandonando e corrompendo. O socialismo fanfarrão de Kadafi transformou-se em distribuição de favores entre o clã do coronel.

Círculo Íntimo

Um círculo íntimo de confidentes e parentes próximos de Kadafi decidiu e executou os enforcamentos de 1970, com ajuda dos temidos homicidas “comitês revolucionários”.

Nenhuma consulta foi feita ao povo sobre as decisões tomadas e executadas nas guerras, como as que ocorreram no Chade e em outros locais da África. O povo nunca pode reclamar abertamente sobre o dinheiro prodigamente pago na conquista das aventuras estrangeiras de Kadafi, incluindo financiamentos a organizações terroristas.

O regime de Kadafi esteve ligado aos assassinatos do Setembro Negro de 1972 de atletas israelenses na Alemanha, ao desaparecimento do Imã Xiita Musa Al-Sadr em 1978 na Líbia, ao assassinato da policial britânica Yvonne Fletcher em 1984, ao bombardeio da Discoteca La Belle em Berlin em 1986, aos barcos carregados de armas destinados ao Exército Republicano Irlandês em 1987, ao sequestro do voo 73 da Pan Am em 1986, e da explosão do voo 103 da Pan Am em 1988. Isso tudo não esgota a lista.

O bombardeio de Trípoli e Benghazi em 1986 pelos Estados Unidos, ou a grande soma de dinheiro pago por Kadafi para compensar todos os tipos de reclamações contra a Líbia foram alguns dos preços pagos pelos líbios pelos erros de cálculo de seu líder.

As sanções e o status de pária só foram atenuados nos últimos 10 anos. Carregar um passaporte verde líbio fez dos cidadãos líbios ‘persona non grata’ em muitas partes do mundo.

O narcisismo de Kadafi é tal que apenas uns poucos de seus camaradas de armas da tropa dos Oficiais Livres que deram o golpe de 1969 contra o Rei Idris sobreviveram a sua brutalidade.

Alguns morreram em circunstâncias misteriosas (Omar Limheshi; Imhammad al-Muqrif). Outros se retiraram da vida pública voluntariamente (Abd al-Salam Jelloud).

Ato de repúdio público

Como o Egito, o levante na Líbia se caracteriza como um ato de repúdio a um regime existente. Estes são países que passaram por revoluções militares e hoje estão enfrentando revoluções civis.

Tal como na Tunísia, mas de forma muito pior, a Líbia investiu muito pouco em capital social ou em capacitação cívica. Todas as organizações estão comprometidas ou afiliadas à Grande Revolução de Kadafi. Literalmente, estas são células para espionar o povo ou milícias subornadas para defender o regime. Quando os manifestantes abanam bandeiras, ou entoam slogans pró-Kadafi ou anti-Ocidentais, eles o fazem sob ordens do regime.

Apesar disso, os líbios não têm sido passivos. Por exemplo, a Liga Líbia dos Direitos Humanos, a Conferência Nacional da Oposição Líbia (NCLO em inglês), e os Islamitas banidos, todos usaram a internet para expressar sua raiva. Em alguns casos, os dissidentes líbios usaram a Internet como uma ferramenta política, muito antes dos ativistas, em outras partes do Oriente Médio. A NCLO se reuniu em Londres em 2006 e planeja exercer um papel fundamental nas reformas da Líbia pós-Kadafi.

As tentativas de remover Kadafi iniciaram em meados dos anos 80. A mais famosa ocorreu em maio de 1984, no golpe da Guarnição de Abal Al Aziziya quando a Frente Nacional para a Salvação da Líbia, composta de militares e civis dissidentes, teve um papel fundamental.

O confronto mais sério contra a autoridade de Kadafi veio da mais populosa e poderosa tribo líbia, a Warfallah, em outubro de 1993. A rebelião acabou nos julgamentos fraudados de 1995. Diversos homens das tribos foram executados em 1997.

A região oriental, Benghazi, sempre foi uma fonte de dissidência contra o regime. Dezenas morreram nos protestos de 2006. O mapa atual do motim é tanto tribal como regional. Duas tribos ajustaram contas antigas com o regime de Kadafi, retirando seu apoio. Kadafi está agora pagando o preço por ter humilhado a tribo Wirfallah, que ele excluiu de seus favores em meados dos anos 90. Similarmente, a tribo Tabu no sudeste do país tem sofrido estarrecedora discriminação.

Os cinturões de miséria da Líbia estão agora liderando a rebelião. Cidades como Al-Baida, Derna, Ijdadia, todas marginalizadas, não têm dívida de gratidão para com Kadafi, pois nada ganharam do seu governo. Os subúrbios mais pobres de Trípoli, Zintan e Awiya, que têm estado sob fogo intenso, estão liderando a rebelião na capital.

Por que a revolução que depôs Ben Ali na Tunísia demonstra ser infecciosa? As razões podem ser resumidas pelos seguintes fatores: a presença de um tipo de hegemonia à Ben Ali; podridão dinástica e nepotista; republicanismo monárquico; corrupção desenfreada; marginalização dos jovens; violações dos direitos humanos; controle da informação e estado policial.

Todas estas condições se aplicam à Líbia. A única coisa boa na Líbia de Kadafi é a ausência de eleições, que poupou os comitês revolucionários de Kadafi a má conduta complementar de fraudá-las.

Além desses fatores, a região leste, ou seja, Benghazi, tem sido privada dos dividendos do petróleo. Em um país com uma das maiores faixas costeiras de alta produção de petróleo, receitas e oportunidades devem estar disponíveis aos cidadãos. Mas este não tem sido o caso. Agora, Kadafi está colhendo o que semeou.

Dr Larbi Sadiki é professor titular de Política do Oriente Médio na Universidade de Exeter, e autor de Arab Democratisation: Elections without Democracy (Oxford University Press, 2009) e The Search for Arab Democracy: Discourses and Counter-Discourses (Columbia University Press, 2004).

Razões para ser otimista - livro de Matt Ridley

Sempre é bom ser otimista, sem ser ingênuo, claro. Eu particularmente gosto de ser cético, mas reconheço que os otimistas sempre levam vantagens ao ver o lado bom das coisas invariavelmente.
Um livro interessante, ideias inteligentes (ou seja, como "fitted to this blog").
Paulo Roberto de Almeida

RESENHA
Razões para ser otimista
Por Renato Lima
Opinião e Notícia, 22/02/201
Originalmente publicado em Ordem Livre, 21/02/2011
Convido o leitor a apreciar a narrativa feita por Matt Ridley no livro 'The rational optimistic'.

Aquecimento global, miséria nos países em desenvolvimento, terrorismo, fim do petróleo... É quase certo que o jornal de hoje tenha falado de algum assunto como esses, sempre com teor catastrófico e previsões negativas. São tantas notícias ruins que é fácil achar que a humanidade está entrando numa rota de colapso e que as coisas vão piorar. Não faltam livros nem artigos que preveem o fim do mundo ou de boa parte dele. Mas será que essa é a narrativa que faz mais sentido? Não teríamos razão para sermos otimistas, de forma crítica e racional, mas ainda assim otimistas?

Convido o leitor a deixar o lado hiena Hardy de lado (aquela que dizia “Oh vida, oh céus, eu sei que não vai dar certo”) e apreciar a narrativa feita por Matt Ridley no livro “The rational optimistic” (2010), que será lançado no Brasil pela Editora Record no segundo semestre deste ano. O leitor pode já ter lido outros livros de Ridley, como o “O que nos faz humanos: genes, natureza e experiência” (2004). Ele é um escritor de ciência, que em sua mais recente obra aplica conceitos econômicos para explicar o desenvolvimento humano (desde os nossos ancestrais evolutivos) até os dias de hoje. Uma obra ambiciosa no escopo e instigante na análise.

Talvez porque notícia que vende é notícia ruim, o lado positivo da experiência humana é menos falado. Quando se adiciona a experiência humana pós-revolução industrial, menos ainda (ah que saudade dos tempos da caverna, parecem suspirar alguns!). Mas, como observado por Adam Smith, a divisão do trabalho permitiu ganhos de produtividade. Cooperamos com milhares de pessoas que não nos conhecem, mas que mesmo assim se beneficiam (um milionésimo que seja) do nosso trabalho, e o mesmo acontece conosco, que recebemos uma minúscula fração do trabalho alheio, na forma de todos os produtos que consumimos diariamente. E fazemos isso às vezes mesmo sem pagar, como é o caso dos softwares livres ou da Wikipedia.

Essas trocas de conhecimento na economia podem ser comparadas com o sexo para a biologia. Como diz Ridley, ideias fazem sexo, se reproduzem e geram empreendimentos novos. Dessa forma o conhecimento de cada indivíduo pode encontrar outro pedaço de conhecimento de outro indivíduo e gerar coisas impensadas. Junte a ideia do meio de transporte por charrete, coloque um motor e temos os primeiros carros. A ideia de troca de informações pela internet e sua rede de amigos e temos o Facebook. E esse sexo de ideias não enfrenta as limitações físicas ou biológicas do praticado pelos animais. Não existe perigo de super população de ideias, ou exaustão de criatividade. Nem toda nova ideia é boa – a junção de terroristas e aviões, por exemplo, era melhor ter sido evitada – mas por qual razão devemos achar que as ideias ruins vão prevalecer sobre as boas, sempre e em todo lugar?

