O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

domingo, 29 de maio de 2022

Antonio Augusto Cançado Trindade: algumas resenhas e minha homenagem ao grande jurista

 Minha homenagem aos colegas, aos intelectuais em geral, consiste, geralmente, numa atenta leitura de suas obras e no oferecimento, sem qualquer pedido externo ou intenção de publicação, de uma ou mais resenhas sobre suas obras. Foi o que fiz em relação às obras do grande amigo, consultor jurídico e eminente juiz de cortes internacionais Antonio Augusto Cançado Trindade. Alguns exemplos aqui abaixo, mas devem ter mais, perdidos em meus arquivos.

Paulo Roberto de Almeida

A Prática do Direito Internacional no Brasil:

uma visão histórica da diplomacia brasileira

 

Antonio Augusto Cançado Trindade:

Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público

(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988)

 

Seqüência dos Volumes (ano de publicação):

1. Índice Geral Analítico (1987)

2. Período 1889-1898 (1988)

3. Período 1899-1918 (1986)

4. Período 1919-1940 (1984)

5. Período 1941-1960 (1984)

6. Período 1961-1981 (1984)

 

A América Latina tem, reconhecidamente, uma longa tradição em matéria de Direito Internacional Público. Mesmo os não especialistas saberiam reconhecer a importância da contribuição continental nesse terreno bastando, por exemplo, fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (ambas, aliás, suscitadas por um problema cruelmente atual, o da dívida externa dos países latino-americanos), ao instituto do asilo diplomático ou ao conceito de mar patrimonial. 

O Brasil, por sua vez, possui longa prática diplomática, alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema inter-estatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de alguns bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano — dentre os quais destacaríamos o do brasileiro Hildebrando Accioly e o do chileno Fernando Gamboa Serazzi — e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, os especialistas e observadores da já referida tradição ressentiam-se da falta de codificação similar para a prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, vem sendo preenchida pelo extraordinário trabalho solitário do eminente internacionalista Antonio Augusto Cançado Trindade, professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores.

A obra que ora se apresenta sob os auspícios da Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, integra uma série de volumes dedicados ao tema da prática diplomática brasileira, cobrindo diversos períodos, desde o início da República até os dias atuais. Autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, dois outros volumes editados pela Universidade de Brasília — Princípios do Direito Internacional Contemporâneo (1981) e O Esgotamento de Recursos Internos no Direito Interrnacional (1984, cuja versão original foi agraciada com o Premio Yorke, da Universidade de Cambridge) — o Professor Cançado Trindade realizou, com os vários livros editados até aqui, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do Direito Internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina e do Terceiro Mundo.

Com efeito, apesar da existencia de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos Governos do continente, não havia, até o presente momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional (de que a Convenção sobre o Direito do Mar é um marcante exemp1o) .

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasi1eira do Direito Irternacional Público, este “ciclópico trabalho” — segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo —, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

 

l) Fundamentos do Direito Internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos Internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos Espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações Internacionais; 

6) Condição dos Indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução Pacífica de Controvérsias e Desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos Armados e Neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da Nação-Mais-Favorecida e, em acordo com os novos tempos, Multinacionais e Segurança Econômica Coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do Direito Internacional Público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história de nossa política externa que está sendo contada nessas páginas retiradas de memoranda, telegramas de instruções, discursos em conferências e trechos de relatórios do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente esses 92 anos de prática brasileira do Direito Internacional Público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) de nosso itinerário republicano. 

Fica aliás a sugestão, para um ulterior volume de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática agora repertoriada, de proceder-se a uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Esses materiais também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que agora esta chegando a seu termo. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível — tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para o scholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais — deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911 não foi publicado o Relatório do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do Direito Internacional Público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais de nosso relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando na verdade essa reunião inaugural do sistema panamericano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda brinda-nos, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. 

Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: “Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981), “A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960), “A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940), “Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e “A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma outra resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os quatro volumes substantivos cobrindo o longo período de 1899 a 1981 são precedidos de um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Mas, tendo sido publicado em 1986, o Índice deixou no entanto de fora o período coberto pelo primeiro volume da série, referente aos anos 1889-1898, uma vez que este veio a luz ulteriormente, em 1988. Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão ao Ministério das Relações Exteriores para que inscreva no programa de trabalho da Fundação Alexandre de Gusmão a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Nestes tempos de Internet, parece evidente, também, que esse importante conjunto de documentos passe a figurar na home page do Ministério, como o faz, por exemplo, o State Departement em relação ao “US Foreign Relations Series” ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica (formato Gopher, suscetível de uma rápida transferência via FTP).

A prática diplomática brasileira, inclusive a que foi escrita pelo próprio Cançado Trindade na Consultoria Jurídica do Itamaraty, merece, sem dúvida alguma, ser melhor conhecida no âmbito internacional. Sejamos, literalmente, internacionalistas assumidos!

 

[Brasília: 04.04.96]

[Relação de Trabalhos n° 520]

[1a. versão, Brasília: 29.12.86; Relação de Trabalhos n° s 142 e 144;

publicada, em versão integral, na revista Humanidades

 (Brasília, Ano IV, nº 12, fevereiro-abril 1987, pp. 119-120),

e, em versão resumida no suplemento literário Cultura,

do jornalO Estado de São Paulo

(São Paulo, ano VII, n° 376, 11.07.87, p. 11)]

[Relação de Publicados nº s 035 e 041]

 

 

520. “A Prática do Direito Internacional no Brasil: uma visão histórico-sistemática das bases jurídicas da política externa brasileira no período republicano”, Brasília, 4 abril 1996, 8 p. Resenha revista e ampliada de Antonio Augusto Cançado Trindade: Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, 1889-1981(Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1984 a 1988), com referência a diversas outras obras do autor. Incorporado ao volume Política externa e relações internacionais do Brasil: uma seleção de leituras (Brasília: edição do autor, abril de 1996, 241 p.), consistindo de estudos e resenhas publicados ou inéditos.

 

===============

 

Antônio Augusto Cançado Trindade: 

Os tribunais internacionais contemporâneos

(Brasília: FUNAG, 2013, 136 p.; ISBN 978-85-7631-424-0; Coleção Em Poucas Palavras); publicado no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros, Prata da Casa: (Ano 20, n. 83, outubro-novembro-dezembro 2013, p. 35-36; ISSN: 0104–8503). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2013/12/prata-da-casa-mais-mini-resenhas-de.html)

 

            O autor, eminente jurista mineiro, já foi consultor jurídico do Itamaraty (na redemocratização), presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, e é, atualmente, um dos juízes da Corte Internacional de Justiça, na Haia. Autor de uma obra impressionante no campo do Direito Internacional, em várias línguas, em pouco mais de cem páginas ele realiza a proeza de sintetizar os fundamentos e o funcionamento dos diversos tribunais existentes no plano multilateral, nem todos de jurisdição obrigatória, mas possuindo, cada vez mais competência para realizar uma defesa efetiva dos direitos humanos, lutar contra a impunidade e aproximar a comunidade humana do ideal de justiça internacional. Esses órgãos reafirmam a unidade fundamental do direito internacional e o primado do direito sobre a força bruta. Uma síntese admirável, pelo melhor autor possível.

 

“Visita do Professor Cançado Trindade, juiz da CIJ, à Funag-IPRI”, Brasília, 8 setembro 2016, 2 p. Registro da visita de cortesia do Juiz da Corte Internacional de Justiça, Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade, ao presidente da Funag e ao Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI, com entrega de seus últimos livros. Postado com foto e capas de livros no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/09/visita-do-professor-a-cancado-trindade.html)

=============

A construção do direito internacional do Brasil a partir dos pareceres dos consultores jurídicos do Itamaraty: do Império à República


Cadernos de Política Exterior (Brasília: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, Funag-MRE; ano II, n. 4, segundo semestre 2016, p. 241-298; ISSN: 2359-5280; link: http://funag.gov.br/loja/download/1186-cadernos-de-politica-exterior-ano-2-volume-4.pdf).

