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domingo, 1 de julho de 2012

China-Brasil: uma relacao assimetrica - texto PRA (2005)

Desde o início do governo Lula registrei os imensos equívocos e as ilusões ingênuas (e vamos enfatizar essa redundância) que os companheiros no poder mantinham em relação à China, seu governo e suas orientações de política externa.
O texto que segue abaixo, no entanto, permaneceu inteiramente inédito, até agora, pois se tratava apenas de um conjunto de notas para desenvolvimento posterior. Acredito que elas possam sinalizar mais claramente meu pensamento sobre a questão.



A China e o Brasil: notas sobre uma relação assimétrica

Notas para desenvolvimento
Paulo Roberto de Almeida (11-13 maio 2005)

1. Sobre a China:
A China não tem e não quer ter parceiros, estratégicos ou de qualquer outro tipo.
A China é, para todos os efeitos, o seu próprio, e único, parceiro; ela quer continuar assim e acha que se basta a si mesma.
A China sempre foi uma nação sozinha, isolada e solitária, tanto nos contextos regional e internacional, como do ponto de vista de seu próprio desenvolvimento econômico e social, historicamente baseado num desperdício inacreditável de homens e de recursos materiais, com a elite dirigente consumindo esses fatores sem controle de ninguém e de nada, nem do próprio meio ambiente.
Esse processo continua e deve continuar a ocorrer do mesmo jeito, hoje talvez até de forma ainda mais intensa, já que ela pode “mobilizar” recursos de outros países.
A China produziu, em eras passadas, algumas poucas e boas idéias, teve um mandarinato relativamente eficiente, em termos de “burocracia weberiana” e se tornou a maior economia planetária com base numa espécie de entropismo míope. Mas até o século 18, pelo menos, ela continuou a ser a maior economia planetária, não tanto pelas interações (que eram poucas), mas pela sua própria “massa atômica”.
Quanto ela deixou de ter idéias, ou quando as idéias dos outros foram mais poderosas, pois que apoiadas em canhoneiras, ela foi humilhada, dominada e esquartejada. Isso feriu fundo a auto-estima e o orgulho nacionais dos chineses.
Eles conseguiram, depois de décadas de lutas (mais intestinas do que contra os inimigos externos, pois que ninguém consegue dominar a China), reverter a decadência e tomar novamente seu destino em mãos.
Não tem a mínima importância histórica, ou estrutural, que essa retomada tenha sido feita sob o domínio do comunismo, um modo de produção absolutamente “passageiro” na história milenar da China.
Com comunismo ou socialismo de mercado, o novo mandarinato de burocratas e de membros da nova nomenklatura trabalha para confirmar o destino secular da China, que é o de novamente se tornar a maior economia planetária e ditar suas regras para os “bárbaros” do exterior.
A China está operando essa volta a um lugar de preeminência econômica no planeta (a segurança militar é mera decorrência disso), mas os atuais imperadores e mandarins têm consciência de que ela não mais poderá fazer isso isoladamente, como ocorreu até o século 18, pois as condições do mundo mudaram.
A China assumiu plenamente o conceito de interdependência econômica global, mas como ocorre com o famoso moto orwelliano, num mundo totalmente interdependente, alguns são mais interdependentes do que outros.
A China quer e vai ser interdependente à sua maneira, isto é, acomodando-se a regras às quais ela não mais pode se furtar, mas interpretando-as à sua maneira, e distorcendo-as para seu melhor conforto e segurança. Isto se aplica em quase todos os terrenos de interesse substantivo, mas especialmente às regras de comércio internacional e de investimentos estrangeiros.
A China não pretende à dominação do mundo, mas ela não pretende mais que o mundo, ou seja, o círculo das superpotências, a domine mais. Isso não vai ocorrer, e a China sabe que tem de conviver com as superpotências, mas não quer se submeter às regras existentes (que aliás nem são ditadas por essas superpotências, mas decorrem do processo de globalização capitalista).
A preocupação principal dos atuais imperadores e mandarins chineses é assegurar emprego (e, portanto, comida) a meio bilhão de chineses pobres, que podem, à falta de condições mínimas (mas mínimas mesmo) de existência, perturbar a paz no Império do Meio, e com isso afetar o poder e a dominação dos atuais dirigentes.
Etapa importante nesse processo é transformar a China na principal fábrica planetária, aliás a única maneira de acomodar algo como 400 ou 500 milhões de chineses que precisam de emprego (e que não os terão nem na agricultura nem nos serviços).
Como ela só pode fazer isso construindo o seu próprio capitalismo manchesteriano (que certamente deixaria Engels de queixo caído), a China PRECISA destruir empregos no resto do mundo, pois essa é a única condição de sobrevivência de algumas dezenas de milhões desses chineses “flutuantes”. (…)
Por coincidência, essa é também a “missão histórica” que lhe foi assignada, atualmente, pela globalização capitalista, um processo impessoal, não controlado por nenhum país ou conjunto de corporações, mas que corresponde à “lógica” do sistema atual de alocação de investimentos e de organização espacial da produção de mercadorias.
Como a China trabalha com aportes ilimitados de homens e capital (com alguma limitação em outros recursos produtivos, como os de know-how e ciência básica), ela não terá nenhuma dificuldade em manter esse ritmo alucinante de destruição de empregos em todo o resto do mundo pelas próximas duas gerações pelo menos (ou seja, pela próximo meio século).
A China está ascendendo rapidamente na escala de agregação de valor, não apenas publicando exponencialmente em revistas científicas, mas passando da simples cópia e adaptação tecnológica para a inovação completa, já tendo chegado também ao design e marcas. Seu catch-up promete ser ainda mais impressionante do que o do Japão e da Coréia do Sul e provavelmente não haverá nada comparável na história econômica mundial.
Com tudo isso, a China vai agir exatamente como sempre agem os centros da economia mundial: organizando sua própria periferia de “abastecimento”, que ela espera poder controlar da forma como fazem os imperialismos modernos: não pela via extrativista, mas por redes de negócios centrados em circuitos financeiros próprios, chineses.

