DE BRETTON WOODS A BRETTON WOODS:
a longa marcha da URSS de volta ao FMI
Paulo Roberto de
Almeida
Revista
Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXXIV, nºs 135-136,
1991/2, pp. 99-109)
O espectro do passado
A História costuma dar muitas voltas, antes de retornar, eventualmente,
ao seu ponto inicial. Ela nem precisa reproduzir-se como farsa, como afirmava
Marx a partir do conceito original de Hegel. Farsa ou tragédia, tudo depende do
ponto de vista de quem é chamado a pagar a conta da repetição do espetáculo. Na
verdade, mais que repetir-se, a História se contenta com pregar peças naqueles
que ousam desafiar as “leis de funcionamento do mecanismo econômico da
sociedade”, para empregar uma das frases preferidas do autor d’O Capital, ou melhor, do Dezoito Brumário, onde aquela famosa
reflexão sobre o retorno da História foi registrada pela primeira vez.
Assim, pode ser encarada, por exemplo, a restauração da “velha” ordem
capitalista nos países que, antes ou depois da II Guerra Mundial, tinham
adotado o sistema de economia planificada e que, durante muito tempo, se tinham
preparado alegremente para enterrar o capitalismo (com a ajuda eventual de uma
das muitas crises cíclicas deste último). A transição acelerada do modo de
produção socialista ao ancien régime do capitalismo, empreendida a todo vigor
no Leste europeu, pode, ocasionalmente, ter seu lado de tragédia (e muito pouco
de farsa), notadamente para os órfãos do planejamento centralizado, mas, ela
tem muito pouco de surpresa para aqueles que acompanharam com atenção a
parábola do comunismo na História.
Winston Churchill, ainda que reconhecidamente muito pouco afeito a
reflexões de tipo hegeliano, não se surpreenderia, por certo, com a desmontagem
final de um regime econômico e político por ele considerado como “pouco
natural” e mesmo totalmente contrário à “natureza humana”. A invocação à
Churchill é, aliás, ilustrativa do itinerário tortuoso que a História percorreu
em pouco mais de 70 anos de ascensão e queda da ideologia socialista.
Ele, que tinha estimulado e participado ativamente na montagem do apoio
ocidental aos grupos de russos brancos que, entre 1918 e 1923, combateram
militarmente a jovem república bolchevique, não hesitou, mais tarde, em
aliar-se ao “demônio comunista” para eliminar, como ele dizia, o “diabo
hitlerista”. Ao final da guerra, conhecedor como poucos do caráter brutal da
dominação stalinista, foi um dos primeiros a afirmar que uma “cortina de ferro”
se tinha abatido sobre a Europa.
Com efeito, em 5 de março de 1946, Winston Churchill pronuncia, no
Colégio Rural de Fulton (Missouri, EUA), seu famoso discurso sobre a cortina de
ferro que tinha passado a dividir a Europa desde Stettin até Trieste. Ele
reitera então seu severo julgamento, elaborado desde os primórdios do poder
bolchevique, sobre o caráter totalitário dos regimes sob dominação soviética e,
empregando uma imagem que se tornaria típica da guerra fria, caracteriza o
comunismo como uma “ameaça crescente à civilização cristã”.
Churchill afirmava particularmente: “O que eu pude conhecer de nossos
amigos russos durante a guerra, me convenceu que, mais do que tudo, eles
admiram a força e que, mais do que tudo, eles desprezam a fraqueza militar”. Em
19 de setembro desse mesmo ano, exercitando seus dons de “futurólogo”, ele se
pronuncia a favor dos “Estados Unidos da Europa”. Churchill ousa mesmo prever a
derrocada final do sistema comunista, com base, em grande medida, nos mesmos
argumentos que tinham sido avançados no século passado por John Stuart Mill em
relação ao caráter profundamente irracional da organização social da produção
em regime socialista.
