Merval Pereira
O GLOBO, 15/2/201
A partir de uma espécie de manifesto de economistas que atuam no movimento “Occupy London”, publicado pelo “Financial Times” em finais de janeiro, ficou-se sabendo que o economista austríaco Friedrich Hayek (Viena, 8 de maio de 1899 — Freiburg im Breisgau, 23 de março de 1992) é um dos inspiradores daquele movimento e, por conseqüência, dos demais espalhados pelo mundo e dos “indignados”, sua versão madrilenha.
Na verdade, a referência a Hayek no texto, baseada na sua tese sobre a potencialização de inteligências através da cooperação como característica da economia real, é resumida às primeiras linhas, e depois o manifesto bate nas suas teclas preferidas: contra a austeridade e a favor da regulação do sistema financeiro.
Desde que a crise econômica tornou-se explícita, em finais de 2008, com a quebra do Lehman Brothers, a disputa entre os defensores de ações do Estado para superá-la e os que se batem pela redução da ação do Estado fez reviver uma disputa mais antiga, entre o austríaco liberal Hayek e o inglês intervencionista John Maynard Keynes (Cambridge, 5 de junho de 1883 — Tilton, East Sussex, 21 de abril de 1946).
A tal ponto que diversas simulações de um debate entre os dois foram promovidas em várias partes do mundo, inclusive aqui no Brasil.
Na internet há até mesmo uma deliciosa sátira do que teria sido um duelo de rap entre os dois economistas (“Fear the boom and bust”).
A BBC, juntamente com a London School of Economics (LSE), promoveu um debateno meio do ano passado entre defensores dos dois. O economista George Selgin e o filósofo Jamie Whyte falaram por Hayek; o biógrafo de Keynes Robert Skidelsky e o economista Duncan Weldon, por Keynes.
No Brasil, houve um debate em novembro passado promovido pelo Ibmec, no auditório da Academia Brasileira de Letras (parte 1, parte 2, parte 3), mediado pelo jornalista Guilherme Fiuza. A estudante Virginia Barbosa teve a ideia de replicar o debate da BBC e convenceu o instituto a patrocinar a versão brasileira.
Os convidados foram os economistas Rodrigo Constantino e Roberto Castello Branco, diretor da Vale, como “representantes” de Hayek; e Luis Fernando de Paula, da Associação Keynesiana Brasileira, e Jennifer Hermann, da UFRJ, como “representantes” do Keynes.
O interessante é que esse debate histórico começou por iniciativa de Hayek, que ainda um jovem e desconhecido economista escreveu provocativamente para John Maynard Keynes, então professor no King’s College em Cambridge, na Inglaterra, perguntando-lhe se tinha um exemplar de um livro escrito 50 anos antes por um economista liberal, Francis Ysidro Edgeworth, intitulado “Mathematical Psychics” (“Psique da Matemática”, em tradução livre).
Keynes respondeu com um curto e grosso cartão dizendo que seu estoque de “Mathematical Psychics” havia se esgotado. Hayek guardou esse bilhete a vida inteira e hoje ele está nos seus arquivos, no Instituto Hoover, da Universidade Stanford, na Califórnia.
Nos Estados Unidos hoje, há quem compare os republicanos com as teorias de Hayek, enquanto a política do presidente Barack Obama seria claramente keynesiana.
O megainvestidor George Soros, que defende que a orientação alemã de austeridade para a crise europeia está equivocada e levará ao desastre a zona do euro, seria um keynesiano puro.
O livro de Nicholas Wapshott “Keynes Hayek: The Clash That Defined Modern Economics”, da editora W. W. Norton, lançado no final do ano passado nos Estados Unidos, mostra que as simplificações não servem para marcar as diferenças entre os dois economistas, pois também tinham pontos em comum.
