O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Hipolito Jose da Costa, o primeiro estadista brasileiro - Paulo Roberto de Almeida

Coloquei no meu Facebook, temporariamente, a foto do primeiro jornalista, e para mim o primeiro estadista brasileiro, a despeito de jamais ter residido no Brasil depois de formado em Coimbra, ainda jovem, porque escrevi um artigo sobre ele, justamente com essa qualificação, uma vez que deve demorar mais algum tempo antes que o artigo seja publicado.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 3 de outubro de 2018

3317. “Hipólito da Costa: o primeiro estadista do Brasil”, Brasília, 8 agosto 2018, 25 p. Artigo sobre o primeiro jornalista independente do Brasil como homem de Estado, para a revista 200, do projeto Bicentenário, sob editoria do embaixador Carlos Henrique Cardim.

Hipólito da Costa: o primeiro estadista do Brasil

Paulo Roberto de Almeida
Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag


O primeiro americanista brasileiro: o Diário da Viagem para a Filadélfia (1799)
Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774-1823), antes de se tornar o criador, redator, editor e publicista do Correio Braziliense – o “armazém literário” que ele solitariamente redigiu, publicou e distribuiu, ao longo de quase três lustros, a partir da Inglaterra, entre 1808 e 1822 –, foi também uma espécie de Tocqueville avant la lettre, um verdadeiro founding father do americanismo brasileiro, um pioneiro nessa tribo extremamente rara dentre os estudiosos brasileiros da grande nação americana. Uma geração antes que Tocqueville publicasse, em 1835, o seu imediatamente famoso De la Démocratie en Amérique, e alguns anos antes de se estabelecer na Inglaterra, fugindo da Inquisição portuguesa, e de ali editar o seu Correio Braziliense, Hipólito deixava registrado, num diário, ao cabo de uma “viagem de instrução” aos Estados Unidos (1798-1799), suas precoces observações sobre a nascente democracia americana ao tempo dos primeiros dois presidentes. Elas, no entanto, permaneceram inéditas por um século e meio, até que o texto original fosse localizado por Alceu Amoroso Lima no catálogo da biblioteca de Évora, que o fez publicar pela Academia Brasileira de Letras.[1]
Em sua viagem – recém egresso de Coimbra na condição de “bacharel formado em leis”, como se apresentou numa publicação de 1800, e colocado “a serviço de Sua Alteza Real” pelas mãos de d. Rodrigo de Souza Coutinho, o grande estadista da crise portuguesa no decorrer das guerras napoleônicas –, Hipólito não se contentou em seguir as instruções de Coutinho, no sentido de “adquirir conhecimentos sobre a preparação de diversas culturas e espécies não cultivadas” (Dias, p. xxxvi), e buscou informar-se amplamente sobre a “administração pública, preocupando-se com a agricultura, o comércio, a gestão financeira e as práticas industriais”.[2] Ele também trata, nessas suas notas, “da descrição de algumas cidades com seus diversos tópicos de estrutura urbana (traçado das ruas, plantas de edifícios, transportes, abastecimento de água, seguros, incêndios); do levantamento hidrográfico (rios, pontes, navegação fluvial) e climático (temperatura, umidade, insolação, pluviosidade) das regiões onde passava; ou mesmo do inventário de comportamentos éticos e religiosos, dos hábitos alimentares e das vestimentas do povo americano”.[3]
As instruções de Linhares eram no sentido de se obter as informações as mais detalhadas possíveis sobre todos os progressos havidos na América do Norte no terrenos das artes práticas, das culturas agrícolas e dos ofícios ligados ao fabrico e manufatura de bens em geral, complementando a missão pelo encargo de recolher as espécimes e variedades de plantas e cultivos que se pudessem aproveitar em Portugal e na colônia brasileira. Nos Estados Unidos atenção especial deveria ser dada ao cultivo do tabaco, então concentrado em Maryland e na Virgínia, ao passo que no México, ademais de observar as minas de ouro e prata, a instrução essencial era a de lograr subtrair o inseto e a planta da cochinilha, iludindo a vigilância rigorosa das alfândegas espanholas. De tudo, Hipólito deveria mandar relatórios circunstanciados, o que ele obviamente fez de maneira rigorosa, ao despachar notícias teóricas e comentários práticos sobre tudo o que viu e ouviu em sua longa estada naquelas partes, nos anos finais do século XVIII.
Essa missão nos Estados Unidos comportava, portanto, um caráter sobretudo técnico, mais do que de prospecção de mercados ou de incentivo ao comércio. Tratava-se de levantar os recursos naturais e apreciar os conhecimentos científicos que a jovem nação da América do Norte mobilizava em sua marcha ascensional para o progresso econômico. Em outros termos, o encargo comportava também aspectos que hoje em dia poderiam ser equiparados à “espionagem industrial ou tecnológica”, em etapa histórica na qual os direitos de propriedade intelectual não desfrutavam da mesma proteção legal como posteriormente. O futuro “pai da imprensa” estava amplamente habilitado para fazê-lo, uma vez que, ademais dos conhecimentos práticos aprendidos em sua vida de fazenda no Rio Grande, tinha sido formado em outras matérias que simplesmente a filosofia e o direito. Os estudos de filosofia em Coimbra comportavam, precisamente, o ensino de botânica, agricultura, zoologia, mineralogia, física, química e mineralogia, artes e disciplinas nas quais também se destacava o futuro “pai da independência”, José Bonifácio, frequentador das academias europeias.
Nos Estados Unidos, Hipólito teve de, algumas vezes, fazer-se de diplomata, mesmo sem autorização ou diploma legal, por motivo da ausência do representante português, ministro Cipriano Ribeiro Freire. Mais importante do que esse exercício episódico de diplomacia, de fato mais bem em encargos consulares, foi a provável adesão de Hipólito, nessa estadia, à maçonaria, possivelmente mais relevante na determinação de seu futuro destino político do que a missão de “espionagem industrial” pela qual iniciava sua vida profissional. Em todo caso, sua prospecção técnico-científica na América do Norte poderia ser também aproximada de uma missão de diplomacia econômica, não no sentido negocial, mas no de uma “embaixada” voltada para a informação a mais ampla possível sobre as capacidades naturais e os atributos humanos de uma potência amiga, como forma de habilitar a sua pátria (e a sua terra de formação) a competirem em melhores condições no grande jogo econômico das indústrias e do comércio que Linhares adivinha formavam a base da potência das nações.
Nessa missão Hipólito conheceu artesãos, cientistas e agricultores, ademais do futuro, Thomas Jefferson, e do então presidente dos Estados Unidos, John Adams, cuja informalidade e falta de protocolo surpreenderam um pouco o súdito de uma monarquia absoluta, rigorosa com o cerimonial. Seu “diário de viagem” não é uma simples coleção de observações naturalistas e agrícolas, pois que Hipólito tece considerações extensas sobre as religiões dos americanos e, mais importante, sobre questões econômicas e monetárias. Não deixou de notar a preferência dos americanos pelo comércio, mais que pela agricultura, e o seu gosto acentuado pela especulação, sendo o dinheiro um valor absoluto naquela sociedade. Já naquela época, os bancos emprestavam facilmente, acima das posses reais, animando os empreendimentos e facilitando as especulações mercantis, muito embora no interior do país a falta de dinheiro condenasse os produtores muitas vezes ao escambo. Ele observou, também, as tendências a falências abruptas e a uma mobilidade excepcional nos negócios, traços que ainda hoje marcam a modalidade peculiar do capitalismo americano.
Os Estados Unidos do final do século XVIII estavam obviamente longe de se constituírem em uma sociedade industrial e, de fato, eles se tornaram a primeira potência econômica do planeta apenas no final do século XIX, quando ultrapassaram o volume da produção industrial combinada da Grã-Bretanha e da Alemanha. Naquela conjuntura, os fluxos de comércio, as inovações técnicas e as finanças internacionais ainda eram dominados pelos países mais avançados da Europa, mas o “modo inventivo” americano já exibia todas as características sociais e financeiras que converteriam o país de uma sociedade agrária em potência industrial. Ainda que não descritas com tal estilo “sociológico” em seu diário de viagem, essas características empíricas da sociedade americana – mais do que qualquer teoria econômica ou doutrina comercial, das quais os EUA continuariam, aliás, sendo importadores líquidos pelo resto do século XIX – devem ter impressionado a mente do jovem Hipólito, determinando muito de suas reflexões pragmáticas posteriores sobre os problemas econômicos, comerciais e monetários “brazilienses”.
O diário de viagem de Hipólito constitui, provavelmente, a primeira obra sobre os Estados Unidos escrita do ponto de vista de um observador do Brasil, preocupado em trazer para a colônia lusitana da América as espécies vegetais e animais e aqueles melhoramentos técnicos que julgava poder contribuírem para o engrandecimento de sua pátria de origem.[4] Pode-se, portanto, legitimamente enquadrar Hipólito na condição de primeiro americanista brasileiro, ao ter ele desenvolvido ideias, tirado lições, formulado propostas e consolidado posturas que orientariam, no plano intelectual, seu trabalho maduro desenvolvido oito anos depois nas páginas do Correio Braziliense. Hipólito não foi como José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, um teórico da economia,[5] muito embora não tenha repugnado a entrar em considerações doutrinárias em seus muitos escritos posteriores da fase do Correio. Ainda antes, e à volta de sua missão americana, ele verteu para o Português, em 1801 e provavelmente sob a sugestão de Linhares, a História do Banco da Inglaterra, de E. Fortune, e os Ensaios econômicos e filosóficos de Benjamin Rumford.[6] D. Rodrigo, que nessa época era ministro da Fazenda e presidente do Erário, o envia nesse ano à Inglaterra e à França, para “adquirir livros, máquinas e outros materiais para a Imprensa Régia”.[7] Esse tipo de literatura, muito voltada para as condições econômicas concretas do país mais avançado, então, no plano industrial, e, sobretudo, sua missão anterior aos Estados Unidos é que devem ter constituído a base do conhecimento empírico e teórico de Hipólito sobre questões econômicas e comerciais, manancial de conhecimento que sustentariam, durante anos, as páginas mais relevantes do Correio Braziliense, ao lado das simples notas sobre fatos, personagens e processos políticos e econômicos, em sua verdadeira crônica sobre os eventos correntes que constituíram os números sucessivos do primeiro jornal independente de uma imprensa “brasiliense”.

De adepto da maçonaria, preso pela Inquisição, a fundador da imprensa livre
Em qualquer hipótese, pouca oportunidade restou a Hipólito, depois de sua primeira missão à Inglaterra, de aperfeiçoar suas leituras em questões econômicas, uma vez que três ou quatro dias após sua volta foi preso em sua casa, numa nova demonstração da intolerância da Inquisição portuguesa para com os suspeitos de maçonaria.[8] A publicação, em 1804, dos Princípios de Economia Política, de José da Silva Lisboa, o primeiro economista brasileiro, ainda encontraria Hipólito na prisão, de onde ele sairia apenas no ano seguinte, para viajar imediatamente e clandestinamente para a Inglaterra. “Só na Inglaterra”, escreve Sergio Goes de Paula, Hipólito
... poderia exercitar seus talentos, não apenas por estar no centro do mundo comercial de então, mas também pelo fato de lá se encontrar a salvo da política e das classes dominantes portuguesas: ele conseguira o título de denizen, denominação que na Inglaterra designa um estrangeiro admitido a certos direitos”.[9]

Foi na Grã-Bretanha – seu refúgio nos 17 anos seguintes e onde empreenderia o ato fundador da imprensa “brasiliense” – que Hipólito continuaria sua obra de tradutor e de comentarista das atualidades nacionais (portuguesas e brasileiras) e internacionais. Ele foi um compilador das coisas práticas da vida econômica, política, científica e literária, geralmente sob a forma mais usual da transcrição de documentos oficiais, mas muitas vezes fazendo ele mesmo pequenas resenhas e comentários pessoais, alguns não assinados ou então colocados sob pseudônimo.
Esse ativismo literário e jornalístico do novo exilado português da Inquisição não se refletiu todavia de imediato na vida de Hipólito, que ainda passa perto de três anos como tradutor e professor e em diversas atividades comerciais e de intermediação – quase que de subsistência, poder-se-ia dizer – antes de se lançar na grande aventura de sua vida, a do “Armazém Literário”, que o consagraria, na história do Brasil, como o primeiro jornalista independente do país, mesmo que ele jamais tenha voltado a colocar os pés na sua pátria de origem. Foi Napoleão quem o tirou da modorra e lhe deu a grande oportunidade de se afirmar como homem de ideias e como crítico das políticas oficiais. De fato, não fosse a invasão napoleônica de Portugal talvez não tivéssemos tido o empreendimento “literário” que marcou, mais que qualquer outra folha, gazeta ou pasquim, as políticas domésticas e internacionais de Portugal e do Brasil, durante os quase 14 anos de residência da corte portuguesa no Rio de Janeiro.[10]
O Correio foi lançado mensalmente publicado ininterruptamente, até dezembro de 1822, num total de “175 fascículos, com 123 páginas em média, constituindo 29 volumes e totalizando a coleção, 21.525 páginas”.[11] O preço da cada exemplar, assim como o custo total da produção e distribuição não eram irrisórios, como informa ainda Goes de Paula:
O exemplar custava no Rio de Janeiro, ao tempo da Independência, 1.280 réis – uma exorbitância, quase o preço de uma arroba de açúcar mascavo colocado no porto de Londres em 1808. (p. 18)

