terça-feira, 10 de maio de 2011

Um Dicionario brasileiro de Economia: bem-vindo, mas pode melhorar - Paulo Roberto de Almeida

Minha colaboração à base de dados dos dicionários de economia limitou-se a informar sobre uma nova edição, ampliada, de um conhecido dicionário publicado no Brasil, este aqui:

A economia, em centímetros quadrados...
Brasília, 16 junho 2006, 4 p.
Resenha de Paulo Sandroni:
Dicionário de Economia do século XXI
(Rio de Janeiro: Record, 2005, 905 p.; ISBN: 85-01-07228-1).
Publicado na Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD. Ano 3, nº 24, julho 2006, p. 54-55; link: http://desafios2.ipea.gov.br/desafios/edicoes/24/artigo22752-1.php e http://desafios2.ipea.gov.br/desafios/edicoes/24/artigo22752-2.php).
Revisto e ampliado e publicado sob o título “A economia, explicada aos jornalistas (e outros curiosos)” no Observatório da Imprensa (Ano 11, nº 388, de 4/07/2006; ISSN: 1519-7670; link: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=388AZL002).
Relação de Publicados n. 672.

Como provavelmente os links existentes à época já não estão mais funcionando, transcrevo aqui esta minha resenha:

A economia, em centímetros quadrados...

Paulo Sandroni:
Dicionário de Economia do século XXI
(Rio de Janeiro: Record, 2005, 905 p.; ISBN: 85-01-07228-1)