Excertos: 

(...)

O primeiro Consultor na redemocratização foi o professor Antônio Augusto Cançado Trindade, já autor, a despeito de relativamente jovem, de vasta obra no campo do direito internacional. Segundo Cachapuz de Medeiros, que prefacia o vol. VIII (1985-1990):

 Foi um dos mais dinâmicos, produtivos e eficientes consultores com que o Itamaraty contou. 

Seu legado à “Casa de Rio Branco” constitui uma coleção de mais de duzentos circunstanciados pareceres.” (p. 11)

 

Sua atividade coincidiu também com o processo de reconstitucionalização do Brasil, por meio do Congresso constituinte de 1987-88, o que determinou que ele fosse ouvido nas comissões que se ocuparam dos princípios que regem as relações internacionais do país e o processo de celebração de tratados. Continua ainda o ex-Consultor Cachapuz de Medeiros: 

Valiosa foi igualmente a contribuição do Professor Cançado Trindade na fundamentação jurídica para a adesão do Brasil aos tratados gerais de proteção aos direitos humanos, notadamente os dois Pactos de Direitos humanos das Nações Unidas e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. (p. 11-12)

 

De 22 de maio de 1985 a 12 de março de 1990, Cançado Trindade assinou alentados pareceres, praticamente todos recheados de notas de rodapé, milhares delas, referenciando obras relevantes de cada uma das áreas examinadas especificamente, o que praticamente nunca tinha sido visto nos textos dos antigos consultores, que se contentavam em citar, no corpo do texto, um ou outro tratadista mais conhecido. Em outros termos, Cançado Trindade elevou a arte da consultoria jurídica à condição de scholarly work, de trabalho científico no pleno conceito da expressão, representando assim, uma acumulação inédita de citações eruditas nos trabalhos da chancelaria brasileira, sem esquecer suas reflexões de alto conteúdo intelectual, que honram não só a inteligência da Consultoria Jurídica como também ajudaram a construir, ou a reforçar, a própria credibilidade e reconhecida excelência do Itamaraty. 

Esse aparato remissivo não compila apenas a doutrina ou a teoria jurídica nos campos tocados pelo bisturi analítico extremamente sofisticado de Cançado Trindade, ou densos estudos de ciência do direito, mas referencia igualmente, e precisamente, documentos  pertinentes das instituições multilaterais e muitos materiais da própria chancelaria brasileira, o que converte cada parecer seu num instrumento de trabalho (para os diplomatas) e de pesquisa (para os acadêmicos) utilíssimo para quem aprecia, ou para quem necessita, valer-se desse manancial de conhecimento prático para instruir obrigações funcionais ou outros deveres intelectuais. Sem qualquer objetivo encomiástico, mas ao contrário, apenas como reconhecimento objetivo, a gestão de Cançado Trindade à frente da Consultoria Jurídica do Itamaraty foi excepcional em todas as dimensões e sentidos desse termo. Sua colaboração se completa, mas não termina, pela utilíssima compilação da prática brasileira do direito internacional público, objeto de vários volumes do seu Repertório, analisado mais abaixo.

(...)

8. O Repertório da prática brasileira do direito internacional público: obra única

Finalmente, uma resenha bibliográfica como a que aqui se apresenta em torno das publicações da Funag em matéria de direito internacional não estaria completa sem uma menção substantiva à principal contribuição de um dos maiores internacionalistas jurídicos do Brasil e do mundo, o Professor Antônio Augusto Cançado Trindade. A própria existência da Funag, enquanto maior editora brasileira de livros de relações internacionais – e a maior provedora, a título gratuito, de materiais de estudo para candidatos à carreira diplomática, e de pesquisa para estudantes e professores da área – tem como marca inaugural, entre 1984 e 1987, a publicação dos cinco volumes do Repertório, republicados em nova e revista edição em 2012[1], por ocasião dos 40 anos da Funag e centenário da morte do Barão do Rio Branco. O Barão foi devidamente e competentemente homenageado, pela Funag, com a republicação de suas obras completas[2] e por uma obra coletiva feita a partir do seminário em sua homenagem[3]). A importância substantiva do Repertório de Cançado Trindade para o estudo e a pesquisa em torno da tradição jurídica da diplomacia brasileira merece, tanto quanto as obras do Barão, uma avaliação pormenorizada de seu conteúdo, no que ele pode esclarecer quanto à evolução da prática brasileira nessa construção coletiva que é o direito internacional no e do Brasil, no contexto regional e internacional.

A América Latina sempre exibiu, sabidamente, boa tradição em matéria de Direito Internacional Público, podendo-se fazer referência ao princípio do uti possidetis, à cláusula Calvo, à doutrina Drago (aliás bastante adequadas a um problema recorrente dos países latino-americanos, o da dívida externa), ao instituto do asilo diplomático ou a outros conceitos na mesma vertente. A diplomacia brasileira, por sua vez, adquiriu, a partir de suas raízes lusitanas, uma prática negociadora relativamente precoce (como evidenciado no trabalho de Alexandre de Gusmão), experiência diplomática alicerçada em sólida e igualmente longa tradição jurídico-legal, o que tornou sua política externa respeitada internacionalmente e merecedora da confiança dos demais membros do sistema interestatal contemporâneo. 

A codificação da tradição internacionalista latino-americana deveria, assim, representar um subsídio indispensável ao processo de elaboração do Direito Internacional Público, ramo do direito em constante evolução e transformação. Em que pese, porém, a existência de bons manuais de Direito Internacional Público elaborados no contexto latino-americano e dedicados à evolução doutrinária e jurisprudencial do chamado jus gentium, a comunidade pesquisadora ou praticante se ressentia até o início dos anos 1980 da falta de uma sistematização da prática dos Estados no campo das relações diplomáticas e do Direito Internacional Público. Essa lacuna, pelo menos no que concerne o Brasil, foi preenchida desde essa época, pelo extraordinário trabalho de compilação efetuado pelo eminente internacionalista Cançado Trindade, então professor de Direito Internacional Público da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco e primeiro consultor jurídico do Itamaraty na redemocratização.[4]

Cabe apenas lamentar, que passados todos estes anos, o Brasil continue a ser o único país latino-americano a contar com uma ferramenta desse tipo para os estudos especializados e a consulta da memória jurídica da prática dos Estados em matéria de direito internacional público. Já autor de vasta produção especializada no campo do Direito Internacional Público, incluindo, além de numerosos artigos e monografias publicados nos principais periódicos do mundo, muitos livros publicados em várias línguas, o Professor Cançado Trindade realizou, com o Repertório, um esforço altamente meritório e rigorosamente inédito não apenas nos anais do direito internacional brasileiro, como na história jurídica da América Latina.

Com efeito, apesar da existência de Relatórios de Chancelarias, bem como de Coleções de Atos Internacionais publicados por diversos governos do continente, não havia, até aquele momento, um Repertório, organizado de forma lógica e sistemática, da prática diplomática corrente de algum Estado latino-americano. O Brasil junta-se, assim, aos poucos países do hemisfério norte que coletam em seus Digests ou Repértoires anuais os elementos mais significativos de suas práticas nacionais respectivas em matéria de Direito Internacional Público e de relações diplomáticas. 

A importância do trabalho do Professor Cançado Trindade para o Brasil e para as demais nações do continente é tanto maior que a divulgação sistemática e selecionada da prática diplomática brasileira contribui para projetar num âmbito mais amplo os interesses econômicos, políticos e diplomáticos propriamente nacionais ou regionais, sobretudo aquelas posições de princípio ligadas à lenta elaboração de uma nova ordem econômica internacional, com o reforço progressivo dos países emergentes.