Churchill, evidentemente, não logrou viver o bastante para assistir à
confirmação prática do ceticismo sadio demonstrado pelo pensamento econômico
liberal a respeito da debilidade intrínseca de qualquer forma de apropriação
coletiva dos frutos do trabalho individual. Difícil dizer, também, se ele
consideraria a marcha acelerada das economias planificadas em direção do
mercado como uma demonstração inequívoca de um “retorno da História”. Em todo
caso, ele provavelmente receberia com um sorriso maroto a solicitação algo
desesperada apresentada pela União Soviética de adesão plena ao FMI e ao Banco
Mundial, formulada por ocasião da reunião do G7, de julho de 1991 em Londres.
A despeito da simpatia despertada nos europeus, a cauta reação
anglo-americana apenas permitiu contemplar, numa primeira fase, um simples
estatuto de “membro associado”, isto é, a URSS ganha o direito de ser
escrutinada pelos bisturis cruéis do FMI mas não consegue alcançar a bolsa dos
cobiçados sestércios. Essa posição intermediária será rapidamente superada pela
situação normal de associação plena, uma vez aprovado um programa rigoroso de
reconversão econômica e definidas as linhas da cura de emagrecimento do Estado
socialista.
Mais, do que a aceitação formal ou efetiva, pela URSS, dos princípios de
mercado, é o apelo ao FMI que conforma verdadeiramente um retorno patético da
História. Afinal de contas, as instituições de Bretton Woods, tidas por Stalin
como a “representação mais acabada” da ordem mundial capitalista, sempre
concentraram os ataques mais veementes dos adeptos da economia planificada. Com
o tempo, entretanto, vários países do “socialismo realmente existente” tiveram
de arrefecer suas críticas e trataram de solicitar, cada qual a seu turno, uma
discreta adesão às antigas “agências do imperialismo econômico”. O movimento se
acelerou, desde os anos 70, até incluir agora a própria União Soviética, o que
aliás não tomou inteiramente de surpresa os observadores mais atentos, já que
esse “salto qualitativo” estava implícito na natureza das transformações em
curso nas “economias pós-socialistas”.
Pode-se, contudo, falar legitimamente de “ingresso” da URSS nas
instituições financeiras de Bretton Woods, ou seria melhor referir-se à “volta”
da ex-pátria do socialismo a organizações por ela mesma criadas no quadro das
Nações Unidas? Um pequeno passeio pela História nos permitirá esclarecer essa
questão.
A reconstrução econômica do mundo do
pós-guerra
As características mais essenciais da ordem política e econômica do
mundo do pós-guerra foram traçadas desde muito cedo, ainda antes da
internacionalização do conflito e em plena guerra europeia, através notadamente
da “Carta do Atlântico”. Mas, elas resultaram, mais particularmente, dos
arranjos diplomáticos e militares realizados durante a fase final da guerra,
notadamente em Bretton Woods, em Dumbarton Oaks, em Yalta e Potsdam e em São
Francisco. Vejamos, resumidamente, o que foi cada um desses marcos fundadores
da era contemporânea.
Na “Carta do Atlântico”, de agosto de 1941, Roosevelt e Churchill
alinham os grandes princípios que deveriam reger o mundo do pós-guerra. A
conferência de Bretton Woods, em julho de 1944, está identificada com a
reorganização econômica do mundo contemporâneo, através da criação das duas
principais instituições financeiras internacionais: o FMI e o Banco Mundial. Em
Dumbarton Oaks, em agosto desse mesmo ano, são colocadas as bases de uma
organização das “nações aliadas”, que, em São Francisco, em abril de 1945, se
converteria na ONU. Finalmente, em Yalta e em Potsdam, em fevereiro e em julho
e agosto de 1945, respectivamente, são delineadas as linhas da fronteira
geopolítica que passaria a dividir o mundo com maior nitidez a partir de 1947.