Keynes, por exemplo, diz Wapshott, compartilhava com Hayek a descrença no socialismo. Para Hayek, socialismo e fascismo eram “demônios gêmeos”. Por seu turno, Hayek admitia que, em caso de desemprego crônico, o planejamento podia ter um papel sem levar ao totalitarismo.
Em 1944, Hayek lançou “O caminho da servidão” (“The Road to Serfdom”), que se tornou um clássico do liberalismo econômico. Ele dava sempre o exemplo do que aconteceu à Alemanha com o nazismo para criticar qualquer tentativa de controle estatal, mas Keynes rebatia, lembrando que o fascismo não foi fomentado pelo governo poderoso, e sim pelo desemprego em massa e pela falência do capitalismo.
O economista Armando Castelar, da FGV do Rio, acha que é um pouco difícil relacionar o “Occupy” com Hayek, pois o movimento seria “uma demanda de caráter distributivo, baseada em fundamentos éticos, não em argumentos econômicos”.
Na verdade, a referência a Hayek no texto, baseada na sua tese sobre a potencialização de inteligências através da cooperação como característica da economia real, é resumida às primeiras linhas, e depois o manifesto bate nas suas teclas preferidas: contra a austeridade e a favor da regulação do sistema financeiro.
Desde que a crise econômica tornou-se explícita, em finais de 2008, com a quebra do Lehman Brothers, a disputa entre os defensores de ações do Estado para superá-la e os que se batem pela redução da ação do Estado fez reviver uma disputa mais antiga, entre o austríaco liberal Hayek e o inglês intervencionista John Maynard Keynes (Cambridge, 5 de junho de 1883 — Tilton, East Sussex, 21 de abril de 1946).
A tal ponto que diversas simulações de um debate entre os dois foram promovidas em várias partes do mundo, inclusive aqui no Brasil.
Na internet há até mesmo uma deliciosa sátira do que teria sido um duelo de rap entre os dois economistas (“Fear the boom and bust”).
A BBC, juntamente com a London School of Economics (LSE), promoveu um debateno meio do ano passado entre defensores dos dois. O economista George Selgin e o filósofo Jamie Whyte falaram por Hayek; o biógrafo de Keynes Robert Skidelsky e o economista Duncan Weldon, por Keynes.
No Brasil, houve um debate em novembro passado promovido pelo Ibmec, no auditório da Academia Brasileira de Letras (parte 1, parte 2, parte 3), mediado pelo jornalista Guilherme Fiuza. A estudante Virginia Barbosa teve a ideia de replicar o debate da BBC e convenceu o instituto a patrocinar a versão brasileira.
Os convidados foram os economistas Rodrigo Constantino e Roberto Castello Branco, diretor da Vale, como “representantes” de Hayek; e Luis Fernando de Paula, da Associação Keynesiana Brasileira, e Jennifer Hermann, da UFRJ, como “representantes” do Keynes.
O interessante é que esse debate histórico começou por iniciativa de Hayek, que ainda um jovem e desconhecido economista escreveu provocativamente para John Maynard Keynes, então professor no King’s College em Cambridge, na Inglaterra, perguntando-lhe se tinha um exemplar de um livro escrito 50 anos antes por um economista liberal, Francis Ysidro Edgeworth, intitulado “Mathematical Psychics” (“Psique da Matemática”, em tradução livre).
Keynes respondeu com um curto e grosso cartão dizendo que seu estoque de “Mathematical Psychics” havia se esgotado. Hayek guardou esse bilhete a vida inteira e hoje ele está nos seus arquivos, no Instituto Hoover, da Universidade Stanford, na Califórnia.
Nos Estados Unidos hoje, há quem compare os republicanos com as teorias de Hayek, enquanto a política do presidente Barack Obama seria claramente keynesiana.
O megainvestidor George Soros, que defende que a orientação alemã de austeridade para a crise europeia está equivocada e levará ao desastre a zona do euro, seria um keynesiano puro.