Mas, em que consiste exatamente o Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, este “ciclópico trabalho” – segundo a feliz caracterização empregada pelo Embaixador João Hermes Pereira de Araújo –, que cobre o conjunto das relações internacionais do Brasil entre 1889 e 1981? A estrutura dos cinco volumes substantivos é basicamente idêntica, com pequenas variações em função do período tratado, consistindo de nove partes articuladas em torno das seguintes rubricas: 

l) Fundamentos do direito internacional, destacando-se, nos princípios que regem as relações amistosas entre os Estados, a “soberania permanente sobre recursos naturais”, de introdução mais recente; 

2) Atos internacionais, cobrindo a ampla processualística dos tratados entre Estados e organizações; 

3) Condição dos Estados, envolvendo reconhecimento, jurisdição, imunidades, responsabilidade internacional e sucessão de Estados; 

4) Regulamentação dos espaços, territorial, marítimo, aéreo e espacial; 

5) Organizações internacionais; 

6) Condição dos indivíduos, compreendendo direitos humanos e direito de asilo; 

7) Solução pacífica de controvérsias e desarmamento, inclusive, para o período recente, um capítulo para a questão do terrorismo; 

8) Conflitos armados e neutralidade; 

9) miscelânea, abrigando, entre outros temas, cláusula da nação-mais-favorecida e multinacionais e segurança econômica coletiva. 

 

Em cada um desses grandes blocos de problemas do direito internacional público abriga-se um manancial extraordinário de informações e documentos de referência sobre a prática brasileira nos períodos delineados. De certa forma, é a própria história da política externa brasileira que é contada nessas páginas retiradas de memoranda, de telegramas de instruções, de discursos em conferências e de trechos dos relatórios anuais do Itamaraty.

A periodização adotada por Cançado Trindade para repartir cronologicamente os 92 anos dessa edição da prática brasileira do direito internacional público, se parece atender mais a critérios de conveniência do que propriamente razões de ordem metodológica ou historiográfica, tem pelo menos o inegável mérito de sublinhar a notável continuidade e constância de posições demonstradas pela prática diplomática do Brasil, a despeito mesmo de rupturas na ordem política e constitucional em alguns momentos fortes (1930, 1937, 1964) do itinerário republicano nacional. 

Poder-se-ia talvez sugerir, num volume ulterior de interpretação e de comentários sobre a prática diplomática ali repertoriada, uma análise diacrônica comparativa sobre as posições adotadas pelo Brasil em face de desafios similares em momentos diversos de nossa história. Os materiais ali coletados também fornecem abundante matéria-prima não só aos historiadores diplomáticos e aos estudiosos das relações internacionais do Brasil, como também aos juristas interessados num embasamento histórico-jurisprudencial dos princípios sempre sustentados pelo Brasil em cortes internacionais e em organismos multilaterais.

Estabelecida a divisão temática, vejamos com que tipo de “matéria-prima” trabalhou Cançado Trindade na monumental compilação que infelizmente ainda carece de atualização e complementação cronológica. O simples enunciado dos diversos tipos de fontes documentais dá uma ideia da grandiosidade do esforço empreendido pelo brilhante internacionalista: a maior parte dos textos selecionados é proveniente de material impresso oficial do Itamaraty, consistindo de relatórios anuais encaminhados à Presidência da República, pareceres jurídicos dos Consultores do Itamaraty, correspondência e expedientes de serviço (notas trocadas com outras Chancelarias, declarações de beligerância, documentos internos ostensivos, memoranda não publicados etc.), discursos e pronunciamentos do Ministro das Relações Exteriores, intervenções de delegados brasileiros em conferências especializadas ou em sessões de organizações internacionais e demais declarações oficiais do Governo brasileiro sobre temas de relações internacionais, incluindo-se declarações conjuntas de natureza bilateral. Figuram ainda, neste vasto e completo repertório, discursos pronunciados por parlamentares nos plenários do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, bem como exposições e debates realizados em suas respectivas Comissões de Relações Exteriores por ocasião do comparecimento do Chanceler brasileiro. 

Imagine-se as dificuldades do trabalho engajado por Cançado Trindade: não bastasse o critério de escolha e seleção da documentação disponível – tarefa por si só angustiante para o honnête homme e quase um tormento para oscholar consciencioso, que trabalha sobre uma verdadeira mina de preciosidades documentais – deve-se levar em conta a verdadeira multiplicidade de vias para o acesso às fontes e o caráter frequentemente confidencial dos documentos compulsados. Ainda que a maior parte da documentação reunida estivesse sob forma impressa, o distanciamento em relação a nossa época a torna quase que inédita, entregue que estava, nas últimas décadas, a um outro tipo de “crítica roedora”. 

Como bem disse o Embaixador Jose Sette Câmara, Cançado Trindade “conseguiu condensar uma imensa área de informação que estava dispersa e perdida na poeira dos arquivos do Itamaraty”. Mesmo que nosso reconhecimento de pesquisadores não se esgote neste aspecto específico do garimpo documental, somos todos gratos a Cançado Trindade por esse longo convívio com “traças literárias” de diversas épocas, dispensando-nos de igual frequentação. No caso do volume relativo aos anos 1899-1918, que cobre, inter alia, a gestão do Barão do Rio Branco, alguns documentos são efetivamente inéditos, pois que entre 1903 e 1911, como se sabe, o Barão não cuidou de preparar e publicar os tradicionais relatórios anuais do MRE.

No que se refere à substância mesma do material selecionado, os documentos escolhidos são altamente significativos e esclarecedores da posição oficial brasileira sobre os grandes temas do direito internacional público, permitindo igualmente ao historiador uma visão evolutiva da política externa brasileira em diversas questões cruciais do relacionamento internacional. 

A título de exemplo, comparecem nos diversos volumes problemas tão diversos como o “discurso do delegado Salvador de Mendonça ao término dos trabalhos da I Conferência Internacional Americana” (período 1889-1898), quando, incidentalmente, essa reunião inaugural do sistema pan-americano tinha sido iniciada em Washington quando o Brasil ainda era uma monarquia; um “excerto do Relatório do Itamaraty sobre o Reconhecimento pelo Brasil do Governo Provisório da Rússia, em 9 de Abril de 1917” (1899-1918); o “discurso do representante do Brasil, Mello Franco, de 10 de junho de 1926, sobre a retirada do Brasil da Liga das Nações” (1919-1940); o telegrama enviado por Giraud e de Gaulle a Getúlio Vargas a propósito do “Reconhecimento pelo Brasil do Comitê Francês de Libertação Nacional, em 1943” (1941-1960); ou a “Nota de Denúncia do Acordo de Assistência Militar Brasil-Estados Unidos, de 11 de março de 1977” (1961-1981), começo de um período de deterioração nas relações bilaterais.

Como se não bastasse tal riqueza documental, Cançado Trindade ainda nos brinda, em cada um dos respectivos capítulos introdutivos aos volumes editados, com excelentes análises descritivas e críticas sobre o estudo das práticas nacionais de Direito Internacional Público e o papel dos repertórios sistemáticos no processo de codificação progressiva nesse campo, que dão testemunho, por elas mesmas, da excepcional erudição, saber jurídico e aggiornamentobibliográfico do (então) jovem Consultor Jurídico do Itamaraty. Esses textos, que mereceriam uma eventual unificação metodológica e publicação independente, são, nominalmente (pela ordem cronológica de sua redação), os seguintes: 

“Os repertórios nacionais do Direito Internacional e a sistematização da prática dos Estados” (1961-1981); 

“A expansão da prática do Direito Internacional” (1941-1960); 

“A emergência da prática do Direito Internacional” (1919-1940); 

“Necessidade, sentido e método do estudo da prática dos Estados em matéria de Direito Internacional” (1899-1918) e 

“A sistematização da prática dos Estados e a reconstrução do jus gentium” (1889-1898). 