Na Carta Atlântica, ademais da defesa dos direitos soberanos das nações,
Churchill e Roosevelt dizem pretender assegurar para todos os povos um “acesso
igualitário às matérias-primas e ao comércio mundial” e propõem uma cooperação
econômica internacional. Esse declaração conjunta constitui, assim, um dos
fundamentos conceituais da reconstrução econômica e política do mundo do
pós-guerra.
O outro grande marco fundador será, inegavelmente, a Conferência de
Bretton Woods, realizada em agosto de 1944 a convite dos EUA. Representantes de
45 Estados ou Governos, incluído o da URSS, se reúnem nessa cidade do New
Hampshire, com o objetivo de promover uma nova ordem econômica mundial, tornada
indispensável com a previsível derrota da Alemanha e do Japão.
A conferência decide a criação de um banco internacional de reconstrução
e desenvolvimento, que teria como missão realizar empréstimos de capital a
largo prazo para os países urgentemente necessitados ou subdesenvolvidos, após
análise de projetos específicos a serem decididos, em princípio, segundo
“critérios técnicos”. Igualmente se decide criar uma nova instituição
financeira, o Fundo Monetário Internacional, com o objetivo de conceder
créditos de curto prazo em condições que permitam superar dificuldades
temporárias de balança de pagamentos e que ajudem a estabilizar as taxas de
câmbio. Se estabelece, ademais, que o dólar passa a ser a divisa referencial
para a avaliação dos tipos de câmbio.
Os principais objetivos do FMI eram, resumidamente, alcançar e manter a
estabilidade nas taxas de câmbio, facilitar a liberação de restrições de câmbio
e abrir caminho para a conversibilidade das moedas. Os membros eram solicitados
a estabelecer um valor paritário para sua moeda em termos de ouro (ou de
dólar), o qual apenas poderia ser modificado com a aprovação do Fundo; eles
tinham ainda de aceitar certas regras limitando suas prerrogativas em matéria
de restrições cambiais, bem como estabelecer e manter um sistema multilateral
de pagamentos.
A questão do comércio também recebe atenção prioritária no processo de
restauração econômica em curso. O período de entre guerras tinha assistido a
práticas generalizadas de discriminação no comércio internacional. Compreensivelmente,
os que se dedicavam a fazer planos para o pós-guerra, em primeiro lugar os EUA,
advogavam desde o começo uma política firme de não-discriminação e de
liberalização das trocas comerciais.
Na verdade, os próprios Estados Unidos detinham grande parte da culpa
pela depressão mundial e pelo protecionismo que tinham precedido a guerra. A
lição parecia ter sido aprendida no começo dos anos 40: muitos responsáveis
norte-americanos estavam convencidos de que a crise econômica e o desespero dos
anos 30 tinham aberto o caminho ao totalitarismo e ao militarismo. Por isso,
além de promover seus objetivos políticos tradicionais — liberdade dos oceanos,
autodeterminação nacional e governo democrático —, os EUA trataram, desde essa
época, de implementar a política da “Open Door”. Se supunha que um ambiente
internacional sem discriminações ofereceria os benefícios da concorrência
econômica pacífica, o acesso igualitário às matérias primas e o máximo de
eficiência por meio do princípio da vantagem comparativa.
Isto se torna aparente já em 1941, na Carta Atlântica, que, sob
insistência americana, inclui referência segundo a qual os governos britânico e
americano “se empenharão para que todos os Estados, grandes ou pequenos,
vitoriosos ou vencidos, tenham acesso em igualdade de condições ao comércio e
às matérias-primas de que precisem para a sua prosperidade econômica” [Mello,
1950: 592-3]. Alguns meses depois, no Artigo VII do “Master Lend Lease
Agreement” entre os EUA e a Grã-Bretanha, os dois governos concordaram em
trabalhar em favor “da eliminação de todas as formas de tratamento
discriminatório no comércio internacional” [Patterson, 1966:12-13].
