Paulo Roberto de Almeida
“Eu sou você
amanhã” de novo?
Marcelo de Paiva Abreu *
O
Estado de São Paulo, segunda-feira, 31.10.2011
Mesmo
que haja significativa assimetria entre as economias do Brasil e da Argentina,
o que ocorre no vizinho pode ter repercussões importantes sobre o Brasil. Os
desdobramentos da recente consagração nas urnas do "cristinismo"
devem, portanto, merecer atenção.
Os dois vizinhos mantêm, desde a
independência, relações nem sempre marcadas por sintonia.
Mas, entre estereótipos preconceituosos que incluíam macaquitos e milongueiros, as relações amadureceram, culminando no Mercosul. Em certa medida, isso resultou de mudanças de longo prazo nas percepções recíprocas. Por muito tempo o Brasil foi rival menor da Argentina. Afinal, o PIB per capita argentino, quase o dobro do brasileiro após a guerra do Paraguai, alcançou, depois do boom pré-1914, patamar (mantido até 1930) quatro vezes maior que o PIB per capita brasileiro.
No meio século seguinte o Brasil recuperou boa parte do terreno: em 1980, o PIB-PPC per capita brasileiro era 75% do argentino; hoje está pouco abaixo disso. Ou seja, num período em que a economia brasileira estagnou por mais de 20 anos, o desempenho argentino foi apenas marginalmente melhor e caracterizado por volatilidade muito maior.
O tamanho relativo das economias mudou também como consequência do aumento relativo da população brasileira, hoje cinco vezes maior que a argentina: era menos de três vezes maior no final dos anos 20. Disso resultou espetacular alteração na importância relativa das duas economias: em 1930 o PIB argentino era cerca de 1/3 maior do que o brasileiro - hoje, é menos de 1/3 do PIB brasileiro.
É neste contexto que devem ser considerados os comentários de analista argentino que, algo melodramaticamente, se perguntava, com os EUA em mente, se a Argentina seria o Canadá do Brasil ou o México do Brasil. No terreno da formulação de políticas econômicas, todavia, a Argentina pode ter importante influência sobre o governo brasileiro. Há registro de manifestações de altos funcionários brasileiros demonstrando preferência pelas políticas argentinas quando contrastadas ao que consideram excesso de ortodoxia brasileiro. Na década de 1980, uma campanha publicitária de vodca ficou famosa: um homem se olhava no espelho e seu reflexo, bastante amarrotado, lhe dizia "eu sou você amanhã". A sugestão era de que a ressaca poderia ser evitada, caso fosse consumida a marca anunciada.
O efeito Orloff se popularizou com aplicação à tradicional propensão brasileira de repetir políticas econômicas adotadas na Argentina. Em meados da década de 1980, o exemplo notável foi a tentativa fracassada do Plano Cruzado, na esteira do também fracassado Plano Austral. Desde o início dos anos 90 os caminhos divergiram. A estabilização do Brasil em 1993-1994 mostrou-se bem-sucedida e duradoura. O desempenho em termos de crescimento foi modesto, mas bem menos volátil do que no vizinho. A Argentina teve sucesso na estabilização dolarizada em 1991 e bom desempenho em termos de crescimento até o final da década, mas seguiu-se grave crise com abandono da conversibilidade, calote da dívida externa e queda significativa do nível de atividade.
A partir de 2003, partindo de uma base deprimida, o crescimento do PIB foi em torno de 8% ao ano. Há dúvidas crescentes quanto à possibilidade de manutenção desse desempenho. A condução da política econômica sob o "kirchnerismo" em seus vários matizes foi marcada pela sistemática intervenção do governo por meio de um leque de subsídios e "retenções". Os subsídios têm como alvo manter estáveis os preços de energia ao consumidor, cujo aumento é considerado oneroso politicamente. As "retenções" são impostos de exportação sobre os produtos agrícolas, hoje de até 35%. Essa persistente interferência nos preços básicos da economia tem como pano de fundo significativa aceleração inflacionária, escamoteada de forma sistemática e truculenta pelo governo. Essas políticas públicas geram ineficiência e perigo de recrudescimento inflacionário numa economia com história marcada por alta volatilidade. Tudo em meio a controvérsias quanto à generalização de práticas corruptas.
A recente fuga de capitais em meio ao processo eleitoral indica a vulnerabilidade do "modelo" pós-2003. O efeito demonstração do modelo argentino sobre as autoridades econômicas brasileiras não deve ser subestimado. O terreno é fértil, como indicam decisões recentes que desafiam o bom senso, a análise econômica elementar e maculam a reputação brasileira em foros internacionais, em particular na OMC. Medidas protecionistas primitivas, como o aumento seletivo do IPI e a desoneração fiscal seletiva em benefício dos setores automotivo e eletrônico, indicam regressão a desastres passados.