 

Todos esses textos introdutórios, extremamente ricos em sua própria densidade metodológica e de contextualização, justificariam uma resenha crítica, que não caberia contudo nos limites deste trabalho de apresentação. Eles constituem, ademais, um registro atualizado e sintético da experiência de outros países em matéria de repertórios de prática diplomática, permitindo uma visão global da diversidade metodológica e conceitual ainda vigente nos registros nacionais de Direito Internacional Público.

Os volumes substantivos, cobrindo o longo período de 1899 a 1981, são complementados por um Índice geral analítico, absolutamente indispensável ao pesquisador sistemático, aquele interessado, por exemplo, numa perspectiva comparada, no longo prazo, das posições adotadas pelo Brasil em relação ao instituto da arbitragem. Atendendo parcialmente a recomendação do Professor Alexandre Charles Kiss, autor do Repértoire francês, no sentido de que seja providenciada uma edição em francês e em inglês do Index e do sumário dos livros editados, esse volume compreende também um índice cumulativo em inglês e em francês. Ele também traz a relação de todos os ministros de Estado das relações exteriores, dos secretários-gerais e dos consultores jurídicos do Itamaraty (a partir de 1899). Como ressaltado na nota introdutória e explicativa a esse Índice, os critérios de escolha e de classificação das entradas (em ordem alfabética e comportando subitens) buscaram seguir, tanto quanto possível, uma padronização uniforme para facilitar a pesquisa.

Seria dispensável, por tão óbvia, fazer sugestão para que a Funag inscreva no seu programa de trabalho a atualização periódica do Repertório iniciado pelo Professor Cançado Trindade. Os volumes, sobretudo a edição revista e atualizada nos textos de expediente, publicada em 2012, já constam da Biblioteca Digital da Fundação (ver: http://funag.gov.br/loja/), como por sinal já fazem, por exemplo, para seus materiais o Departamento de Estado em relação ao US Foreign Relations Series ou os National Archives para inúmeros textos de referência histórica.

 



[1] Cançado Trindade, Antônio Augusto. Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público; vol. I: período 1889-1898; vol. II: período 1899-1918; vol. III: período 1919-1940; vol. IV: período 1941-1960; vol. V: período 1961-1981Índice Geral Analítico. 2a. ed.: Brasília: Funag, 2012.

[2] Gomes Pereira, Manoel (ed.). Coleção Barão do Rio Branco. Brasília: Funag, 2012, 9 vols.

[3] Ver Gomes Pereira, Manoel (org.). Barão do Rio Branco: 100 anos de memória. Brasília: Funag, 2012.

[4] Ver Cançado Trindade, Antônio Augusto, Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público, de 1889-1981, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, em 6 volumes, de 1984 a 1988; a sequência exata do ano de publicação de cada um dos volumes foi esta: período 1961-1981: 1984; período 1941-1960: 1984; período 1919-1940: 1984; período 1899-1918: 1986; Índice Geral Analítico: 1987; período 1889-1898: 1988.






Brasil Paralelo: Paulo Roberto de Almeida (14/10/2016) - uma entrevista sobre políticas econômicas e diplomacia

De vez em quando alguém comenta neste vídeo do Brasil Paralelo – entidade que eu desconhecia completamente quando voltei ao Brasil e me convidaram para dar uma entrevista sobre economia e política externa, o que foi feito de completo improviso – no qual eu comento, em OUTUBRO DE 2016, as políticas econômicas e a diplomacia da era petista, e do Brasil em geral.

sábado, 28 de maio de 2022

Resenha do livro de J.A. Lindgren Alves: É preciso salvar os Direitos Humanos - Carla Vreche (Lua Nova)

Resenha de: LINDGREN-ALVES, José Augusto. 

É preciso salvar os direitos humanos. 

São Paulo: Perspectiva, 2018.

 


Carla Vreche[1]

Revista Lua Novanº 114 - 2022

https://boletimluanova.org/resenha-de-lindgren-alves-jose-augusto-e-preciso-salvar-os-direitos-humanos-sao-paulo-perspectiva-2018/


O atual cenário político internacional é bastante diverso daquele dos anos 1990 e início do século XXI, no qual os direitos humanos eram tidos como tema de importância global. Sem dúvidas, algo está mudando desde então. O ar político que paira sobre nossas vidas pesa com a desvalorização da “última utopia”, aquela que foi considerada a alternativa restante às utopias políticas do século XX (MOYN, 2010). Com discursos que contestam a relevância desses direitos, o crescimento da direita populista e a narrativa do “cidadão de bem” são marcas expressivas de nosso tempo. Intrinsecamente relacionados, esses eventos dão base ao apelo feito por José Augusto Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos! Diplomata de carreira, com extensa experiência em órgãos que tratam da matéria, Lindgren Alves tem fornecido importantes contribuições em suas reflexões e produções, que envolvem aspectos da sua vivência no sistema das Nações Unidas, onde ocupa cargo no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) desde 2002.

Registrada inicialmente em Direitos Humanos como Tema Global (2003) e aprofundada em Direitos Humanos na Pós-Modernidade (2013), o livro É preciso Salvar os Direitos Humanos (2018) reforça sua posição no debate entre universalistas e relativistas e dá tom à sua atitude deliberadamente crítica diante das ameaças à legitimidade dos direitos humanos. Nessa obra, Lindgren Alves aponta a necessidade de retomar a aspiração universalista dos direitos humanos e a urgência de se voltar à atenção para o avanço social, esquecida pelo que chama de “militância multicultural hegemônica”. Composto por uma coletânea de doze textos, escritos entre 1996 e 2016, o livro pode ser dividido em dois grandes blocos. No primeiro deles (capítulos 1 ao 7), estão presentes as ponderações críticas mais amplas ao relativismo cultural e seus efeitos no sistema internacional de direitos humanos. No segundo (capítulos 7 ao 12), são apresentados alguns casos que refletem sua preocupação, ou seja, o esmorecimento da matéria e suas consequências. O argumento central – a necessidade de reforçar a universalidade dos direitos humanos – perpassa todo o trabalho.

Do descrédito crescente que ameaça os direitos humanos, o autor identifica causas múltiplas. Desde a falta de comprometimento por parte de países democráticos e desenvolvidos, como mostra a “guerra ao terror”, até a especialização e crescimento do sistema de direitos humanos, sua crítica principal fica reservada à esquerda, que em nome do direito à diferença estaria causando prejuízos com base em um “modismo panfletário pós-moderno”. Para ele, a “esquerda progressista” errou ao se abrir ao “progressismo liberal pós-moderno” do relativismo, pois isso pouco contribui para a efetividade dos direitos, especialmente econômicos e sociais, mas não só. Deixando em segundo plano as consequências nefastas do neoliberalismo à condição dos sujeitos, a esquerda criou uma brecha que favoreceu o aumento da receptividade da opinião pública – decepcionada com a democracia e os direitos humanos, especialmente pela violência que a assola – à direita populista.

É a partir disso que Lindgren Alves traça sua extensa e forte crítica ao dito “politicamente correto”. Em sua visão, o discurso particularista do “culturalismo das minorias”, defendido pela esquerda e adotado por funcionários da ONU e membros de movimentos sociais e ONGs, favorece um grupo específico em detrimento da totalidade da igualdade propalada. Esse quadro seria o responsável por aumentar preconceitos existentes, enfraquecendo a ideia dos direitos humanos, e também daria base a fundamentalismos e segregacionismos agressivos. O “conformismo mercadológico” da diferença muda o foco de atenção e esconde as reais razões das violações. Para o autor, o discurso falsamente progressista serve a tendências racistas, ultranacionalistas e fascistas, representadas em muito pela direita populista. Universalista convicto, Lindgren Alves defende o respeito às diferenças, mas não o que chama de sua “sacralização”.