O Correio foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no controle das autoridades (e também diplomaticamente), do que como arauto ou porta-voz  de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das ideias democráticas da Revolução francesa que muitos gostariam de ver. Como diz Mecenas Dourado, “na realidade, não era ele senão um discípulo do liberalismo inglês, partidário, em política, da monarquia limitada e repelindo as tendências revolucionárias e democráticas da igualdade rousseaunista”.[12] Não parece deslocado afirmar que, nesse terreno, ele ostentava o mesmo pragmatismo e bom senso que o caracterizavam na área política, combinando um liberalismo de princípio quanto ao exercício das atividades econômicas e comerciais, não repugnando, quando fosse o caso, a aplicação de algumas medidas “industrializantes” (avant la lettre), como tinha observado nos Estados Unidos.
Confirmando sua preeminência na atividade jornalística de Hipólito, a seção sobre política sempre foi mais imponente do que a parte comercial nas páginas do Correio. Ocorria frequentemente, também, que muitos instrumentos econômicos ou comerciais relativos à situação brasileira e dignos de registro em seu periódico eram por ele transcritos na seção “miscelânea” do Correio, por vezes em meio a comentários sobre eventos ou decretos de natureza essencialmente política, o que confirmaria não apenas a confecção por vezes literalmente artesanal do seu “armazém literário”, como poderia indicar igualmente o recebimento irregular dos papéis vindos da corte do Rio de Janeiro.[13] De resto, tudo era político naqueles tempos conturbados de supremacia napoleônica e de imposição crua da hegemonia inglesa, mesmo um simples acordo comercial ou um tratado de navegação. A abertura do número inaugural do Correio Braziliense (1808) traz a sua profissão de fé no trabalho do jornalista independente, ao mesmo tempo em que constitui um verdadeiro programa de trabalho e uma reafirmação dos sólidos princípios que devem guiar a atividade dos “redatores de folhas públicas”:
O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um deve, segundo suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral de uma sociedade, vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha tiram das trevas da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar, com evidência, os conhecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas, quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado, e as sólidas conjecturas sobre o futuro.  [...]
Levado destes sentimentos de patriotismo, e desejando aclarar os meus compatriotas sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa, empreendi este projeto, o qual espero mereça a geral apreciação daqueles a quem o dedico. (Correio Braziliense, I, 3, 1808)

Ele tinha plena consciência de que seu trabalho só seria possível na Inglaterra:
... propusemo-nos a escrever em Inglaterra para poder, à sombra de sua sábia lei, dizer verdades que é necessário que se publiquem, para confusão dos maus e esclarecimentos dos vindouros, verdades que se não podiam publicar em Portugal e nunca nos perdoaríamos a nós mesmos se omitíssemos o comunicar aos portugueses... (IV, 1810, 211-2)

As razões para isso eram claras, na linha do que já tinha escrito na abertura:
Todo indivíduo particular que se esforça, pelos meios que tem ao seu alcance, para ilustrar e instruir seus compatriotas nas verdadeiras ideias de governo e nas formas que mais podem contribuir para a felicidade pública, faz um bem real à sua nação, porque são essas medidas outros tantos passos para os melhoramentos que se desejam introduzir. (IV, 1810, 313-4)

Mais adiante, refletindo sobre os destinos do Brasil a partir de sua modesta oficina londrina, ele não hesitava em apontar os caminhos que se abriam à nação que passava a acolher a corte metropolitana, que ele julgava que deveria aperfeiçoar-se na melhoria dos costumes e da moral pública, assim como empenhar-se imediatamente em livrar-se da nódoa do tráfico e do opróbio da escravidão:
…o povo que deseja ser livre e feliz cuide de assegurar com suas virtudes próprias essa liberdade, e essa felicidade que deseja, porque enquanto se esperançar noutras nações, para gozar esses bens, será escravo, será infeliz. Não dispute sobre a forma de governo, reflita no modo de melhorar seus costumes. Um povo sem moral, se não tem liberdade, nunca a obterá; se a tem certamente a perderá. (XXIV, 1819, 27)

E, ainda mais adiante, vinha a recomendação peremptória:
Os brasileiros devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a escravatura. (XXIX, novembro de 1822, p. 574)

A terrível mancha persistiria ainda por muitos e muitos anos depois da morte de Hipólito, e mesmo de seu amigo e parceiro de ideias, José Bonifácio de Andrada e Silva, que na sua representação sobre a escravatura à Assembleia Constituinte de 1823 refletia muitas das ideias que já se encontravam refletidas nas páginas do Correio Braziliense. [14] Em sua modesta condição de redator de uma folha pública, não se deve hesitar em classificar o futuro “patrono da imprensa” no Brasil como tendo sido, igualmente, o “primeiro estadista” do Brasil, a despeito mesmo do fato que Hipólito jamais voltou a viver no Brasil, desde seus estudos superiores, durante toda a sua vida madura, dele nunca ter exercido cargos públicos vinculados à sua terra natal, e ter tido muito poucas chances, senão através de sua pluma crítica e acerada, de influenciar quaisquer políticas da Coroa portuguesa, e ainda pelo fato de ter permanecido, até praticamente a independência, um partidário do Reino Unido, como talvez também era José Bonifácio, fossem outras as circunstâncias criadas após a revolução do Porto e pelos trabalhos das Cortes de Lisboa.
Ele não se opôs, terminantemente, à constituição de um Estado brasileiro, apenas se pronunciava pela unidade do Império, vendo o Brasil como o centro de uma grande unidade de propósitos entre as diferentes partes dos imensos domínios marítimos de Portugal, a base provável de uma nação espalhada em vários continentes, podendo colocá-la quase em igualdade de condições com outros impérios existentes ou em formação. Quando esse Estado se constituiu de forma autônoma ao governo de Portugal, evolução, aliás, à qual ele não se opôs de maneira definitiva, ele estava pronto para servir à nova nação, mesmo na condição meramente instrumental de cônsul na Grã-Bretanha, início provável de uma carreira de estadista que o teria levado de volta à terra natal. A morte colheu-o precocemente na capital londrina e seus projetos para o novo país – ainda expressos em cartas a Bonifácio nos últimos meses de vida – foram legados ao esquecimento de mais de um século.
Pela força de sua atividade como jornalista, pelo vigor de seus argumentos, pela clareza de suas posições, expressas nas milhares de páginas do Correio Braziliense, pelo contributo geral dado pelo seu “armazém literário” ao longo de 14 anos, relevante no plano intelectual e dos valores, tanto quanto no das atitudes e políticas, Hipólito foi, sem sombra de dúvida e de pleno direito, o primeiro estadista da nação “braziliense”, como ele gostava de se referir aos compatriotas nascidos em solo brasileiro. O fato de que ele não tenha podido exercer-se plenamente como cidadão brasiliense, e a partir daí como um construtor da nação, a exemplo de outros pais fundadores, não lhe deveria retirar em nada o título que sua contribuição intelectual certamente lhe assegura de pleno direito. Basta percorrer as páginas do “armazém literário” para certificar-se disso.
Um ano antes do controverso tratado de comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha, Hipólito já manifestava seu ceticismo quanto aos interesses reais do ponto de vista do Brasil, com argumentos que poderiam ser classificados como de “política industrial”. Escrevendo em 1809, ao saber dessas tratativas, ele assim se manifestou:
Um tratado de comércio entre o Brasil [sic] e a Inglaterra é uma das mais delicadas empresas em que pode entrar o Brasil, porque o negociador brasiliense não tem precedentes que o guiem. Os tratados que existiam entre a Inglaterra e Portugal eram fundados nos interesses mútuos de exportação dos artigos portugueses de grande consumo na Inglaterra, tais o vinho, o azeite etc., e na situação política daquele pequeno Reino, que, ameaçado constantemente por seus vizinhos, se via obrigado a solicitar a proteção da Inglaterra, ainda à custa de pesados sacrifícios. Estas duas razões cessam agora porque os produtos principais do Brasil estão longe de terem grande consumo em Inglaterra, que nela são proibidos, por causa da competência [concorrência] em que se acham com as colônias britânicas; e quanto à situação política do Brasil, este imenso território acha-se de tal maneira isolado pela natureza, que nenhuma potência lhe pode meter susto, nem causar prejuízos consideráveis, salvo a Inglaterra, embaraçando-lhe o comércio. De onde se segue que, faltando os dois princípios (do interesse mútuo e do temor) que originaram as principais estipulações dos tratados de comércio entre Portugal e Inglaterra, não podem aqueles servir de norma a este tratado do Brasil. (Correio Braziliense, II, n. 9, fevereiro 1809, p. 129-30)

Concluído o acordo, Hipólito analisou o tratado de 1810 não apenas com sua tradicional perspicácia e rigor pelo detalhe, mas também com seu conhecimento muitas vezes pessoal dos próprios negociadores e suas posturas respectivas em relação aos interesses ingleses em Portugal e no Brasil; seus argumentos expressos nas páginas do Correio balizaram praticamente a maior parte da historiografia subsequente. Oliveira Lima, por exemplo, apoiando-se extensivamente em Hipólito, afirmou:
As condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico, cuja situação privilegiada na metrópole era consagrada na nossa esfera econômica e até se consignava imprudentemente como perpétua. A falta de genuína reciprocidade era absoluta e dava-se em todos os terrenos, parecendo mesmo dificílima de estabelecer-se pela carência de artigos que se equilibrassem nas necessidades do consumo, sendo mais precisos no Brasil os artigos manufaturados ingleses do que à Inglaterra as matérias primas brasileiras. Dava-se ainda a desigualdade na importância que respectivamente representavam suas exportações para os países produtores, constituindo a Inglaterra o mercado quase único do Brasil, ao passo que aquela nação dividia por muitos países os seus interesses mercantis.[15]

Em outros termos, Hipólito, pela agudeza de suas observações críticas, sobre cada um e todos os atos do “governo do Brasil”, pautou os termos dos debates posteriores em torno dos reais interesses do país nos temas de relações econômicas internacionais e de políticas setoriais – indústria, comércio, agricultura, etc. –, todavia bem mais na fase independente, do que durante a presença de D. João no Brasil.

Hipólito, humanista pragmático: fim do tráfico, emigração de judeus para o Brasil
A despeito de uma concentração no tema das revoluções latino-americanas de independência e, sobretudo, nos assuntos relativos ao Brasil, estes não eram os assuntos exclusivos que ocupavam a atenção e os cuidados de Hipólito no seu “armazém”. Suas preocupações com a construção da nação, não se atinham apenas aos aspectos políticos e institucionais relativos ao que ele precocemente chamava de “governo do Brasil” – que ele preferia, obviamente, que fosse sob a forma de uma monarquia constitucional –, mas se estendiam igualmente à configuração do próprio povo, ou seja, a formação da nacionalidade. Múcio Leão, na introdução à edição de 1955 (Academia Brasileira de Letras) do diário da viagem à Filadélfia, ressalta o aspecto humanitário, mas sobretudo pragmático, de seus argumentos:
Palavra frequente do seu apostolado é a defesa das duas raças mais frágeis que serviram para a formação da nacionalidade brasileira – a do índio e a do negro. Hipólito confrange-se ante a política de destruição com que o Brasil faz desaparecer o índio e confrange-se ante a escravidão que criamos para o negro. Mostra que um país que possui escravos só pode possuir uma mentalidade de escravo. E põe os brasileiros neste duro dilema: ‘Os brasileiros devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a escravatura.’ (Correio Braziliense, XXIX, 574)[16]

Como José Bonifácio, ele pretendia para o Brasil a imigração de agricultores europeus, os mais adequados à conformação de uma economia próspera baseada na agricultura, que ele considerava, racionalmente, como era o caso de Cairu igualmente, como a grande vantagem comparativa do país no contexto mundial, numa demonstração de adesão involuntária e precoce às teses ricardianas sobre o comércio internacional. Nisso ele não deixava tampouco de expressar as concepções típicas de sua época sobre as vantagens e desvantagens do afluxo de escravos africanos para o Brasil:
Temos por várias vezes indicado a necessidade que há de procurar ao Brasil uma população tirada das nações europeias; e isto para fins morais, políticos e físicos; porque, a não obrar assim, a raça portuguesa se estragará totalmente com a mistura, tão comum no Brasil, com os negros africanos, cuja compleição e figura viciam o físico das gerações mistas, e cujos costumes devassos e moral estragada pelos maus hábitos inerentes à condição de escravos, servem de um exemplo fatal à mocidade, que com eles se cria nos seus mais tenros anos, e adquire assim péssimos costumes, que de tal modo se arraigam, que duram depois por toda a vida.” (XVIII, 159)

A despeito da prevenção quanto à “mistura” racial, que se estenderia ainda durante várias décadas – inclusive consolidada em obras de “cientistas” respeitados ao longo do século XIX, como o conde de Gobineau, ministro de Napoleão III junto à corte de D. Pedro II,[17] continuada em escala tragicamente ampliada no decorrer da primeira metade do século XX – o cuidado de Hipólito se prendia a razões de ordem eminentemente prática, ou seja, a capacitação adequada da agricultura brasileira e a seleção do elemento humano melhor preparado para modernizar a economia muito atrasada da nação sul-americana. Como verdadeiro humanista, ele colocava seu interesse em todas as questões que lhe pareciam dignas de serem refletidas nas páginas do seu “armazém”. Sem qualquer aproximação conhecida aos judeus, sendo um membro esclarecido da maçonaria, ele refletiu, precocemente, sobre perseguições que, na Alemanha de 1819, se faziam aos membros dessa “raça”, retirando desses episódios algumas lições para o “governo do Brasil”. Refletindo os sobre ataques a judeus – “vergonhosos atos de opressão” – que se faziam em diversas cidades do país, ele especula sobre se esses atos “eram execução de algum plano concertado”, alinhando as possíveis razões religiosas, políticas ou “comerciais”:
Conjecturando as causas de tão inesperada perseguição, custa a atirar com alguma razão suficiente de tal fenômeno? Será ódio contra a religião dos Judeus, diferente da maioridade dos habitantes dos países, aonde eles residem? Será isto efeito das agitações políticas, que existem na Alemanha? Será efeito da rivalidade do Comércio?
Quanto à diferença de religião, as perseguições por esta causa são diametralmente opostas às ideias tolerantes do nosso século, como tem acontecido em todos os tempos e em todos os países, em que as luzes tem efeito esconder o fanatismo. Os poucos religiosos furiosos, que ainda existem, e que desejariam propagar os seus princípios pelo ferro e fogo, como os Maometanos, ou como a Inquisição, ano se atrevem a propor hoje em dia tais planos, que os faria objeto do desprezo público. Em uma palavra, estas perseguições da Alemanha, nem se quer mencionam a diferença de religião, como causa acidental.
Quanto a causas políticas, os Judeus, há muitos séculos, vivem nos diferentes Estados da Europa, como estrangeiros, a quem se não permite exercício algum ativo dos direitos de cidadão, nem empregos públicos; sendo meramente protegidos pelas leis, como pessoas de uma residência temporária: com esta mera faculdade de existir, se tem eles contentado, satisfeitos de que os deixem seguir, na obscuridade, as práticas de sua religião. As mais atrozes e injustas perseguições, não tem oposto senão a paciência e o retiro. Não é logo possível atribuir agora estes seus novos males, a inimizades políticas, em que não consta, que eles tenham a menor parte.
Resta, pois, a rivalidade mercantil, a que alguns escritores imputam os atuais sofrimentos dos Judeus, supondo que as suas riquezas e a sua indústria tem excitado a inveja dos mais negociantes Alemães. Não se pode negar a possibilidade desta hipótese; mas nem ainda nela achamos razão cabal, para explicar o mal em toda a sua extensão. (CB, XXIII, jul.-dez. 1819, p. 314-315)

