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domingo, 15 de agosto de 2010
Kyenes e a crise atual - Rubem de Freitas Novaes
Rubem de Freitas Novaes *
A crise econômica atual, com sua tendência depressiva, com seus socorros a instituições financeiras e a empresas e com seus programas de obras e gastos de custeio públicos, traz à baila o grande debate ideológico do século XX e as idéias intervencionistas do economista inglês John Maynard Keynes, que, diante da depressão dos anos 30, se tornou crítico da Teoria Econômica Neoclássica, sustentáculo do pensamento econômico liberal, exposto, através dos tempos, por autores do calibre de Adam Smith, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman.
Convém frisar que teorias econômicas e seus propositores estão indelevelmente associados a visões políticas da Sociedade. Assim, Neoclássicos/Liberalismo, Keynes/Social Democracia e Marx/Socialismo ocupam o espectro das correntes ideológicas, quando tratamos da Economia Política. Em países desenvolvidos do mundo ocidental o campo das discussões parece estreitar-se no espaço que vai de Friedman a Keynes. Vizinhos esquerdistas da América Latina parecem agora firmar-se no espaço que vai de Keynes a Marx, aproximando-se de Marx. Aqui no Brasil, as discussões acadêmicas e as manifestações da política econômica nos situam mais próximos a Keynes, tendendo, ora para um lado, ora para outro.
Muitos analistas, pessimistas com os rumos da economia mundial, hoje caracterizada pelo predomínio do Capitalismo e pela globalização dos mercados, parecem prever novos tempos em que regimes econômicos caminhariam no sentido da socialização dos meios de produção e do estreitamento do comércio internacional. Fazem-no buscando, erroneamente, respaldo intelectual em Keynes, como se o grande mestre fosse um inimigo declarado do Capitalismo e do livre comércio. Convém, portanto, para melhor entendimento da questão, repassar alguns tópicos do pensamento econômico dos tempos em que foi escrita a famosa obra do professor de Cambridge “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”:
Antes da publicação da “Teoria Geral” de Keynes, em 1936, prevalecia no corpo da doutrina econômica a idéia de que a “mão invisível” de Smith era bastante para resolver, não só questões de ajustamentos setoriais, mas também problemas de recessão. De início, acreditava-se que a “Lei de Say”, segundo a qual “a oferta cria sua própria demanda”, vigorava sempre. Mais tarde, diante da constatação da existência de ciclos de recessão e prosperidade (geralmente causados, é verdade, por imperícia dos governantes), a Teoria Neoclássica passou a postular que, mesmo diante de uma queda da demanda global, bastaria a existência de plena flexibilidade de preços e salários para que os mercados se auto-corrigissem, evitando os males maiores de uma depressão.
A grande “sacada” de Keynes foi perceber que o bom funcionamento do regime capitalista depende de um fator até então muito pouco lembrado nas construções teóricas: a fundamental confiança entre os agentes econômicos. Instalada uma crise generalizada de confiança num momento ruim da economia - sem que se discuta, nesta oportunidade, o que originou esta crise - a hipótese de flexibilidade de preços e salários seria insuficiente para garantir o retorno à normalidade, já que os mercados de moeda e crédito deixariam de funcionar adequadamente. Emissões primárias de base monetária comandariam um menor estoque de moeda, pela queda dos multiplicadores bancários, e o estoque de moeda existente comandaria uma menor demanda agregada, pela queda da velocidade de circulação monetária. Em outras palavras, bancos, indivíduos e empresas disporiam de recursos financeiros, mas não os movimentariam na velocidade desejada. Com isso, estaria configurada uma “armadilha da liquidez” (liquidity trap), modernamente chamada de “empoçamento” da moeda e do crédito, que obrigaria o Governo a agir do lado das despesas públicas para restabelecer um nível razoável de atividade econômica.
Neste ponto podemos introduzir a crítica de Milton Friedman, no sentido de que não seria necessário o aumento do dispêndio público para estimular a demanda agregada, bastando para tanto que se emitisse moeda até a desobstrução dos canais entupidos e que se reduzisse a carga tributária sobre indivíduos e empresas. Mas, ainda assim, permaneceriam válidos os pressupostos da política fiscal compensatória de Keynes que, lastreada numa maior propensão a gastar do setor público em períodos de crise de confiança, faz prever um significativo acréscimo na demanda global quando recursos são transferidos da população, contida pelas incertezas do momento, para as agências governamentais gastadoras. A análise keynesiana segue, mostrando que o efeito estimulador será maior se o gasto público for financiado por endividamento em lugar de impostos e ainda maior caso as despesas sejam cobertas por emissões monetárias.
Se Keynes e sua obra têm méritos indiscutíveis, o mesmo não se pode dizer de muitos de seus seguidores e dos que se apropriam e distorcem suas idéias para fins não endossáveis pelo autor. Duas categorias de “keynesianos” aqui se destacam: os que apontam falhas no funcionamento dos mercados para defender o ideário socialista e a classe de políticos e governantes que, sedenta de poder, procura respaldar-se no “rationale” oferecido pelo mestre inglês para justificar despesas direcionadas a grupos de interesse, empregar protegidos e criar organismos públicos geradores de “bons negócios”.
Pouco antes de sua morte, Lord Keynes dirigiu-se ao ultra liberal Hayek demonstrando sua rejeição ao credo socialista. Em carta datada de junho de 1944, referiu-se ao recém lançado “O Caminho da Servidão” - obra em que Hayek associava o controle estatal sobre a economia ao totalitarismo - da seguinte forma: “Meu caro Hayek, trata-se, em minha opinião, de um grande livro. Todos nós temos razões de sobra para sermos gratos a você por exprimir tão bem tudo o que precisava ser dito. Estou, moral e filosoficamente falando, de acordo com o conteúdo integral desta obra. Não só de acordo, como de profundo e comovido acordo”.
Vê-se, portanto, que a grande contribuição de Keynes à Teoria Econômica foi feita com o intuito de fortalecer o Capitalismo, corrigindo, com medidas de caráter temporário, falhas do funcionamento dos mercados livres, que são magnificadas em momentos de crise de confiança generalizada. Se vivo fosse, certamente estaria feliz com o retorno de seu nome às manchetes, mas amargurado com o mau uso que fazem de seus ensinamentos.
* O autor é economista formado pela UFRJ com doutorado (PhD) pela Universidade de Chicago. Foi Professor da EPGE/FGV, Presidente do SEBRAE e Diretor do BNDES. E-mail: rfnovaes@uol.com.br
Um comentário:
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ResponderExcluirArtigo sensacional. O autor coloca os pingos nos "is" de maneira muito eficiente e didática. Parabéns por reproduzi-lo no blogue.