O livro de Nicholas Wapshott “Keynes Hayek: The Clash That Defined Modern Economics”, da editora W. W. Norton, lançado no final do ano passado nos Estados Unidos, mostra que as simplificações não servem para marcar as diferenças entre os dois economistas, pois também tinham pontos em comum.
Keynes, por exemplo, diz Wapshott, compartilhava com Hayek a descrença no socialismo. Para Hayek, socialismo e fascismo eram “demônios gêmeos”. Por seu turno, Hayek admitia que, em caso de desemprego crônico, o planejamento podia ter um papel sem levar ao totalitarismo.
Em 1944, Hayek lançou “O caminho da servidão” (“The Road to Serfdom”), que se tornou um clássico do liberalismo econômico. Ele dava sempre o exemplo do que aconteceu à Alemanha com o nazismo para criticar qualquer tentativa de controle estatal, mas Keynes rebatia, lembrando que o fascismo não foi fomentado pelo governo poderoso, e sim pelo desemprego em massa e pela falência do capitalismo.
O economista Armando Castelar, da FGV do Rio, acha que é um pouco difícil relacionar o “Occupy” com Hayek, pois o movimento seria “uma demanda de caráter distributivo, baseada em fundamentos éticos, não em argumentos econômicos”.
Também acha que o debate Republicanos x Democratas não pode ser construído nessas linhas. Hayek e Keynes debateram sobre o ciclo econômico, enquanto as desavenças entre os dois partidos é de caráter mais estrutural: os republicanos querem reduzir gastos e impostos; os democratas, aumentar os dois. Em ambos os casos, em caráter permanente, não como forma de lidar com a crise.
Já o argumento de Soros ele considera puramente keynesiano: há, de fato, diz ele, a percepção de que a ênfase na disciplina fiscal a curto prazo na Europa, que os alemães defendem como condição para ajudar países insolventes ou pelo menos ilíquidos, vai aumentar a recessão, sendo potencialmente um risco pelo lado político.
Afora isso, diz Castelar, o Hayek é reconhecido pelo papel na defesa do liberalismo econômico, algo a que Keynes não se opunha. O economista Rodrigo Constantino, fundador do Instituto Millenium e adepto fervoroso de Hayek, diz que Soros sem dúvida defende o lado keynesiano. “Ele quer mais estímulos, mais liquidez artificial, para evitar uma recessão com risco de espiral deflacionária. É um ponto de vista legítimo, ainda que eu discorde”.
Mas Constantino pergunta: quando os keynesianos defendem a austeridade então? “Na época da bonança, silêncio; na época das crises, mais estímulo para evitar recessões”. Sobre a crise atual, ele diz que a postura de Hayek (e dos “austríacos”) seria a de que inundar os mercados com mais liquidez não resolve nada, apenas potencializa os problemas no futuro.
Para os “austríacos”, os ciclos se devem às distorções na taxa de juros pelos bancos centrais, gerando os “malinvestments”. Quando os juros são mantidos abaixo do patamar “normal” (ou de equilíbrio), os investidores acreditam haver mais poupança disponível do que há na verdade, e partem para projetos que outrora seriam rejeitados. Isso produziria as bolhas.
A recessão seria o ajuste necessário para limpar o organismo desses excessos, ajustar a estrutura de capital da economia.
“Quando os governos e bancos centrais não permitem tais ajustes, eles prolongam os problemas, gerando bolhas ainda maiores depois. Foi assim para evitar o crash de tecnologia, parindo a bolha imobiliária. E desta vez podem gerar novas bolhas, talvez o ouro, ou mercados emergentes, incluindo o Brasil”.
Ele admite que poucos defendem a postura de Hayek nesta crise, pois entendem que a magnitude da bolha chegou a patamares tão assustadores que “deixar o mercado se ajustar por conta própria” poderia ser catastrófico, como em 1929.
“Mas a saída keynesiana apenas joga mais lenha na fogueira, como um bêbado tentando se manter eufórico com mais bebida, para evitar a ressaca”.