Refletindo sobre a desastrosa experiência histórica da expulsão dos judeus da península ibérica, três séculos antes, e sempre interessado nos benefícios que novas oportunidades de criação de riquezas em quaisquer outros países pudessem representar para o Brasil, Hipólito especula então sobre a eventualidade da transferência dessa comunidade para seu país natal, concluindo, no entanto, que os preconceitos existentes entre os conselheiros do Rei inviabilizariam tal hipótese:
As riquezas dos Judeus, assim como as de todo o outro capitalista, que não tem outra pátria senão aquela em que reside deve redundar em beneficio do país, dando emprego a muitos habitantes, e servindo de produzir novas riquezas. Logo o ódio contra as riquezas dos Judeus, seria dirigido contra o beneficio, que delas resulta a toda a Sociedade: um ou outro negociante individual poderia entreter este ódio contra o rico negociante Judeu e seu vizinho, pelo espirito de rivalidade; mas isto não se podia estender a toda a populaça; nem abranger tantas cidades, desde a margem do Reno até Copenhague, como são aquelas por que esta perseguição se tem difundido.
Suponhamos que os Judeus Alemães se retiravam, com seus haveres, daqueles países em que são perseguidos: nesse caso, não só a população sofreria, mas a falta de seus capitães traria a ruina a muitas fábricas, e até a mesma agricultura; como bem palpavelmente se experimentou em Portugal, que com a expulsão dos Judeus, perdeu os seus cabedais, e estes foram enriquecer a Holanda, tornando-se ali rivais e ao depois inimigos dos capitais e comércio de Portugal. Daqui concluímos, que a generalidade desta perseguição se não explica pelo ódio contra as riquezas dos Judeus, pois elas são de grande beneficio aos países, em que eles residem.
O Governo do Brasil está ainda muito atrasado em princípios de política, para que julguemos, que ele saiba tirar partido desta perseguição dos Judeus na Alemanha. Mas suponhamos, que El Rey podia vencer os prejuízos [preconceitos] de seus Conselheiros, e da parte ignorante do Clero, e que, por meio de boas leis abria no Brasil um asilo seguro a todos os perseguidos Judeus da Alemanha. A emigração, não só importante em número, levaria ao Brasil um imenso capital, que seria bastante para fazer aparecer as produções daquele fértil país; e que precisa de novos capitais, para os avanços de fundos necessários em limpar as terras, lavrar as minas, abrir as comunicações, etc.
Quaisquer, pois, que fossem as causas destas perseguições dos Judeus, a Alemanha perderia um imenso fundo de riquezas, que se transferiria ao Brasil. Mas disto, pela razão que demos acima, não tem a Alemanha, que se temer. (idem, p. 315-317)


O Correio Braziliense nos albores do movimento de independência
O valor dos materiais transcritos e comentados no Correio Braziliense assume ainda maior importância para um debate bem informado sobre os rumos do Brasil no contexto das revoltas contra a dominação espanhola nos países vizinhos, nos anos imediatamente anteriores à independência. Como bem resume Sergio Goes de Paula:
Em seu conjunto, o jornal é uma obra extraordinária. Poucas vezes se vê uma exposição tão clara dos fatos políticos ocorridos nesses anos fundamentais para a formação da nação brasileira, e, entre os contemporâneos, nada a ele se compara. Apesar de escrito muito depois dos acontecimentos, e de falar de Portugal, da América Espanhola, do Brasil, a partir da Inglaterra, o jornal às vezes tem algo de reportagem de guerra, de texto escrito no calor da refrega que, quase 200 anos depois, ainda nos captura. É espantoso ver como foi bem resolvido o grave problema de se informar a tempo sobre o que ocorria em terras tão longínquas: aqui e ali vislumbra-se a rede de informantes a trazer notícias, capitães e comerciantes que faziam a rota Inglaterra-Portugal-Brasil, correspondências de muitos lugares e de muitas pessoas, leituras de todos os jornais importantes. Seu autor é, sem dúvida, um esplêndido jornalista que sabia muito bem vencer o tempo e o espaço em busca da informação. (p. 17)

Acompanhando atentamente a marcha dos acontecimentos no Brasil desde a partida de D. João e a assunção de D. Pedro como príncipe regente, Hipólito não deixa de recomendar importantes mudanças quanto à forma de melhor governar o Brasil, sobretudo em face das muitas conexões da Bahia com Portugal, aquela comunicando-se diretamente com as Cortes em Lisboa. Ele não deixa de repetir sua já avançada sugestão de que a nova capital do país deveria se situar em algum ponto do interior:  
A distância em que o Brasil se acha da Europa faz mui dificultoso que aquelas províncias se possam governar exatamente com a mesma forma de administração das de Portugal; mas o ciúme de uma províncias a respeito de outras é a verdadeira causa por que a Bahia quer antes estar sujeita a Lisboa do que ao Rio de Janeiro. (...)
Mas se é que o Brasil tem de ter um governo geral, a cidade do Rio de Janeiro é mui imprópria sede para tal governo. O Rio de Janeiro está quase em uma extremidade do Brasil, e é absurdo fazer ir um recurso do Pará ao Rio, ou uma ordem do Rio ao Pará, navegando contra vento e maré, quando a comunicação com Lisboa é tanto mais fácil.
(...)
Se o Brasil deve ter um governo geral, e não duvidamos que ele seria de grandíssima utilidade ao melhoramento daquele país, deveria esse governo existir em um ponto central, fosse ou não em lugar desabitado presentemente; porque a sede do governo, a abertura de estradas desse lugar para os principais portos de mar etc. em breve faziam populoso esse território. (Correio, XXVII, n. 159, agosto de 1821, pp. 159-60)

Confirmando, então, sua posição de que Brasil e Portugal deveriam permanecer unidos, ele volta a preconizar um entendimento em torno dessa nova organização:
Nem nos faz dúvida que um plano dessa natureza [a mudança da capital] pudesse inspirar interesses no Brasil opostos aos de Portugal; porque a prosperidade do Brasil será sempre de recíproco proveito a Portugal, e se isto desse origem a uma subdivisão de patriotismo, nem assim o julgaríamos desacertado. É preciso evitar as rixas de uma província com outra que levam aos feudos e oposições; mas pode bem deixar-se obrar o espírito de rivalidade, que sendo conduzido por um governo sábio, excita o patriotismo, e esporeia a indústria. (idem, p. 162)

No mês de setembro seguinte, Hipólito, a despeito de sua discordância com várias medidas cogitadas nas Cortes, ainda proclamava sua confiança na manutenção da unidade, manifestando que essa era uma condição de manter a liberdade lá e no Brasil:
Que a maioridade do Brasil deseja continuar em sua união com Portugal é o que se manifesta pelas declarações de todas as cidades capitais de províncias, que sucessivamente foram reconhecendo o sistema constitucional; e contudo, pode muito bem haver, e sabemos que há, algumas pessoas que julgam ser chegado o tempo do Brasil se separar da sua antiga metrópole. Este partido, porém, o julgamos por ora pequeno; e os que desse partido forem sinceros facilmente se convencerão que vão errados: os outros que obrarem assim por motivos menos honrosos do que a persuasão de que obram a favor de sua pátria não merecem que se argumente com eles.
(...)
A nossa decidida opinião vai exatamente de acordo com a desta maioridade do Brasil; porque se o Brasil tem de ser um dia independente da Europa, nada lhe pode ser mais conveniente do que ir de acordo e em união com Portugal, até que ambos tenham conseguido estabelecer as suas formas constitucionais de governo; porque se antes disso se desunirem, seja por que pretexto for, o partido despótico [ou seja, os conservadores que desejavam a continuidade de uma monarquia absoluta] achará fácil meio nessa desunião de os vencer a ambos separadamente e calcar aos pés a liberdade nascente. (Correio, XXVII, n. 160, setembro de 1821, pp. 234-35)

Alertando contra qualquer decisão das Cortes de mandar tropas ao Brasil – “pela bem pensada razão de que não é pela força, mas pela opinião, que se deve manter e fortificar a integridade e união de todas as partes da monarquia”– Hipólito terminava essa sua peroração deixando bastante clara qual era sua posição a respeito:
Quando, porém, as decisões das Cortes forem tais que ataquem a união da monarquia, então será justíssimo que seus deputados levantem a voz, que os povos se queixem e que se acuse o governo; mas tal momento ainda não chegou, nem há aparências de que chegue; e portanto dizemos que a menor ideia de separação fará um terrível mal à nascente liberdade de Portugal, e nenhum bem aos povos do Brasil; e se os argumentos que temos produzido não têm aquela força que desejamos, sem dúvida deve ter algum peso a opinião de quem tem sempre mostrado o mais denodado aferro pelos interesses de seu país. (idem, p. 239)

A questão da unidade do Brasil com Portugal ainda teimava em alimentar seus argumentos ao início do ano seguinte, a despeito de sinais precursores de que algo não andava bem. Escrevendo em fevereiro de 1822, Hipólito considerava essa união
... de suma utilidade para ambos os países (...) na suposição de que sendo o Brasil tão superior a Portugal em recursos de toda a natureza, a objeção para a continuação desta união provinha de algumas pessoas inconsideradas no Brasil que desejavam a separação dos dois países antes que ela devesse ter lugar pela ordem ordinária das coisas.
Nesta suposição, recomendando a união, temos sempre dirigido nossos argumentos aos brasilienses [que para Hipólito eram os naturais do Brasil, em contraposição ao “brasileiro”, que seria “o português europeu ou o estrangeiro que vai lá negociar ou estabelecer-se”], não nos ocorrendo sequer a possibilidade que nos portugueses europeus pudessem existir essas ideias de desunião; porque a utilidade deles, na união dos dois países, era de primeira evidência.
Mas infelizmente achamos que as coisas vão muito pelo contrário, e que é entre os portugueses e alguns brasileiros, e não entre os brasilienses, que se fomentam e se adotam medidas para essa separação, que temos julgado imprudente por ser intempestiva, e que temos combativo na suposição de que os portugueses europeus nos ajudariam [aos brasilienses] em nossos esforços para impedir, ao menos por algum tempo, essa cisão. (CB, XXVIII, n. 165, fevereiro de 1822, pp. 165-6)

No mês de março seguinte, Hipólito indignava-se contra uma medida do governo português proibindo o comércio de certos gêneros – entre eles pólvora e munições – com o Brasil, a partir da Inglaterra, segundo soube por cartas do cônsul geral de Portugal em Londres. Ele perguntava então, não deixando de lado a ironia:
Não sabemos se quem inventou essa medida teria gênio para inventar a pólvora, mas decerto não há medida hostil mais frívola pelo que respeita o Brasil. De que serve essa proibição?
(...) Força, como tão repetidas vezes temos dito, não tem Portugal para sujeitar o Brasil... (CB, XXVIII, n. 166, março de 1822, p. 280-2)