Na verdade, em Bretton Woods, se cuidou muito pouco de comércio, apesar
da conferência ter reafirmado, em suas diretrizes, que o estabelecimento de um
sistema multilateral de livre comércio era essencial para a restauração
econômica do mundo do pós-guerra. As disposições pertinentes deveriam, contudo,
ser objeto de uma conferência especial a ser convocada em ocasião ulterior, o
que de fato acabou ocorrendo em 1947 e 1948, em Genebra e em Havana. Em todo
caso, havia concordância, entre a maior parte dos participantes de Bretton
Woods, de que se deveria privilegiar um enfoque multilateralista na
reorganização das correntes de comércio, combatendo as práticas bilateralistas
que se tinham desenvolvido enormemente durante a guerra.
O multilateralismo tinha em seu favor a lembrança recente, e amarga, da
falência do protecionismo generalizado, nascido com a crise do 1929 e que desembocou
na guerra. Os maiores promotores da “mutação multilateralista” eram,
evidentemente, os EUA que praticamente “obrigavam” os países beneficiários de
acordos de ‘lend-lease” a se comprometerem a participar, com eles, de “uma ação
coordenada tendente à eliminação de todas as formas de discriminação no
comércio internacional e à redução das tarifas e outras barreiras comerciais”.
Em Novembro de 1945, o Secretário de Estado norte-americano Byrnes apresenta,
assim, quatro propostas, razoavelmente bem acolhidas, “para a expansão do
comércio mundial e do emprego”: liberação das restrições impostas pelos
governos, liberação das restrições impostas pelas ententes e pelos cartéis
privados, liberação da ameaça da desordem nos mercados de produtos de base e
liberação dos temores ligados a crises na produção e no emprego [Mayer, 1983:
5-6].
Todos esses princípios estarão presentes, igualmente, nas conferências
das Nações Unidas sobre comércio e emprego, organizadas sucessivamente em
Genebra e em Havana, e das quais deveria resultar uma Organização Internacional
do Comércio, dando assim acabamento ao tripé econômico multilateral concebido e
iniciado em Bretton Woods. No entanto, por razões de diversa natureza, o
sistema concebido e discutido em Bretton Woods estava destinado a ser
implementado apenas a partir de seus suportes financeiro e monetário.
Como indicou um antigo Diretor do GATT, “o insucesso da Carta de Havana
deixa um vazio na organização das relações econômicas do pós-guerra. Um vazio
considerável na medida em que a Carta contém disposições sobre o emprego e a
atividade econômica, sobre o desenvolvimento econômico e a reconstrução
[compreendida no sentido da reconstrução das regiões europeias e asiáticas
devastadas pela guerra], sobre a política comercial [a única, aliás,
implementada pelas partes interessadas], sobre as práticas comerciais
restritivas, sobre acordos inter-governamentais sobre produtos de base [aspecto
que tocava muito de perto os interesses de países primário-exportadores, como o
Brasil], ademais da criação da OIC” [Long, 1984: 17].
A divisão Leste-Oeste e a fratura
Norte-Sul
A segunda metade dos anos 40 é classicamente identificada com a “guerra
fria” e apenas com ela. Pouco atenção é dada à questão do desenvolvimento, isto
é, ao problema da assimetria básica entre os países industrializados e as
“nações subdesenvolvidas”, como eram então chamadas as áreas economicamente
atrasadas, constituídas de países primário-exportadores ou de regiões ainda
submetidas ao domínio colonial europeu. A divisão horizontal de tipo
“estratégico-militar” parece ter predominância, e não apenas na literatura
acadêmica, sobre o eixo vertical de natureza “econômico-social”.