2. Sobre o Brasil:
O Brasil como “bric” é um tijolo meio mole, pois ele vai demorar mais do que os outros “brics” a transformar ciência em tecnologia, estando ainda preso a uma imensa “bola de ferro” feita de finanças precárias, um mercado de crédito insuficiente, um eforço de poupança desviado por um Estado perdulário e uma estrutura tributária absolutamente desadaptada a uma economia exportadora, além de irracional mesmo do ponto de vista do mercado interno. Os principais problemas do Brasil não são de ordem tecnológica ou mesmo empresarial, e sim de natureza educacional e estatal, ambos deficientes ao extremo.
Esses problemas são de natureza essencialmente política, pois parece haver uma notória deficiência de quadros esclarecidos no sistema político brasileiro: os representantes eleitos não conseguem se por de acordo sobre um diagnóstico simples da realidade brasileira e sobre as vias de superação dos problemas mais cruciais. Mesmo se conseguissem, não conseguiriam se por de acordo sobre um reordenamento dos gastos públicos e dos investimentos.
Não ajuda o fato de a classe política brasileira ser muito diversificada e heterogênea, não sendo mais composta apenas de coronelões e políticos profissionais, mas também de representantes corporativos, de mandarins sindicais, de aventureiros de toda espécie.
Do ponto de vista da sua inserção econômica mundial, o Brasil continuará deficiente, haja vista a dificuldade de abertura aos investimentos e aos intercâmbios de todo tipo. A classe política brasileira ainda pretende construir o “capitalismo nacional”, exatamente como nos anos 1950. O mundo não vai esperar até que isso seja feito, para então “acolher” o Brasil: ele vai continuar sem o Brasil.