A autossuficiência, seja uma família rural que produz tudo o que consome ou um país fechado com um mínimo de trocas com o exterior, como a Coreia do Norte, é ruim. Não apenas dificulta a troca de produtos com o exterior, mas impede a participação nesse empreendimento coletivo de troca de ideias, o que permite a inovação. O Brasil, quando teve a sua reserva de mercado para informática e leis de similares nacionais, é outro exemplo do atraso provocado pelas políticas autárquicas. Problema não totalmente sanado, veja a dificuldade que foi levar o iPad para o País.

A narrativa de Ridley pode também ser lida pela inspiração de Alexis de Tocqueville (lá vou eu propor um sexo das ideias desses dois autores). Tocqueville escreveu um belo livro a partir de observações de viagem aos Estados Unidos (“Democracia na América”) e a obra vale por um tratado da vida em sociedade democrática. Via o francês na terra americana uma sociedade que brotava de baixo para cima, sem o peso da aristocracia europeia e outras tradições que poderiam retardar as mudanças que aconteciam nos Estados Unidos do século XIX. Tocqueville analisava a experiência americana dentro de uma narrativa da conquista da igualdade de condições entre os povos. A origem do indivíduo e a profissão dos seus pais foram perdendo a importância ao longo dos anos. A cooperação voluntária, que ele via como traço da sociedade democrática americana, é hoje global na internet. Qualquer software de código aberto se beneficia de sugestões e correções feitas por usuários, a Wikipedia é feita por usuários, o Facebook deve tudo a sua enorme rede de usuários.

Não chegamos até aqui de forma consensual, claro. Muitos – principalmente intelectuais – não gostam desse tipo de sociedade. Sociedade de consumo, do espetáculo, da falsa consciência... são vários os nomes para dizer que tudo está ruim e vai piorar, que a classe média é alienada e os ricos não se preocupam com a alta cultura. Essa nostalgia de supostos tempos de ouro é também respondida por Tocqueville. Lembrava ele de que na sociedade democrática e de cooperação voluntária é possível não ter o esplendor da aristocracia, mas existiria menos miséria. A nação como um todo pode ser menos brilhante, menos gloriosa, mas a maioria dos seus cidadãos vai poder gozar de maior prosperidade.

E essa prosperidade pode ter efeitos inicialmente imprevistos, como o fim de catástrofes anunciadas. Desde o reverendo Malthus que a “bomba populacional” é pregada como um problema global. Várias gerações defenderam limites à procriação ou esterilização forçada – que em alguns casos foram adotados por governos tão diferentes como Índia, China, Suécia ou Dinamarca, seja por medo de aumento da população seja por crenças eugênicas. Mas o que se observa atualmente? Que quanto mais próspero um país fica, menor é a taxa de crescimento populacional. Em quase todos os continentes e culturas as pessoas estão vivendo mais e tendo menos filhos. E uma coisa está associada à outra. Com uma menor mortalidade infantil, as famílias podem planejar terem menos filhos. Criar filhos, mesmo para populações pobres, deixa de ser uma loteria em que não se sabe quantos vão sobreviver para uma escolha pensada de de ter menos filhos e investir mais em educação e saúde para cada um. Como lembra Ridley citando Ron Bailey, a liberdade econômica cria uma mão invisível de controle populacional. “Quanto mais prósperas e livres as pessoas se tornam, mais a taxa de natalidade se estabiliza em duas crianças por mulher sem nenhuma necessidade de coerção. Agora, isso é ou não é uma boa notícia?”, pergunta-se Ridley.

A solução pela via da liberdade não é só eficaz como igualitária. E se aplica para vários outros problemas. Afinal, de ideias diferentes surgem novas soluções.

Renato Lima é jornalista e apresentador do “Café Colombo – o seu programa de livros e idéias”, da Universitária FM, Recife (www.cafecolombo.com.br).

Direitos Humanos: varios pesos e muitas medidas (as vezes, nenhuma...)

Pois é, sempre é assim: o Império, que tem seus próprios "SOBs", que eles protegem quando lhes servem, ou quando servem a seus interesses de segurança -- aqui incluídas algumas ditaduras detestáveis -- e que só introduzem moções políticas no Conselho de Direitos Humanos da ONU, se permite criticar este país que andava lendo tendo seus rompantes de hipocrisia -- maiores do que de costume -- nessa questão de direitos humanos.
O Brasil poderia dizer que os EUA não olham o seu próprio rabo, mas sempre se pode dizer, também, que fazemos ou deixamos de fazer coisas, no plano das relações internacionais, não para contentar ou desagradar alguém, ou outro país, mas em função de nossos próprios valores e princípios.
Parece que os valores e princípios, até pouco tempo atrás, eram, infelizmente, os de ser amigo e até aliado desses ditadorezinhos de opereta, apenas porque eles são -- alguns já eram -- supostamente não-hegemônicos e anti-imperialistas. Não há maneira mais cínica de fazer política externa...
Paulo Roberto de Almeida

WikiLeaks: EUA criticam hipocrisia do Brasil sobre direitos humanos
Yahoo notícias, 23/02/2011

BRASÍLIA - As relações comerciais e a perspectiva de conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas levam o Brasil a adotar uma postura ambígua, que chega a ser hipócrita, nas discussões multilaterais sobre a promoção dos direitos humanos. Essa avaliação pontua os relatos a Washington da diplomacia americana em Brasília, segundo telegramas divulgados pelo site WikiLeaks. Para os EUA, o Brasil tem um retrospecto de violações, especialmente no que diz respeito ao trabalho escravo e às condições precárias dos presídios.

Em mensagem confidencial, enviada em 11 de julho de 2008, a conselheira Lisa Kubiske resume a visão americana sobre os votos do Brasil nos fóruns internacionais de direitos humanos:

”Moralidade é uma faca de dois gumes para a política brasileira em razão da clara hipocrisia quando esta firmemente rejeita a condenação de estados que violam os direitos humanos, se estes países podem prover um apoio tangível aos interesses do Brasil”.

Os americanos destacam que o Brasil não encontrou problemas em condenar violações no Turcomenistão, mas é reticente a condenar no Irã ou na China, parceiros durante o governo Lula.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Existem deputados marcianos (ao que parece...)

Não é bem assim: se trata simplesmente de um deputado que faz, no mandato, aquilo que disse que iria fazer em sua campanha. Apenas isto.
Parece que nem tudo está perdido.
Cá entre nós: esse deputado corre o risco de ser assassinado por um colega despeitado...
Paulo Roberto de Almeida

Reguffe estreia com exemplo de austeridade
Redação Jornal da Comunidade, 22/02/2011

O deputado federal José Antonio Reguffe (PDT-DF), que foi proporcionalmente o mais bem votado do país com 266.465 votos, com 18,95% dos votos válidos do DF, estreou na Câmara dos Deputados fazendo barulho. De uma tacada só, protocolou vários ofícios na Diretoria-Geral da Casa.
Abriu mão dos salários extras que os parlamentares recebem (14° e 15° salários), reduziu sua verba de gabinete e o número de assessores a que teria direito, de 25 para apenas 9. E tudo em caráter irrevogável, nem se ele quiser poderá voltar atrás. Além disso, reduziu em mais de 80% a cota interna do gabinete, o chamado “cotão”. Dos R$ 23.030 a que teria direito por mês, reduziu para apenas R$ 4.600.
Segundo os ofícios, abriu mão também de toda verba indenizatória, de toda cota de passagens aéreas e do auxílio-moradia, tudo também em caráter irrevogável. Sozinho, vai economizar aos cofres públicos mais de R$ 2,3 milhões nos quatro anos de mandato. Se os outros 512 deputados seguissem o seu exemplo, a economia aos cofres públicos seria superior a R$ 1,2 bilhão.
“A tese que defendo e que pratico é a de que um mandato parlamentar pode ser de qualidade custando bem menos para o contribuinte do que custa hoje. Esses gastos excessivos são um desrespeito ao contribuinte. Estou fazendo a minha parte e honrando o compromisso que assumi com meus eleitores”, afirmou Reguffe em discurso no plenário.

Várias fontes:
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/104706_UM+HOMEM+FICHA+LIMPA
http://comunidade.maiscomunidade.com/conteudo/2011-02-05/politica/1848/ESTREIA-COM-EXEMPLO-DE-AUSTERIDADE.pnhtml

Não se improvisam diplomatas, nem se improvisa a diplomacia...

Não, não estou falando do Brasil, ainda que poderia, pois aqui também um bando de amadores, a começar pelo mais alto escalão pretendeu essa condição, não muito tempo atrás, com enormes dissabores para a diplomacia profissional.
Se trata da França, país de velha diplomacia...