Uma reconstrução conceitual mais adequada à realidade histórica — como a
que intentamos, por exemplo, em trabalho independente [1991], de maior
abrangência cronológica — poderia contudo servir para corrigir ambas as
perspectivas. De um lado, porque a oposição entre o socialismo e o liberalismo
— ou, entre o comunismo e a democracia, como então se dizia — se desenvolve
apenas gradualmente, à medida em que a aliança “teórica” dos tempos de guerra
(que implicava a promessa de colaboração no estabelecimento da nova ordem
mundial) fica erodida em face dos desentendimentos “práticos” nos diversos
terrenos de contato. De outro, porque, embora escassamente aludido na
bibliografia especializada e ainda menos repercutido na agenda internacional
dessa época, o problema do desenvolvimento não deixa de ser colocado por seus
principais interessados (entre eles o Brasil), cada vez que a ocasião se
apresenta.
Ao eixo Leste-Oeste do confronto ideológico deve assim ser agregado, do
ponto de vista de países como o Brasil, o eixo Norte-Sul da luta pelo
desenvolvimento, problema então praticamente ignorado nos debates conduzidos
nos novos foros internacionais criados sob a égide da ONU. A questão era, sem
dúvida alguma, obscurecida, tanto pela enorme tarefa de “reconstrução” dos
países arrasados pela guerra, na Europa ou na Ásia, como pela enorme assimetria
de recursos e de poder existente não só, de uma forma geral, entre as antigas
potências militares e os países subdesenvolvidos, mas também entre os Estados
Unidos, sozinhos de um lado, e o chamado “mundo livre”, tomado em seu conjunto.
Sem embargo de que o cenário internacional estivesse mais propenso a dar
prioridade aos problemas derivados do enfrentamento bipolar entre o socialismo
e o liberalismo, o problema do desenvolvimento nunca deixou de ser colocado
pelos países “primário-exportadores”, como um dos principais vetores de sua
atuação diplomática externa. Numa conjuntura histórica em que a questão do
desenvolvimento sequer existia, dotada de status próprio, na teoria econômica,
a prática diplomática brasileira, por exemplo, já encarava o tema praticamente
como une affaire d’État.
É bem verdade, contudo, que os acordos de constituição do FMI não fazem
nenhuma distinção entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Não
se tratava, no entanto, de uma discriminação direta e voluntariamente perversa:
o problema simplesmente não se colocava, na ótica dos que convocaram a
conferência de Bretton Woods. A reorganização econômica e monetária do mundo
era um problema a ser resolvido basicamente entre as grandes potências, que se
consideravam como os únicos “responsáveis pela ordem mundial”. Em Bretton Woods
atuaram essencialmente os EUA e a Grã-Bretanha, todos os demais participantes
eram meros figurantes.
Esse desconhecimento da questão do desenvolvimento, no entanto, não se
refletiu na prática corrente do FMI. Na primeira fase de suas atividades,
contraditoriamente, a organização preocupou-se muito mais com os problemas de
taxas múltiplas de câmbio e de práticas discriminatórias em matéria monetária
(controle dos fluxos de divisas) por parte dos países menos desenvolvidos do
que com as enormes restrições ao câmbio prevalecentes nos países europeus. Esse
“double standard” não deixou, evidentemente, de provocar um legítimo mal-estar
nesses países, em especial na América Latina, que ressentiam que muito maior
atenção era dada às suas práticas restritivas do que às dos “major powers” [De
Vries, 1986: 218].
Apesar de seus muitos inconvenientes, em especial para os países em
desenvolvimento, o sistema financeiro criado em Bretton Woods era audaz e
criativo, permitindo uma transição relativamente tranquila para uma economia
internacional mais aberta e menos sujeita aos sobressaltos do período anterior.
Para os que se apressam em condenar a “saída liberal” — e forçosamente
“desigual” — encontrada pelo “sistema capitalista” para resolver o problema de
suas “crises periódicas”, cabe advertir que a alternativa “disponível” para os
países em desenvolvimento não seria, exatamente, uma espécie de Commonwealth
socialista — que nunca chegou a existir, apesar de tentativas de coordenação no
âmbito do Comecon —, mas um provavelmente catastrófico regresso ao sistema
protecionista e discriminatório dos anos anteriores à guerra. A redução das
barreiras comerciais e o estabelecimento de taxas estáveis de câmbio, baseadas
num dólar firme, eram os pré-requisitos para a recuperação do comércio mundial,
do qual os países em desenvolvimento continuariam a participar em sua qualidade
de tradicionais exportadores de produtos primários.