Hipólito finaliza a missão: a separação de Portugal e o problema da mão-de-obra
Na fase final de seu trabalho como editor do Correio Braziliense, mais precisamente em julho de 1822, Hipólito veio a assumir novo posicionamento em relação à independência do Brasil, já que ele era favorável, até a ocorrência da revolução do Porto e a “constituinte” portuguesa, à continuidade da união política entre Portugal e o Brasil sob a forma de uma monarquia constitucional. Ele temia acima de tudo uma “independência intempestiva” ou o retorno do Brasil a uma situação de colônia. Sua mudança de atitude se deu no quadro dos debates nas Cortes portuguesas, formadas a partir da revolução de 1820, quando são discutidas diversas medidas no sentido de “recolonizar” o Brasil.
Sob veementes protestos dos representantes brasileiros,[18] o regime econômico descortinado para o Brasil pelos constituintes, sob influência direta dos comerciantes portugueses, pretendia, tão simplesmente: reservar à marinha portuguesa a navegação entre todos os territórios do Reino Unido, conceder nova exclusividade aos vinhos e aguardentes portugueses no mercado brasileiro e, reciprocamente, aos produtos coloniais brasileiros no mercado português e isentar de tarifas todas as exportações de manufaturados portuguesas importados no Brasil. Hipólito seguiu de perto as diferentes peripécias das Cortes constituintes e, ao constatar que se intentava fazer leis apenas para os portugueses de Portugal, chegou a advertir: “Esta omissão nos parece um passo decisivo para a separação de Portugal do Brasil, o que na verdade sentimos que venha a ser um dos efeitos desta revolução”.[19] A conformação tentativa de uma nova modalidade de pacto colonial em muito acelerou o processo de independência no Brasil. Com efeito, o projeto de regulamentação das relações comerciais Brasil-Portugal, tomado no âmbito da Constituinte lusitana, “foi a última resolução de caráter econômico tomada pela antiga metrópole em relação ao Brasil colonial”.[20] Quando ele foi aprovado, contudo, o Brasil já tinha declarado sua independência.
Ao conformar-se a independência do Brasil, Hipólito estava dando por encerrada sua missão de informador crítico e de defensor da liberdade de imprensa no Brasil. Antes de sair de cena como editor – e ao preparar-se para assumir o cargo de representante consular do Brasil em Londres, agregando ainda um título de adido diplomático –, ele não deixa de abordar o problema mais crucial da nacionalidade brasileira, o regime de trabalho servil, que tantos serviços prestou à classe senhorial (e à própria economia em formação) e que tantos malefícios representou para sua estrutura social e sua evolução cultural e educacional.
Ele já tinha tratado do problema do tráfico e da escravidão no momento dos acordos de Paris, em 1815, que tendiam a limitar o tráfico ao sul do Equador, como etapa prévia à sua completa proibição e como preparação à interdição ulterior da própria escravidão. Escrevendo em outubro de 1815, ele manifesta sua convicção em uma próxima resolução da própria instituição servil: “Está por fim chegado o tempo em que esta questão da escravatura deve ser decidida afinal”.[21] Ele tinha consciência, porém, dos problemas imediatos em termos de mão-de-obra e de carestia de vida, mas recomendava corrigir esses problemas mediante a introdução de maquinaria e pela promoção da imigração europeia.
Hipólito volta ao tema depois de proclamada a independência, apontando a contradição entre o objetivo de se ter uma nação livre e a nefanda instituição. Os brasileiros, escrevia ele em novembro de 1822, “devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a escravidão. (…) um homem educado com escravos não pode deixar de olhar para o despotismo como um ordem de coisas natural; …a maioria dos homens que são educados com escravos deve ser inclinada à escravidão e quem se habitua a olhar para o seu inferior como escravo, acostuma-se também a ter um superior que o trate como escravo”.[22]
Hipólito esperava que o problema da escravidão fosse ser resolvido em poucos anos, ao consolidar-se a autonomia do novo estado e organizada em novas bases a economia nacional. Ao morrer em 1823, com apenas 48 anos, ele não poderia adivinhar que o problema da escravidão tomaria duas gerações mais, 66 anos adicionais, para ser resolvido de maneira imperfeita. Otimista, mas cauteloso, ele concluía esse comentário com palavras que tinham verdadeira vocação profética em relação ao futuro do Brasil: “Da continuidade da escravatura no Brasil deve sempre resultar uma educação que fará os homens menos virtuosos e mais suscetíveis a submeterem-se ao governo arbitrário de seus superiores”.[23]
Como forma de encaminhar a questão da carência de mão-de-obra de maneira algo mais permanente do que a importação sempre renovada de escravos “boçais”, Hipólito, como muitos outros dirigentes esclarecidos dessa época, a começar pelo próprio Andrada, recomendava a implementação de um programa abrangente de imigração de agricultores europeus. O tema comparece em diversos números do Correio, mas seria apenas no início de 1823, já interrompida no mês de dezembro anterior a edição do Correio Braziliense, que Hipólito elabora um plano preliminar cobrindo diversos aspectos da ocupação racional do território brasileiro. O documento, que tinha como título “Apontamentos para um plano de Correios, Estradas e Colonização do Brasil”, foi remetido por mala diplomática de Londres ao próprio José Bonifácio, em fevereiro de 1823, integrando hoje as coleções do Arquivo Histórico do Itamaraty.[24]
Para atender à implementação das medidas que ele propunha, Hipólito sugeria a adoção de estrutura administrativa própria, sob a forma de uma repartição pública dividida em três seções: (a) correios, estradas, pontes, barcos de passageiros; (b) terras, registro de propriedades de raiz e estatísticas do país; (c) imigração, colonização, cultura de terras e lavra de minas. Reconhecendo que talvez fosse difícil ter uma repartição autônoma para esses diferentes serviços, ele propunha que o encargo ficasse provisoriamente com a secretaria do exterior: “A vasta importância deste objetos, num país tão extenso e tão pouco povoado como é o Brasil, requer o cuidado de uma repartição exclusiva, mas como por ora as relações diplomáticas sejam as que menos tempo ocupem, pode este trabalho anexar-se com muita propriedade ao Ministério dos Negócios Estrangeiros”.[25]
Como vários contemporâneos, Hipólito mantinha a crença que se deveria desestimular a vinda de comerciantes – preconceito que seria ostentado pelas elites do Brasil até praticamente o final da Segunda Guerra Mundial –, dando preferência aos agricultores europeus, os únicos que poderiam realizar o objetivo prioritário: a ocupação do solo. Desde 1813 ele expressava essa opinião: “Os únicos estrangeiros que frequentam agora o Brasil são os negociantes, a pior sorte de população que ali pode entrar, porque o negociante estrangeiro que ali chega não possui outra pátria senão a carteira e o seu escritório, chega, enriquece-se e vai-se embora morar no seu país natal ou aonde lhe faz mais conta”.[26]  Hipólito recomendava a importação de artistas, mineiros, pescadores, homens de letras, que viessem ensinar, difundindo a instrução, e, sobretudo, de agricultores, a serem atraídos por medidas apropriadas. Em seu plano de 1823, ele recomendava criar companhias por ações às quais seriam distribuídos lotes (sesmarias), nos quais seriam estabelecidos núcleos urbanos, bancos de depósito e desconto (inclusive com a faculdade de emitir dinheiro válido nesse território) e que contariam com isenção alfandegária para a importação de instrumentos agrícolas e de mineração, máquinas diversas, durante um prazo de 25 anos. A companhia pagaria ao governo o dízimo da produção agrícola e o quinto da mineração e ajudaria na manutenção de estradas e pontes. Finalmente, Hipólito recomendava que se transferisse a capital do Rio de Janeiro para o interior, menos por razões militares do que para atender objetivos de ordem econômica e demográfica.

O legado de Hipólito: humanismo, patriotismo, sentido da educação, instinto econômico, visão constitucional
Hipólito foi uma figura humana à qual usualmente se tem por costume chamar de “personalidade renascentista”, ou seja, um homem completo, versado nas mais diferentes formas de saber e empregando o conhecimento em prol do estabelecimento de políticas públicas racionais e razoáveis do ponto de vista do interesse nacional. Em seu “armazém literário”, ele “versou e debateu”, no dizer de Mecenas Dourado, “quase todos os problemas fundamentais que interessavam as necessidades e a cultura do seu tempo”.[27] Tinha muito forte o sentido da história e de fato pretendeu, durante uma certa época, escrever uma história do Brasil, o que pode ter demovido da mesma pretensão outra grande personalidade pública desse período, José Vicente Lisboa, o futuro visconde de Cairu.
Como ainda discute Mecenas Dourado, Hipólito tinha como princípios ordenadores das soluções práticas que se poderia conceber para responder aos problemas sociais duas grandes categorias: a educação pública e o ensino e a prática da economia política. Na primeira vertente, preocupava-se em “apresentar não só as sugestões que facilitassem a difusão do ensino primário em Portugal e Brasil, como dos princípios pedagógicos que deveriam orientar o referido ensino. Tomava como exemplo o que se praticava em outros países mais desenvolvidos, particularmente a Inglaterra, que era do seu íntimo conhecimento, e fazia acompanhar esses exemplos de justificações teóricas com fundamento na psicologia educacional.[28]
Na segunda, Hipólito “sempre manteve a convicção de que o estudo da economia política é indispensável ao homem público, e lastimava que a Universidade de Coimbra não possuísse, em seu currículo acadêmico, uma cadeira em que se ministrassem esses estudos”.[29] Ele tinha sido educado na escola mercantilista, como era o normal em sua época, mas ao passar à Inglaterra aderiu de forma quase natural às pregações de Adam Smith e à doutrina liberal. Mas, como vimos pela sua discussão do decreto de abertura dos portos e do tratado de 1810, sua noção era a de um liberalismo doutrinal corrigido pelo bom senso e por um extremado pragmatismo. Ele ostentava, sobretudo, uma compreensão muito clara de onde se situava o interesse nacional brasileiro, acima de quaisquer considerações teóricas ou doutrinais. Nas páginas do Correio, ele ofereceu um acolhimento especial às ideias do economista suíço Simonde de Sismondi, chegando mesmo a traduzir e transcrever, em nove volumes do periódico (do vol. XVII ao XXV), com regularidade mensal, largos extratos dos Principes d’économie politique (1813), a ponto de Dourado chamar a atenção para o fato de que, “a vigorar, na época, uma lei regulando os direitos autorais, Hipólito teria que pagar essa edição ao autor”.[30]
Essa transcrição tinha propósitos didáticos claramente afirmados. Como recorda o outro grande estudioso de Hipólito, Carlos Rizzini, “Cinco anos e 400 páginas [do Correio] gastaria [Hipólito] nesse labor dedicado mais a instruir os governantes do que os leitores”.[31] Nas próprias palavras de Hipólito:
Esta obra é elementar e feita sobre os admiráveis princípios que o ilustre inglês Adam Smith estabeleceu primeiro, mas obscuramente, e o nosso autor [Sismondi] desenvolveu e dispôs com clareza e método, destinando-a particularmente à França. Por isso, nos extratos que daremos, traduzidos neste jornal, atenderemos somente aos princípios de aplicação universal e conformes às circunstâncias de todos os países; e do que disser particularmente respeito à França (que ainda assim não é muito) referiremos somente o que também, por algum respeito, nos convier [isto é, ao Brasil] saber. (XVI, p. 338)

Como diz acuradamente Rizzini, “O fim precípuo do Correio Braziliense era o de promover o progresso do Brasil, erguendo-o de colônia a nação”, ainda que nação portuguesa, unida a Portugal, sob o sistema monárquico-representativo.[32] A esse título, Hipólito era contra os privilégios e monopólios, preferindo o comércio livre ao administrado, defendendo certas isenções tributárias para estimular determinadas atividades fabris. Concordava em taxar moderadamente as importações estrangeiras, mas nunca de maneira exagerada, de molde a não estimular o contrabando. Mas ele também tinha plena consciência das desigualdades estruturais que poderiam colocar em confronto os interesses respectivos de dois países desigualmente dotados, como verificado no caso dos tratados “desiguais” negociados pela potência inglesa com os países mais fracos, a começar por Portugal. Como afirma ainda Rizzini, Hipólito acreditava que, depois “da triste experiência com o Tratado de 1810, convinha ao Brasil regular o seu comércio sem novos compromissos, sem se atar em relação a um futuro ainda mal descortinado. Adotasse medidas mutáveis segundo seus interesses e as condições gerais das trocas”.[33] Na questão da mão-de-obra, o seu “armazém literário” atribuía o formidável progresso dos Estados Unidos à importação favorecida de braços livres, o que propugnava igualmente para o Brasil, sem sucesso porém, uma vez que continuaram por décadas seguidas o tráfico e a escravidão.
O seu “armazém literário” sempre foi consistentemente partidário do liberalismo político, de um governo constitucional, irredutivelmente contrário ao Estado absolutista e à censura à imprensa. Ao concluir sua obra de editor, no final de 1822, Hipólito escrevia no último número do Correio Braziliense uma espécie de legado intelectual do ponto de vista da economia política:
Quanto às relações comerciais com as demais nações, quer haja quer não a formalidade do reconhecimento [do novo Estado brasileiro independente], o governo do Brasil terá sempre o direito de prescrever aos estrangeiros que lá forem comerciar os regulamentos que bem lhe aprouver; e seguramente a prudência desses regulamentos equivale bem, quando não seja preferível, aos onerosos tratados de comércio, com que muitas vezes as nações ligam, sem o saberem, as mãos da indústria. (Transcrito em Rizzini, op. cit., p. 309)

Palavras de prudência e de preocupação legítima com o progresso futuro da nação, como compete ao verdadeiro estadista que foi Hipólito, aliás sem nunca ter exercido cargo público no Brasil ou sequer ter voltado a por os pés, enquanto adulto, no país que tinha como seu. Em Hipólito, mesmo longe da pátria e impedido por força da censura de expressar livremente o seu pensamento, o exercício teórico e prático da economia política, guiado por uma certa ideia do interesse nacional, estava a serviço da construção da Nação.
O patrono da historiografia brasileira, Adolfo Varnhagen, em sua obra seminal de história do Brasil, faz o julgamento mais eloquente que se poderia esperar de um fundador da disciplina a propósito do primeiro estadista brasileiro:
Não cremos que nenhum estadista concorresse mais para preparar a formação no Brasil de um império constitucional do que o ilustre redator do Correio Braziliense. Talvez nunca o Brasil tirou da imprensa mais benefícios do que os que lhe foram oferecidos nessa publicação, em que o escritor se expressava com tanta liberdade como hoje o poderia fazer; mas com a grande vantagem de tratar sem paixão as questões de maior importância para o estado, tais como as do fomento da colonização estrangeira, etc.[34]

Escrevendo logo em seguida à independência, em novembro de 1822, e repercutindo com algum atraso
… os protestos de sete deputados do Brasil nas Cortes de Lisboa, que recusando jurar a Constituição [portuguesa] como prejudicial e indecorosa ao Brasil, [e que] se retiraram de Lisboa, passando-se à Inglaterra, indo depois para o Rio de Janeiro

Hipólito reconhecia que
O passo que deram estes deputados, abandonando as Cortes, deve ter sumo peso e influência no Brasil... (CB, XXIX, n. 174, novembro de 1822, p. 562)

agregando, então, em matéria expressamente intitulada “Constituição do Brasil”, sua conformidade final com a independência e a separação:
Achando-se convocada a Assembleia Constituinte do Brasil, e devendo entrar brevemente nas suas funções, convém que os membros eleitos olhem para os erros das Cortes de Portugal a fim de evitarem cair nos mesmos escolhos.
A designação de Assembleia Constituinte está por si mesma indicando que o principal e quase único trabalho daquela reunião é formar a Constituição do Estado, e não atender a outra alguma coisa enquanto esta obra não estiver concluída. (CB, XXIX, n. 174, p. 564)

Logo adiante, ele proclama toda a sua confiança no futuro do Brasil, inclusive no contexto diplomático do hemisfério:
Entre os novos estados que se tem erigido na América meridional, o Brasil é o mais poderoso e o que promete em mais breve tempo um governo sólido e permanente. Portanto, na grande liga americana que se vai a estabelecer, o Brasil deve ter a maior preponderância; e daquela parte do Atlântico existem todas as suas relações políticas, de maneira que as combinações da Europa lhe ficam sendo objeto secundário. (...)
O Brasil cheio de todas as produções necessárias à vida, tem sobejos gêneros de que não precisa para trocar pelos artigos de luxo que as nações manufatoras lhe fornecerem, recebendo-os daquelas que os venderem a melhor mercado. (CB, XXIX, n. 174, novembro de 1822, p. 572)

Em dezembro de 1822, finalmente, pouco antes de se despedir definitivamente de seus leitores, Hipólito ainda tecia novamente considerações sobre a “Constituição do Brasil”, alertando que ela seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”:
E tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras gerais, claras e compreensivas.
Se considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as vemos agora.
(...)
Por outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a maneira de a por em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter.
(...)
A Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis, não podem durar eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis. (CB, XXIX, n. 175, dezembro de 1822, pp. 604-6)