3. O Brasil e a China: grandes promessas, tristes realidades
A China quer o Brasil como abastecedor prioritário de produtos alimentícios e de outras commodities para sua gigantesca máquina industrial. Ela pretende inundar o Brasil e já o está fazendo, de produtos manufaturados correntes.
O Brasil não conseguirá bater a China no terreno da indústria tradicional, isto é, aquela da segunda revolução industrial: ele será fragorosamente batido, como estão sendo todas as demais potências industriais.
A designação da China como “parceiro estratégico” é absolutamente inconseqüente do ponto de vista da estratégia chinesa; trata-se de uma decisão unilateral, gratuita e, portanto, irrelevante do ponto de vista de “como devem ser as coisas”, exatamente, entre o Brasil e a China.
Não importa se essa história começou com um acordo de parceria tecnológica para o lançamento de satélites por foguetes chineses: o Brasil poderia ter estabelecido a parceria com outros países, e a situação de fato não mudaria muito. Talvez o Brasil pudesse até ter “comprado” lançamentos mais baratos e mais interessantes em parceria com outros países. Toda a retórica da cooperação científica e tecnológica, não passa disso, uma retórica.
As indústrias brasileiras, se desejarem sobreviver no mundo manchesteriano-chinês, deverão fazer como todas as outras: avançar na concepção e desenho e mandar fabricar na China, só assim elas conseguirão sobreviver enquanto empresas, do contrário perecerão corpos e bens. Vão-se os operários e sobram os engenheiros. Quanto mais cedo esse processo começar, tanto melhor para as empresas brasileiras candidatas à sobrevivência no mundo darwinista chinês.
Alguma renda extra será possível de obter nos projetos conjuntos de fornecimento energético alternativo a partir do Brasil e nos produtos intensivos em recursos naturais, como corresponde às vocações ricardianas do Brasil.
Seria melhor que o Brasil não fizesse grandes “planos estratégicos” em relação à China, pois isso não serve para muita coisa: a China fará aquilo que ela pretende fazer segundo o seu interesse nacional, e não se deixará demover por nenhuma promessa de “aliança estratégica” ou qualquer outro arranjo que contemple interesses supostamente simétricos. Melhor fazer aquilo que corresponde ao nosso próprio interesse nacional, sem esperar correspondência ou resposta de qualquer parceiro que seja, em especial da China.
Incidentalmente, a concessão do status de “economia de mercado” não deve alterar muito o panorama geral e seu desenvolvimento inexorável: ela só atrapalha os desejos protecionistas de alguns ramos da indústria brasileira, tendo uma incidência setorial em mercados de trabalho específicos. Talvez constitua, aliás, um exercício útil do ponto de vista do cenário de “serial killer” que virá mais adiante, quando a China for plenamente integrada ao regime gattiano normal (o que ocorrerá até 2015).
A concessão desse status foi um favor diplomático absolutamente gratuito e unilateral, sem qualquer vantagem de caráter recíproco, e uma renúncia inacreditável de soberania. Ela também foi um absurdo do ponto de vista político, mas representou apenas uma antecipação do que ocorrerá inexoravelmente no terreno econômico. Ela apenas obriga as empresas brasileiras a correrem mais rápido, o que talvez não seja uma coisa má, pois elas estavam se acostumando com muita proteção e nenhum desafio, desde 1995, pelo menos.

Paulo Roberto de Almeida, São Paulo-Bogotá, 11-12 de maio de 2005.

sábado, 30 de junho de 2012

O Tratado de Nao-Proliferacao Nuclear: corrigindo um editorial de jornal (2005)

Leio muita bobagem nos jornais, geralmente devido a jornalistas mal informados e mal formados. Isso é normal, considerando-se a miséria educacional brasileira, a mediocrização das universidades e a indigência cultural em certos meios. Mais surpreendente é ver editoriais de jornais respeitáveis reproduzir alguns desses erros que se encontram em artigos de opinião e analíticos.
Abaixo uma correção que fiz em 2005 a um desses editoriais mal escritos e mal informados...