A “cooptação econômica” da URSS
Mas, se o sistema de Bretton Woods era (negativamente) indiferente em
relação à questão do desenvolvimento, se pretendia que ele fosse
(positivamente) neutro do ponto de vista político, permitindo a acomodação,
numa mesma estrutura, entre os países “capitalistas” e os “socialistas”. O pragmatismo
deveria imperar, acima de quaisquer considerações ideológicas. Na verdade, em
Bretton Woods, os EUA previam mais problemas com o Reino Unido (e com os outros
países europeus) do que com a própria União Soviética. Não se deve esquecer,
por exemplo, que a discriminação comercial exercida contra os Estados Unidos
com base na famosa “preferência imperial” da Commonwealth britânica sempre
constituiu uma fonte de atritos entre os dois membros mais importantes do mundo
capitalista.
Em todo caso, a “planificação econômica” do pós-guerra também reservou
um papel para a URSS, a despeito da pequena importância econômica e comercial
que esta tinha no mundo. Ao assim procederem, os EUA queriam evitar o
desastroso erro de Versalhes que, ao excluir uma potência — no caso, a Alemanha
de Weimar — do concerto mundial, havia gerado o clima de instabilidade e
desconfiança responsável pelo ulterior acirramento dos conflitos no continente
europeu. Os EUA se mostraram sensiveis aos interesses soviéticos, em parte
porque previam um grande intercâmbio entre matérias-primas soviéticas e
manufaturados norte-americanos, o que, entretanto, revelou-se depois
francamente ilusório.
Em virtude dessa disposição favorável, os soviéticos conseguiram a
terceira maior subscrição — contribuição e poder de veto — no esquema inicial
do FMI e, quando os delegados soviéticos se recusaram temporariamente a
contribuir com uma quantidade equivalente (1,2 bilhão de dólares) para o Banco
Mundial, a delegação dos EUA arranjou-se para que os países ocidentais
compensassem a lacuna aumentando suas participações. Finalmente, se acertou uma
quota para a URSS que pouca ou nenhuma relação tinha com sua importância no
comércio mundial, mas que foi estabelecida como reconhecimento de sua
importância politica e potencialmente econômica.
O Secretário do Tesouro dos EUA, Hans Morgenthau acreditava, por
exemplo, que os esforços desenvolvidos em Bretton Woods proporcionavam uma base
segura para a cooperação entre os países capitalistas e socialistas. Mas, na
data limite de 31 de dezembro de 1945, a URSS não ratificou os acordos de
Bretton Woods, apesar de que vários dos mecanismos desenhados no FMI e no Banco
Mundial estivessem concebidos especialmente para as economias socialistas,
entre eles, a atribuição de um poder de voto desproporcional para a URSS
[Pollard, 1988: 34-36].
Versalhes revisto e corrigido por
Keynes
O “grande cisma” — segundo o título dado por Raymond Aron a um de seus
livros dessa época — entre as democracias ocidentais e os países socialistas se
desenvolveu, assim, a despeito de uma vontade inicial de entente e de
colaboração entre os parceiros da guerra. Mais do que as rivalidades
ideológicas, foram as “duras realidades” nascidas do caos gerado sucessivamente
pelas ocupações nazista e soviética de imensos territórios no coração da Europa
que precipitou a cisão brutal do mundo em dois campos opostos, divisão que
estava em germe desde 1917.
A realidade da bipolaridade estrita apresenta-se, então, como um
fenômeno novo no sistema internacional, já que nem os antigos impérios, nem o
equilíbrio “westfaliano” nascido com os modernos Estados-nacionais tinham
conseguido reduzir a tal ponto os atores da Machtpolitik.