Ao encerrar a atividade do seu “armazém literário”, e ao tomar conhecimento Hipólito, pelo próprio José Bonifácio, antes mesmo da independência, de que seu colega de espírito e de intenções tencionava iniciar negociações em prol da independência com os dirigentes britânicos, ele despediu-se assim de seus leitores:
Anúncio aos leitores do Correio Braziliense.
Este periódico, destinado sempre a tratar como objetivo primário dos negócios relativos ao Brasil, tem há alguns meses sido quase exclusivamente ocupado com os sucessos aquele país, ou com os de Portugal que lhe diziam respeito; e os acontecimentos últimos do Brasil fazem desnecessário ao redator o encarregar-se da tarefa de recolher novidades estrangeiras para aquele país, quando a liberdade de imprensa nele e as muitas gazetas que se publicam nas suas principais cidades excusam esse trabalho dantes tão necessário.
Deixará pois o Correio Braziliense de imprimir-se mensalmente, e só sim todas as vezes que se oferecer matéria sobre que julguemos dever dar a nossa opinião, a bem da nossa pátria, e houver ocasião oportuna de fazer as remessas, que, pela incerteza das saídas dos paquetes e navios, inutilizam a pontualidade da publicação mensal de um periódico cujo escopo é unicamente o Brasil, e aonde não pode chegar com regularidade de tempo. (XXIX, n. 175, dezembro de 1822, p. 623)

Os editores da edição fac-similar, de 2002, do Correio Braziliense, Alberto Dines e Isabel Lustosa, ressaltam, na introdução a esse último volume do “armazém literário”, o sentido geral de sua atividade, nos 14 anos em que durou a aventura do maior empreendimento jornalístico individual de toda a história da imprensa brasileira:
O otimismo de Hipólito transparece em sua mensagem final, na qual afirma que, apesar do atraso em que o Brasil fora mantido pelo colonizador, os escritos divulgados no Correio durante o ano anterior e a energia demonstrada pelas províncias eram a prova cabal de que o Brasil não se achava tão atrasado quanto se supunha, pois ‘quanto ao engenho e talentos de seus habitantes, ninguém que conhece o Brasil duvida desse fato.[35]

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 8 de agosto de 2018




[1] O Diário de Minha Viagem para Filadélfia, 1798-1799 (Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira, 1955) foi posteriormente publicado por iniciativa do sindicato de jornalistas do Rio Grande (Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1974) e também pelo Senado Federal (Brasília: 2004, com as introduções da edição de 1955; disponível em formato online: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1094/710315.pdf?sequence=4); ganhou uma edição portuguesa, introduzida e anotada pelo historiador Alcino Pedrosa: Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007; ele foi, mais recentemente, objeto de uma edição crítica por Tânia Dias (Fundação Casa de Rui Barbosa e Editora da UFMG, 2016), com um aparato filológico da melhor qualidade.
[2] Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Hipólito da Costa e o nascimento do pensamento econômico brasileiro”, in: Dines, Alberto; Lustosa, Isabel (orgs.) Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002; edição fac-similar, vol. XXX: estudos; pp. 323-369, p. 323.
[3] Cf. Tania Dias, “A escrita diária de uma ‘viagem de instrução’”, in: Dias, Tânia, Diário de minha viagem para Filadélfia, edição crítica. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2016, p. xxix; versão anterior, da mesma autora: “A escrita diária de uma ‘viagem de instrução’”, Escritos, Revista da Casa de Rui Barbosa, ano 1, n. 1, 2007, p. 17-42; constante do livro de 2016, pp. xxvii-xlix.
[4] Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Tendências e perspectivas dos estudos brasileiros nos Estados Unidos” in: Paulo R. de Almeida, Marshall C. Eakin e Rubens A. Barbosa (eds.), O Brasil dos Brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos, 1945-2000, São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.
[5] Cf. Paulo Roberto de Almeida, “A Brazilian Adam Smith: Cairu as the Founding Father of Political Economy in Brazil at the beginning of the 19th century”, Mises: Interdisciplinary Journal of Philosophy, Law and Economics, vol. 6, n. 1, edição 10 (janeiro-abril 2018); pp. 117-129; DOI: https://doi.org/10.30800/mises.2018.v6.64.
[6] História breve e authentica do Banco da Inglaterra com dissertações sobre os metaes, moedas e lettras de cambio e carta de incorporações, por E. Fortune… traduzida da 2ª edição de Londres; impressa por ordem de S. Alteza Real o Principe Regente Nosso Senhor, por Hypolito José da Costa Pereira, Lisboa, na Typographia Chalcographica e Litteraria do Arco do Cego, anno MDCCCI; Ensaios politicos economicos e philosophicos, por Benjamin Conde de Rumford… traduzida em vulgar por Hippolito José da Costa Pereira, tomo I, Lisboa, na Regia Officina typographica, MDCCCI, por ordem superior; cf. Mecenas Dourado, op. cit., tomo I, pp. 80-81. Mais adiante, já como editor do Correio, Hipólito traduz e publica o economista suíço Simonde de Sismondi.
[7] Cf. Dourado, op. cit., p. 82.
[8] Hipólito, que era naquele momento empregado no Real Serviço, como diretor literário na Junta da Impressão Régia, foi preso em sua casa no final de julho de 1802, sendo depois transferido para o cárcere da Inquisição; a sua Narrativa da perseguição de Hippolyto Joseph da Costa Pereira Furtado de Mendonça … prezo, e processado em Lisboa pelo pretenso crime de framaçon ou pedreiro livre foi elaborada e publicada em Londres, em 1811; ver a edição do Senado Federal, com introdução de Pedro Braga, “Nada irrita os inquisidores tanto como um homem que raciocina, p. 9-16, in: Hipólito José da Costa, Narrativa da Perseguição. Brasília: Edições do Senado Federal, 2009.
[9] Cf. Sergio Goes de Paula (organização e introdução), “Apresentação”, Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 15. Esta obra efetua uma seleção dos artigos e documentos publicados no Correio Braziliense em 1820, 1821 e 1822, anos que “são, sem dúvida, os mais importantes para a vida política brasileira”, ou seja, aqueles que “dizem respeito à Revolução do Porto, às Cortes Portuguesas à política de Portugal com relação ao Brasil e aos movimentos que precederam a independência”; idem, ibidem. Uma seleção geral dos artigos e documentos mais importantes publicados no Correio Braziliense foi efetuada por Barbosa Lima Sobrinho (org.), Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra; Brasília: Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, 1977.
[10] De fato, como afirma Mecenas Dourado, o Correio Braziliense “foi um fenômeno napoleônico”; cf. Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1957, 2 vols., tomo II, p. 580.
[11] Cf. Paula (org.), Hipólito José da Costa, op. cit., p. 18.
[12] Cf. Dourado, op. cit., tomo I, p. 302.
[13] Em diversos números do Correio, a seção comercial abrigava, ademais da transcrição dos principais textos oficiais nessa área, informações práticas sobre os preços de mercadorias de interesse do Brasil na praça londrina, dados que constituíam não apenas uma espécie de pesquisa de mercado à intenção dos comerciantes interessados, como também um levantamento das restrições não tarifárias aplicadas a determinados produtos de produção brasileira que eventualmente entrassem em competição com mercadorias similares vindas das colônias britânicas do Caribe, por exemplo. Assim, os preços deixavam de ter sua função indicativa da realidade dos mercados para entrar em jogo o tratamento tarifário diferenciado ou a proibição pura e simples de entrada nos portos britânicos.
[14] Representação à Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, por José Bonifacio de Andrada e Silva, deputado à dita Assemblea pela Provincia de S. Paulo. Paris: na Typographia de Firmin Didot, impressor d’El Rei, 1825, 40 p.; “Esta representação estava para ser apresentada à Assemblea Geral Constituinte [1823]... quando... ela foi dissolvida e seu autor, entre outros deputados, preso e deportado”. Registro eletrônico de obras raras n. 22512, na Biblioteca Luiz Vianna Filho, do Senado Federal.
[15] Cf. Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 251.
[16] Cf. Múcio Leão, “Notícia sobre Hipólito da Costa: esboço de uma biografia”, in: Hipólito da Costa, Diário da minha viagem para Filadélfia. Brasília: Senado Federal, 2004, pp. 23-34, p. 28.
[17] Ver, por exemplo, a obra de George Raeders Le Comte Gobineau au Brésil. Paris: Nouvelles Éditions Latines, 1934; ed. brasileira: O Inimigo Cordial do Brasil: o conde Gobineau no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
[18] Os deputados brasileiros encontravam-se em situação de nítida inferioridade em relação aos representantes portugueses, pois, dos 69 originalmente eleitos no Brasil, apenas 46 puderam participar dos trabalhos. Nas Cortes de Lisboa, os assuntos brasileiros eram discutidos numa comissão teoricamente paritária, mas alguns desses representantes “brasileiros” votavam manifestamente em conluio com os deputados portugueses. Assim, é rejeitada a Universidade do Brasil, sob o argumento de “ser suficiente a existência de escolas primárias na parte americana da monarquia”; da mesma forma, são estabelecidas juntas governativas nas províncias brasileiras, que seriam diretamente subordinadas a Lisboa.
[19]  Cf. Correio Braziliense, vol. XXV, p. 707, citado por Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, op. cit., tomo II, p. 331.
[20] Cf. José Gabriel de Lemos Brito, Pontos de partida para a história econômica do Brasil, 3ª ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional/INL-MEC, 1980, p. 405. Segundo esse projeto, os produtos estrangeiros que entrassem no Brasil passariam a pagar direitos de 55% ad valorem, ao passo que os impostos de exportação aplicados a produtos brasileiros vendidos a terceiros países passariam a pagar 12%; idem, p. 403.
[21] Cf. Correio Braziliense, vol. XV, pp. 735-39, citado por Dourado, Hipólito da Costa e o “Correio Brasiliense”, op. cit., tomo II, p. 530.
[22]  Idem, ibidem, Dourado, pp. 532-33.
[23] Idem, ibidem, p. 533.
[24]  Legação do Brasil em Inglaterra, Despachos Ostensivos, 1822-1823, AHD, citado por Dourado, idem, p. 535.
[25] Idem, loc. cit.
[26] Cf. Correio Braziliense, vol. X, março de 1813, pp. 374-76, citado por Dourado, op. cit., tomo II, p. 536.
[27] Cf. Dourado, op. cit., tomo II, p. 583.
[28] Cf. Dourado, op. cit., tomo II, pp. 586-87.
[29]  Idem, p. 587.
[30]  Idem, p. 588, nota 773; caberia lembrar que o título completo da obra de Sismondi, o que evidenciaria igualmente seu espírito prático, era Princípios de Economia Política aplicados à Legislação do Comércio (Genebra, 2 vols., 1813), sendo seu autor membro dos Conselho de Comércio, Artes e Agricultura do Leman, um das regiões da Suíça francesa.
[31] Cf. Carlos Rizzini, Hipólito da Costa e o Correio Braziliense, São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957, Brasiliana Grande Formato nº 13, p. 140.
[32] Rizzini, op. cit., p. 143.
[33] Idem, p. 181, que cita o CB, vol. XIII, dezembro de 1814, p. 782.
[34] Cf. Adolfo Varnhagen, História Geral do Brasil. 3a. edição, vol. V, p. 280.
[35] Cf. Dines, Alberto; Lustosa, Isabel (orgs.) Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002; edição fac-similar, vol. XXIX; pp. xi-xviii, p. xvii.


terça-feira, 2 de outubro de 2018

Rubens Ricupero: Premio da ABL pelo seu livro A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016

Discurso do embaixador Rubens Ricupero por ocasião da concessão do prêmio Senador José Ermírio de Morais, na Academia Brasileira de Letras, em 2 de outubro de 2018


Cerimônia de entrega do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes concedido pela Academia Brasileira de Letras ao livro A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016.
Rio de Janeiro, 2 de outubro de 2018
Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras Marco Lucchesi,
Senhor Representante do Instituto Votorantim José Pastore,
Senhoras e Senhores Acadêmicos,
Senhoras e Senhores,