O desenvolvimento de mecanismos de controle e documentos internacionais para atender demandas específicas, sem que tenham como pano de fundo a ideia de que são criados para o fortalecimento de direitos universais, em sua opinião, também dá margem a excessos que repercutem no enfraquecimento de um sistema já debilitado. Dificultando a prática do trabalho dos órgãos existentes, esses novos dispositivos propalam deveres e exigem reforços financeiros que tanto os Estados quanto a ONU não possuem condições de sustentar. Através de exemplos de sua observação participante no CERD, Lindgren Alves mostra preocupação com a atenção dada a matérias que considera secundárias, como o que aponta ser a defesa essencialista das culturas, em detrimento de assuntos urgentes na ordem do dia, como terrorismo e refugiados.

Apontadas as principais questões que acredita envolver o atual enfraquecimento e fragmentação dos direitos humanos, o autor defende a realização de uma revisão geral de todo o sistema. Além do reiterado reforço da universalidade da Declaração Universal, destacada em Viena (1993), identifica a necessidade de unificação dos procedimentos de comunicações individuais; de uma observância rigorosa dos mandatos dos organismos; de moderação no uso de iniciativas extra-convencionais; e de aumento da independência dos peritos. Em suma, o sistema deve ser corrigido de modo a eliminar o que identifica como sendo os excessos do “politicamente correto” e suas posturas maximalistas, dando preferência à integração das culturas (e não assimilação) à universalidade dos direitos, ao invés da defesa aguerrida do “multiculturalismo” que o caracteriza no presente.

Assim, o debate engajado de Lindgren Alves produz uma reflexão oportuna ao nosso tempo, quando diariamente procuramos respostas para o avanço da direita populista, o enfraquecimento da esquerda e a desvalorização do discurso dos direitos humanos, tão marcadamente evidentes. E, apesar de alguns de seus exemplos carecerem de maior reflexão, especialmente aqueles ligados ao Brasil – como o da visão branda e positiva que possui da instalação de UPPs no Rio de Janeiro ou do uso dos “direitos humanos” em instrumentos de repressão – a contribuição do autor é importante para o debate entre universalismo relativismo dos direitos humanos, além de compor o conjunto das análises múltiplas e distintas sobre o momento em que vivemos. Sem ainda poder escolher aquela que seria a mais certeira, os textos de É preciso salvar os direitos humanos trazem uma resposta possível desde dentro, em uma reflexão crítica da ONU, da militância dos direitos humanos e também dos partidos de esquerda no processo.

A despeito do tom preocupado, por vezes, bastante cético, e explicitamente indignado, Lindgren Alves termina seu texto com uma esperança latente, apontando não apenas caminhos de recuperação, mas demonstrando experiências empíricas e casos em que a relevância da universalidade dos direitos humanos é evidente. O chamado que faz é substancialmente importante e busca trazer racionalidade à consciência política de uma luta cheia de paixões: como avançar em temas específicos quando não conseguimos ainda consolidar a garantia dos direitos básicos propalados pela Declaração? Entretanto para além da pertinência e importância específica desse texto, que esclarece aspectos do sistema desconhecidos e indica fontes e responsabilidades, chama atenção uma questão não respondida, que parece não ser considerada em sua proposta de revisão universalista. Tendo reconhecido a universalidade, mas também a existência das diferenças, como gerar integração sem assimilação?


Referências bibliográficas

LINDGREN-ALVES, José Augusto. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LINDGREN-ALVES, José Augusto. Direitos humanos na Pós-Modernidade. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LINDGREN-ALVES, José Augusto. É preciso salvar os direitos humanosSão Paulo: Perspectiva, 2018.

MOYN, Samuel. The last utopia: human rights in history. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 2010.


[1] Doutoranda em Ciência Política pelo IFCH/Unicamp e membra do Conselho Editorial do Boletim Lua Nova. Bolsista FAPESP (nº 2018/16992-6). E-mail: carlavreche@gmail.com

 

José Augusto Lindgren Alves: Direitos Humanos e Política Externa (Instituto Diplomacia para Democracia)

 

Prefácio de Gelson Fonseca Jr., ao livro de J.A. Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos

 UM APELO NECESSÁRIO  

Gelson Fonseca Júnior

Prefácio ao livro de José Augusto Lindgren Alves:

É Preciso Salvar os Direitos Humanos

(São Paulo: Perspectiva, 2018)

 


 Para esta coletânea de artigos, José Augusto Lindgren Alves escolheu, com boas razões, um título que traz um apelo e tem sentido de urgência: É preciso salvar os direitos humanos. O apelo merece atenção porque feito por um dos mais notáveis especialistas brasileiros em direitos humanos, conhecido por sua ampla e respeitada produção. As reflexões de Lindgren começam a ser articuladas em 1989, quando apresenta a tese, As Nações Unidas e os Direitos Humanos, ao Curso de Altos Estudos, do Instituto Rio Branco. Em seguida, em 1994, publica seu primeiro livro, Os Direitos Humanos como Tema Global (Perspectiva, 1994) e, daí em diante, não interrompe mais a sua contribuição intelectual e diplomática à causa dos direitos humanos. No seu currículo, são sete livros e inúmeros artigos em revistas acadêmicas e jornais. Anoto que seus primeiros textos estão voltados para a diplomacia dos direitos humanos e todos se tornam referência necessária para quem estuda o tema, especialmente o Relações Internacionais e Temas Sociais: a Década das Conferências (IPRI-FUNAG, 2001). 

Gradualmente, o seu horizonte temático se alargou. As questões de direitos humanos naturalmente o estimularam a analisar os fatores sociológicos que condicionavam a sua promoção e aplicação. Também não faltou, em seus escritos, a preocupação filosófica, centrada no exame do sentido da universalidade da projeção dos DHs. Impressiona a maneira como Lindgren introduz a reflexão de clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e de pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sem, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flavia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Assim, seus argumentos ganham em profundidade e estão em permanente diálogo com o melhor pensamento sobre os rumos da civilização na modernidade e na pós-modernidade. Na obra de Lindgren, ressalta ainda o fato de que suas ideias são, como se dizia, engajadas, ligadas frequentemente no debate nacional e internacional sobre as questões difíceis do campo. 

A carreira de Lindgren acompanha e estimula as suas reflexões. Ele chefiou a área de direitos humanos no Itamaraty em 95 e 96, participou das Conferências Globais das Nações Unidas, dos anos 90, a começar pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, e, graças a seu conhecimento e reputação, foi eleito, a título pessoal, em 2002, como perito, para o Comitê para a Erradicação da Discriminação Racial (CERD), da Nações Unidas. Reeleito sucessivamente, está até hoje no Comitê. 

Nos artigos aqui compilados, todas as virtudes do pensador e do diplomata, do estudioso e do militante, aparecem e se combinam para propor uma reflexão madura, consistente, oportuna, e que deve ser lida, com proveito, por todos que querem um país (e uma ordem internacional) orientado por valores que sustentem a dignidade das pessoas e dos grupos sociais. Não tenho dúvidas de que o livro alargará o conhecimento de leigos e especialistas sobre o estado atual do debate sobre as questões de direitos humanos. E, ainda, vale a leitura pela elegância da apresentação dos argumentos, sempre claros, precisos, redigidos de tal forma que torna fácil mesmo a compreensão de temas complexos. 

A coletânea, organizada a partir de textos escritos entre 1996 e 2016, chama atenção, inicialmente, pela a abrangência da temática, unificada pela preocupação com o esmorecimento do prestígio da causa dos direitos humanos e suas consequências. O ponto de partida são os sinais múltiplos, crescentes, de que a luta pela defesa e promoção dos direitos humanas, que marca os anos 90, começa a sofrer distorções, encontra dificuldades para avançar. Aliás, como para provar que o problema é agudo e urgente, em fins de dezembro de 2017, o Princípe Zeid Raád Hussein, comissário de direitos humanos da ONU, anunciava que desistia de um segundo mandado na função com palavras contundentes, “After reflection, I have decided not to seek a second four year term. To do so, in the current geopolitical context, might involve bending a knee in supplication; muting a statement of advocacy; lessening the independence and integrity of my voice – which is your voice”.