Carta ao Correio Braziliense sobre o TNP
Brasília, 9 de maio de 2005
Senhor diretor,
O editorial do CB desta segunda-feira, 9 de maio, sobre o “Desafio Nuclear”, contém diversos equívocos factuais e vários erros analíticos, induzindo os leitores a uma visão distorcida do que seja o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), sobre seus membros originais e seu papel no cenário internacional. Permito-me tão somente corrigir os mais graves erros desse editorial.
O TNP não foi firmado em 1970 entre os EUA e a finada URSS. Ele foi firmado em 1968, com a participação original dos EUA, da URSS e do Reino Unido, e não incluiu, até o início dos anos 1990, nem a China, nem a França. O TNP está completando, portanto, 37 anos, e não apenas 35 anos, como diz o editorial.
O editorial dá a impressão de que esses dois últimos países eram membros do mesmo “clube atômico” que os membros originais do TNP, quando isso não corresponde à verdade. De fato, eles se capacitaram no início dos anos 1960: a França explodiu seu primeiro artefato nuclear em 1962, no deserto argelino, e a China comunista, que não era ainda titular no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), o fez em 1964.
O editorial dá portanto a impressão de que o “clube atômico” deriva do TNP, quando isso não é verdade, e transmite a idéia de que a China já pertencesse ao CSNU. A China comunista só passou a ocupar a cadeira permanente a partir de 1971, quando a China nacionalista (mais conhecida como Taiwan) cede seu lugar na ONU à China continental.
É enganoso falar de um “clube atômico”, cujo membros se comprometeram a transferir tecnologia para uso civil aos não detentores de capacidade bélica nessa área, como também é enganoso falar que esse “clube” seria composto de “sócios assumidos” como a Coréia do Norte, Índia e Paquistão, quando esse status não é reconhecido pelo TNP ou pela comunidade internacional. Esses países podem ser de fato detentores de capacitação nuclear, mas não fazem parte de nenhum “Clube Atômico” (com maiúsculas, como escreve o CB).
Tampouco é correta a afirmação de que as autoridades sul-africanas reconheceram deter essa capacitação durante o regime do apartheid. Essa informação foi prestada a posteriori, justamente no momento da transição para o regime de maioria negra, quando também se informou que o programa estava sendo desmantelado.
Finalmente, é equivocado afirmar que o governo FHC decidiu assinar e ratificar o TNP em 1997, “diante de fortes pressões contra o Programa Espacial Brasileiro”. Tratou-se de decisão refletida com bastante antecedência e adotada num momento de revisão da política brasileira relativa a tecnologias duais, quando também o Brasil acedeu a foros restritos como o Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR), esse sim um clube restrito funcionando como foro informal de controle de tecnologias sensíveis.

Paulo Roberto de Almeida, Professor de Economia Política Internacional – Mestrado em direito do Uniceub - Website pessoal: www.pralmeida.org

A politica externa de Lula, um texto de 2005 - Paulo Roberto de Almeida

Continuando meu trabalho de escavação arqueológica em trabalhos antigos, para fazer uma lista dos textos relativos à política externa e relações internacionais do Brasil, deparo-me, de vez em quando, com alguns textos, sob forma de entrevista ou questionário, que foram respondidos bilateralmente e permaneceram "escondidos" desde então. Não tenho nenhum motivo para mantê-los reservados ainda, inclusive porque eles reproduzem exatamente o que eu pensava no momento da elaboração. As circunstâncias e a conjuntura podem ter mudado, fatos novos podem desmentir alguns dos argumentos, mas me parece útil expor aqui os textos, para ver o que se mantém e o que se tornou perempto. O texto abaixo foi para uma dissertação de mestrado numa universidade do sul do Brasil.