Nos dicionários – como nas enciclopédias –, espaço é tudo. A “centimetragem” dos verbetes costuma refletir a importância relativa de cada um. Por isso, pode parecer bizarro que, neste dicionário, o espaço ocupado pelo “mágico de Oz” (yes, o famoso personagem de Frank Baum) represente duas vezes o alocado ao verbete “capitalismo”: duas páginas inteiras (de duas colunas) para o “mágico”, contra, apenas, 3/4 de uma única página para o capitalismo, sendo que seu ex-inimigo, o defunto “comunismo”, ganha uma página e meia. Esta é uma das peculiaridades desta, ainda assim, utilíssima ferramenta de consulta que não deixa de refletir os gostos e preferências de seu autor, um bem sucedido professor de economia, hoje convertido em sinônimo de obra de referência.
Sim, a partir da quinta edição de uma obra publicada originalmente em 1985, para acompanhar a coleção “Os Economistas” (da Abril), já se pode falar do “Sandroni”, como hoje usualmente se fala do “Aurélio”, com algumas diferenças, no entanto. Se o “primo” da língua portuguesa procura seguir o cânon da Academia Brasileira de Letras, Sandroni não segue nenhum padrão consagrado, a não ser o seu próprio. Será por isso que o verbete “protecionismo” ostenta o dobro do espaço dado ao “livre-comércio”? Não parece estranho, novamente, que o Mercosul ocupe menos da metade do espaço atribuído ao Nafta, ao passo que um acordo que ainda nem existe, a Alca, tem mais do dobro deste último? Infelizmente, o verbete Mercosul não é apenas insuficiente, mas claramente inadequado, inclusive conceitualmente. Se o Mercosul dependesse do “Sandroni” para validar sua relevância, já estaria condenado ao museu das antiguidades, ao lado do machado de bronze e da roca de fiar, como previa Engels para o destino do Estado.
Esse tipo de inconsistência não passaria por uma academia de economia, se esta servisse para dar chancela a dicionários do gênero. Não que Sandroni tenha trabalhado inteiramente sozinho: os créditos consignam pelo menos três dúzias de consultores, mais três dezenas de pesquisadores. Mas ele certamente exerceu o direito de ir aumentando, aqui e ali, as fichas individuais, cada vez que um tema crescia em importância em sua mente. Daí o caráter irregular de algumas informações, bem como erros primários de revisão (o verbete “monocultura”, por exemplo, é repetido na imediata sequência). Não se trata apenas de espaço desigual, mas, também, de insuficiências notórias ou deslizes clamorosos. Assim como certos verbetes – “Escola Clássica”, por exemplo – apresentam quase uma aula sobre o assunto, outros induzem a erro: Hayek nunca foi “neoliberal”, pela simples razão que ele sempre foi um liberal clássico, tout court.
Mas, por que a “interpretação econômica” do “mágico de Oz” valeria duas vezes e meia a descrição do capitalismo? Sem cair novamente nas preferências do autor, digamos que a fábula de Baum ilustre os dilemas da transição do bimetalismo (ouro e prata) ao monometalismo do padrão-ouro na construção dos sistemas monetários nacionais, durante a segunda onda da globalização (final do século XIX e início do seguinte). Ainda assim, há um notório exagero na dimensão do verbete (que, aliás, está bem escrito).
A atualização de alguns verbetes também deixa a desejar, considerando-se a data do “fechamento”: julho de 2005. Mesmo dando-se desconto de um ano, é inexplicável que o verbete consagrado ao Mercado Comum Europeu diga que a entidade “congrega” (assim, no presente) doze membros, quando o MCE já se tinha diluído na Comunidade Econômica Européia desde 1967, sendo esta substituída pela expressão Comunidades Européias na década seguinte. A União Européia, por sua vez, existe desde 1993, tendo passado de doze a quinze membros dois anos mais tarde; ela admitiu dez membros adicionais em 2004, levando-a aos 25 membros atuais (encore plus em negociações). Mais surpreendente ainda, MCE remete ao verbete “União Européia”, que simplesmente não existe, esquecido entre a União Escandinava (uma união monetária que funcionou entre 1873 e 1905) e a União Européia de Pagamentos (um sistema de pagamentos compensados que deixou de existir em 1958). Surpreendente ou inexplicável, esse tipo de omissão é imperdoável num dicionário do “século XXI”.
Na verdade, pouca coisa pertence ao século XXI, a maior parte vinda dos séculos XIX e XX, mas o verbete FMI já traz Rodrigo Rato como seu diretor, a partir de 2004. Os temas recentes estão registrados, como o “indice Big Mac” da The Economist, o “consenso de Washington” (erroneamente definido como sendo uma defesa do “Estado mínimo”) e os acordos de Basiléia 1 e 2 (normas prudenciais para atividades bancárias). Mas, para um dicionário do século XXI, o verbete “globalização” não poderia ser mais anêmico: escassas dez linhas (em meia coluna, recorde-se), ainda assim voltado mais para o fenômeno do “global sourcing” do que para os processos de integração de mercados. Talvez o autor não goste da globalização, mas ela ainda assim existe e incomoda.
Interessantes e úteis são os verbetes dedicados às idiossincrasias econômicas brasileiras, como o jogo do bicho – cálculos de probabilidade indicam que os banqueiros ficam com 60 a 70% das receitas –, as mordomias, tais como oficialmente definidas pela administração, ou os diversos planos brasileiros de desenvolvimento e de estabilização econômica. Comparecem sínteses históricas sobre a legislação e os padrões monetários, sobre os valores do salário mínimo, bem como listas de ministérios e de ministros da Fazenda do Brasil: Itamar foi um campeão de ministros!
Alguns erros precisam ser corrigidos numa futura edição. Assim, o Gatt não foi substituído pela OMC, em 1995, mas sim incorporado à rede de acordos administrados por ela; ele tampouco tem por princípio básico o livre-comércio, apenas visa à mais ampla liberalização comercial possível. O economista André Gunder Frank, identificado com o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, aparece duas vezes, nas letras F e G, sendo que Gunder é mais “desenvolvido” do que Frank. Os GAB são mais comumente referidos como General Arrangements to Borrow, e não como Agreements, uma vez que eles não derivam de tratados formais e sim de esquemas especiais. Dizer que Hobbes era um “mercantilista” e acrescentar, em seguida, que ele considerava a liberdade de comércio uma “lei natural” parece uma contradição nos termos.
Keynes não foi o primeiro “presidente” do FMI, mas sim o representante britânico (governor) na primeira assembléia-geral das duas organizações de Bretton Woods (em Savannah, na Georgia, em 1946), ocasião na qual ele indicou o belga Camille Gutt como o primeiro “diretor-gerente” do FMI. Bilateralismo e multilateralismo estão definidos de forma restrita, vinculados apenas ao comércio. Da mesma forma, reciprocidade em comércio não quer dizer fair trade e sim concessões equivalentes, não necessariamente simétricas. Em regimes cambiais, o abandono do acordo de Bretton Woods pelos EUA se deu, de fato, em 1971, mas o fim da jurisdição do FMI sobre esses regimes só foi alcançado em 1973. Esses pequenos erros não empanam o valor de uma obra grandiosa.
No terreno do humor econômico, ele incorpora um verbete para a conhecida lei de Murphy, mas se esquece da lei de Parkinson, altamente relevante para a “produtividade” na administração pública: o total de empregados numa burocracia cresce 5 a 7% ao ano, independentemente de qualquer variação no volume de trabalho que deve ser feito. Parafraseando, digamos que o tamanho de um dicionário como este aumenta entre 20 e 30% a cada edição, independentemente da importância relativa dos verbetes. Mas, pela “lei de Gresham” dos dicionários, volumes menores e de menor qualidade começarão a fazer concorrência implacável ao “Sandroni”.
Ele deve sustentar a competição, mas caberia pensar, numa próxima edição, em adaptá-lo aos tempos modernos: não é possível que um dicionário que se pretenda do “século XXI” dedique mais de uma página à “revolução socialista” e escassas 14 linhas (de meia coluna) aos verbetes “pobreza” e “riqueza”, que constituem o próprio âmago da ciência econômica. Mesmo numa concepção tradicional, alguns desequilíbrios devem ser corrigidos: hoje, Raúl Prebisch vence Adam Smith por meia coluna; o socialismo deixa longe o capitalismo e a definição deste último é basicamente marxista; que Stalin receba a mesma “centimetragem” de Keynes indica uma desproporção inaceitável numa obra de economia. Estou de acordo em que a “teoria da dependência” não mereça mesmo mais de 13 linhas, mas que “trabalho alienado” supere em quatro vezes “vantagens comparativas” revela uma inclinação hoje démodée. Proponho uma revisão “bibliométrica” nos 6 mil verbetes do Dicionário, tendo como critério o velho preceito marxista (aliás emprestado do economista William Goodwin): a cada um segundo as suas necessidades...

Paulo Roberto de Almeida
[Brasília, 1618: 16 junho 2006]

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.