No abrangente diagnóstico que Lindgren faz do problema do esmorecimento da causa dos DHs, a evolução recente do contexto político internacional e o comportamento das potências é um deles. Mas, sem hierarquizá-los, há outros fatores que, acredita o autor, se tornaram estruturais, como o da transferência da luta universal para causas particulares pela via do multiculturalismo e a própria dinâmica da burocracia internacional de DH que se multiplica em detrimento da eficácia. É impressionante o arsenal de argumentos, apoiado sempre por ilustrações valiosas, que Lindgren coleciona para demonstrar a sua tese. Parece que nada, na história recente da promoção dos direitos humanos, escapa a seu escrutínio. Lida com o tema da xenofobia na Europa, das torturas em Guantánamo, da evolução complicada da situação na Bósnia, de posições de Bento XVC, da ocidentalidade dos direitos humanos e muito mais. Resume a história da trajetória do sistema de direitos humanos, discute a diferença que tem em relação ao direito humanitário e mostra em que condições (paz e guerra) podem e devem ser aplicados. Também é valiosa a análise de dentro dos mecanismos multilaterais, especialmente da CERD. Neste tema, aliás, creio que a sua contribuição é única e reveladora. 

Uma das forças do texto é o de que não foge à polêmica. É corajoso, como tem sido corajosa a sua participação no CERD, muitas vezes isolado, ao enfrentar temas espinhosos como o dos excessos do politicamente correto. As afirmações de Lindgren são frequentemente contundentes, em retórica forte, sem meias palavras. Ao refletir com indignação racional ao que vê, combina sentimentos fortes e argumentos fortes. O descaminho da luta pelos direitos humanos, em sua concepção mais valiosa, como a que está fixada na Conferência de Viena de 1993 não é uma perda menor para uma ordem internacional carente de padrões éticos e, sobretudo, para homens e mulheres ainda discriminados, ainda longe de gozar direitos dos mais elementares direitos. 

Para situar as origens da preocupação de Lindgren, é necessário lembrar o que a causa dos direitos humanos realizou ou ajudou a realizar. A aceitação da universalidade dos direitos humanos e sua articulação multilateral em Viena têm reflexos notáveis para a luta social pela dignidade humana, nos últimos anos. Lindgren lembra que os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; os homossexuais no Ocidente puderam começar a assumir-se; a escravidão passou a ser encarada como aberração equiparável aos crimes contra humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais para abranger categorias distintas de negro e mestiços. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra perderam legitimidade; aboliram-se conceitos como o de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; os homossexuais ganharam direitos civis iguais aos dos homens e mulheres; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

É evidente que o trabalho de levar adiante as propostas e determinações da Declaração Universal dos Direitos Humanos, renovadas pela Conferência de Viena, e por tantos outros documentos internacionais, está longe de ser completada. Nos anos 90, no imediato pós-Guerra Fria, a percepção dominante era de que a conquista da universalidade dos DHs estava garantida e se tornava parte obrigatória do repertório de legitimidade internacional, constituindo referência política que com a vocação da permanência. As lutas não seriam por princípios ou teses, mas para realizá-los, para fazer com que modelassem a realidades; o que se pretendia eram mudanças de normas jurídicas, de comportamentos, de atitudes individuais e coletivas. Vale citar Lindgren que esclarece com acuidade o que significam: 

Com sua natureza cogente e valor referencial abrangente, os direitos humanos não são e não podem representar objetivos em si. Constituem, sim, instrumentos internacionais de conformação normativa, insuficientes, mas úteis, à disposição, em primeiro lugar, da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça. 

 

O projeto não era, portanto, de curto prazo, mas incorporava e organizava aspirações da humanidade que vinham do Iluminismo. É verdade que, desde sempre, reconhecia-se que alguns dos obstáculos eram evidentes, como a manipulação política da causa, o alcance das exceções culturais, mas não seriam intransponíveis. Ou melhor, estavam lançados no caminho, atrasariam aqui e ali a aplicação do projeto maior, mas não mitigavam a força e a legitimidade dos objetivos. 

As esperanças de uma trajetória de afirmação crescente do espírito de Viena encontraram, porém, ao longo dos anos 90, novos obstáculos, tema central de Lindgren nesta coletânea, especialmente dos que foram criados como são fruto indesejado do sucesso “ideológico” da causa dos direitos humanos. Os obstáculos “antigos” não desapareceram e as restrições de direitos dos governos impostas por governos arbitrários, seculares ou teocráticos, as dificuldades de acesso de largos contingentes a bens que garantam dignidade mínima, continuam e precisam ser combatidas como têm sido. Há, porém, problemas novos, como a discriminação e a estigmatização de grupos sociais, o tratamento de emigrantes, e as formas inconcebíveis de tratamento de prisioneiros de guerra.[1] Como Lindgren aponta com razão, “Por mais que os Estados, democráticos ou não, precisem agir contra o crime e o terror para a proteção imprescindível à convivência e ao próprio usufruto dos direitos, as ações de prevenção e repressão têm regras mínimas”..., pois, caso contrário, “constituem uma desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados... correspondem... à denegação daquilo que Hannah Arendt chamou `direito de ter direitos´.” Mais grave ainda, é a rapidez com que o mundo assimilou a tortura de muçulmanos suspeitos de terrorismo, assim como a reação superficial dos Estados responsáveis diante do clamor inicial contra ela”. Um sintoma do enfraquecimento da luta pelos direitos humanos é que praticamente desaparece da plataforma das lideranças políticas, mesmo em países ocidentais desenvolvidos (e os textos são anteriores à eleição de Trump para o Governo dos EUA).

Há dois outros fatores para os quais Lindgren chama atenção e que seriam o eixo central de sua reflexão: o multiculturalismo essencialista que permeia o discurso dos direitos humanos e as distorções que sofrem as instituições que foram criadas para a defesa dos direitos humanos. Nos dois casos, e daí a necessidade de debatê-los, há uma espécie de distorção de objetivos da luta original, ou por intepretações equivocadas dos preceitos originais (mas que tiveram significativo apelo social e político) ou por crescimento desordenado da burocracia multilateral que lida com os instrumentos que aplicam as normas e resoluções dos pactos e resoluções multilaterais. Os dois movimentos, por razões diferentes, levam a que se enfraqueça o que Lindgren considera o fundamental da causa dos direitos humanos, o sentido universal e a defesa do indivíduo. E, teriam paradoxalmente resultado do êxito de Viena, que aborda em um dos mais interessantes capítulos da coletânea. 

O primeiro tema, o essencialismo multiculturalista, é especialmente complexo e boa parte dos artigos, direta ou indiretamente, o aborda. O universal tem limites, aceitos pela própria Declaração de Viena (art. 5), e, como é difícil imaginar, para as exceções culturais, uma solução conceitual unívoca, o ajuste de seus termos se transfere para situações concretas. O significado de universal é fácil de conceber e está alicerçado por uma longa tradição da filosofia ocidental, fundada na concepção da igualdade fundamental dos seres humanos. O problema é o particular exatamente porque cada “particular” tem limites singulares, mais ou menos impermeáveis à incorporação das condicionantes que o universal sugere ou impõe. Lindgren aceita a ideia da diversidade como enriquecedora do convívio social e compreende a necessidade de que se estabeleçam políticas publicas para grupos vulneráveis. Mas, o que o preocupa é a “confusão que ora se faz entre os direitos culturais da Declaração Universal e os hoje alardeados ´direitos das culturas´ e direitos das minorias´”. Por várias razões e a primeira é doutrinária: tais direitos, consagrados em vários documentos, podem e devem ser defendidos, porém não seriam, em sua acepção mais rigorosa, direitos humanos pois lhes faltaria a condição universal. 