Entrevista sobre Política Externa no Governo Lula

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, em 7 de maio de 2005

1. Qual sua visão sobre a OMC de 2000 até os dias atuais?
Em 2000, a OMC, que já tinha completado cinco anos de existência, tinha sofrido um revés, com o fracasso da conferência ministerial de Seattle, nos EUA, em novembro de 1999. Esse fracasso, assim como outros percalços que ela possa ter tido nesse periodo de dez anos desde sua inauguração, não se deve propriamente à OMC, e sim ao aspecto político do comportamento dos países membros. Com efeito, a organização não pode, ela mesma, determinar suas orientações e ênfases em matéria de liberalização do comércio internacional e de criação, consolidação e respeito das normas relativas ao sistema multilateral de comércio, como é o seu mandato constitutivo. Para isso, ela depende da cooperação e da colaboração dos próprios países membros, que têm a faculdade de fazer avançar ou deixar paralisados os trabalhos que a OMC conduz, seja na administração dos acordos existentes, seja na negociação e implementação de novos acordos. Se os países membros são pouco cooperativos, seu trabalho ficará ipso facto paralisado. Se eles decidem avançar, ela consegue, então cumprir seu mandato e seus ideais.
Em todo caso, minha visão sobre a OMC é eminentemente positiva, pois ela consegue, ainda que a duras penas, fazer avançar, mesmo modesta e lentamente, a causa da liberalização do comércio internacional. Já em novembro de 2001, por exemplo, ela conseguir fazer aprovar na ministerial de Doha, um mandato para a atual rodada de negociações, que incluia a discussão sobre alguns dos temas mais importantes, e difíceis, do sistema multilateral de comércio, como podem ser os das práticas de subvenção à produção e exportação de produtos agrícolas, ademais da continuidade do trabalho em matéria de serviços, anti-dumping, investimentos e outros mais.
A ministerial de Cancun, no México, em setembro de 2003, foi um fracasso relativo, nãoa tanto devido ao capítulo agrícola – no qual o Brasil atuou de modo inteligente, ao constituir o atual G-20, de países que se opõem ao protecionismo e ao subvencionismo agrícolas –, mas mais devido a problemas em outras áreas, como os chamados novos temas, ou a agenda de Cingapura (investimentos, propriedade intelectual etc).
Nos próximos meses, isto é, no que resta de 2005 até a conferência ministerial de Hong-Kong, em novembro, a OMC tem pela frente o desafio de fazer avançar as negociações para completar a rodada Doha. Não acredito que haverá tempo hábil para finalizar todos os capitulos da negociação, e como sempre ocorrerá um mini-drama, nas vésperas da cúpula, e provavelmente durante a própria, alguns progressos serão feitos, a duras penas, mas o exercício não estará obviamente concluído. Provavelmente se chegará, em meados de 2006 ou mais provavelmente ao início de 2007, a algum resultado sob a forma de acordos complementares de liberalização em algumas áreas (como agricultura, mas ainda assim parcial e insatisfatório do nosso ponto de vista), e de estabelecimento de normas tentativas em outras áreas. Os países não mudarão muito o seu comportamento obstrucionista, o que é obviamente uma pena, mas é compreensível do ponto de vista político, tendo em vista o quadro habitual nesse gênero de diplomacia.

2. Qual sua opinião sobre a renovação do acordo brasileiro com o FMI e quais as conseqüências que este acordo poderia trazer para o Brasil?
O governo brasileiro, justamente, depois de quatro acordos sucessivos, em 1998, 2001, 2002 e 2003, decidiu, em março de 2005, não renovar, ou não negociar um novo acordo com o FMI, ficando portanto livre das condicionalidades associadas aos acordos precedentes (geralmente relativas ao atingimento de metas fiscais, como o superávit primário no orçamento). Não tenho certeza se teria sido melhor renovar o acordo existente, ou se, como decidido, não extendê-lo ou negociar um novo. Ambas as soluções têm suas vantagens e desvantagens. No caso da existência de acordo, trata-se de uma garantia de linha de crédito em caso de necessidade, como uma nova crise financeira internacional ou uma deterioração sensível das contas externas que colocasse em risco nossa capacidade de pagamento das obrigações externas (juros da dívida, amortização dos empréstimos contraídos, transferências de divisas por pagamento de fatores e outras saídas de capitais).
Por outro lado, as contas externas do Brasil estão relativamente em ordem atualmente, com superávit comercial amplo, o que permite cobrir o déficit crônico dos serviços (e portanto das transações correntes) e outras saídas de capital. Os investimentos diretos estrangeiros também estão sendo retomados, o que é uma garantia adicional. Não havia, assim, necessidade, stricto sensu, de renovação do acordo. Mas, o Brasil ainda possui algumas fragilidades, internas e externas, como a grande dívida pública e a existência de déficit nominal no orçamento, mesmo com acúmulo de superávits primários (que não chegam, entretanto, a cobrir os pagamentos de juros da dívida pública).
Em síntese, um acordo com o FMI pode representar a garantia de saldo disponível, em caso de necessidade, e sobretudo um aval sobre a qualidade das políticas econômicas, mas ele também representa uma espécie de sinal de alerta sobre a fragilidade de nossas contas externas. Em última instância, nós mesmos é que devemos realizar esforços para colocar as contas públicas, sobretudo as internas, em condições de sustentabilidade.