Point de vue
"On ne s’improvise pas diplomate"
Le Monde, 23.02.2011

Un groupe de diplomates français de générations différentes, certains actifs, d'autres à la retraite, et d'obédiences politiques variées, a décidé de livrer son analyse critique de la politique extérieure de la France sous Nicolas Sarkozy. En choisissant l'anonymat, ils ont imité le groupe Surcouf émanant des milieux militaires, dénonçant lui aussi certains choix du chef de l'Etat. Le pseudonyme collectif qu'ils ont choisi est "Marly" – du nom du café où ils se sont réunis la première fois. Ceci est leur premier texte public.

La manœuvre ne trompe plus personne : quand les événements sont contrariants pour les mises en scène présidentielles, les corps d'Etat sont alors désignés comme responsables.

Or, en matière diplomatique, que de contrariétés pour les autorités politiques ! A l'encontre des annonces claironnées depuis trois ans, l'Europe est impuissante, l'Afrique nous échappe, la Méditerranée nous boude, la Chine nous a domptés et Washington nous ignore ! Dans le même temps, nos avions Rafale et notre industrie nucléaire, loin des triomphes annoncés, restent sur l'étagère. Plus grave, la voix de la France a disparu dans le monde. Notre suivisme à l'égard des Etats-Unis déroute beaucoup de nos partenaires.

Pendant la guerre froide, nous étions dans le camp occidental, mais nous pesions sur la position des deux camps par une attitude originale. Aujourd'hui, ralliés aux Etats-Unis comme l'a manifesté notre retour dans l'OTAN, nous n'intéressons plus grand monde car nous avons perdu notre visibilité et notre capacité de manœuvre diplomatique. Cette perte d'influence n'est pas imputable aux diplomates mais aux options choisies par les politiques.

Il est clair que le président n'apprécie guère les administrations de l'Etat qu'il accable d'un mépris ostensible et qu'il cherche à rendre responsables des déboires de sa politique. C'est ainsi que les diplomates sont désignés comme responsables des déconvenues de notre politique extérieure. Ils récusent le procès qui leur est fait. La politique suivie à l'égard de la Tunisie ou de l'Egypte a été définie à la présidence de la République sans tenir compte des analyses de nos ambassades. C'est elle qui a choisi MM. Ben Ali et Moubarak comme "piliers sud" de la Méditerranée.

Un WikiLeaks à la française permettrait de vérifier que les diplomates français ont rédigé, comme leurs collègues américains, des textes aussi critiques que sans concessions. Or, à l'écoute des diplomates, bien des erreurs auraient pu être évitées, imputables à l'amateurisme, à l'impulsivité et aux préoccupations médiatiques à court terme.

Impulsivité ? L'Union pour la Méditerranée, lancée sans préparation malgré les mises en garde du Quai d'Orsay qui souhaitait modifier l'objectif et la méthode, est sinistrée.

Amateurisme ? En confiant au ministère de l'écologie la préparation de la conférence de Copenhague sur le changement climatique, nous avons abouti à l'impuissance de la France et de l'Europe et à un échec cuisant.

Préoccupations médiatiques ? La tension actuelle avec le Mexique résulte de l'exposition publique d'un dossier qui, par sa nature, devait être traité dans la discrétion.

Manque de cohérence ? Notre politique au Moyen-Orient est devenue illisible, s'enferre dans des impasses et renforce les cartes de la Syrie. Dans le même temps, nos priorités évidentes sont délaissées. Il en est ainsi de l'Afrique francophone, négligée politiquement et désormais sevrée de toute aide bilatérale.

Notre politique étrangère est placée sous le signe de l'improvisation et d'impulsions successives, qui s'expliquent souvent par des considérations de politique intérieure. Qu'on ne s'étonne pas de nos échecs. Nous sommes à l'heure où des préfets se piquent de diplomatie, où les "plumes" conçoivent de grands desseins, où les réseaux représentant des intérêts privés et les visiteurs du soir sont omniprésents et écoutés.

Il n'est que temps de réagir. Nous devons retrouver une politique étrangère fondée sur la cohérence, l'efficacité et la discrétion.

Les diplomates français n'ont qu'un souhait : être au service d'une politique réfléchie et stable. Au-delà des grandes enceintes du G8 et du G20 où se brouillent les messages, il y a lieu de préciser nos objectifs sur des questions essentielles telles que le contenu et les frontières de l'Europe de demain, la politique à l'égard d'un monde arabe en révolte, nos objectifs en Afghanistan, notre politique africaine, notre type de partenariat avec la Russie.

Les diplomates appellent de leurs vœux une telle réflexion de fond à laquelle ils sauront apporter en toute loyauté leur expertise. Ils souhaitent aussi que notre diplomatie puisse à nouveau s'appuyer sur certaines valeurs (solidarité, démocratie, respect des cultures) bien souvent délaissées au profit d'un coup par coup sans vision.

Enfin, pour reprendre l'avertissement d'Alain Juppé et d'Hubert Védrine publié le 7 juillet 2010 dans Le Monde "l'instrument [diplomatique] est sur le point d'être cassé". Il est clair que sa sauvegarde est essentielle à l'efficacité de notre politique étrangère.

Le groupe "Marly", un collectif qui réunit des diplomates français critiques
Article paru dans l'édition du 23.02.11

Brasil Macunaimico: roubando dos pobres (e menos pobres) para dar aos ricos (e espertos)

Macunaíma, como muitas vezes repetido, era o "herói sem nenhum caráter", representativo, segundo o autor da "novela", Mário de Andrade, do espírito do brasileiro, o que sempre achei uma tremenda injustiça. Os brasileiros são em geral trabalhadores, no tempo dele vítimas das saúvas, hoje vítimas de outro tipo de saúvas: políticos vagabundos que se ocupam de roubar o seu dinheiro.
Infelizmente vou precisar retomar a minha "teoria da jabuticaba", para explicar como, no Brasil, ONGs não apenas vivem de dinheiro público, como se organizam expressamente para isso, para sugar o dinheiro público. Quem mais faz, deliberadamente para isso, são políticos vagabundos.
Paulo Roberto de Almeida

As coisas que mais crescem em número no Brasil: ONGs e vagabundos
Reinaldo Azevedo, 21/02/11

Os dois grupos que mais se expandem no Brasil são “ongueiros” e “vagabundos”, sendo que raramente os primeiros se distinguem dos segundos. Existem os honestos? Claro que sim! Por isso mesmo estes não devem se ofender e até devem se orgulhar de sua condição de minoria.
Há muitos anos criei a sigla ONGG, uma jabuticaba inventada no Brasil. A ONGG é a “Organização Não-Governamental Governamental”. Em que consiste o truque? Partidos, geralmente no poder, criam eles próprios as ONGs que vão receber dinheiro do Estado para fazer “trabalho social”, pervertendo, a um só tempo, o sentido do governo e da ONG.
Todos vocês estão acompanhando a lambança da ONG do PC do B. Os comunistas do Brasil estão reclamando; eles se sentem perseguidos. É verdade, camaradas vermelhos! Fossem só vocês, seria menos grave, né? Mas o PC do B, vamos ser justos, nada mais faz do que copiar o modelo inaugurado entre nós pelo PT, que domina boa parte das entidades que recebem verba do governo — assim como domina os sindicatos. Isso não quer dizer que os comunistas estejam fazendo bonito, né?
Qual é o sentido de uma ONG? Originalmente, ela deveria fazer aquilo que o Estado não consegue, não pode ou não quer. E seu trabalho deveria, necessariamente, ser financiado com recursos próprios, não-estatais. Os fundos que manipula têm de vir do que consegue arrecadar na sociedade. Ora, o que aconteceu com as ONGs e suas parentes, as Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público)? Transformaram-se numa forma de terceirização do governo. Não! É pior do que isso: viraram intermediários entre a população e o governo; colocam-se, hoje, como uma camada burocrática a mais entre o estado e o cidadão.
É rigorosamente isso o que acontece com o Programa Segundo Tempo, do Ministério dos Esportes. Em vez de as cidades cuidarem do convênio com a pasta, isso fica a cargo de uma ONG, comandada por pessoas do mesmo partido do ministro Orlando Silva: o PC do B. E o que faz a dita-cuja? Cobra um pedágio. Para quem vai esse dinheiro? Raios me partam se não acabar, na melhor das hipóteses, no caixa do PC do B; na pior, acaba no bolso de membros do PC do B.
O líder do DEM na Câmara, ACM Neto (BA), disse que vai protocolar uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo investigação sobre todos os convênios denunciados. Ele também quer uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). “Não podemos dar um cheque em branco para essas ONGs. Vamos exigir do Ministério (dos Esportes) explicações em relação à prestação de contas. Estas justificativas apresentadas até agora são superficiais e inconsistentes”, afirmou o líder do DEM.
Convenham: por que cargas d’água as prefeituras têm de fazer convênio com a ONG e não com o Ministério? Tenham paciência! O Congresso já tentou fazer uma CPI das ONGs. Não chegou a lugar nenhum. Hoje, elas são uma das principais fontes de escoamento irregular de dinheiro público e de financiamento ilegal de partidos — isso quando não se presta ao enriquecimento puro e simples de larápios.
Orlando Silva, desta vez, está custando bem mais caro do que uma tapioca paga com cartão corporativo. Aquilo era só um indício do que viria. E veio!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Crise economica de 2008-2009: previsoes acadêmicas

O artigo abaixo não é recente, a despeito de estar sendo publicado apenas agora pelo jornal Valor Econômico, que não indica a fonte original e sua data. Lembro-me de tê-lo lido há algum tempo, provavelmente no Financial Times.
Mesmo tarde, o debate que ele promove, conserva toda a atualidade e mantém seu "frescor", digamos assim (sem nenhuma intenção de fazer jogo de palavras ou trocadilhos infames).
Os acadêmicos não são tão inconsequentes assim. Muitos previram, sim, avisaram, vários anos antes, mas, no meio da euforia, não quiseram acreditar...
O preço a pagar pela temeridade e descuido irresponsável foi muito alto, sobretudo para os EUA, que terão uma herança pesada pela frente, em termos de desemprego (que vai ser reabsorvido, em algum momento) e de dívida pública (que vai ficar pelas duas próximas gerações, pelo menos).
Paulo Roberto de Almeida

A academia não previu a crise?
Raghuram Rajan
Valor Econômico, 21/02/2011

No auge da crise financeira, a rainha da Inglaterra fez uma simples pergunta a meus colegas na London School of Economics, mas uma pergunta para a qual não havia resposta fácil: Por que os economistas acadêmicos deixaram de prever a crise?