Com efeito, a Segunda Guerra mundial tinha acarretado ainda mais
desordens políticas e sociais do que a Primeira. Não apenas a destruição física
foi maior, com um movimento de populações inteiras inimaginável até então, como
também — e mais importante — o equilíbrio geopolítico foi radicalmente
alterado. A bipolaridade russo-americana, anunciada um século antes por
Tocqueville, iria finalmente converter-se em realidade, mas apresentando pelo
menos dois elementos historicamente inéditos em relação ao cenário imaginado
pelo filósofo liberal francês: um conflito “ideológico” global, impensável em termos
da “política de poder” tradicional, bem como uma completa, e excepcional,
dependência dos países europeus em face das potências ocupantes.
A reconstrução econômica do mundo pós-II Guerra tentaria, é verdade,
evitar os erros econômicos e políticos cometidos ao cabo da I Grande Guerra (e
que já tinham sido fartamente denunciados por Keynes no seu famoso “panfleto”
econômico The Economic Consequences of
the Peace [1924]). O mecanismo de segurança proposto na ONU e o Plano
Marshall representam, assim, importantes inovações conceituais e pragmáticas em
relação aos esquemas puramente “reivindicativos” implementados depois de
Versalhes. Mas, também é verdade que o elemento “ideológico” iria perturbar
sobremaneira o processo de “restauração” da ordem mundial.
À medida em que progredia a “sovietização” nas regiões ocupadas da Mitteleuropa, aumentava a preocupação
com o “perigo comunista”, seja em zonas caracteristicamente periféricas — como
na Turquia ou na Grécia, onde a guerrilha comunista parecia fazer progressos —
seja na própria Europa ocidental, como na Itália ou na França. O discurso
ocidental se torna cada vez mais duro em relação à URSS, até desembocar na
famosa Declaração Truman de março de 1947, que define as fronteiras do “mundo
livre” e afirma o comprometimento dos EUA com a “causa da liberdade” onde quer
que ela fosse ameaçada. Ao mesmo tempo, seriamente preocupados com o quadro de
caos social que se desenhava na Europa, os EUA decidem favorecer um “plano de
reconstrução econômica” suscetível de complementar e sustentar os esquemas de
segurança política e militar em curso de estabelecimento.
A Doutrina Truman e o Plano Marshall formam, nas palavras de um
historiador norte-americano, as “pedras angulares” do que veio a ser conhecido
como a política do containment
[Combs, 1986: 332]. A palavra containment
— contenção — derivava de um artigo publicado no primeiro semestre de 1947 na
prestigiosa revista Foreign Affairs,
assinado por um certo Mr. X, que logo se revelou ser George Kennan [1972],
diretor de planejamento político no Departamento de Estado.
A primeira versão do containment
era relativamente flexível (ainda que baseada nos interesses primários dos EUA)
e a ênfase era mais política e econômica do que propriamente militar. Os
eventos dos dois anos entre 1948 e 1950 — o golpe de Praga, o bloqueio de
Berlim, o triunfo de Mao na China, a explosão da primeira bomba atômica
soviética e a invasão da Coréia do Sul pela Coréia do Norte — iriam, contudo,
endurecer o containment.
A resposta soviética ao anúncio da Doutrina Truman e ao lançamento do
Plano Marshall não se faz tardar. Em relação à doutrina da “contenção”, Stalin
procedeu a uma fuite en avant. Os partidos comunistas dos “países irmãos”, como
todos os outros aliás, passaram a ser controlados por uma nova Internacional
Comunista, criada em junho de 1947 com o nome de Cominform, ou Bureau de
Informação Comunista. Através do Cominform, Stalin ordenou aos partidos
comunistas ocidentais cessar a colaboração com os regimes burgueses no poder.
