domingo, 4 de julho de 2010

Uma Africa para cada projeto: agora em portunhol...

Viagem à África imaginária
Editorial O Estado de S.Paulo, 4 de julho de 2010

Governada há 31 anos por um ditador conhecido por seus métodos brutais, uma ex-colônia espanhola, a Guiné Equatorial, poderá ser o novo membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, se isso depender do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O apoio brasileiro foi confirmado pelo porta-voz da Presidência da República, Marcelo Baumbach, um dia antes de o presidente Lula partir para seu 11.º giro pela África. A visita à Guiné Equatorial foi programada como segunda escala. A primeira foi marcada para a Ilha do Sal, no arquipélago de Cabo Verde, para uma reunião com 13 governantes da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental. A última etapa da viagem será na África do Sul, marcada para os dias 8 a 12, certamente com a esperança de ver o Brasil na final da Copa do Mundo. A seleção da Holanda, no entanto, atrapalhou esse plano. Excluída essa justificativa para o périplo africano, restam os argumentos da diplomacia Sul-Sul e da prioridade atribuída por Lula à relação com os países da África. Os demais argumentos, incluído o econômico, são ainda menos convincentes.

O português não é falado na Guiné Equatorial, mas foi incluído em 2007 entre os idiomas oficiais, ao lado do espanhol e do francês, por decisão do presidente Teodoro Obiang Mbasogo. Acusado de fraudes, torturas e assassinatos por entidades internacionais de direitos humanos, o ditador é, segundo a revista Forbes, o oitavo governante mais rico do mundo.

Segundo Baumbach, o presidente brasileiro "deseja conferir importante impulso político ao processo de conhecimento e aproximação entre o Brasil e a Guiné Equatorial". A descoberta de petróleo em 1996 impulsionou a economia do país, mas não fortaleceu a democracia. Em 2000 a Guiné Equatorial começou a exportar para o Brasil e em 2008 a corrente de comércio chegou a US$ 411,22 milhões, com superávit de US$ 369,39 milhões para o país africano.

Além de falar com seu colega sobre a comunidade lusófona e o comércio bilateral, o presidente Lula poderá pedir a sua ajuda para realizar a ambição de chefiar uma entidade internacional, talvez a Organização das Nações Unidas (ONU). O chefão da Guiné Equatorial, afinal, é prodigioso. Em 2003, a rádio estatal do país o descreveu como "o deus da Guiné Equatorial" e atribuiu-lhe o direito de "matar sem ter de prestar contas a ninguém e sem ter de ir para o Inferno". Nenhum outro ditador ou candidato a ditador escolhido por Lula como amigo ou aliado chegou tão alto.

O roteiro de Lula inclui também o Quênia, a Tanzânia e a Zâmbia. Com as seis escalas programadas para esta viagem, Lula terá passado por 21 países da África em seus 2 mandatos e visitado 8 ditadores africanos - lista completada com Obiang. Também há no continente governantes comprometidos com a democracia, mas Lula não os discrimina. Afinal, nem sempre é possível escolher o interlocutor.

A prioridade atribuída à África pela diplomacia brasileira é parte da ilusão terceiro-mundista dominante no governo a partir de 2003. Somou-se a essa ilusão, depois de algum tempo, a fantasia da liderança política no mundo em desenvolvimento. Lula abriu ou reabriu 17 embaixadas na África. O comércio cresceu - já vinha crescendo nos anos 90 -, mas em 2008, antes da crise, as exportações para os africanos, excluídos os países do Oriente Médio, equivaleram a apenas 5,14% das vendas externas do Brasil. As importações corresponderam a 9,11% das compras totais. Isso se explica pelas compras de petróleo de uns poucos países. A Nigéria é de longe o maior fornecedor.

O comércio tem melhorado, embora de forma desproporcional à enorme importância atribuída à parceria com a África pela diplomacia brasileira. Politicamente o resultado tem sido muito mais pobre. Quando o Brasil apresentou um concorrente à direção-geral da Organização Mundial do Comércio, os africanos votaram em candidato próprio e na rodada seguinte apoiaram o francês Pascal Lamy. Na ONU, os governos da União Africana recusaram apoio, há alguns anos, à reforma defendida por Brasília. Na política de comércio, seus vínculos com as velhas metrópoles europeias continuam mais fortes do que quaisquer afinidades com o Brasil. É mais um caso de parceria estratégica unilateral, uma curiosa invenção da diplomacia lulista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.