Há várias respostas para essa pergunta. Uma é que os economistas não tinham modelos capazes de levar em conta o comportamento que levou a essa crise. Outra é que eles tiveram a visão obscurecida pela ideologia de que mercados livres e irrestritos não podiam fazer nada errado. Por fim, a resposta que vem ganhando terreno é a de que o sistema subornou os economistas para que silenciassem. Para mim a verdade é outra.

Não é verdade que nós acadêmicos não tínhamos modelos aplicáveis para explicar o acontecido. Se você acreditar que a crise foi provocada por falta de liquidez, tínhamos modelos de sobra analisando a escassez de liquidez e seus efeitos nas instituições financeiras. Se você acreditar que a culpa foi de banqueiros gananciosos e investidores descuidados, confiantes na promessa de resgates governamentais, ou de um mercado que enlouqueceu com a exuberância irracional, também havíamos estudado tudo isso, detalhadamente.

Economistas haviam analisado até a economia política da regulamentação e desregulamentação, portanto, poderíamos ter compreendido por que alguns políticos americanos encorajaram o setor privado a financiar residências acessíveis, enquanto outros desregulamentavam as finanças privadas. Ainda assim, de alguma forma, não trouxemos esse conhecimento à luz nem gritamos em coro nossas advertências.

Talvez o motivo tenha sido a ideologia: estávamos muito devotados à ideia de que os mercados são eficientes, que os agentes do mercado são racionais e que os altos preços se justificavam por fundamentos econômicos. Mas parte dessas críticas ao "fundamentalismo de mercado" reflete um engano. A "teoria dos mercados eficientes" dominante diz apenas que os mercados refletem o que é conhecido publicamente e que é difícil ganhar dinheiro em mercados de forma consistente - algo verificado pelo golpe desferido pela crise na maioria das carteiras de investimento dos investidores. A teoria não diz que os mercados não podem despencar se as notícias forem ruins ou se os investidores se tornarem avessos ao risco.

O verdadeiro motivo pelo qual os economistas deixaram de prever a crise pode ser bem mais mundano do que modelos inadequados, cegueira ideológica ou corrupção e, portanto, muito mais preocupante: muitos apenas não estavam prestando atenção!

Críticos argumentam que os fundamentos estavam nitidamente se deteriorando e que o mercado (e economistas) os ignoraram. Mas olhar de forma retrospectiva distorce essa análise. Não podemos citar uma única Cassandra, como Robert Shiller, da Yale University, que regularmente alertava para a insustentabilidade dos preços imobiliários, como prova de que a verdade foi ignorada. Sempre há fatalistas e, com frequência, eles estão errados. Era bem maior o número de economistas dizendo que os preços imobiliários, apesar de altos, dificilmente cairiam de forma generalizada.

Certamente, essas expectativas podem ter sido distorcidas pela ideologia - é difícil saber o que se passava pela mente dos economistas. Mas há um motivo melhor para ser cético quanto às explicações que recaem na questão ideológica. Como grupos, nem os economistas comportamentais, para quem a eficiência dos mercados é uma piada, nem os economistas progressistas, que não confiam nos livres mercados, previram a crise.

Seria, então, a corrupção? Alguns acadêmicos são consultores de bancos ou agências avaliadoras de risco de crédito, proferem discursos em conferências de investidores e desenvolvem análises patrocinadas. Seria natural suspeitar de nossa imparcialidade. A tendenciosidade pode ser implícita: nossa visão de mundo é modelada pelo que nossos amigos no setor profissional acreditam. Ou pode ser explícita: um economista pode escrever um informe influenciado pelo que o patrocinador quer ouvir ou dar um testemunho que seja puramente mercenário.

Há casos suficientes de possível tendenciosidade para que a questão não possa ser ignorada. Um remédio seria proibir toda a interação entre economistas e o mundo empresarial. Mas se os economistas ficassem confinados em sua torre de marfim, até poderíamos ficar imparciais, mas também ignoraríamos as questões práticas - e, portanto, ficaríamos ainda menos capazes de prever problemas. Uma forma de recuperar a confiança pode ser a transparência - que os economistas declarem interesse monetário em determinadas análises e que, de forma mais geral, expliquem quem os pagam. Várias universidades começam a seguir esse caminho.

Acredito, no entanto, que a corrupção não foi o principal motivo que levou a profissão a deixar de prever a crise. A maioria dos economistas tem pouca interação com o mundo empresarial e esses economistas "imparciais" não se saíram nada melhor em antecipar a crise.

Eu argumentaria que três fatores explicam nosso fracasso coletivo: especialização, a dificuldade de se fazer previsões e o descolamento entre boa parte da profissão e o mundo real.

Assim como a medicina, a economia tornou-se altamente compartimentalizada - os macroeconomistas normalmente não prestam atenção ao que os economistas financeiros ou economistas do setor imobiliário estudam e vice-versa. Para ver a crise chegando seria necessário alguém que conhecesse todas essas áreas- da mesma forma que é necessário um clínico geral para reconhecer alguma doença exótica. Como a profissão recompensa apenas análises cuidadosas e bem fundamentadas, mas necessariamente restritas, poucos economistas tentam atravessar subcampos.

Mesmo se o fizessem, teriam receio em fazer previsões. A principal vantagem dos economistas acadêmicos em relação aos profissionais das previsões talvez seja seu forte conhecimento das relações estabelecidas entre fatores. O mais difícil de prever, contudo, são os pontos de inflexão - quando as antigas relações existentes se desmancham. Embora possam existir alguns fatores que indiquem esses pontos de virada - o acúmulo na alavancagem de curto prazo e os preços dos ativos, por exemplo, pressagiam crises -, não são indicadores infalíveis de problemas por vir.

Os poucos benefícios profissionais recompensando a amplitude das análises, aliados à imprecisão e risco de reputação associadas às previsões, desmotivam a maioria dos acadêmicos. E também, perfeitamente, pode ser que os economistas acadêmicos tenham pouco a dizer sobre movimentos econômicos de curto prazo, de forma que achem melhor deixar as previsões, com todos seus erros, aos profissionais das projeções.

O perigo é que o descolamento em relação aos acontecimentos de curto prazo leve economistas acadêmicos a ignorar tendências de médio prazo que eles têm condições de abordar. Nesse caso, o verdadeiro motivo pelo qual os economistas deixaram de prever a crise poderia ser bem mais mundano do que modelos inadequados, cegueira ideológica ou corrupção e, portanto, muito mais preocupante: muitos, simplesmente, não estavam prestando atenção!

Raghuram Rajan é professor de Finanças na Booth School of Business, da University of Chicago, e autor de "How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy" ("Como as fraturas ocultas ainda ameaçam a economia mundial", em inglês).

domingo, 20 de fevereiro de 2011

"Progressos" da educacao brasileira: continuando um velho debate

Tem gente que não gosta de contemplar a realidade. Eu prefiro ver o mundo como ele é.
Por isso, de vez em quando, sem tempo para elaborar a respeito, permito-me postar aqui comentários de um jornalista conhecido que tem o dom de atrair almas ingênuas, que se sentem violentadas em seu desejo de ver em Paulo Freire e outros epígonos da idiotice nacional sumidades extraordinárias, quando eles só serviram para atrasar nossa educação.
Enfim, segue a provocação...
Paulo Roberto de Almeida

CAI DE NOVO A MÁSCARA DOS PETISTAS: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO QUER PROGRESSÃO CONTINUADA NO BRASIL INTEIRO; NA CAMPANHA, PARA ATINGIR SP, DILMA E MERCADANTE ATACARAM MODELO
Reinaldo Azevedo, 20/02/2011

Alguns leitores até de boa-fé me indagam de vez em quando se não exagero nas críticas ao PT. Bem, a resposta vai nos meus textos. Se eu achasse que sim, certamente mudaria de rumo. A exemplo da maioria dos que me lêem, também me quero um homem justo. O que posso fazer se a amoralidade dessa gente me enoja? Se vocês quiserem saber, incomoda-me menos o que pensam os petistas — embora absolutamente não me agrade — do que o que eles não pensam. “O que eles NÃO PENSAM o incomoda, Reinaldo? O que isso quer dizer?” Que seu escandaloso oportunismo corrói as noções elementares da civilidade política e impede o confronto honesto de idéias. São, antes de mais nada, agentes da vulgarização da mentira e da trapaça política. Seu único princípio — único — é conquistar o poder e nele permanecer. Os adversários de véspera podem se tornar aliados fraternos desde que aceitem se submeter às diretrizes do partido — e, nesse caso, o PT também sabe ser generoso. Lula, por palavras oblíquas, já chamou José Sarney de bandido em palanque. Hoje, o amor entre ambos é inquebrável e inquebrantável. Quem mudou? Nenhum dos dois! Feita essa consideração inicial, peço que vocês leiam um trecho de reportagem da VEJA desta semana.