Quase que de forma imediata, os partidos comunistas na Itália e na França
começaram uma série de greves insurrecionais, que afetaram ainda mais o
processo de reconstrução econômica nesses países. No Brasil, igualmente, o PCB
adota, a partir de 1947, uma política de radicalismo sectário — consagrada num
“anti-imperialismo” estridente — e de aderência incondicional à URSS, posturas
que o levariam afastar-se ainda mais de suas bases “operárias” e “intelectuais”
e que provavelmente levaram à cassação dos mandatos dos representantes
comunistas, vários meses depois da decisão de sua “ilegalização” tomada pelo
TSE [Chilcote, 1974: 53-57; Basbaum, 1968: 184-85].
A reação da URSS ao Plano Marshall foi também surpreendentemente dura.
Ressalte-se que os países da Europa sob controle soviético, como a própria URSS,
não estavam, a priori, excluídos dos programas de ajuda concessional e dos
créditos generosos que o Governo dos EUA estava oferecendo para aplacar a
“penúria de dólares” em que viviam então os países europeus. Mas, isto implicaria
a coordenação econômica entre os países recebedores, bem como o fornecimento de
informações estatísticas e dados sobre o funcionamento das economias nacionais
(condições que feriam profundamente a mania do “segredo” cultivada pela URSS).
Ela então obrigou os países de sua órbita a rejeitar qualquer ajuda e
estabeleceu um série de tratados econômicos que ficaram conhecidos como o
“Plano Molotov” e que lançaram as bases do Comecon.
De volta para o futuro?
Quarenta anos mais tarde, a despeito mesmo de uma notável ampliação de
sua esfera geográfica de atuação, o Comecon deixaria melancolicamente de
existir. É bem verdade que suas bases estruturais já tinham sido solapadas
desde muito cedo, não exatamente por obra dos complôs imperialistas constantemente
denunciados pelos dirigentes socialistas. Simplesmente o arremedo de commonwealth socialista nunca foi capaz
de superar seus mais elementares problemas de funcionamento, como, por exemplo,
o da multilateralização das trocas ou o da conversibilidade de moedas.
Assim , países que já faziam parte do GATT, em sua origem — como a
Tchecoslováquia, por exemplo, ou mesmo Cuba — ou que dele vieram a fazer parte
ulteriormente, sob um estatuto especial — como Romênia, Polônia ou Hungria —
nunca julgaram conveniente abandonar esse tipo de organização “pouco fraternal”
e totalmente dominada pelas leis “capitalistas” de mercado. O próprio GATT,
aliás, se tornou, com o passar dos anos, suficientemente “mercantilista” e
“dirigista” — no sentido propriamente “colbertista”, entenda-se — para atrair
outros “ortodoxos” do socialismo como a China Popular. Todos esses países, com
poucas exceções, já vinham se relacionando com as duas instituições irmãs de
Bretton Woods desde os anos 60 pelo menos.
A crise estrutural do socialismo real de princípios dos anos 80 vem
precipitar, assim, um penoso reencontro com a História. Não cabe nos objetivos
deste artigo reconstruir o processo de esclerose precoce do “jovem” modo de
produção socialista. Basta apenas com indicar que os problemas da reconstrução
“pós-socialista” dos países da Europa oriental, conseguiram gerar uma versão
revista e corrigida (embora também necessariamente mais modesta) do “Plano
Marshall”, consubstanciado no BERD. Quanto à URSS, seu pedido de colaboração econômica
dirigido aos novos parceiros ocidentais, significa, antes de mais nada, uma
volta ao ponto inicial da presente era econômica: Bretton Woods, ou melhor,
Washington, onde atualmente estão sediadas as duas organizações financeiras
multilaterais. Do New Hampshire ao District of Columbia: que longa viagem para
uma superpotência!
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REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS:
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[Montevidéu, 27 agosto 1991
[Relação de Trabalhos nº 209]
[Trabalhos Publicados nº 071]
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