3. Qual o seu posicionamento a respeito da política Externa do Brasil com o atual Presidente?
Trata-se, como o próprio governo proclama, de uma política ativa, de uma diplomacia altiva. Apenas não tenho certeza de que todo esse ativismo se dirige para o lado correto, pois que existe, em substituição à antiga “diplomacia presidencial” do período FHC, uma espécie de “diplomacia partidária”, que mobiliza todas as crenças, valores e princípios de política externa do PT, que não necessariamente tem o melhor julgamento da realidade ou que não necessariamente pratica a melhor política externa de que o Brasil precisa.
Essa política externa “partidária” é feita de um anti-imperialismo instintivo, como corresponde a um partido esquerdista e ainda teoricamente socialista como o PT, de um preconceito contra a globalização e o capitalismo financeiro – como se o PT e mesmo o Brasil tivesse o poder de mudar certos processos existentes no mundo atual – e feita de muitas ilusões quanto à liderança, pelo Brasil, de outros países em desenvolvimento, sobretudo na região mas também no chamado Terceiro Mundo, objetivando mudar o mundo, a região e o próprio Brasil.
O PT e este governo mantêm certas ilusões quanto à mudança no “eixo do poder mundial” e na “geografia comercial do mundo”, como várias vezes proclamado. Para isso, o governo colocou dificuldades em algumas negociações comerciais, sob o pretexto de preservar “espaços nacionais para políticas de desenvolvimento”, que não se sabe bem quais sejam (mas que representam a continuidade do velho estatismo econômico, que já conhecemos tão bem). Não tenho certeza de que essa política feita de ativismo no mundo em desenvolvimento possa representar adequadamente os interesses de uma economia avançada e diversificada como é hoje a brasileira.

4.Comparando a política e o andamento do Brasil com FHC e agora, com Lula, o que o senhor acha que se está levando mais em consideração? Prevalece ainda o pensamento de esquerda e de direita?
Certamente, prevalece, infelizmente, esse maniqueismo de esquerda e direita, o que diga-se de passagem nunca existiu muito dentro do Itamaraty. Pode-se dizer que, em certo sentido, esse pensamento foi introduzido agora, a partir de fora, com a assunção do PT a uma posição predominante na determinação das principais linhas da política externa, o que realmente é uma pena, pois diplomacia ideológica nunca combina bem com o interesse nacional.
No mais, creio a que a diplomacia brasileira tem mais traços de continuidade do que de ruptura, que se exerce mais no estilo do que na substância. Elaborei um trabalho no qual faço uma comparação das duas diplomacias, justamente, cuja referência é: “Um exercício comparativo de política externa: FHC e Lula em perspectiva”, publicado na revista Achegas (Rio de Janeiro: nº 17, 12 de maio de 2004; ISSN 1677-8855; link: http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm), depois expandido para “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Brasília: IBRI, ano 47, nº 1, 2004, ISSN: 0034-7329; pp. 162-184).

Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e o Conselho de Seguranca: um texto de 2005 - Paulo Roberto de Almeida

Um questionário que me foi submetido em 2005; talvez boa parte dos argumentos mantenha ainda validade, por isso posto aqui, unicamente para fins de alimentar o debate.


O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU

Paulo Roberto de Almeida
Respostas a questões colocadas por pesquisador brasileiro;
9 de Fevereiro de 2005

1) Com respeito à postulação brasileira ao assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o sr. acha que o tema ficou enfraquecido na agenda da ONU, daí a falta de insistência no governo FHC, ou o próprio governo convenceu-se de que não teríamos chances? O fato da Argentina, em 1997, ter declarado ser contra a candidatura brasileira tb teria influenciado o discurso brasileiro em trono do tema, de maneira a evitar uma possível crise que prejudicasse o andamento do MERCOSUL. O presidente FHC, chegou a afirmar que "(...) preferia uma boa relação com a Argentina a uma cadeira no Conselho de Segurança."