Uma nova diretriz do Ministério da Educação (MEC) pode levar a uma transformação radical nas escolas brasileiras - públicas e particulares. Trata-se de abolir a repetência até o 3° ano do ensino fundamental, fase crucial da vida escolar, em que as crianças são alfabetizadas e começam a cultivar curiosidade pelos estudos. Caberá às escolas e às redes de ensino decidir se adotarão o sistema, mas, à luz da experiência com esse tipo de sinalização oficial, pode-se esperar que a maioria siga o ministério. É notícia que, à primeira vista, causa apreensão quanto à preservação da cobrança e do mérito, ingredientes essenciais para o progresso acadêmico. O bem-sucedido exemplo internacional pode ser útil ao Brasil. Países que aplicam modelo semelhante, como França e Japão, têm alcançado ótimos resultados, renovando o interesse pela sala de aula entre os alunos com mais dificuldade e reduzindo a evasão escolar”.

Voltei [RA]
Vocês leram direito. O ministro Fernando Haddad, da Educação, recomenda que se estenda ao Brasil inteiro a progressão continuada. Os leitores — e eleitores — de São Paulo, onde vigora o modelo, devem estar escandalizados. Aloizio Mercadante, hoje ministro da Ciência e Tecnologia (Jesus!), candidato ao governo de São Paulo, atacava a progressão com unhas, dentes e bigode — idéias, não, que seria pedir demais! Ela seria fonte de todos os males da educação no estado.

Em seu primeiro pronunciamento oficial, Dona Dilma Primeira, a Muda, falou sobre educação. E lá está uma menção oblíqua — e crítica — ao modelo vigente em São Paulo. Nos debates eleitorais, a então candidata do PT fustigou o sistema. No governo há menos de dois meses, ficamos sabendo que a prática deve ser estendida a todo país. E essa gente se olha no espelho e deve gostar do que vê! É um misto de psicopatia com sociopatia.

Atenção, leitores! Eu, pessoalmente, não gosto da dita progressão. Gente que entende da área me diz, no entanto, que, bem-aplicados um modelo ou outro (este ou o seriado), os resultados são mais ou menos equivalentes. A vantagem da progressão está em evitar a repetência numa fase em que o correto é aproximar o aluno da escola. Pois é… Por razões puramente políticas, por vigarice partidária, o modelo foi impiedosamente espancado na campanha eleitoral. Aderindo ao discurso mais bucéfalo, mas atrasado, mais canalha, os petistas passaram a chamá-lo de “aprovação automática”. Boa parte da imprensa, sempre tão apegada ao “progressismo”, assistiu calada à depredação dos fatos e da verdade.

O mais impressionante é que foi o PT que introduziu o modelo no país: Paulo Freire, então secretário da educação de Luíza Erundina na Prefeitura de São Paulo, implementou a progressão nas escolas municipais. Outras cidades aderiram. E então se expõe, mais uma vez, a natureza desse partido: o modelo que ele mesmo abraçou pode ser alvo do ataque mais feroz se for para atingir um adversário. A lista das “coisas que o PT não pensa” é gigantesca. O partido vai fazendo escolhas segundo as necessidades da hora.

Haddad vai tentar escapar: a resolução em favor da progressão continuada é do Conselho Nacional de Educação, não dele. Não tem força de lei. Trata-se de uma recomendação — RECOMENDAÇÃO ESTA QUE, ATENÇÃO, FOI HOMOLOGADA PELO MINISTRO AINDA NO FIM DO GOVERNO LULA. Vale dizer: enquanto Mercadante descia o sarrafo na progressão em São Paulo e Dilma fazia o mesmo em rede nacional, o ministro da Educação do PT, referendado no governo Dilma, abraçava a… progressão continuada!

Onde estava essa gente?
Informa o Estadão:
“O ensino fundamental tem 31 milhões de alunos estudando em 152 mil escolas, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Desse total, aproximadamente dez milhões estão matriculados nos três primeiros anos desse ciclo. Em 2009, a taxa de reprovação desses dez milhões de alunos foi de 5,1%. O índice é considerado alto pelos especialistas em pedagogia. ‘Isso mostra que, de cada cem crianças, cinco ainda são reprovadas logo que ingressam na escola. As pesquisas apontam que, se o aluno é reprovado nessa fase, dificilmente terá sucesso. A recomendação do CNE é para garantir que todas as crianças estejam alfabetizadas até os oito anos’, diz a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Lacerda.”

Onde estava Maria do Pilar durante a campanha eleitoral? Assistiu, então, calada à depredação da verdade? “Ah, mas progressão precisa de programas que estimulem os alunos e professores…” Pois é! Justamente o que havia e há ainda em São Paulo: dois professores no primeiro ano da alfabetização, programa de reciclagem de professores, promoção por mérito, premiação para as escolas que atinjam metas… Fez-se tábula rasa de tudo isso: permitiram que os hunos, especialmente o de bigode, atacassem o modelo da maneira mais primitiva, ignorando-se, inclusive, os números positivos que a reestruturação da educação em São Paulo passou a exibir.

Vejam este vídeo com Mercadante na sabatina da Folha. Ele promete acabar com a “progressão continuada” que, àquela altura, já havia sido homologada pelo também petista Fernando Haddad. Assistam. Volto em seguida:
(ver neste link)

Mercadante prometia dar o que já existe aula de reforço. É claríssimo: poria fim à progressão continuada, mas “sem reprovação, gente!”. Ah, entendi! E, como se nota, o Rio, que Dilma tomou como modelo de segurança pública, era o modelo de educação do petista… Todo esse talento está agora a serviço da “ciência e tecnologia”… Ao fim de quatro anos, talvez os brasileiros já tenham aprendido a subir em árvores. Andar de cipó, só no estágio seguinte!

“Ah, mas por que você pega no pé dos petistas?” Acho que esse texto responde. E corrijo: pego “nos pés” — em todos os que eles têm!

Trem bala: nao dou uma bala por ele - Roberto Macedo

Já que estamos falando do "assalto (não ao, mas) do trem pagador", segue mais um artigo contra esse empreendimento criminoso.
Eu só teria uma pergunta aos economistas do BNDES (sim, ainda deve existir economistas, e não apenas funcionários públicos nessa entidade): eles não têm nada a dizer sobre esse tipo de empreendimento maluco, não existe nenhum com honestidade suficiente para se colocar contra esse projeto criminoso (e vários outros mais) ?
Será que o país está totalmente consumido pela ação estatal que as pessoas de bem, cidadãos que pagam impostos, não conseguem mais pensar, ou expressar o que pensam?
Paulo Roberto de Almeida

Trem-bala, trem doido
Roberto Macedo
O Estado de S.Paulo, 17 de fevereiro de 2011

Pode parecer estranho que este mineiro seja contrário ao projeto do Trem de Alta Velocidade (TAV) que ligaria Campinas ao Rio de Janeiro via São Paulo, porque sabidamente gostamos de trens. Contudo, esse TAV merece a execração de todos os que se empenham no uso de recursos públicos em projetos que econômica e socialmente se justifiquem. E que também não se conformam em ver um projeto deste alcance - e de nome também apropriado à ligeireza de seu preparo - que se quer empurrar goela abaixo da sociedade sem uma ampla e profunda discussão, provavelmente temida pelo governo pelo que traria de contraditório.

Como economista, sou também alérgico a uma proposta que não passaria pelo exame de um curso de análise econômica e social de projetos, tamanhos os despautérios que apresenta. Em Portugal, 28 economistas de prestígio assinaram em 2009 manifesto contrário a projetos locais desse tipo. Na linguagem típica de seu país, e com fundamentos nessa análise, há um diagnóstico que vejo também aplicável ao Brasil. Assim, afirmam que "...estudos parcelares disponibilizados sobre a sua rentabilidade econômica e social (mesmo se baseados em pressupostos optimistas), mostram que sua contribuição previsível para a essência econômica do País é muito diminuta, e pode ser até amplamente negativa em termos de Rendimento Nacional. E tem elevados custos de oportunidade no que toca aos fundos públicos, aos apoios da União Europeia e aos financiamentos (dívida externa) da Banca Nacional e do Banco Europeu de Investimentos. ...Tais estudos também evidenciam que, pelo menos na primeira década de exploração, não haverá procura suficiente para a rentabilização econômica e social de tão pesados investimentos. Irão originar, por conseguinte, prejuízos de exploração significativos, a serem suportados pelo contribuinte." (www.static.publico.clix.pt/docs/economia/apelo_economistas.pdf).