Decisões agora coroadas com a estapafúrdia prorrogação por meio século (!) da Zona Franca de Manaus, instituição emblemática do cartorialismo tupiniquim. E, pelo rodar da carruagem, o febeapá está longe de acabar. Com base nesse retrospecto de inépcia nas políticas "microeconômicas" e de redução da prudência macroeconômica, aumentam as preocupações com o uso que o governo fará da bonança do pré-sal. Será toda desperdiçada?
Mas, entre estereótipos preconceituosos que incluíam macaquitos e milongueiros, as relações amadureceram, culminando no Mercosul. Em certa medida, isso resultou de mudanças de longo prazo nas percepções recíprocas. Por muito tempo o Brasil foi rival menor da Argentina. Afinal, o PIB per capita argentino, quase o dobro do brasileiro após a guerra do Paraguai, alcançou, depois do boom pré-1914, patamar (mantido até 1930) quatro vezes maior que o PIB per capita brasileiro.
No meio século seguinte o Brasil recuperou boa parte do terreno: em 1980, o PIB-PPC per capita brasileiro era 75% do argentino; hoje está pouco abaixo disso. Ou seja, num período em que a economia brasileira estagnou por mais de 20 anos, o desempenho argentino foi apenas marginalmente melhor e caracterizado por volatilidade muito maior.
O tamanho relativo das economias mudou também como consequência do aumento relativo da população brasileira, hoje cinco vezes maior que a argentina: era menos de três vezes maior no final dos anos 20. Disso resultou espetacular alteração na importância relativa das duas economias: em 1930 o PIB argentino era cerca de 1/3 maior do que o brasileiro - hoje, é menos de 1/3 do PIB brasileiro.
É neste contexto que devem ser considerados os comentários de analista argentino que, algo melodramaticamente, se perguntava, com os EUA em mente, se a Argentina seria o Canadá do Brasil ou o México do Brasil. No terreno da formulação de políticas econômicas, todavia, a Argentina pode ter importante influência sobre o governo brasileiro. Há registro de manifestações de altos funcionários brasileiros demonstrando preferência pelas políticas argentinas quando contrastadas ao que consideram excesso de ortodoxia brasileiro. Na década de 1980, uma campanha publicitária de vodca ficou famosa: um homem se olhava no espelho e seu reflexo, bastante amarrotado, lhe dizia "eu sou você amanhã". A sugestão era de que a ressaca poderia ser evitada, caso fosse consumida a marca anunciada.
O efeito Orloff se popularizou com aplicação à tradicional propensão brasileira de repetir políticas econômicas adotadas na Argentina. Em meados da década de 1980, o exemplo notável foi a tentativa fracassada do Plano Cruzado, na esteira do também fracassado Plano Austral. Desde o início dos anos 90 os caminhos divergiram. A estabilização do Brasil em 1993-1994 mostrou-se bem-sucedida e duradoura. O desempenho em termos de crescimento foi modesto, mas bem menos volátil do que no vizinho. A Argentina teve sucesso na estabilização dolarizada em 1991 e bom desempenho em termos de crescimento até o final da década, mas seguiu-se grave crise com abandono da conversibilidade, calote da dívida externa e queda significativa do nível de atividade.
A partir de 2003, partindo de uma base deprimida, o crescimento do PIB foi em torno de 8% ao ano. Há dúvidas crescentes quanto à possibilidade de manutenção desse desempenho. A condução da política econômica sob o "kirchnerismo" em seus vários matizes foi marcada pela sistemática intervenção do governo por meio de um leque de subsídios e "retenções". Os subsídios têm como alvo manter estáveis os preços de energia ao consumidor, cujo aumento é considerado oneroso politicamente. As "retenções" são impostos de exportação sobre os produtos agrícolas, hoje de até 35%. Essa persistente interferência nos preços básicos da economia tem como pano de fundo significativa aceleração inflacionária, escamoteada de forma sistemática e truculenta pelo governo. Essas políticas públicas geram ineficiência e perigo de recrudescimento inflacionário numa economia com história marcada por alta volatilidade. Tudo em meio a controvérsias quanto à generalização de práticas corruptas.
A recente fuga de capitais em meio ao processo eleitoral indica a vulnerabilidade do "modelo" pós-2003. O efeito demonstração do modelo argentino sobre as autoridades econômicas brasileiras não deve ser subestimado. O terreno é fértil, como indicam decisões recentes que desafiam o bom senso, a análise econômica elementar e maculam a reputação brasileira em foros internacionais, em particular na OMC. Medidas protecionistas primitivas, como o aumento seletivo do IPI e a desoneração fiscal seletiva em benefício dos setores automotivo e eletrônico, indicam regressão a desastres passados.
Decisões agora coroadas com a estapafúrdia prorrogação por meio século (!) da Zona Franca de Manaus, instituição emblemática do cartorialismo tupiniquim. E, pelo rodar da carruagem, o febeapá está longe de acabar. Com base nesse retrospecto de inépcia nas políticas "microeconômicas" e de redução da prudência macroeconômica, aumentam as preocupações com o uso que o governo fará da bonança do pré-sal. Será toda desperdiçada?
* Doutor
em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento
de Economia da PUC- Rio.