Sou profundamente grato a todos os membros da Academia Brasileira de Letras que, de forma generosa, escolheram A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016 para receber o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes deste ano. A escolha honra não somente a mim, mas aos inúmeros estimuladores do projeto e coprodutores editoriais da obra, aos quais renovo os agradecimentos que inseri no posfácio do livro.
Uma razão adicional de alegria é o prêmio levar o nome do Senador José Ermírio de Moraes, que conheci no começo de minha carreira e a cujos filhos, José e Antônio, dediquei amizade e admiração. O Senador José Ermírio e seus filhos devem ser lembrados sempre e em particular numa hora como esta, em que tantos brasileiros duvidam do Brasil e de si mesmos. 
José Ermírio encarnou o modelo ideal dos industriais nacionalistas e socialmente progressistas que, na era heroica da industrialização brasileira, lançaram os fundamentos da indústria pesada. Ele, seus filhos, netos e colaboradores superaram todas as crises ao longo do século 20 para consolidar, no árduo domínio da indústria de base, uma multinacional autenticamente brasileira, a Votorantim, hoje rara empresa de êxito com mais de cem anos de vida.  
Ao receber na Academia prêmio que evoca essa notável prova de nossa capacidade de realização, peço licença para contar pequena história sobre as variadas origens deste livro. O que me move não é o sentimento de descabida importância do que escrevi. Simplesmente espero que a narrativa explique algo que nos vai na alma a todos que amamos este país e nos angustiamos com suas dores e descaminhos. 
Há muito tempo que eu vinha pensando em escrever um livro que servisse de compêndio aos estudantes e preenchesse um vazio: o de contar a história das relações internacionais do Brasil como parte integral da evolução do povo brasileiro, não como apêndice ou nota de pé de página. Seria, no fundo, uma história do Brasil a partir de perspectiva diferente, a das relações de influência recíproca entre o país e o mundo.
O desafio era gigantesco, eu estava envelhecendo, não tinha tempo ou me dispersava em seminários e artigos para não ter tempo de enfrentar a tarefa. É possível que o projeto nunca saísse do papel, como não haviam saído os desígnios do barão do Rio Branco de escrever a História Militar, a História Naval, a História Diplomática do Brasil, a História do nosso envolvimento na Bacia do Prata. O que pôs fim à indecisão e me motivou a escrever foi episódio ocorrido em 2010.
No início daquele ano, Otávio Frias Filho me convidou, como seu pai fazia de tempos em tempos, a almoçar com os principais membros da Redação da Folha de São Paulo. Passamos quase o tempo todo a discutir a política externa brasileira. Estava-se no último ano de Lula no governo, ponto alto de seu prestígio internacional. Defendi a ideia de que o Brasil se destinava a ser uma potência paradoxalmente sem poder, ao menos o poder duro das bombas atômicas, das armas de destruição de massa, dos assassinatos por drones, das sanções econômicas.
Nossa vocação consistia em projetar influência externa por meio do poder brando ou suave da negociação, da conciliação, da transação, do exemplo. Deveríamos desempenhar, como vínhamos fazendo, um papel construtivo de moderação e equilíbrio no sistema internacional, sem veleidades de hegemonias ou dominação. Comparado a quase todos os países continentais membros dos BRICS, somente o Brasil não era potência nuclear, nem potência militar convencional. Por escolha, não por incapacidade tecnológica.
Além da proibição expressa da Constituição, não precisávamos de armas nucleares. Em paz com nossos dez vizinhos há quase 150 anos, não existia ameaça externa que justificasse desviar recursos da óbvia prioridade nacional de superar o subdesenvolvimento, eliminar a miséria, reduzir a desigualdade, dar vida digna a todos os brasileiros. 
Otávio possuía mente inquisitiva e exigente, explorava os assuntos com tenacidade, esmiuçava cada um de meus argumentos. Saí com a impressão de que não tinha convencido ninguém, que me julgavam um sonhador, idealista ingênuo. Tempos depois, recebi um cartão de advogado que não conhecia. Dizia: “Extraio de artigo de Otávio Frias Filho: “Continuaremos a ser o único a prescindir de armas nucleares como recurso dissuasivo? O ex-ministro Rubens Ricupero tem uma bela argumentação em defesa dessa originalidade, talvez até como contribuição da cultura brasileira ao futuro dos povos”. E o cartão concluía: “Rogo de Vossa Senhoria indicar-me como posso conhecer esta sua importantíssima opinião”. 
Meu primeiro impulso foi responder com uma explicação detalhada ao missivista e a Otávio, a quem prometera continuar por escrito nossa conversa. Logo percebi que a complexidade da questão exigia antecedentes históricos, análises, comparações, que excediam os limites de uma carta ou ensaio. Só um livro permitiria talvez dar conta da provocação. Fiz alguns esboços da introdução, de alguns capítulos, molemente, sem pressa, com longos intervalos. Passaram quatro anos quando o susto de uma operação de coração aberto me alertou que o tempo estava chegando ao fim. Parei os artigos, deixei de ir a seminários, finalmente escrevi e publiquei o livro.  
Pensei em levar a Otávio um exemplar para mostrar o que resultara de nosso encontro e até lhe mandei recado a respeito. Mas, vieram os lançamentos, as noites de autógrafos, as entrevistas, as viagens, a inércia e adiei o cumprimento da promessa. Uma tarde trabalhava em casa com o rádio ligado, ouço que Otávio tinha morrido naquela manhã. Levei um choque, pois nem sabia que ele estava gravemente doente. O projeto ficava inacabado, o leitor secreto para quem eu havia escrito jamais leria meus argumentos. Não aprendi a lição e, relapso, até agora não procurei o advogado que me interpelou.  
Tudo isso para dizer que Otávio, o advogado e eu mesmo pressentíamos que estava em jogo naquela discussão a ideia que fazíamos do Brasil como um país com ambição de ser potência de maneira diferente da tradicional. Longe de original, a ideia vinha de Rio Branco e Nabuco, modificada por Oswaldo Aranha, Afonso Arinos, San Tiago Dantas. Meu colega mais jovem, José Humberto de Brito Cruz, deu-lhe expressão feliz: outro estilo, outra forma de ser grande potência é possível. Ajudar a construir essa nova noção poderia ser uma das melhores contribuições do Brasil ao sistema internacional. 
A busca dessa forma diferente de ser potência constitui a ideia não do país que somos e sim do que gostaríamos de vir a ser. Contudo, o país ideal de fidelidade aos valores de paz, justiça, direitos humanos, proteção ambiental, eliminação da miséria, paixão pelo máximo possível de igualdade, esse país ideal se choca com o país real, muito afastado disso tudo. 
A construção do Brasil do título do livro consiste justamente no esforço de aproximar as duas versões de país, de transformar o país real no país que queremos ser. A destruição do Museu Nacional, o atentado contra um candidato, a divisão do povo em grupos violentamente antagônicos, são golpes que tornam a meta ideal mais longínqua. Pode ser que o futuro próximo nos reserve maiores sofrimentos, quem sabe até retrocessos na construção da sociedade que sonhamos. 
Nestas horas sombrias, volta com força a tentação de pôr a culpa em nossa herança cultural e histórica, nas mazelas e fantasmas que herdamos do passado. Lembramos com William Faulkner de que o passado não morre, nem mesmo é passado, pois não acabou de passar. Ou rimos amargamente com a frase de Millôr Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. 
Ambas afirmações dizem a verdade. É certo que a superação do que o passado legou ao presente em injustiça e desigualdade condiciona o avanço rumo ao país ideal. No entanto, as duas frases podem ser igualmente lidas em sentido oposto. O passado não é apenas danação e fatalidade. Machado de Assis é o passado que não passou, que nos guia e inspira até hoje no anseio de querer ter uma literatura, uma cultura original. 
Da mesma forma nunca haverão de passar Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Castro Alves, Drummond, Bandeira, Mario de Andrade, Villa Lobos e Tom Jobim, Vinícius e Rui Barbosa, Gilberto Freire e Sérgio Buarque, nossos poetas, músicos, artistas populares e anônimos, Rio Branco, Nabuco, tantos nomes, tanta coisa a mais. Em outras palavras, o passado se confunde com a cultura na qual existimos, que nos dá a identidade de brasileiros, dentro da qual nos movemos. Oxalá tivesse o Brasil mais e mais desse tipo de passado pela frente!
Imagino que o prêmio concedido a este livro se deva, acima de tudo, a isso, à percepção de que ele buscou imperfeitamente mostrar em suas páginas que não precisamos envergonhar-nos de um passado diplomático que nos ajudou a ser aquilo que somos no que temos de melhor. E também por haver sugerido que o melhor desse passado não morrerá nunca, nem é mesmo passado, pois vive em nosso sonho de fazer do Brasil uma potência de reconciliação e paz, de justiça e igualdade, de entendimento e fraternidade entre os povos.  

Elementos conceituais de uma diplomacia nacional - Paulo Roberto de Almeida

Elementos conceituais de uma diplomacia nacional

Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho analítico de caráter geral, elaborado em 2009, aqui dividido em 11 postagens sequenciais: 

Manual de diplomacia prática, 1: clareza de intenções

Manual de diplomacia prática, 2: interação com a economia


Manual de diplomacia prática, 3: avaliação dos meios

Manual de diplomacia prática, 4: caráter inovador

Manual de diplomacia prática, 5: interesse nacional

Manual de diplomacia prática, 6: prioridades

Manual de diplomacia prática, 7: parcerias estratégicas
Postado no blog Diplomatizzando  (1/10/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/10/manual-de-diplomacia-7-parcerias.html)

Manual de diplomacia prática, 8: blocos de integração
Postado no blog Diplomatizzando (1/10/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/10/manual-de-diplomacia-8-blocos-de.html).

Manual de diplomacia prática, 9: segurança

Manual de diplomacia prática, 10: atores sociais

Manual de diplomacia prática, 11: instrumentos
Postado no blog Diplomatizzando (2/10/2018; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/10/manual-de-diplomacia-11-instrumentos.html). 

Manual de diplomacia, 11: instrumentos - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual de Diplomacia, 10, e final)

Manual de diplomacia prática, 11: instrumentos
Paulo Roberto de Almeida 
São muitas as ferramentas à disposição do Estado para o exercício de sua política externa, sendo o mais importante, obviamente, o corpo burocrático encarregado de operar a diplomacia profissional. Os dirigentes costumam, igualmente, se cercar de assessores diretos, que podem ou não ser diplomatas, mas que dispõem, supostamente, de um saber especializado nos temas afetos às relações exteriores do país. Outras instâncias podem interferir no processo decisório da política externa, mormente em regime parlamentar. Mas o básico, ou até essencial, é que exista unidade efetiva de comando, uniformidade do processo decisório e conformidade no processo de implementação das decisões. 
Instrumentos de ação diplomática
Uma política externa formada a partir de vários centros decisórios começa por não ter objetivos homogêneos e tende a apresentar metas fragmentadas, ou até mesmo contraditórias, que respondem aos diversos “insumos” e pressões recebidos ao longo do processo de formulação e de composição, mesmo se a concepção inicial partir de um único centro. A divisão pode assumir um caráter de bicefalia, com pelo menos uma instância independente da diplomacia profissional envolvida na preparação e implementação da agenda externa; pode não ser tão grave se o trabalho envolvido for apenas de assessoria, mas se ele envolver igualmente representação e defesa pública existe um risco real de discursos contraditórios ou não coincidentes. A “divisão do trabalho” deve ter um único centro “decisor”, não ser uma espécie de “cooperativa diplomática” atuando em bases voluntaristas.
As estratégias e táticas mobilizadas pela diplomacia podem e devem ser diversificadas, com a adequação de cada instrumento de ação ao tipo de foro aplicável em cada caso – bilateral, regional ou multilateral –, ou ainda em função das coalizões possíveis segundo a natureza do problema em causa (político, comercial, tecnológico, de segurança etc.). Caberia, no entanto, ficar atento para a “gradação” progressiva das iniciativas diplomáticas eventualmente lançadas, de maneira a evitar-se a exposição direta do responsável último pela diplomacia – que é o próprio chefe de Estado – em propostas meramente exploratórias ou de duvidosa aceitação por parceiros não consultados previamente.
Para ser mais preciso, poucos países apreciam aderir a iniciativas prontas e a soluções “acabadas”, sentindo-se obviamente mais confortáveis a partir de consultas preparatórias e mediante o acolhimento de suas sugestões. Da mesma forma, a situação de liderança, se ela não é dada naturalmente pelo diferencial de poder econômico, político e militar, com todos os cuidados associados ao self-restraint, pode causar suspeitas ou desconforto em parceiros regionais, incomodados em ver surgir um “mais igual” em seu próprio meio. A liderança não pode jamais ser autoproclamada, mas sim o resultado de um consenso que deve emergir naturalmente a partir de fontes reais de poder, não de proclamações unilaterais: trata-se antes de uma aceitação do que de uma imposição.
 (final)

Manual de diplomacia, 10: atores sociais - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual de Diplomacia, 9)

Manual de diplomacia prática, 10: atores sociais
Paulo Roberto de Almeida 
A política externa já foi definida de muitas maneiras, inclusive como sendo a tradução de necessidades internas em possibilidades externas. Talvez pudesse ser definida, também, como a incorporação de oportunidades e capacidades externas para fins de desenvolvimento interno. Mas esse aspecto formal importa menos do que uma avaliação exata das condições sob as quais pode atuar o corpo funcional-burocrático voltado para a implementação da política externa, no contexto democrático e crescentemente transparente das políticas públicas na atualidade. 
A representação dos interesses sociais 
Diferentes atores passam a interferir no, e a disputar parcelas do processo decisório em matéria de política externa na moderna configuração democrática. Esse tipo de “intromissão” não só parece inevitável, como, em determinadas circunstâncias, pode até ser desejável para, por exemplo, respaldar a ação do Estado na defesa do interesse nacional, na suposição de que a mobilização de atores privados esteja sendo feita para capturar ganhos significativos para agentes econômicos que atuam como canais de distribuição interna. Não se trata da “captura” do aparelho burocrático do Estado por interesses privados, mas de interação com os verdadeiros produtores de riqueza nacional na tarefa de “extrair” recursos e renda do resto da comunidade internacional, o que é perfeitamente legítimo no plano da ação externa do Estado. 
A capacidade da política externa se apresentar como efetivamente nacional, enquanto política pública, tem a ver com a sua interação com os setores relevantes da vida econômica do país, pois são eles, em última instância, que produzem os recursos sem os quais a ação do Estado torna-se impossível ou dificilmente viável, e é para eles que se destinam, em grande medida, as iniciativas e ações de política externa mobilizadas pela diplomacia profissional. Os dois princípios sobre os quais vai se fundamentar uma política externa nacional são, portanto, o da transparência democrática e o da representação dos interesses mais relevantes no plano econômico nacional, sem que isto signifique, contudo, a captura do processo decisório no plano estatal por grupos de interesse especial ou setorial. 
Transparência e representação democrática não devem significar, no entanto, excesso de abertura em processos negociais, como reclamado muitas vezes por grupos de atuação específica, pois isto poderia comprometer o caráter confidencial e a necessária discrição das posições negociadoras que caberia respeitar. Da mesma forma, falsos democratismos – como a incorporação irrefletida de posições emanadas de sindicatos, de partidos, de ONGs etc. – tampouco deveriam guiar a ação externa do Estado, posto que suas posições tendem a redundar em impasses negociais (até mesmo ex ante) devido à própria natureza contraditória dos interesses em causa.
          (continua na postagem 11, final).

