Entrevista: Pastore foi presidente do Banco Central de 1983 a 1985
O governo brasileiro terá de se dobrar à realidade, diz ex-BC
Leandro Modé
O Estado de S. Paulo, 13 de agosto de 2011
Segundo Affonso Celso Pastore, se o País tentar garantir a meta de crescimento em meio à crise global, corre o risco de causar desequilíbrios, com alta da inflação ou endividamento
SÃO PAULO - O ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore mal conseguiu dormir nas noites que se seguiram ao rebaixamento da nota de crédito do governo dos EUA. A perda de sono resultou não apenas das preocupações com a piora do cenário global após a decisão da agência Standard & Poor’s, mas, principalmente, da dedicação para entender a complexa conjuntura global. Em momentos como o atual, consultores econômicos como ele são demandados como nunca pelos clientes.
Por mais complicada que seja a situação, eles precisam dar respostas que ajudarão bancos, empresas e até mesmo pessoas físicas a embasar decisões que movimentam cifras enormes. Ainda de olhos vermelhos, fruto das noites quase em claro, Pastore conversou com o Estado em seu escritório, na zona oeste de São Paulo, na tarde de quinta-feira. "Essa foi a primeira das últimas noites em que realmente dormi bem, de tão cansado que estava."
Para Pastore, o que ocorre hoje é parte da crise iniciada em 2008. E o cenário básico traçado por ele não é dos mais animadores, inclusive para o Brasil. "No quadro que vejo hoje da economia mundial, o Brasil vai crescer menos. E o governo vai ter de se dobrar à realidade. Não há o que fazer. Se tentar escapar disso, vai gerar desequilíbrios", afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O que significa a diminuição da nota dos EUA para a economia global?
O rebaixamento da nota dos EUA é um episódio menor. Se só ele tivesse ocorrido, o dólar teria se desvalorizado e teria havido uma subida da taxa de juros americana. Só que ocorreu o contrário. Ou seja, há algo mais. No caso, a Europa, cuja percepção de risco cresceu mais que a americana. Para ter um entendimento completo disso, é preciso olhar para duas crises paralelas. A dos EUA, que já vem de algum tempo, mostra que a capacidade de o país crescer é muito menor do que o mercado pensava.
Por quê?
A crise de 2008 - esta, aliás, é a continuidade daquela - produziu uma destruição de riqueza que nunca aconteceu. Quando a riqueza cresceu durante a bolha, as famílias se endividaram gastando renda futura. Em outras palavras, o grau da alavancagem atingiu níveis sem precedentes - 130% da renda disponível. O estouro da bolha e a crise de 2008 fizeram a riqueza das famílias voltar ao nível em que estava antes de a bolha se formar. Só que o grau de endividamento ficou muito mais alto. Significa que é preciso poupar para pagar as dívidas. É o chamado processo de desalavancagem. (Kenneth) Rogoff, ex-economista-chefe do FMI, chamou a atenção para isso, ao falar em grande contração, e não grande recessão. O erro das pessoas foi achar que se tratava de uma recessão como as passadas.
E quando elas se deram conta de que não era?
Houve três episódios que fizeram essa percepção aumentar. O primeiro foi quando Obama teve de negociar o limite da dívida dos EUA. Ficou patente que ele perdeu o grau de liberdade na execução da política fiscal. O segundo ponto foi o fim do QE2 (quantitative easing, na sigla em inglês, que na prática significa injeção de dinheiro na economia por meio do banco central). Na sequência desses dois episódios, veio a revisão dos dados do Produto Interno Bruto (PIB), que mostrou que a recuperação havia sido muito frágil. A rigor, o PIB dos EUA ainda não voltou ao nível pré-crise. Se não houvesse a questão da Europa, isso deveria ter produzido uma mudança nos preços das ações, que deveriam ter caído.
E a Europa?
A crise europeia é, ao mesmo tempo, uma crise de dívida soberana e um potencial de crise bancária. As duas coisas sempre vêm juntas, como mostra um livro de Rogoff e Carmen Reinhart (Oito Séculos de Delírio Financeiro: Desta Vez é Diferente). Há vários tipos de contágio envolvidos. Há países insolventes, como Grécia, Irlanda e talvez Portugal, e países com dívidas grandes, casos de Espanha e Itália, que começaram a receber contágio dos menores. Segundo Rogoff, esse tipo de crise se resolve de três formas: ou se faz uma reestruturação ordenada das dívidas, ou se tem inflação ou acaba em default (calote).
Em qual dessas três possibilidades o sr. acredita?
Os europeus terão de ir para a reestruturação, que será custosa para os países, que terão de absorver os prejuízos dos bancos quando houver o corte das dívidas. E a Europa terá de ter cabeça fria para conseguir condição política de fazer isso.
Já há quem fale em uma década perdida para as economias desenvolvidas.
A analogia aqui é com o Japão. Houve uma desalavancagem das empresas japonesas, não das famílias, como nos EUA de hoje. Há um livro magistral sobre isso (The Holy Grail of Macroeconomics), escrito por Richard Koo, que mostra o seguinte: quando o Japão foi para taxa de juros nula, não conseguiu fazer a economia crescer porque o melhor uso que as empresas podiam ter era pagar dívida. As empresas nos EUA não estão endividadas, o que tem enganado gestores de fundos. O ponto, tanto nos EUA quanto na Europa, é que as pessoas não consomem. É preciso, portanto, desalavancar as famílias. Esse processo é longo. Pode levar uma década para acertar isso.