Para ele, Angela Merkel, de fato, seria a que mais se aproxima da receita “austríaca”, no sentido de insistir que não basta inundar os mercados com mais dinheiro, e que é preciso fazer ajustes estruturais.
“O problema que vejo para esta saída, que considero correta, é a sua viabilidade política. Estamos vendo na Grécia o que os pacotes de austeridade causam. É um confronto muito duro com a realidade. A inflação visa a ganhar tempo”.
Rodrigo Constantino admite que “claramente Keynes tem se saído vitorioso no debate, uma vez mais”.
Mas, como alguém simpático aos alertas de Hayek, ele adverte que corremos o risco de termos problemas ainda maiores à frente. “No afã de evitar o sofrimento hoje, vamos construir um monstrengo ainda pior amanhã”.
Já o argumento de Soros ele considera puramente keynesiano: há, de fato, diz ele, a percepção de que a ênfase na disciplina fiscal a curto prazo na Europa, que os alemães defendem como condição para ajudar países insolventes ou pelo menos ilíquidos, vai aumentar a recessão, sendo potencialmente um risco pelo lado político.
Afora isso, diz Castelar, o Hayek é reconhecido pelo papel na defesa do liberalismo econômico, algo a que Keynes não se opunha. O economista Rodrigo Constantino, fundador do Instituto Millenium e adepto fervoroso de Hayek, diz que Soros sem dúvida defende o lado keynesiano. “Ele quer mais estímulos, mais liquidez artificial, para evitar uma recessão com risco de espiral deflacionária. É um ponto de vista legítimo, ainda que eu discorde”.
Mas Constantino pergunta: quando os keynesianos defendem a austeridade então? “Na época da bonança, silêncio; na época das crises, mais estímulo para evitar recessões”. Sobre a crise atual, ele diz que a postura de Hayek (e dos “austríacos”) seria a de que inundar os mercados com mais liquidez não resolve nada, apenas potencializa os problemas no futuro.
Para os “austríacos”, os ciclos se devem às distorções na taxa de juros pelos bancos centrais, gerando os “malinvestments”. Quando os juros são mantidos abaixo do patamar “normal” (ou de equilíbrio), os investidores acreditam haver mais poupança disponível do que há na verdade, e partem para projetos que outrora seriam rejeitados. Isso produziria as bolhas.
A recessão seria o ajuste necessário para limpar o organismo desses excessos, ajustar a estrutura de capital da economia.
“Quando os governos e bancos centrais não permitem tais ajustes, eles prolongam os problemas, gerando bolhas ainda maiores depois. Foi assim para evitar o crash de tecnologia, parindo a bolha imobiliária. E desta vez podem gerar novas bolhas, talvez o ouro, ou mercados emergentes, incluindo o Brasil”.
Ele admite que poucos defendem a postura de Hayek nesta crise, pois entendem que a magnitude da bolha chegou a patamares tão assustadores que “deixar o mercado se ajustar por conta própria” poderia ser catastrófico, como em 1929.
“Mas a saída keynesiana apenas joga mais lenha na fogueira, como um bêbado tentando se manter eufórico com mais bebida, para evitar a ressaca”.
Para ele, Angela Merkel, de fato, seria a que mais se aproxima da receita “austríaca”, no sentido de insistir que não basta inundar os mercados com mais dinheiro, e que é preciso fazer ajustes estruturais.
“O problema que vejo para esta saída, que considero correta, é a sua viabilidade política. Estamos vendo na Grécia o que os pacotes de austeridade causam. É um confronto muito duro com a realidade. A inflação visa a ganhar tempo”.
Rodrigo Constantino admite que “claramente Keynes tem se saído vitorioso no debate, uma vez mais”.
Mas, como alguém simpático aos alertas de Hayek, ele adverte que corremos o risco de termos problemas ainda maiores à frente. “No afã de evitar o sofrimento hoje, vamos construir um monstrengo ainda pior amanhã”.
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