Transpondo essa avaliação para o projeto do TAV brasileiro, quanto aos fundos públicos eles serão imensos. Estima-se que o valor presente do custo para o erário seria, na hipótese mais otimista, de R$ 14 bilhões e, na mais pessimista, de R$ 36,4 bilhões. Ora, a própria discrepância desses números revela os enormes graus de incerteza e de risco que marcam o projeto, além de a experiência nacional mostrar que hipóteses pessimistas de custo são as mais atingidas, e frequentemente ultrapassadas.

Quanto ao "custo de oportunidade", ou seja, relativamente a projetos alternativos, não é preciso muita ciência para perceber que nessa área de transportes os recursos previstos para o TAV poderiam encontrar retorno econômico e social muito maior. Em particular, se aplicados nas grandes cidades ao transporte de passageiros que nelas gastam várias horas se locomovendo no vaivém de casa para o trabalho, entre outros movimentos.

Não há como resolver esse problema, que exige redes metroviárias entre outros vultosos investimentos, apenas com recursos estaduais e municipais. Supondo que o custo do TAV alcançasse perto de R$ 40 bilhões, isso daria para fazer 100 km de metrôs nessas cidades, a um custo estimado para São Paulo. Contudo, o governo federal, com os muito maiores recursos de que dispõe relativamente a esses outros entes federativos, deixa-os à míngua nessa área, e quer porque quer levar adiante esse TAV baseado em benefícios no plano das miragens.

Quanto à Banca Nacional, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), prevê-se que este abriria suas torneiras de recursos e subsídios para o financiamento do TAV, a um custo de R$ 4,8 bilhões só no segundo item. E há mais subsídios, pois, para garantir a realização do leilão do TAV, o governo vem estimulando interessados, que não são bobos, por meio de garantia da demanda de passageiros, a um custo que poderá alcançar R$ 5 bilhões.

Em contraponto ao projeto, no Brasil o economista que mais se tem destacado é Marcos Mendes, doutor em Economia pela USP e consultor legislativo do Senado. A última versão de sua importantíssima contribuição, da qual retiramos alguns dos números acima, pode ser consultada em www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/NOVOS%20TEXTOS/Texto82-Marcos%20Mendes.pdf.

Na mais recente cartada para atrair interessados na empreitada, o governo federal novamente forçou a barra e na aventura envolveu tanto os Correios como a Eletrobrás como participantes. O grande mistério do projeto é que forças o levam adiante em Brasília. Transparecem governantes megalomaníacos, políticos inescrupulosos, construtoras e investidores em alvoroço e traços de uma futura grande festa regada a doações para campanhas eleitorais.

De estranhar também a atitude do tradicional lobby ecológico, estimulado também de fora para dentro do País, que se manifesta tão agressivamente contra novas hidrelétricas na Amazônia, mas tem praticamente ignorado o TAV, apesar dos enormes danos ambientais que traria à região de seu trânsito. Ele não admite passagens de nível, exige cercas fortificadas, muitas linhas retas e curvas de grande arco, atropelando assim o que viesse pela frente, como nascentes, córregos, rios, várzeas, mata nativa e tudo o mais. Tampouco as comunidades em torno do trajeto projetado acordaram para esses e outros danos, inclusive a possibilidade de sua divisão em partes.

E mais: com o projeto e seu leilão para abril retomando velocidade, o TAV já segue na contramão fiscal mesmo antes de ser construído. A atitude do governo, que hoje se diz seriamente empenhado em ajustar suas contas a uma grave realidade, inclusive no plano da inflação, não condiz com seu renovado empenho no projeto. Sua tarefa hoje é recuperar a confiança da sociedade na sua política econômica, o que é indispensável à eficácia dela e que um trem doido como esse só pode atrapalhar.

ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), PROFESSOR ASSOCIADO À FAAP E VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE SÃO PAULO.

Moleskine: nao saia de casa sem ele (ou mais de um...)

Eu, por exemplo, sempre levo dois, quando estou de "uniforme de trabalhador": um pequeno, no bolso da camisa, ao lado da caneta fina, outro, médio, no bolso do paletó, com pelo menos mais duas canetas (para que nenhuma falhe). Não saio de casa sem eles, e se saio sem paletó, com camisa, claro, vai sempre o pequeno, mesmo para passear os cachorros.
São um "segundo computador", ou na verdade, um bloco de notas, para não deixar escapar nenhuma dessas ideias que teimam em desaparecer tão pronto eventos externos nos trazem de volta à realidade ambiente.
Mas, eles são, sobretudo, um "companion" de leituras, em bibliotecas e livrarias, para anotar referências, frases, e sobretudo começar trabalhos que depois serão terminados no computador.
Já tenho dezenas deles acumulados, cada um de um lugar, um período, agora não mais divididos tematicamente como meus antigos cadernos de leituras: Brasil, Política, Antropologia, História, Economia, Marxismo, etc... Os Moleskines são de fato uma das grandes invenções da humanidade, ao lado do tear mecânico e do motor à explosão (vejam até onde chego).
Eles são, para mim, o companheiro de todas as horas, e enquanto escrevo tenho o meu pequeno aqui bem na minha frente, um vermelho quase acabando (mas eu já abri um outro pequeno, preto, desta vez). O meu grande preto já está acabando também, e já tem um vermelho na fila...).
Bem, o texto abaixo é algo no estilo que eu mesmo gostaria de ter escrito, não o tendo feito por absoluta falta de tempo. Uma traição, que meus Moleskines não perdoarão...
Paulo Roberto de Almeida

Entre livros e Moleskines
Marta Barcellos
Digestivo Cultural, Sexta-feira, 11/2/2011

Entro em uma livraria e esbarro com um aramado repleto de Moleskines. Os sóbrios agora são minoria. Com capas coloridas, elásticos pretos selando o conteúdo vazio, permanecem suspensos, entre os livros que deveriam ser soberanos. Deveriam?

Antes, uma breve explicação a quem não conhece as míticas cadernetas. Segundo a empresa criada para explorar o filão, os Moleskines foram usados por escritores como Bruce Chatwin e Ernest Hermingway, e serviam para não deixar escapulir as boas ideias. Estavam sempre à mão. Caracterizavam-se pela cor preta, a capa dura, a lombada costurada.

Os candidatos a escritor passaram a adotá-los como se a inspiração viesse junto com os caderninhos ― nada condenável, já que os rituais acompanham a literatura desde que a escrita era a arte de psicografar mensagens divinas. Os escritores consagrados sempre são perguntados sobre a sua liturgia, e as histórias variam bastante: enquanto alguns revelam blocos à cabeceira, para anotar lampejos no meio da noite, outros preferem confiar na seleção natural da memória, apostando que as boas ideias sempre voltam.

Eu acrescentaria que as boas ideias voltam também recicladas, saídas de livros já escritos e redescobertas em Moleskines ainda em branco. Escrever e ler são atividades tão próximas que deixo a rabugice de lado para aprovar a diversificação de produtos na livraria (mas sem exageros: não deixemos que virem papelarias). Afinal, todo bom leitor é um potencial escritor. O boom de blogs e cursos de escrita criativa demonstra que, a exemplo da oportunidade descoberta pelas modernas livrarias, só faltava a tendência ser devidamente explorada.

Muito, muito antes dos Moleskines, os filósofos antigos já recomendavam aos discípulos a escrita como atividade intercalada à leitura. Os hypomnemata, surgidos como livros de contabilidade, se tornaram agendas pessoais utilizadas pelos filósofos como "livros da vida", cadernos nos quais anotavam suas leituras e considerações sobre os mais variados temas.

Vamos a um exemplo. Depois de descobrir os hypomnemata no ensaio "Entre o cristal e a chama", de Flávio Carneiro, lembro-me do aramado de Moleskines na livraria e de meus próprios caderninhos de anotações ― abandonados na adolescência, transformados em bloquinhos de entrevistas e retomados graças ao estímulo dos blogs e das oficinas literárias. A ideia de transformar a avalanche de pensamentos e associações em uma coluna do Digestivo surge. Vai embora. Volta.

Volta, talvez, porque os ensinamentos de Sêneca a Lucílio atingem em cheio à minha emoção. Queria ter sido o discípulo para perceber antes a importância da busca pelo equilíbrio entre escrita e leitura. "Escrever em demasia esgota o estilo, distende a tessitura do que se escreve...", me ensina Carneiro, minha ponte até o filósofo romano, dando conta do efeito que minha prática (demasiada?) como jornalista pode ter tido em meu texto. Para minha surpresa, sou apresentada ao outro prato da balança: "...do mesmo modo que ler em excesso dispersa o pensamento." E eu agindo como se fosse preciso fazer uma opção.