Outro problema é que a capa conceitual dos direitos das minorias abriga realidades muito diferentes e que rejeitam tratamento uniforme. A proteção dos costumes de uma tribo yanomami tem pouco que ver com o debate sobre o casamento arranjado entre os roma. “É um contrassenso equiparar os direitos humanos de pessoas discriminadas e perseguidas pela cor… ou dos indígenas e quilombolas que sempre viveram fora da sociedade principal, com o direito à diferença de culturas discriminadas ou não que, por vontade própria ou ideologia assumida, rejeitam esforços de integração na sociedade onde vivem”. Se se deixasse a cada grupo autodefinir os limites de sua particularidade e consequentemente a medida de aceitação das normas da sociedade em vivem e convivem, a fragmentação e o conflito dentro daquela sociedade poderia se exacerbar. Porém, não parece o melhor caminho impedir que, em alguma medida, os grupos definam o que lhes é essencial para preservar como grupo. Como se chega com razoabilidade ao limite do particular? A medida da defesa do particular tende assim a se converter em um processo político em torno de valores. Para Lindgren, a solução será sempre a de um universalista convicto, como ele mesmo se intitula. É o padrão de legitimidade dos DHs que oferece a melhor defesa para que os discriminados se protejam da discriminação e a melhor referência para circunscrever o que é particular. Como ele adverte, o particular sem limite pode gerar um tipo de fundamentalismo do politicamente correto, falsamente progressista, pode justificar a contrario sensu as tendências fascistas, ultranacionalistas que vêm ganhando terreno mesmo nas democracias ocidentais. O risco maior, porém, é político, como mostra em um capítulo notável, “O culturalismo como separatismo”, de que vale citar a conclusão: “O discurso culturalista não cria de per si reações perigosas, mas ao estimular diferenças, em vez de conciliá-las com algum sincretismo equânime, certamente fornece insumos que alimentam o racismo e a segregação”. 

Outro fator estrutural que minaria os ideais de Viena está ligado às opções de políticas econômicas e sociais que começam nos anos 90, com a hegemonia do neoliberalismo. Nas palavras de Lindgren, vivia-se um paradoxo, pois o apogeu do discurso humanista coincidia com a destruição de suas condições de realização.[2] Viena programara iniciativas que exigiam mais do Estado enquanto o sistema econômico exigia o Estado mínimo. A questão persiste e as crises financeiras em países como a Grécia e Portugal tiveram, como resultado, um encurtamento de vantagens e benefícios sociais (da assistência médica às pensões) que não seriam recuperados no curto prazo. É evidente que, nos países desenvolvidos, a rede de proteção social, mesmo prejudicada, ainda atende e responde a seus objetivos básicos. O problema é mais dramático nos países em desenvolvimento, mesmo no Brasil, em que a rede dos serviços sociais ainda está longe da eficácia e problemas como o envelhecimento da população alimenta problemas fiscais similares ao das economias maduras. O fato é que as realidades variam e muito. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma das consequências da dominância do mercado (na sua forma recente) foi o aumento da concentração de renda e, mais grave, as tentativas de atenuá-las, como o Obama CARE BAMACARE, estão sendo questionadas: do outro lado do espectro político, na China, é evidente a melhoria da situação econômica de parte significativa da população, mas o progresso é limitado no campo dos direitos políticos. A natureza diferente dos problemas não diminui e, sim, reforça a necessidade de aceitar a inspiração universal dos direitos humanos. Se as soluções, em cada caso, serão diferentes, umas a exigir transformações estruturais, outras, mudanças conjunturais, umas, reformas institucionais, outras, ajustes de política, a necessidade de garantir e elevar a dignidade humana é a mesma em qualquer quadrante do planeta. Se não existe um receituário claro e único, é indispensável retomar a inspiração dos DHs, reintroduzi-la plenamente nos processos políticos. 

Um dos problemas decorrentes da concentração dos direitos humanos na luta identitária, ainda na visão de Lindgren, é o esmaecimento da compreensão das raízes estruturais de problemas que levam discriminação. A proliferação das lutas localizadas, ainda que tenham sobradas razões, convalida uma visão fragmentária da sociedade. As ligações estruturais entre classes desaparecem e luta social se dispersa. De novo, o problema é complexo e, ao estudá-lo, Lindgren oferece uma das chaves para compreender a sociedade contemporânea. Sem esquecer as distinções nacionais e regionais, no plano global, a desigualdade entre níveis de desenvolvimento ainda é avassaladora e não tem diminuído uniformemente. A diferença entre os países desenvolvidos e os estados “falidos” não precisa ser sublinhada para mostrar a diversidade do mundo. Aceitas as diferenças, o fato é que a própria natureza do mundo do trabalho que serviu, desde a Revolução Industrial, para definir identidades deixa, por razões muitas, de fazê-lo.[3] Com a globalização, mudam a economia e a sociedade. Muda também a natureza do trabalho e esmaecem os instrumentos tradicionais de protesto e revolta, mas não o quadro de desigualdade, de pobreza, de vulnerabilidades humanas. Creio que é este o contexto em que se dá a explosão das lutas identitárias que, na visão do autor, por justas e necessárias que sejam, seriam sempre limitadas e circunscritas, com o risco de que sejam usadas para que se esqueçam os problemas sociais maiores. Como o Lindgren afirma, “a tendência ora predominante do sistema é de privilegiar minorias em detrimento das atenções para o conjunto. Pouca atenção é dada internacionalmente aos direitos das camadas gigantescas de pobres sem etnia ou outro elemento diferencial que os destaque. Para o liberalismo hegemônico, os simplesmente pobres são marginalizados porque fora do mercado, responsabilizados pela própria pobreza num círculo vicioso que só pode levar ao crime”. 

Outro resultado paradoxal do êxito de Viena foi a multiplicação dos foros e instrumentos de promoção dos DHs. Aqui, a análise que Lindgren faz é especialmente valiosa (até porque raramente os membros de instituições multilaterais são tão claros e abertos nas críticas que fazem às mazelas do sistema). O diagnóstico é de novo contundente. Para proteger a situação de grupos ou categorias de pessoas, o sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, ampliou o número de relatores temáticos (hoje mais de 30), multiplicou normas e instrumentos que, se revelam objetivos nobres e mesmo necessários, “torna o conjunto complexo, frouxo, sem hierarquia, com elementos claramente conflitivos”. Entre as consequências, a primeira é tornar difícil, mesmo para o especialista, acompanhar a profusão de recomendações que emana dos órgãos, recomendações que, muito frequentemente, caem no vazio porque os Estados simplesmente não têm condições de cumpri-las. Aliás, neste capítulo, são valiosas as observações de Lindgren sobre as demandas de estatísticas que incluam os grupos étnicos que, em muitos casos, são absolutamente irrealistas (como no caso de Luxemburgo) e, em outros, especialmente em países africanos (e mesmo europeus), conducentes a situações conflitivos mais do que positivas para o quadro de convivência social. O velho vício do irrealismo, tão frequente nas decisões multilaterais, frequenta, com vigor, o sistema de direitos humanos. 

A partir da sólida matriz conceitual que Lindgren construiu para o seu argumento, creio que um dos interesses na leitura da coletânea é o mosaico que o autor cria, tornando possível olhar, de vários ângulos, a questão central e, a cada passo, entender o seu alcance, suas nuances e, sobretudo, o porquê de seu apelo para salvar os direitos humanos. 

Na parte final do livro, Lindgren examina sua participação na CERD, além de levantar vários temas que chegaram à agenda da opinião pública. 