PRA: Depois de um certo impulso para a reforma da Carta, no momento da derrocada do comunismo, e da constituição de GT especificamente dedicado a essa finalidade, o tema ficou de fato durante vários anos no limbo, provavelmente pelas dificuldades naturais de um processo desse tipo, e não devido ao desinteresse brasileiro pelo tema. O interesse sempre existiu, e vinha sendo concretamente manifestado pelo governo Sarney (que postulou diretamente a candidatura quando compareceu à AGNU em 1988) e reiterado durante o governo Itamar Franco, por iniciativa do então chanceler Celso Amorim (que não mais repetiu a fórmula empregada oficiosamente por Sarney de que o Brasil aceitaria ser membro permanente sem direito de veto). O presidente FHC e em especial o chanceler Luiz Felipe Lampreia davam importância ao tema, mas em face das dificuldades do processo e das próprias limitações intrínsecas brasileiras preferiram não insistir publicamente no assunto. Havia, igualmente, esse “fator Argentina” e o presidente FHC reconheceu publicamente que "preferia uma boa relação com a Argentina a uma cadeira no Conselho de Segurança", como reafirmou ainda em entrevista que me concedeu em maio de 2003 em Washington (consignada no meu trabalho “A relação do Brasil com os EUA: de FHC-Clinton a Lula-Bush”, capitulo 9 (Parte IV: A Inserção Internacional do Brasil) no livro de Fabio Giambiagi, José Guilherme Reis e André Urani (orgs.), Reformas no Brasil: Balanço e Agenda (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004; ISBN: 85-2091-609-0, p. 203-228). Mas, em nenhum momento se pensou que o Brasil “não teria chances”, ao contrário: a não insistência se devia ao fato de que justamente se mantinha a convicção de que, uma vez aberto o processo e dado início ao processo de seleção de um candidato “regional”, a candidatura do Brasil seria praticamente incontornável, mesmo se nunca postulamos, diretamente, uma candidatura “regional”, e sim nosso mérito em bases “universais”. Nossas chances eram dadas inclusive pelo fato de que o México, até a presidência Fox (e ainda assim por insistência do chanceler Castañeda) nunca havia considerado ser candidato. A Argentina se opunha ao Brasil apenas por uma questão de prestígio nacional, não por considerar que mantinha chances reais de vir a ser escolhida. 

2) O envio de tropas para o Haiti, sob a liderança brasileira, contribui ou não para o fortalecimento de credenciais do Brasil a um assento permanente? Desde as missões de paz em Suez e em Angola (UNAVEM), não enviávamos efetivos tão numerosos.

PRA: O envio não foi feito “sob liderança brasileira”, mas sim a pedido e mediante arranjos políticos com EUA e França. A decisão interna, aliás, mais se deveu a articulações de setores do governo (identificados com o Palácio do Planalto e o titular da SECOM, em coordenação com o comandante do Exército), do que a negocições diplomáticas conduzidas pelo Itamaraty.
De fato, esse envio contribui para reforçar o papel do Brasil no processo de discussão sobre questões de segurança, ainda que em escala modesta (já que o Haiti não era um problema de ameaça à comunidade internacional, e sim ao seu próprio povo, em primeiro lugar, em seguida aos EUA, em termos de afluxo maciço de refugiados e boat-people). Trata-se de um teste para nosso envolvimento ulterior em operações de peace keeping, mas a operação também apresenta alguma características de peace making, para as quais talvez não estejamos preparados.
            De certa forma, estamos servindo de linha de frente para os governos da França e dos EUA, que não pretendiam se envolver com operações de características quase policiais e assistencialistas. Em suma, não houve um planejamento muito bem feito sobre a extensão, as implicações e as consequencias de nosso envolvimento e tudo foi feito em beneficio do prestigio e para apoiar essa campanha por uma vaga permanente no CSNU.

3) Com respeito à postulação brasileira por um assento no pós-II guerra, mesmo após várias leituras de textos que reuni, ainda, não ficou claro se a candidatura partiu por uma iniciativa brasileira ou se, depois dos EUA cogitarem a possibilidade, o Brasil passou a articular-se com mais ênfase?

PRA:   O Brasil por certo mantinha essa ilusão, aliás desde a Liga das Nações, de vir a integrar o inner circle dos países responsáveis em escala mundial. A postulação preliminar existia, e pode ter sido veiculada talvez por Vargas a Roosevelt, diretamente, mas a candidatura só se tornou mais factível quando o Secretario de Estado assistente Stettinius, de passagem pelo Brasil (no início de 1945, creio), acenou com essa possibilidade, e por isso pediu que o Brasil reconhecesse a URSS e estabelecesse relações diplomáticas. Mas, tanto a URSS como o Reino Unido se opunham a que o Brasil ingressasse no CS, quando nem a própria presença da França estava garantida. Existem menções a essas conversações nos papéis diplomáticos americanos.