É preciso ler, mas também escrever. Interromper a leitura para se dedicar à escrita. Ao menos registrar as próprias observações e associações, frutos de uma leitura sempre pessoal, que reflete a cultura, o imaginário e a experiência de cada leitor. Lembro que sempre senti a necessidade de registrar minha "própria leitura" das leituras mais estimulantes que fazia. As anotações iam parar em cadernos que se perdiam ou no diário da ocasião. Talvez o fizesse apenas pelo temor respeitoso que me impedia de escrever em margens de livros (sequer sublinhados, para estarem como novos em mãos de outros estudantes/leitores).

O fato é que fazia anotações, e, tão logo ouvi falar dos Moleskines, me interessei pelo assunto. No primeiro momento, tracei comparações entre os formatos: eu usava cadernos de tamanho médio, com lombada em espiral, cujas páginas diminuíam cada vez que a autocrítica exacerbada identificava, em alguma linha, uma suposta bobagem. Assim como a tecla "delete" do computador é considerada por muitos escritores sua maior aliada, o arame em espiral e a lata de lixo também me pareciam fundamentais para depurar diários e cadernos de anotações. Com um Moleskine sempre à mão, os escritores pareciam bem mais confiantes...

Bloquinhos ainda mais descartáveis que os primeiros diários passaram a fazer parte de minha prática profissional. Ali ficavam rabiscadas entrevistas e impressões que, uma vez publicadas no jornal, podiam ser imediatamente descartadas. As outras anotações, as "leituras da vida", já não pareciam ter tanta importância, comparados às entrevistas com leitores garantidos e atentos no dia seguinte.

Hoje, a leitura que faço sobre teorias da leitura acontece no momento em que minhas anotações voltaram a ser guardadas com algum esmero, em cadernetas práticas como Moleskines (na verdade, imitações mais baratas) e sem os espirais da adolescência. Penso que a volta do hábito aconteceu, sobretudo, por causa do novo espaço que encontrei para organizar e valorizar os meus escritos: a internet.

Carneiro diz que os hypomnemata não eram simples auxiliares da memória, mas um exercício, "um ensaio cotidiano visando ao autoconhecimento pela observação e reflexão colocadas no papel, não como um tratado mas como recortes: o exercício regular de uma escrita fragmentada". Substitua a palavra "papel" por "blog", e teremos uma boa definição do fenômeno surgido na internet. Como uma via de mão dupla, a possibilidade de publicação, e reconhecimento, me levou também a organizar melhor as anotações de meus "Moleskines": já não me esqueço das referências bibliográficas, nem de destacar o que por mim já foi transformado.

Porque é nela, na caderneta, que começa a tomar forma o meu trabalho de abelha, é onde se inicia o meu diálogo pessoal entre leitura e escrita. A imagem de abelha, que escolhe o pólen das flores (leituras) para transformá-lo em um mel singular (texto) é de Sêneca, que aconselha ainda: "Não consintamos que nada do que penetra em nossa mente permaneça intacto; assim, talvez jamais venha a ser assimilado. Devemos digerir a matéria, pois de outro modo passará à nossa memória, mas não à nossa inteligência. Devemos aderir de coração a esses pensamentos alheios e saber fazê-los nossos, a fim de unificar cem elementos diversos ― como a adição faz de números isolados um número único, total que compreende somas menores e desiguais entre si". Agora que sou como Lucílio, seguirei tentando.

Nota do Editor
Marta Barcellos mantém o blog Espuminha.

Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 11/2/2011

Trem bala e "tlem-bala": dois artigos sobre realidade na China e projeto no Brasil

O "tlem-bala" é obviamente o chinês, sobre o qual transcrevo um artigo do Shanghai Daily. Já está pronto e começa a funcionar entre Shanghai e Beijing (mas já funciona entre Shanghai e Nanjing). Eu mesmo andei em trem magnético do aeroporto de Pudong-Shanghai e a cidade (na verdade uma estação de metro, bem antes do centro): deve ser completamente deficitário, mas serviu para testar tecnologia chinesa (em parte pirateada, claro) nessa área.
Quanto ao nosso trem bala, do qual sou um total opositor, por diversas razões, transcrevo um artigo do economista Mansueto de Almeida (no relationship), cujos argumentos acato inteiramente, e até acrescentaria mais um: politicos adoram esses super-projetos, pois onde mais haveria como oportunidades de superfaturamento e desvios de dinheiro?
Paulo Roberto de Almeida

Bullet train testing set to begin on Beijing link
By Dong Zhen
Shanghai Daily, February 21, 2011

CHINA'S high-speed railway development took another stride forward yesterday with the power being switched on in Shanghai and nearby cities to enable test runs on the Shanghai-Beijing high-speed rail link to start.

The line will be fully tested from March 20 when bullet trains traveling at more than 400 kilometers per hour will make the trip to iron out any problems and make adjustments before the new line opens to the public on June 20.

The trains will run between Shanghai's Hongqiao Railway Station and Beijing's South Railway Station during the tests, the national railway authority said yesterday.

The 1,318-kilometer link will cut the journey between Shanghai and the capital to less than five hours from the current 10 to 18 hours.

The line, which runs through Tianjin Municipality and Hebei, Shandong, Anhui and Jiangsu provinces, will also increase capacity in the northern, eastern and middle regions of the country.

There will be 24 stops on the route including regional transport hubs such as Bengbu Station in Anhui Province and Xuzhou in Jiangsu Province.

There will be some non-stop shuttles between Shanghai and Beijing in the future and the railway authority also plans to launch direct trains between Shanghai and other major cities along the way, including Tianjin, Jinan and Nanjing.

The power grid to facilitate the train operation in Shanghai and nearby cities was switched on yesterday, the authority said, and warning signs and posters have been erected along the route. The grid will be carrying 27,500 volts of electricity and people have been warned not to get near the power supply facilities. Balloon and kite flying is also prohibited in an area 300 meters from the tracks.

The new line is designed with a travel speed of 350kph and above. A train reached 486.1kph during a previous test on a stretch between Shandong and Anhui provinces, the railway authority said.

It is not yet known how much tickets will cost. Flights between Shanghai and Beijing cost around 1,200 yuan at present with a journey time of 1.5 hours.

The Shanghai-Beijing bullet train project is said to have cost 220.9 billion yuan (US$33.6 billion), the highest expenditure on a national infrastructure project to date.

Liu Zhijun, a leading initiator of high-speed railway expansion, was removed from his post as railways minister earlier this month in connection with a probe into suspected corruption. Liu said last month that another 700 billion yuan would be invested in construction this year to build more high-speed links and improve facilities.

The railway ministry said it was to boost capacity on the Shanghai-Nanjing and Shanghai-Hangzhou high-speed rail lines to make travel to the city's two neighboring provinces easier. There will be an increase in the number of train services from beginning of next month and the extra trains will stop at Changzhou and Wuxi in Jiangsu Province, as well as Haining and Hangzhou in Zhejiang Province.

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Trem Bala: o debate
Blog do Mansueto, 19/02/2011

Para aqueles intressados no debate sobre a construção do Trem Bala recomendo a leitura do meu artigo (“Hoje, projeto não é prioritário“) publicado no Jornal Folha de São Paulo contra esse projeto, que reproduzo abaixo, e o artigo do diretor-geral da Agência Nacional de Transportes Terrestres, Bernardo Figueiredo (“o Brasil precisa e merece“), a favor do projeto.

A minha posição neste debate é direta e simples. Acho esse meio de transporte muito agradável, mas acho que hoje temos outras prioridades. O Brasil é um país com muitos recursos, mas esses recursos não nos tem propiciado melhora substancial da nossa educação, serviços de saúde, invstimentos em infraestrutura e desoneração tributária da folha salarial e do investimento.

Trens de alta velocidade são investimentos muitos caros e precisam de subsídios para sua operação (é assim no mundo todo). Como no Brasil as pessoas acham que nada tem custo, o debate correto deveria ser colocado talvez nestes termos: “Você apoiaria a volta de uma CPMF para finaciar a construção e subsidiar a operação de trens de alta velocidade no Brasil”?

Recomendo também a leitura do artigo (High-Speed Rail Is a Fast Track to Government Waste) do colunista da Newsweek, Robert Samuelson, que mostra vários furos dos projetos de trem bala nos EUA. Em um momento no qual os estados americanos estão cortando gastos com educação e serviços sociais, o governo que construir uma rede nacional de trens de alata velocidade por US$ 53 bilhões.

Por fim, em condições normais de temperatura e pressão, já sabemos que no próximo ano, pela regra atual, o salário mínimo irá para valor próximo a R$ 620, o que siginifca uma gasto extra de R$ 22,5 bilhões sem contar com o crescimnto vegetativo da folha do INSS. Ou a receita cresce muito este ano ou descofio também em uma possível volta da CPMF.