Assim, o relato da sessão comemorativa dos Cinquenta Anos da Convenção sobre Eliminação da Discriminação Racial é a oportunidade para discutir temas como a islamofobia, as opções históricas para o movimento dos afrodescendentes nos Estados Unidos, o alcance do conceito de minorias, o racismo como fenômeno planetário, a questão do politicamente correto e os exageros que pode induzir.[4] Ao longo do capítulo, questões como a polêmica sobre o uso da burca ou a atitude dos que afirmam que os DHs servem para proteger criminosos, são abordados com franqueza e com sólidos argumentos. O capítulo sobre a Americanização Global é um resumo perfeito de tendências que ele tem observado com a preferência pelos particulares, induzido pelo multilateralismo, com consequências negativas para o sentido universal que deve comandar a promoção dos direitos humanos. 

Na narrativa sobre a sua participação no CERD, Lindgren discute o “essencialismo multicultural”, mostrando as distorções que o conceito de etnia introduz, levando a que, em certas circunstâncias, o Comitê tenda a “dar mais atenção às etnias como comunidades a serem mantidas intactas do que as manifestações de racismo contra elas”. Para ele, além do fato de que o multicultural cai mais na competência da UNESCO do que propriamente na de um órgão de direitos humanos, “algumas das práticas recomendadas para situações específicas aparecem como regras uniformes, aplicadas a todos os casos como se a realidade devesse sempre amoldar-se a um parâmetro nunca definido na Convenção.” É valioso o seu depoimento sobre a tentativa de debater o alcance do “multiculturalismo” na Comitê para esclarecer o que se pretendia, ou defender a integração das minorias na sociedade onde se inseriam, mantendo o essencial de suas culturas, mas observando as regras abrangentes, ou mantê-las separadas com suas culturas intocáveis. Lindgren defende a primeira opção que se identifica com as propostas de Martin Luther King e Mandela, mas não consegue que o órgão adote uma posição clara sobre o tema. Mostra em seguida como certas recomendações gerais, como o levantamento de estatísticas que desagreguem as etnias podem simplesmente não ter sentido e, mais grave, em certas circunstâncias, levar a exacerbação de conflitos e não ajudarem a conciliação nacional, especialmente em países africanos. O argumento ganha força pela análise criteriosa de decisões do CERD, de maneiras como examina e decide sobre situações de países.[5] É especialmente valiosa a análise que faz da sessão de 2012, mostrando como evolui o debate em torno dos relatórios do Quênia, do Reino Unido, do Canadá, de Portugal, do Vietnã, do México, dos países muçulmanos e dos Estados Unidos. Entramos na intimidade do Comitê, de suas tendências e impasses, sempre apresentados com franqueza e objetividade. Temos, assim, na coletânea, um documento precioso para quem for estudar processos de decisão em organismos internacionais. 

Vale ainda, e muito, a leitura dos capítulos em que Lindgren discute o terrorismo, a crise dos refugiados (aqui, de maneira premonitória porque o artigo é de….), uma fala polêmica de Bento XVI, uma fotografia que ficou conhecida como o da Pietá Muçulmana, a caricatura de imagens sagradas… enfim, nada de relevante e polêmico na questão dos direitos humanos escapa ao exame sensível de Lindgren. 

O fato de que o tema dos direitos humanos tenha perdido prestígio pode levar a uma atitude um tanto pessimista, mas não menos engajada e, no fundo, esperançosa que a luta volte aos melhores trilhos. A cada capítulo, sempre aparecem ideias e sugestões sobre correções possíveis. Seu trabalho no CERD, muitas vezes solitário, a frequência com que traz ao debate público os problemas da promoção dos direitos humanos, são credenciais importantes para uma luta complexa, difícil, com revezes, mas uma luta necessária e urgente. Uma das perguntas que fica é quem salvará, como se retomará a luta, com que forças Lindgren conta em seu esforço e pregação. Penso que uma das diferenças entre os anos 90 e hoje é que os atores que levaram adiante a causa ou se enfraquecem ou a abandonaram. É difícil, como ele mostra, reconstituir a coalizão de ONGs, movimentos sociais e, especialmente, governos das potências ocidentais na mesma direção. A questão dos direitos humanos é, ao fim e ao cabo, parte de processos políticos. Por mais que a ordem seja influenciada por movimentos sociais, não seja mais exclusivamente entre soberanos, o fato de que, no universo internacional, as hegemonias dependem de poder. Como mobilizá-lo? Falando de direitos humanos, Lindgren fala dos processos ideológicos no mundo contemporâneo, de novas padrões de disputa de poder, de rumos civilizacionais, que opõem fundamentalistas e modernizadores, entre dogmáticos e secularistas, entre teocratas e humanistas conflitos inter e intra-religiosos que se acavalam a rivalidades políticas intertribais e interétnicas. Valores e poder andam sempre juntos. E nem sempre é fácil casar os melhores valores com os que comandam as forças hegemônicas. Porém, há modos de contornar o problema quando se manifesta a dissintonia. Creio que uma das consequências permanentes de Viena é que o sentido universal da defesa dos direitos humanos vale em si mesmo. Vale como padrão de legitimidade, mesmo contra forças hegemônicas. Pode ser descumprido, pode ser distorcido, mas a referência de legitimidade persiste. É preciso afirmá-lo com força e bons argumentos. Por várias razões, tão bem descritas e analisadas por Lindgren, a aspiração universalista não foi quebrada, mas está certamente fragilizada. A causa ficou esmaecida, confusa talvez, e, nem assim, se enfraqueceu. Não há melhor apelo para reconstituir o movimento que o apelo de livros como o de J. A. Lindgren Alves.

 



[1] Em suas palavras: “Seguramente ninguém que defendesse os direitos humanos poderia aceitar, em qualquer circunstância, as torturas e tratamentos degradantes infligidos aos prisioneiros em quartéis e prisões americanas em Guantánamo, Al Ghraib, Baghram e outras. Não obstante, nenhuma resolução condenatória, nenhuma reprovação formal pelo sistema de proteção aos direitos humanos foi formalmente subscrita”.

[2] Lindgren é contundente na crítica ao liberalismo, Em lugar da democracia política, o que se veio a implantar com a globalização econômica foi o ´liberalismo´ da eficiência selvagem, sem contrapesos ou pruridos de preocupação social… Longe das liberdades e direitos fundamentais esperados, a liberdade que se afirmava no planeta era uma liberdade econômica não emancipatória”.

[3] Basta lembrar que, nos países latino-americanos, especialmente no Brasil, as greves já não estão ligadas ao trabalho industrial, mas a categorias de serviço, especialmente de funcionários públicos.

[4] Há alguns relatos de episódios que viveu no CERD que são a ilustração evidente de como se distorce o politicamente correto. Um deles é a crítica à representação do Papai Noel na Holanda que é acompanhado de um menino “negro”, o que foi visto como racista. Porém, esclareceu-se que o menino não era negro, mas estava negro, pois como o ajudante do Papai Noel, encarregado de distribuir os brinquedos, descia pelas chaminés e, claro, se sujava com a fuligem.

[5] Um dos exemplos que lembra é o de Luxemburgo que, com população de 500 mil habitantes e é constituída por 43% de estrangeiros de mais 170 nacionalidades. Por eximir-se de apresentar a estatística desagregada, o CERD é censurado e instado a fazê-lo. Demandas similares foram feitas a países africanos que, evidentemente, tem problemas peculiares e as distinções étnicas alimentadas pelas potências coloniais e que, caso se fomentassem sistemas especiais de proteção a minorias, teria certamente consequências negativas para as bases de unidade nacional. Os exemplos que dá sobre as recomendações a Ruanda são eloquentes da aplicação de uma perspectiva racialista. Também exemplares a análise que faz da atitude do Comitê em relação aos Estados Unidos e ao Iraque e o ISIS.