Estamos a caminho de uma segunda recessão, o que chamam de double dip?
É possível, sem dúvida, de várias formas. A primeira é a seguinte: os EUA não crescem. Em sua última decisão, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) se comprometeu a não mexer no juro básico até 2013. Mas há sinais que pode fazer um QE3. Como o quantitative easing potencialmente produz estímulo de demanda? Há dois canais. O primeiro é gerar um efeito riqueza. Me parece que, hoje, esse efeito é muito pequeno, se é que vai ter. O QE2, por exemplo, não mexeu em um único cent nos preços das casas. O segundo canal de transmissão se dá por meio da desvalorização do dólar (que favorece as exportações americanas e, por tabela, o crescimento econômico). O problema é que o mundo está ficando irritado com a depreciação do dólar. Os países sentem que voltou um comportamento que, no século 19, chamava ‘beggar thy neighbour’, que é a depreciação competitiva da moeda para ganhar mercado do outro.
Mas há reações no mundo.
Sim, hoje, há reações em vários lugares, inclusive no Brasil - ainda que, por aqui, de forma meio atabalhoada. Não quero dizer que o mundo sairá do regime de câmbio flutuante, mas cito um exemplo usando dois países, a Austrália e a China. Os australianos nunca intervêm no câmbio, enquanto os chineses adotam câmbio fixo. Se o Fed anunciar um QE3, é uma nova força para enfraquecer o dólar. Se o mundo se comportar como a Austrália, os EUA atingem o que desejam (aumentar suas exportações). Mas, se reagir como a China, os EUA não conseguem desvalorizar sua moeda. No limite, nesse cenário, poderá haver estagflação (estagnação com inflação) nos EUA. Acho que o mundo não caminhará para nenhum dos extremos - nem Austrália nem China.
E o Brasil?
Deve olhar isso tudo com muita cautela. Pode acontecer no mundo uma coisa extrema. Se houver a solução crítica, desordenada, será reproduzido, em tese, o que houve na fase pós-quebra do Lehman Brothers. Cai comércio mundial, desabam preços das commodities, PIB do mundo e do Brasil caem. Nesse caso, o Brasil terá de reagir de forma semelhante a 2008. Semelhante, frise-se, não igual. Teremos de usar dinheiro das reservas para financiar exportações e comprar recebíveis, reduzir compulsórios se houver empoçamento de liquidez nos bancos. Podemos usar melhor o Fundo Garantidor de Crédito (FGC) para evitar prejuízos. Ainda assim haverá desaceleração mais forte. Em um caso desses, seria preciso baixar a taxa de juros. Mas não é preciso fazer isso no pressuposto de que pode acontecer. Tem de fazer se acontecer.
O sr. acredita que acontece?
O meu cenário base é o de que isso provavelmente não ocorre, apesar do impasse político da Europa. A história recente joga a favor de a Europa ter racionalidade. Pessoas influentes na região sabem que deixar a situação atual convergir para uma crise bancária dispara um fenômeno à la Lehman Brothers.
E a China?
Não adianta dizer que a China vai salvar o mundo porque é um país que está neste globo, não em Marte ou em Vênus. Se EUA e Europa desaceleram, a China desacelera, por mais que a gente ache que a China é um fenômeno inexplicável. Em resumo, desacelera todo mundo e desacelera o Brasil. Com isso, há uma força desinflacionária aqui. Tudo o mais constante, a primeira providência será o Banco Central interromper a alta dos juros e ficar em compasso de espera. Se tiver de baixar, baixa. Independentemente da velocidade que baixe, quando o mercado perceber que entrou em um ciclo de queda, a curva de juros já inclina negativamente, de forma que o BC não pode e não deve ser precipitado nessa redução. Deve ir com cautela. Digo isso explicitamente para não dizerem que estou defendendo redução amanhã. Como, aliás, um bando de gente tem feito.
Qual seria o efeito no Brasil de um eventual QE3?
Um QE3 levaria a uma nova rodada de enfraquecimento do dólar e, como as commodities globais estão correlacionadas com a moeda americana, os preços de commodities subiriam. É claro que há duas forças contraditórias aqui, pois há a desaceleração do mundo. Ao se colocar as duas coisas juntas, não se sabe direito para onde vai (o preço).
Como deve reagir o governo?
Nesse cenário, por que eu defendo que uma reação do governo se dê no campo monetário, e não no fiscal? Em primeiro lugar, porque o campo fiscal já está suficientemente desarrumado. E ficou provado no mundo que a tal reação keynesiana, que muitos economistas têm defendido também no Brasil, provocou tudo isso que estamos vendo nos EUA e na Europa. (John Maynard) Keynes (considerado o mais importante economista do século 20) nunca escreveu que essas políticas levariam ao aumento da dívida pública. Ele nunca prestou atenção a esse fato. O mundo provou depois que déficits aumentam a dívida.
Em se confirmando esse cenário, o Brasil vai crescer menos. Só que o governo brasileiro tem a meta de crescer 4,5% ao ano. Não dá para cumprir essa meta nos próximos anos?
Não vou dizer que vai ou não vai, porque lá pelas tantas a Europa pode resolver seu problema. Mas, no quadro que vejo hoje da economia mundial, o Brasil vai crescer menos. E o governo vai ter de se dobrar à realidade. Não há o que fazer. Se tentar escapar disso, vai gerar desequilíbrios. Ou na conta corrente ou na inflação ou no endividamento. De alguma forma, será algo que trará custos mais adiante.
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