O trem-bala deve ser construído?
NÃO: Hoje, projeto não é prioridade
MANSUETO ALMEIDA
Folha de São Paulo, 19 de fevereiro de 2010

Não há dúvida de que é agradável viajar em trens de alta velocidade. Esse tipo de transporte é pouco poluente, rápido e confortável. No entanto, sabe-se também que é ainda melhor morar em um país que possui escolas públicas de boa qualidade para qualquer criança, independente do local de nascimento ou do poder aquisitivo da família, como ocorre na Finlândia.

É também agradável morar em um país em que os hospitais são tão bons que não se sabe quais deles são públicos ou privados, como acontece na Alemanha. O ideal seria morar em um país que possuísse boa infraestrutura, inclusive com disponibilidade de trens de alta velocidade, boas escolas, com professores capacitados, e excelente serviço de saúde pública.

Infelizmente, o Brasil ainda está longe de ser esse país; assim, não pode se dar ao luxo de embarcar em aventura de elevado custo, cujo retorno social é altamente incerto. O projeto do trem-bala não é prioritário para um país que ainda sofre para melhorar a qualidade do seu ensino, melhorar os serviços de saúde e recuperar a infraestrutura que tira a competitividade do setor privado, devido à carência de investimentos em portos, aeroportos, energia e rodovias, como mostraram vários estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (comunicados nº 48, 50, 51, 52 e 54).

Projetos de trens de alta velocidade são caros em qualquer lugar do mundo, e o Brasil não é exceção. O projeto do trem-bala brasileiro está orçado em R$ 33 bilhões, mas nesse valor não está incluída a parcela de reserva de contingência para arcar com eventuais custos não programados do projeto.

Some-se a isso os fatos de o projeto envolver subsídios de até R$ 5 bilhões para as concessionárias e de a maior parcela do financiamento ser de recursos do BNDES, que não os tem e vai precisar de mais um empréstimo do Tesouro Nacional, como autorizado pela medida provisória nº 511, de 5 de novembro de 2010, que empresta R$ 20 bilhões para o BNDES financiar o projeto.

É bom olhar o exemplo dos casos dos trens de alta velocidade da Itália, que começaram como projetos de parceria público-privada e terminaram sendo absorvidos integralmente pelo setor público, devido a sucessivos aumentos no custo de tal projeto. Isso levou a um aumento da dívida pública e do deficit público em mais de um ponto percentual do PIB.

No Brasil, o custo do trem-bala é tão incerto que a medida provisória acima mencionada dá carta branca para que o ministro da Fazenda renegocie esse empréstimo para 20, 30, 40 anos ou mais para compatibilizar o fluxo caixa do banco ao financiamento do projeto.

Adicionalmente, o artigo 4º dessa mesma medida estabelece que, no caso de não pagamento, o BNDES será perdoado da dívida, que será arcada, integralmente, pelo Tesouro Nacional (leia-se nós, contribuintes).
Projeto de trens de alta velocidade têm elevado custo fiscal e não se sustentam sem elevados subsídios públicos. Esse não é um investimento prioritário para o Brasil neste e nos próximos anos, principalmente quando se reconhece que ainda precisamos avançar, além dos investimentos em saúde, educação e infraestrutura, na agenda de desoneração tributária da folha salarial e do investimento, que ainda não avançou por conta da impossibilidade de o governo abrir mão de receita fiscal.

Insistir no projeto do trem-bala é mais uma prova de que ainda sofremos um pouco da megalomania do “Brasil do futuro” da década de 70, que nos levou à década perdida.

MANSUETO ALMEIDA é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Villafane e a construcao do Brasil: um "founding academic"?

Revisões de mitos sempre são bem-vindas. Eu, pelo menos, me considero um iconoclasta e um anarquista histórico, ainda que o revisionismo, para ser consistente, necessite estar embasado em sérias pesquisas e frutificar ao longo de uma reflexão bem argumentada. Esse é o caso do livro do historiador Luis Claudio Villafane, aqui resenhado por um jornalista.
Ele simplesmente começa a revisar um dos nossos maiores mitos, já que figura no Panteão virtual da pátria, junto com Tiradentes e alguns poucos mais.
Até 2012, quando comemoraremos os cem anos da morte do barão, no Carnaval justamente, teremos oportunidade de voltar ao assunto. Louve-se, em todo caso, o início deste debate na obra de Villafane, que poderia ser designado, desde já, como nosso "founding academic".
Cheers!
Paulo Roberto de Almeida

Como Rio Branco inventou o Brasil
MARCOS GUTERMAN
O Estado de S.Paulo, 19 de fevereiro de 2011

Em tempos de ufanismo revisitado, que a propaganda estatal reduz ao "orgulho de ser brasileiro" em relação ao resto do mundo, o livro recém-lançado O Dia em Que Adiaram o Carnaval (Unesp), do diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos, revela-se um ensaio precioso, ao reconstituir a invenção da nacionalidade brasileira.

O título da obra diz respeito à curiosa ordem do governo republicano de adiar o carnaval em respeito à morte de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, em 10 de fevereiro de 1912. Rio Branco tinha status de astro, porque lhe era atribuído o feito de ter desenhado as fronteiras do País - isto é, de ter dado um "corpo" à pátria que estava sendo criada.

Villafañe faz uma reflexão sobre o mito do Barão como construtor da nacionalidade e sua identificação com uma "certa ideia de Brasil" quase um século depois da independência. Trata-se de uma "paralisadora herança", como comentou o embaixador Rubens Ricupero a propósito da persistente imagem de um país que atua no exterior tendo como lastro o genoma da "tolerância natural do brasileiro", descrito por Stefan Zweig em Brasil, País do Futuro (1941).

O modo como o Brasil se enxerga no mundo, traduzido em sua política externa, é portanto o eixo em torno do qual Villafañe trabalha. A construção política dessa entidade, mostra o autor, começa como afirmação antilusitana e, ao mesmo tempo, como contraponto monárquico "ordeiro" ao "caos" republicano dos vizinhos latino-americanos. A "nação brasileira" que surge daí é formada por brancos europeus ricos. A escravidão criará o desconforto de uma imensa massa de pessoas que estão em toda parte, mas não integram a nação.

O sentido nacional só se completará no período republicano, mas a desigualdade social dificultou drasticamente a legitimidade do Estado. A "invenção" do Brasil, naquela oportunidade, dividia-se entre o passado português e a afirmação do mundo americano, sem lugar, contudo, para os brasileiros comuns.

Mesmo a república, porém, não ofereceu à massa, de imediato, um lugar na construção da identidade nacional brasileira. Foi preciso que houvesse a difusão das culturas ditas "subalternas", contaminando a atmosfera da elite com o carnaval e o futebol como elos da nacionalidade. Foi necessário ainda criar "heróis" para representar o evangelho republicano - e Tiradentes foi o primeiro deles, embora tenha sido representante de um movimento que nem de longe era nacionalista; mas o alferes (ou a imagem que foi criada para ele) era alguém construído para simbolizar a união dos cidadãos, a participação popular e a luta autêntica pela independência.

A identidade internacional do Brasil, diz o autor, tem como referência fundamental, desde seu início como país independente, a América - entendida primeiramente como os EUA e depois como as repúblicas latino-americanas. O Brasil foi o único país americano que, em sua independência, não desenvolveu proximidade com a ideia de ruptura com o modo de vida europeu. Com a república, o antiamericanismo monárquico foi substituído pela defesa do "espírito americano". É justamente com Rio Branco que a aliança com os EUA se consolida, sob a perspectiva de domínio geral estadunidense nas Américas e na hegemonia brasileira no nível sul-americano.

A partir de Getúlio Vargas, e desde então com esporádicos intervalos, a política externa brasileira se fundaria na dimensão do desenvolvimento econômico nacional em contraponto ao Hemisfério Norte, num apenas aparente afastamento do evangelho de Rio Branco. No início da Guerra Fria, o Brasil viu-se em condições de invocar o americanismo do Barão para cobrar tratamento preferencial dos EUA. A frustração com a resposta vaga de Washington a esse pleito - e também à promessa de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, feita pelo presidente Franklin Roosevelt a Vargas - empurrou o Brasil para uma aproximação maior com os demais países latino-americanos e para a ideia de que havia um bloco regional de subdesenvolvidos, entre os quais os brasileiros passaram a se incluir, que precisavam ser ouvidos.

Esse bloco se considerava moralmente superior às potências globais, porque seria vítima da corrida armamentista e das guerras imperialistas. Tal movimento rompeu a bipolaridade Leste-Oeste da Guerra Fria e estabeleceu a complexidade do debate Norte-Sul, com a defesa de um modelo de desenvolvimento fortemente estatal, em contraponto à doutrina democrático-liberal que se consideraria vitoriosa na queda do Muro de Berlim e que se fazia representar pelos EUA, justamente o "outro" na relação com a América Latina ao longo do século 20.

A identificação latino-americana, de tão importante para a nova etapa da ideia de nação brasileira, foi inscrita na Constituição de 1988. O discurso do Brasil hoje, sobre seu lugar no mundo, é fincado essencialmente na afirmação da liderança continental, ainda tendo como referência os EUA, numa inequívoca demonstração da resistência, mesmo controversa, da herança do Barão do Rio Branco - o nosso "Founding Father".