Manual de diplomacia, 9: segurança - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual de Diplomacia, 8)

Manual de diplomacia prática, 9: segurança
Paulo Roberto de Almeida 
Segurança, justiça, defesa, ou até mesmo infraestrutura e educação, fazem parte daquilo que os economistas chamam de “externalidades”, ou seja, “produtos” ou serviços cujo “valor de mercado” não é normalmente definido pelas leis da oferta e da procura, mas que podem esperar uma oferta pública em bases não discriminatórias e praticamente sem barreiras para sua mobilização efetiva pelos demandantes. 
No plano nacional essa oferta é usualmente feita pelos Estados, que para isso mobilizam recursos dos agentes privados segundo os princípios tradicionais da tributação, ou seja: equidade, progressividade, neutralidade e simplicidade (mas nem sempre os países alcançam esse modelo ideal, escusado dizer). Esses bens públicos conhecem, portanto, falhas de mercado e são obrigados a conviver com mercados incompletos, a existência de monopólios naturais, além da falta de informação. 
O problema da segurança
Não é preciso dizer que tais condições inexistem no plano internacional, e sequer estão perto de existir, onde é frequente o benefício do free lunchque países pouco cooperativos recolhem do investimento em segurança e estabilidade feito por parceiros mais poderosos. O problema tampouco está perto de ser resolvido pela existência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma vez que as potências militarmente dominantes tendem a agir em função de seus critérios nacionais com respeito à segurança e à estabilidade internacionais, sem nenhuma disposição aparente para implementar os dispositivos da Carta das Nações Unidas relativos à comissão militar e à constituição de forças armadas a serviço da organização. Não existe perspectiva de que essa situação venha a mudar no futuro previsível. 
Os esquemas regionais de segurança representam um substituto parcial a esse problema institucional, podendo ser mais efetivos nas circunstâncias de maior identidade política e de comunidade de valores entre os seus membros. Em todo caso, na ausência dessa comunidade de valores, a agregação de interesses pode ser alcançada com base na disposição de um membro mais poderoso de “socializar” os benefícios de seu escudo militar, cujos custos ele assumiu exclusivamente. Em todo caso, todos eles – tanto o hegemon, como seus “sócios” – precisam ter um foco preciso quanto aos principais vetores de segurança – e, claro, das ameaças percebidas e reais – nos quais passariam a atuar, sem o que as alianças perdem eficácia e, sobretudo, condições mínimas para um consenso operacional entre seus membros. Por mais desigual ou assimétrica que seja esse tipo de aliança, seria preciso haver noção clara de qual é a fonte potencial ou real de ameaça, para que os instrumentos de defesa sejam comensuráveis e adequados a esse foco possível de instabilidade e de desequilíbrio.
Países desejosos de maior projeção internacional – e, portanto, dispostos a assumir os custos implícitos a essa opção de política externa – necessitam, em primeiro lugar, determinar os focos possíveis de ameaça ou resistência aos seus objetivos nacionais que possuam clara interface internacional, supondo-se que esses objetivos sejam inteiramente compatíveis com os valores e as normas existentes no âmbito da comunidade internacional. A autonomia de ação é o pressuposto básico de mobilização da ferramenta militar, mas a coordenação com outros parceiros no plano externo pode se revelar indispensável nas atuais condições do cenário internacional, quando as manifestações explícitas de imperialismo arrogante já se encontram formalmente banidas (mas não desaparecidas de todo). 
Em todo caso, a passagem de uma concepção e uma doutrina puramente nacionais de defesa e de segurança em direção à constituição de cenários de conflitos e hipóteses de emprego da força militar situados no contexto externo – regional ou internacional – implica uma profunda revisão dos fundamentos estratégicos dessa “externalidade” – que pode ser positiva ou negativa, em função dos casos concretos –, bem como dos instrumentos que passam a ser mobilizados em caso de engajamento efetivo desses recursos de última instância do jogo diplomático-estratégico. Nem todos os países estão dispostos a desviar recursos de necessidades internas para fins de atuação “solidária” no plano internacional. Mas o que assim decidirem necessitam dispor dos meios suficientes e necessários para levar a termo a missão formalmente assumida. 
                 (continua)

Manual de diplomacia, 8: blocos de integração - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual de Diplomacia, 7)

Manual de diplomacia prática, 8: blocos de integração
Paulo Roberto de Almeida 
Países mais abertos são geralmente mais prósperos, seus agentes econômicos dispõem de mais renda pessoal e estão sempre acompanhando o estado da arte mundial em matéria de ciência e tecnologia. Uma simples correlação entre coeficientes de abertura externa e renda per capita permite confirmar, com poucas exceções nacionais, essa evidência das relações internacionais contemporâneas (ou de todas as épocas). 
Sistema internacional e blocos de integração
Normalmente, a decisão pela abertura internacional – isto é, a maior interação nos fluxos de comércio e maior predisposição para acolher investimentos diretos estrangeiros – tende a ser unilateral, uma vez que a economia nacional é que está em causa e não a mundial, e que as restrições existentes prejudicam mais o agente econômico nacional do que os externos. Ainda assim, negociadores nacionais têm o hábito – irracional economicamente, mas compreensível politicamente – de “conceder” abertura aos mercados do país apenas depois de intensa barganha negociadora, confirmando que o velho mercantilismo possui vida efetivamente longa. 
Havendo, contudo, disposição para a abertura – seja ela unilateral ou negociada –, o que se espera é que ela seja a mais ampla possível, uma vez que a inexistência prática de barreiras à competição tende a provocar ganhos de produtividade induzidos pela disputa de mercados em bases amplas. Blocos comerciais e outros agrupamentos “minilateralistas” são aceitos na medida em que contribuem para, ou antecipam a abertura multilateral, sem práticas discriminatórias ou outras reservas de mercado. Essas uniões restritas emergem naturalmente a partir da contiguidade geográfica e da intensidade de comércio que tende a ser praticada por parceiros já normalmente expostos à competição nos mesmos ramos industriais; o problema das normas e do protecionismo setorial aplicados aos grupos de maior poder político podem, contudo, obstar a essa tendência, que seria desejável, de fazer os blocos evoluir rapidamente para a abertura multilateral. 
Na medida em que políticas ativamente integracionistas façam parte dos exercícios de diplomacia comercial praticados por um país em particular, seria desejável que elas se integrem ao conjunto de ações de política externa desse país num sentido tendencialmente aberturista, isto é, de cunho multilateral. Disso resulta que os esquemas de integração mais facilmente ampliáveis no sentido multilateral sejam os acordos de livre-comércio; mais do que outros esquemas – como os de união aduaneira ou de mercado comum – que requerem normas e administração de cunho mais burocrático (sendo, portanto, de natureza mais rígida). 
No plano da política externa, isto significa que os blocos de integração devem ser vistos mais como meiospara a consecução de outros objetivos desejáveis – progresso tecnológico, desenvolvimento econômico, avanços sociais etc. – do que como fins em si mesmos, sobretudo quando esses fins possuem objetivos políticos de escassa racionalidade econômica. 
        (continua)

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Manual de diplomacia, 7: parcerias estratégicas - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade Manual de Diplomacia, 6)

Manual de diplomacia prática, 7: parcerias estratégicas

Paulo Roberto de Almeida

Há uma tendência, em certos países, a multiplicar o número de “parcerias estratégicas”, o que reflete o mesmo cálculo equivocado já visto na questão das prioridades: havendo muitas, não se percebe como separar as que são efetivamente importantes daquelas que a retórica diplomática coloca na lista dos “relacionamentos indispensáveis”. 

Parcerias estratégicas: possibilidades e limites
Mas pior do que colecionar um volume não administrável de parcerias estratégicas é o procedimento que consiste em defini-las a priori; ou seja, a partir da suposição do relacionamento estratégico com base em afinidades estabelecidas prima facie, não com base num cuidadoso exame técnico de identidade de agendas em bases relacionais, não de maneira unilateral.
A começar pelo caráter supostamente “estratégico” da relação, tais parcerias costumam inflacionar o mercado diplomático com um hiper-ativismo multidirecional, levando à dispersão de recursos escassos e focando em objetivos secundários, posto que os “parceiros” definidos de maneira leviana precisam encontrar um mínimo denominador comum (e ele é realmente mínimo). Se existisse um “imposto vocabular” cada vez que diplomatas e outros tomadores de decisão empregassem indevidamente a noção de “parceria estratégica”, seu uso seria provavelmente mais restrito, reservado apenas aos casos efetivamente relevantes e prioritários. O exagero terminológico constitui, provavelmente, um dos mais notórios pecados da linguagem diplomática através dos tempos. 
Uma parceria efetivamente estratégica é aquela que permite uma inflexão de agendas, tanto bilaterais, quanto regionais ou multilateral, ou seja, uma mudança na relação de forças do xadrez internacional. Mas essa possibilidade tem de ser examinada com extremo cuidado, uma vez que o consenso em torno de objetivos mutuamente acordados precisa ser claro e explícito. Proclamações retóricas por ocasião de visitas de cúpula não são a melhor ocasião para se definir uma nova parceria estratégica, uma vez que o entusiasmo de governantes temporários costuma obscurecer sua capacidade de julgamento quanto aos interesses de médio e de longo prazo do país, o que só um estudo ponderado, tecnicamente embasado e empiricamente apoiado, tem condições de recomendar. 
Em resumo, parcerias estratégicas devem ser o resultado final de uma análise abrangente pelo policy planning staff, antes de serem sequer cogitadas no terreno prático.  
     (Continua)

Manual de diplomacia, 6: prioridades - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual da Diplomacia 5)

Manual de diplomacia prática, 6: prioridades
Paulo Roberto de Almeida 
Prioridades, normalmente, estão no topo da atuação diplomática dos Estados que possuem uma visão clara de seus objetivos nacionais, com respeito aos benefícios que se espera retirar de uma determinada relação bilateral ou de um empreendimento qualquer no plano regional ou multilateral. Uma velha regra de senso comum pretende que quando existem muitas prioridades, não existe nenhuma prioridade bem estabelecida. Isso justifica a conveniência de que a lista de prioridades seja relativamente reduzida, de forma a se atribuir a importância devida ao que é realmente importante, não multiplicar as frentes de trabalho ao sabor das viagens diplomáticas de alto nível. 
Prioridades nas relações exteriores
É da natureza humana, ou da ordem natural das coisas que pessoas e sociedades desejem sempre retirar bem mais de uma relação do que o investimento realizado em contrapartida. Por isso mesmo, o que se busca, normalmente, é elevar ao máximo a qualidade da interação, de maneira a ter uma alta taxa de retorno. Em outros termos, e de modo bem direto, quanto mais assimétrica for a relação, melhor para a parte supostamente “atrasada”, uma vez que a transferência direta e indireta terá um grau máximo de aproveitamento, nas duas direções, aliás, já que sempre haverá “compensações” comensuráveis que a parte reconhecidamente avançada pode retirar de seu parceiro “inferior”, mesmo que seja o menor custo de bens, serviços e mão-de-obra. Inversamente, uma prioridade colocada numa relação pretensamente “simétrica” pode redundar em ganhos marginais para ambas as partes, já que o potencial de transferências será necessariamente menor.
Mesmo numa situação “multilateral”, sem a possibilidade da barganha direta que ocorre no relacionamento dito “assimétrico”, as apostas devem sempre ser colocadas no plano de maior desafio no desempenho comportamental, uma vez que todo país, desejoso de elevar-se na escala do desenvolvimento econômico-tecnológico, deve sempre visar mais alto do que o seu benchmarkaferido. O critério de escolha das prioridades nacionais, necessariamente seletivas e restritas, deve, portanto, obedecer aos princípios da maior eficiência e do maior retorno, o que recomenda um número limitado de “apostas”, uma vez que estas demandarão concentração de recursos que são, por definição, escassos. 
Por isso, “simpatias” em virtude de afinidades – de quaisquer tipos – não são, via de regra, as melhores escolhas a serem feitas. Em conclusão, as prioridades, em numero limitado, são mais o resultado de um estudo detalhado das complementaridades recíprocas que podem ser estabelecidas com algum parceiro verdadeiramente estratégico – e este sempre será, por definição, mais capaz do que o próprio país no terreno visado para a cooperação – do que o resultado de algum impulso subjetivo com base em suposta afinidade de interesses. Esses interesses não precisam ser absolutamente simétricos para que o caráter estratégico da relação possa ser concretizado – ao contrário: eles podem ser relativamente assimétricos – desde que o objetivo principal visado pelo propositor da relação estratégica esteja contemplado na gama reduzida de prioridades nacionais realmente “prioritárias” e que o foco da relação se situe mais no atingimento de fins do que na definição de meios. Com efeito, pode-se eventualmente extrair mais de uma relação construída com base nas diferenças do que nas semelhanças, já que complementaridades e vantagens comparativas têm esse exato suporte na realidade.
    (continua) 

Manual de diplomacia, 5: interesse nacional - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade do Manual de Diplomacia 4)

