''Me engana'' que eu gosto
Marcelo de Paiva Abreu
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 7 de março de 2011
O discurso do governo e também muitas análises vistas na imprensa quanto às políticas a adotar para minorar as pressões vindas da apreciação cambial baseiam-se em "soluções" que não são factíveis. Isso se aplica tanto às análises macroeconômicas quanto às microeconômicas.
No terreno macro, a "solução" mais primitiva seria o simples relaxamento das metas de inflação. O Banco Central, da noite para o dia, reduziria a taxa de juros de referência e, portanto, a atratividade do Brasil como destino de capitais especulativos, propiciando a desvalorização cambial. O que sempre se omite é que isso requereria o abandono do regime de metas de inflação. Nesse ambiente, percebe-se um aumento da complacência em relação à inabilidade de manter a inflação dentro da meta. O que se alega é que isso está sendo observado em muitas economias, pois, afinal, é o que tem acontecido com elas. Como se o resto do mundo tivesse o mesmo retrospecto inflacionário do Brasil...
O governo tem dado mostras de que, afinal, e a despeito da opinião de alguns de seus luminares, reconhece que pode haver ligação entre incontinência de gastos e espaço de manobra da política monetária. Mas não se decide quanto a que curso realmente seguir: ao mesmo tempo que diz estar empenhado em significativo corte de gastos, faz transferências fora do orçamento para que o BNDES engorde a sua carteira de empréstimos de qualidade duvidosa. A mão esquerda desfaz o que a mão direita talvez faça.
As esperanças de que ações no âmbito do G-20 possam ter implicação relevante sobre as políticas dos principais culpados, China e EUA, são infundadas. Não há consenso sobre como agregar os objetivos das políticas macroeconômicas nem definição quanto à implementação de disciplinas. Muitas palavras, poucos dentes. O exemplo da OMC sugere que, mesmo que haja dentes, não é fácil implementar resoluções que contrariem os interesses dos grandes protagonistas. Igualmente infundadas são as ilusões de que a OMC vá tratar de taxas cambiais.
No terreno microeconômico, o quadro não é menos confuso e revela falta de plano de jogo. Fernando Pimentel, político talentoso, vem revelando no MDIC escassa intimidade com os assuntos de sua Pasta e certa propensão em apostar em "soluções" inviáveis. Inicialmente, defendeu o aumento seletivo das tarifas até o máximo de 35%, consolidado da OMC. Seria algo viável, embora com implicações inflacionárias e de aumento de ineficiência não desprezíveis, se o Brasil não tivesse negociado a Tarifa Externa Comum no Mercosul em níveis bem abaixo das tarifas consolidadas na OMC e já tivesse quase esgotado os limites de sua lista de exceções. Seria preciso, portanto, escolher entre aumentar tarifa e renegociar o Mercosul.
Em um segundo momento, foi proposta a intensificação das ações antidumping e de salvaguardas como se não houvesse disciplinas negociadas na OMC quanto a métodos e cronograma de implementação. De qualquer forma, seria bem improvável que mesmo um conjunto significativo de tais ações tivesse impacto relevante sobre as importações. Dado que a maior ameaça percebida hoje se refere a importações provenientes da China, é bastante irônico que o Brasil tenha, em 2004, declarado reconhecer a economia chinesa como economia de mercado, o que obriga o País a aceitar os preços internos chineses como base para as apurações de dumping. Os chineses agora demonstram certa impaciência com o Brasil por ter protelado por sete anos a ratificação desta declaração pela Camex. Uma das lições a extrair é que a conta de uma política externa impensada e desastrada pode demorar, mas acaba chegando.
Agora se propõe o endurecimento das condições de entrada de produtos importados em relação a normas técnicas e regras sanitárias. Será que interessa ao Brasil ser ativo na aplicação de medidas que na maioria dos casos são formas disfarçadas de protecionismo? A um grande exportador de produtos agrícolas que pode ser facilmente retaliado não parece interessar tal política.
O arsenal de instrumentos de proteção discricionária aventado pelo ministro foi utilizado pelo Brasil na idade das trevas da política comercial até a década de 1970 e boa parte da década de 1980. Só falta ser mencionada a possibilidade de o Brasil apresentar-se à OMC alegando que a vulnerabilidade de seu balanço de pagamentos exige a adoção de medidas restritivas às importações. Há precedentes: em 1995, o Brasil, que detinha quase US$ 50 bilhões de reservas, buscou justificar a imposição de quotas para a importação de automóveis no Comitê de Restrições de Balanço de Pagamentos. Levou merecido passa-fora. Com R$ 300 bilhões de reserva seria ainda mais patético.
A constatação que se impõe é que não há caminho fácil para minorar os desdobramentos indesejáveis da apreciação cambial. Não há políticas milagrosas, micro ou macroeconômicas, que aumentem subitamente a competitividade da indústria brasileira. A fórmula algo dolorosa, mas realista e eficaz, deve incluir redução de gastos, reformas estruturais e maciça modernização da infraestrutura. Mais política séria de pesquisa e desenvolvimento e menos "política industrial" protegendo firmas ineficientes.
*Doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.
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