Manual de diplomacia prática, 5: interesse nacional
Paulo Roberto de Almeida 
Tão difícil de ser definido, quanto são diversas as visões dos grupos que disputam o poder político, possuindo múltiplas facetas e suscetível de ser apropriado por interesses particularistas, o interesse nacional costuma ser identificado com os chamados objetivos nacionais permanentes. Estes podem ser representados resumidamente pelos seguintes elementos: defesa da independência nacional; soberania na tomada de decisões estratégicas; garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional (entre eles energia, bens primários e segurança alimentar); preservação do território em face de intrusões estrangeiras; cooperação com os demais membros da comunidade internacional na manutenção de um ambiente de paz, da segurança e da estabilidade, com vistas ao desenvolvimento econômico e social; preservação dos direitos humanos e manutenção do sistema democrático no contexto regional e mundial (embora este último objetivo não seja ainda consensual, isto é, ele é passível de controvérsia quanto à relevância de sua aceitação no plano internacional).
Interesse nacional
Trata-se, portanto, de uma definição ampla, que incorpora um elemento relativamente novo nesse tipo de discussão, qual seja, o do ambiente externo politicamente democrático e economicamente aberto como constituindo um componente importante do interesse nacional. Não se trata de um requisito essencial, posto que o sistema internacional comporta os mais variados tipos de regimes políticos e as mais diversas formas de “legitimidade” institucional, mas este elemento pode representar uma evolução positiva no plano do direito internacional.
De fato, a incorporação dessa nova dimensão – que amplia a antiga noção, estreitamente doméstica, desse interesse – pode não ser aceita pelos defensores da noção tradicional do interesse nacional, que colocava o regime político e o sistema econômico na esfera estrita das escolhas nacionais, em nome de argumentos soberanistas. Em todo caso, essa ampliação parece coadunar-se inteiramente com o novo ambiente internacional colocado sob o signo da interdependência de valores e de sistemas nacionais. Trata-se de uma nova fronteira do direito internacional que levará algum tempo para receber acolhimento no plano multilateral, mas que poderá ser implementada progressivamente.
Menos de três gerações atrás, isto é, na primeira metade do século XX, esse ambiente aberto e democrático foi ameaçado e desafiado – de fato, violentamente contestado – por regimes ditatoriais, expansionistas e imperialistas, que tentaram construir sistemas fechados ao diálogo democrático, claramente contrários aos direitos humanos e baseados na submissão de outros povos e nações aos seus desígnios totalitários. Os fascismos italiano e alemão e o militarismo japonês, junto com o comunismo de tipo soviético, chegaram a “oferecer” modelos de gestão econômica fortemente baseados no dirigismo estatal, no protecionismo e, sobretudo, na submissão pela força de nações independentes, colocando, portanto, em risco, o interesse nacional de diversos Estados. 
A derrota dos três primeiros regimes totalitários, a um imenso custo para os regimes democráticos, conduziu à reorganização da ordem política mundial, formalmente consubstanciada na ONU (e suas agências especializadas). O totalitarismo de tipo soviético desapareceu nas dobras da história, vítima de auto-implosão – por força de suas próprias “contradições internas”, diriam os marxistas – mas resquícios dele permanecem aqui e ali, sobretudo em algumas mentes emboloradas. O fato é que regimes ditatoriais continuam, no entanto, existindo ainda hoje e, como tal, representam sempre uma ameaça de instabilidade e de ruptura da paz internacional.
O elemento relevante a ser destacado aqui, em relação a essa noção ampliada do interesse nacional, é que este é suscetível de ser ameaçado por um ambiente internacional hostil, criado por Estados que se colocam à margem do direito internacional, mas que teoricamente se refugiam no princípio da soberania absoluta, tal como consagrado na Carta da ONU. O interesse nacional comandaria, portanto, uma evolução do direito internacional na direção do requisito democrático e do respeito aos direitos humanos como critérios de inclusão e de legitimidade no sistema internacional. Trata-se de uma área de fronteira que caberia explorar numa definição de interesse nacional que integre uma política externa avançada, progressista e humanitária.
No caso dos demais elementos do interesse nacional que podem ser caracterizados como propriamente internos – quais sejam, a defesa da independência nacional, a soberania na tomada de decisões estratégicas e a garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional (entre eles energia, bens primários e segurança alimentar) – trata-se, obviamente, de objetivos que devem ser cuidadosamente avaliados em função das novas realidades criadas pela interdependência econômica global, cuja principal característica é precisamente a integração dos mercados. 
Quando das primeiras formulações do interesse nacional, no período do imediato pós-Segunda Guerra, as mentalidades e concepções em torno das questões acima ainda estavam poderosamente influenciadas pelo ambiente econômico geral, pelos comportamentos individuais e pelas políticas públicas pensadas e implementadas nos anos 1930 e no contexto da própria guerra, quando a segurança nacional era definida em termos estreitamente nacionais, reduzindo-se ao mínimo qualquer dependência estrangeira. Não se deve tampouco descurar o fato de que, na sequência da Primeira Guerra, das difíceis tentativas de restauração do padrão monetário anterior ao grande conflito e do fenômeno da intervenção generalizada dos governos nos mecanismos econômicos essenciais, a reputação do capitalismo e dos mercados livres enquanto criadores de emprego e riqueza encontrava-se singularmente diminuída, dando espaço às alternativas dirigistas no plano interno e ao retorno do mercantilismo no plano externo. 
Mesmo sem aderir ao padrão coletivista de organização econômica – tanto em sua modalidade fascista quanto soviética – a maior parte dos governos ocidentais aderiu a mecanismos de “mão visível” do Estado que se inspiraram, ou não, nas recomendações de Keynes. Outra não foi a orientação da principal vertente keynesiana na América Latina, o cepalianismo ou prebischianismo, dominante ideologicamente na região durante largas décadas no pós-guerra e influente na determinação de políticas públicas, macroeconômicas ou setoriais. 
Esses três objetivos possuem, em todo caso, estatutos bem diferentes, segundo que a abordagem seja feita com base em elementos objetivos, relativamente à percepção de alguma ameaça à independência nacional, ou de alguma diminuição potencial de soberania na tomada de decisões estratégicas no plano nacional, ou segundo um entendimento subjetivo da matéria, feito com base em possibilidades teóricas dificilmente realizáveis na prática. Ameaças e fragilidades devem ser avaliados objetivamente, com base numa análise realista do ambiente externo e sua evolução prospectiva. Ainda que os dispositivos militares representem uma espécie de seguro preventivo – por vezes muito custoso – na garantia da independência e na preservação da soberania, avaliações equivocadas podem representar sobre-investimento indevido em determinados fatores dissuasórios ou acumulação de ferramentas inadequadas ao seu emprego mais provável.
Quanto à garantia de aprovisionamentos essenciais à economia nacional – segurança alimentar, energética e em insumos propriamente estratégicos, ou seja, relevantes para a indústria de defesa –, pode-se argumentar que o mundo mudou bastante desde as disputas por fontes de matérias-primas, ainda visível no entre guerras. Por outro lado, tampouco existe, no mundo atual, insegurança alimentar, apenas protecionismo indecoroso travestido de interesse nacional. 
Com a possível exceção de determinados componentes militares – que mesmo assim podem encontrar substitutos em outros mercados –, a maior parte dos bens anteriormente considerados “estratégicos” pode ser objeto de transações comerciais a qualquer momento em mercados abertos ou sob contratos com fornecedores ou cartéis de produtores. A escassez relativa não se explica mais por restrições de caráter político, mas por problemas temporários de distribuição ou devido a fatores extemporâneos de natureza não política. Daí que uma das melhores garantias de aprovisionamento adequado na maior parte dos bens e serviços que movimentam uma economia moderna seja a manutenção de um ambiente aberto e propenso à intensificação das trocas comerciais no mais alto nível permitido pelo equilíbrio de fatores, ou seja pela administração sustentável da balança de transações correntes. Países com alto volume de trocas, nos dois sentidos, também costumam ser os menos dependentes de todos, justamente com base na interdependência complexa de uma economia globalizada. 
            (continua)

Manual de diplomacia, 4: carater inovador - Paulo Roberto de Almeida

(continuidade de Manual de Diplomacia, 3)
Manual de diplomacia prática, 4: caráter inovador
Paulo Roberto de Almeida
Da mesma forma como se diz – frequentemente sem razão, mas talvez com algumas boas razões aparentes – que a guerra é muito importante para ser deixada apenas aos generais, talvez a diplomacia também seja muito importante para ser deixada apenas aos diplomatas. Isto deve ser entendido no sentido em que qualquer serviço público estabelecido – seja ele o exército nacional, o corpo diplomático, ou a burocracia das finanças públicas – tende a considerar suas atribuições normais e suas próximas tarefas como derivando da tradição anterior, fundadas na memória dos fatos passados. Tal tipo de atitude pode resultar, algumas vezes, em paralisação burocrática, em rigidez de métodos e adesão às posições estabelecidas, com claros prejuízos para uma diplomacia de resultados. Inovação e competição entre ideias e propostas sempre são desejáveis, aliás em qualquer domínio ou atividade.
Flexibilidade e abertura às inovações
O mais importante numa diplomacia tida por ágil é a sua capacidade de perceber as novas condições existentes no cenário internacional, visualizar desenvolvimentos futuros com base em novos atores intervenientes e formular novas formas de ação adequadas ao futuro previsível, formas não necessariamente respeitadoras do passado conhecido. Este quarto elemento é o que poderia ser chamado de human factor, algo contingente e imponderável, que não necessariamente emerge naturalmente das condições existentes do serviço diplomático “normal”, mas que depende de estadistas inteligentes, de formuladores dotados dessa “abertura de espírito” e de servidores diplomáticos inovadores. 
O fator humano, sobretudo em sua capacidade de encontrar novas respostas e soluções para velhos problemas, deve ser devidamente aproveitado em uma diplomacia que pretenda ganhos para o país. Ele aparentemente o é, posto que as agências diplomáticas tendem a investir e gastar parte apreciável de seus recursos disponíveis com formação e capacitação de recursos humanos. Mas, normas hierárquicas rígidas e uma disciplina excessiva no respeito dessa mesma hierarquia podem comprometer a livre expressão de agentes inovadores, que costumam ser “dissidentes” ou refuzniksdas verdades oficiais.
                  (continua)

Manual de diplomacia, 3: avaliação dos meios - Paulo Roberto de Almeida

(continuação do Manual de Diplomacia, 2)

Manual de diplomacia prática, 3: avaliação dos meios
Paulo Roberto de Almeida
No plano das relações internacionais e do jogo diplomático, não existem nem podem existir aliados permanentes nem, obviamente, parceiros privilegiados, que o sejam a priori, incondicionalmente e sem qualquer critério de utilidade. A noção de que “aliados estratégicos” o sejam por simples declaração de intenções, de modo vago e sem clareza quanto aos objetivos, é ingênua e principista, sem atender a um claro critério de racionalidade quanto aos meios e fins. 
Aferição dos meios disponíveis 
Um país não pode estabelecer a prioricomo pretende moldar o cenário internacional, sob risco de ver derrotadas suas intenções maiores, uma vez que – salvo no caso de uma hiperpotência – ele não pode determinar sozinho as varáveis que influenciam o jogo internacional. Ele deve, sim, preservar certa flexibilidade de meios, para poder adaptar suas táticas diplomáticas – e até, eventualmente, sua estratégia de ação – à consecução de seus objetivos pretendidos, em função dos meios disponíveis. Esta compatibilidade entre meios e fins faz parte do que se poderia chamar de “planejamento estratégico” em diplomacia. 
Os meios mobilizados pela agencia diplomática, por sua vez, devem ser, em princípio, comensuráveis aos recursos efetivamente disponíveis, sob risco de o país anunciar metas mais ambiciosas em política externa do que as realizações que ele efetivamente possa alcançar. Por outro lado, metas – que de certa forma são equiparáveis a objetivos táticos – podem sempre ser revistas e adaptadas aos meios disponíveis a cada momento, preservando de forma mais ampla possível os objetivos estratégicos do país no cenário regional ou mundial.
Como dispor dessa visão clara quanto aos meios e fins? A resposta pode estar na abertura da agencia diplomática ao maior volume possível de insumos externos, o que pode estar representado por estudos e trabalhos de consultoria especializada, ademais da interação frequente com peritos em determinados temas que escapam à competência técnica da agência. A burocracia diplomática nem sempre é a mais habilitada para conduzir trabalhos analíticos que envolvem uma definição precisa dos objetivos nacionais, vistos seja a partir de dentro da própria administração pública, seja com base em trabalhos acadêmicos de grande sofisticação intelectual.
A consecução de um determinado objetivo externo nem sempre pode ser alcançada pelos meios tradicionais de informação e ação diplomática – normalmente dependentes da capacitação individual ou relacional de um diplomata individualmente tomado – mas pode ser realçada com exercícios e trabalhos de maior refinamento analítico, por meio da mobilização de competências específicas. Da mesma forma, a concretização desse objetivo não necessariamente precisa ser realizada pelos meios diplomáticos usuais, normalmente limitados aos contatos entre chancelarias e mediante a atuação nos meios institucionais disponíveis (multilaterais ou regionais). Daí a utilidade de se dispor de meios suficientemente flexíveis para a implementação de objetivos que podem fugir ao escopo da diplomacia tradicional, como aliás parecem ser os cenários negociadores bastante complexos da economia globalizada. 
(continua...)

Manual de diplomacia, 2: interação com a economia - Paulo Roberto de Almeida

(continuação de Manual de Diplomacia, 1)

Manual de diplomacia prática, 2: interação com a economia
Paulo Roberto de Almeida
Na concepção tradicional da diplomacia, isto é, nas considerações clássicas de política externa, essa relação dual se colocava entre a política externa e os instrumentos militares, ou seja, o poderio estratégico de um determinado país e sua projeção externa. Nas condições atuais, sobretudo para os países emergentes – mas também, no jogo diplomático das grandes potências – essa relação deve ser vista como envolvendo basicamente o mundo econômico (indústria, comércio, investimentos, finanças, tecnologia, recursos humanos, enfim, os grandes determinantes da produtividade e da competitividade contemporânea). 
Interação entre diplomacia e economia
A despeito do argumento de “última instância” – que é a capacidade militar – permanecer o fundamento essencial de toda afirmação nacional, hoje em dia é o poder econômico, e não mais o poder militar em sua expressão pura, que converte ganhos táticos no terreno da diplomacia em claras vitórias no terreno da política internacional. Ou seja, a diplomacia precisa ter uma sólida base nas condições elementares do país, de seu poder econômico, para poder se exercer de modo claro e direto. Trata-se, presumivelmente, de uma diplomacia que converte uma dada condição econômica em ganhos efetivos no plano internacional. 
Há uma tendência, em certos países ou em determinadas forças políticas, de isolar o Estado do restante da sociedade e fazê-lo atuar segundo a vontade dos dirigentes de plantão. Mais precisamente, existe a vontade de tornar o Estado uma força autossuficiente, destacada das forças econômicas reais que o sustentam. Ele então passa a atuar de forma independente delas, apenas extraindo recursos de forma autônoma – e muitas vezes de um modo pouco condizente com os princípios do Estado moderno, ou seja, um orçamento votado e aplicado de forma democrática e transparente – e pode conduzir, eventualmente, uma política externa sem correspondência com as condições concretas do país ou com a sua dinâmica econômica. 
Esta é, paradoxalmente, uma tendência que costuma ser inerente à própria corporação diplomática, na medida em que ela tende a se considerar a própria encarnação do Estado. Ela também pode estar identificada a forças políticas momentaneamente no controle do Estado e que mantêm uma espécie de culto a esse mesmo Estado e o consideram “o” instrumento, por excelência, de seus objetivos particularistas. Corporação diplomática e forças políticas de base eleitoral possuem lógicas distintas de atuação, estabelecendo objetivos de longo ou de curto prazo, segundo o tipo de “produto” a que almejam (cada qual com a sua relação insumo-produto particular). Os ganhos de eficiência em cada caso são tão distintos quanto o caráter das políticas mobilizadas para tal efeito: internas, e portanto mais vinculadas ao governo; externas, relativas a uma certa concepção do Estado (típica de soldados e diplomatas).
A diplomacia não precisa ser a exata expressão da chamada “capabilidade” nacional, pois ela pode compensar, por meio de sua eficiência intrínseca, certas fragilidades inerentes a um Estado apoiado em uma economia ainda pouco desenvolvida. O descolamento entre a diplomacia e a economia, porém, pode ser um fator negativo na implementação dos objetivos principais da política externa nacional, na medida em que certas iniciativas muito ambiciosas podem não encontrar respaldo na disponibilidade de meios adequados quando for o momento de sua implementação.
 (continua)