Ao meu amigo Amaury de Souza
Mac
Margolis
O Estado de S. Paulo, 24 de agosto de 2012
Meu amigo Amaury,
Foi de manhã, no outono carioca, que
conheci Amaury de Souza. Eu acabara de chegar no Rio, no início dos anos 80, um
jovem repórter americano, ansioso para abraçar o Brasil. Naquela época, as
matérias eram todas fáceis e as produzia com ligeireza e traçados fortes, sem
meios tons ou segundos pensamentos. Conforme fui ficando e conhecendo melhor o
país, as suas nuances e contorções, a pauta foi se complicando. Devo a Amaury a
correção de rumo. Esse e muitos outros que se seguiram.
À época, Amaury era professor
universitário, recém-chegado de uma temporada nos Estados Unidos e agora lotado
no Iuperj, conhecida faculdade de ciências sociais em Botafogo. Encontrei-o no
seu escritório, uma alcova modesta no segundo piso, abarrotada de livros e
teses que ameaçavam tragar toda a superfície da mesa. Atrás dela,
cumprimentou-me em inglês impecável um homem de gravata e terno alinhado,
trajes que nada combinavam com a universidade espremida e romanticamente
desleixada. Já dava para perceber que naquele espaço não cabiam suas ideias.
Por sua sugestão, saímos para almoçar e
seguimos caminhando, uma corrida de obstáculos pelas calçadas maltratadas do
bairro, ele abrindo caminho e eu, ofegante, no seu rastro. Amaury detestava
perder tempo. O destino era um restaurante mineiro tradicional do Rio, que
assim como a faculdade, já vivera dias melhores. Professor Amaury ia me
decifrando os pratos, o feijão tropeiro, o aroma correto da cachaça e o lugar
de cada um desses ingredientes na cultura nacional. Minha aula de Brasil começara
pelo paladar.
Amaury falou do fim projetado do regime
militar e do redespertar democrático, na época ainda tênue. O Brasil novo
estava em obras, tomado pela primeira campanha de eleições livres para
governador em duas décadas. Logo mais, viria o clamor pelas eleições diretas
presidenciais. Lá, entre tragos e pratos, lancei algumas perguntas a esmo, uma
rajada de ideias cruas e desinibidas sobre o país que pensava conhecer. Amaury,
atento, abanou lentamente a cabeça, como quem acabasse de assistir a um atentado
contra a lógica, e pôs-se a falar, delicado mas firme enquanto tratava de
socorrer minha narrativa torta.
Caminhada, uma boa mesa, um trago e uma
escova nas ideias. Assim começou minha aprendizagem sobre o Brasil. Para minha
sorte, o estágio se estendeu ao longo dos seguintes 30 anos. Daquele dia em
adiante, aprendi que conversar com Amaury era essencial. Escutar mais do que
conversar, é verdade, mas Amaury também tinha o que dizer. Quando o Brasil me
surpreendia e a engrenagem política se mexeu - da abertura democrática ao
impeachment de Collor, do Plano Real ao mensalão - era ele, invariavelmente,
que eu procurava. Perdi a conta de quantas vezes o abordei: Amaury, e agora?
Certa vez, um editor me chamou à
atenção. Será que eu não conhecia nenhum outro analista político do Brasil?
Pior que conhecia, sim. Vários deles e de bom quilate. Mas era a Amaury que eu
acabei retornando, sempre. Pois ninguém me surpreendia como ele, e certamente
nenhum outro dispunha de tanto tempo, muito menos de pachorra, para responder à
minha saraivada de dúvidas.
Não que sempre concordássemos. Em quase
tudo que fazia, Amaury era intenso e contundente, quando não fulminante. Em sua
casa, na mesa do bar ou numa roda de amigos, trovejava impiedoso contra os
absurdos do país. Ora era a máquina pública que demandava impostos escandinavos
para devolver serviços ugandenses. Ora a militância trabalhista que clamava
pela liberdade mas lutava com unhas e dentes para manter o monopólio do imposto
sindical. Ele tinha pouca paciência para a esquerda brasileira, paladinos da
ética política na oposição, uma quadrilha no poder.
Amaury era politicamente incorreto, às
vezes ao ponto de provocar arrepios. Mas fundamentava cada irrupção com fatos e
calçava suas filípicas com argumentos. Sociólogo premiado, não admitia o lero
sociologuês, tão rico em elucubrações poéticas quanto despido de dados. Amaury
acreditava em pesquisa. Em vez de adjetivos, lançava mão de números. Como
escreveu Roberto DaMatta, Amaury era um liberal em uma nação entregue à social-democracia,
um defensor assumido da liberdade capitalista em uma sociedade com vergonha do
lucro. Com ele entendi não só do Brasil mas do desafio de se pensar e repensar.
Arrotar opiniões é uma coisa. Defendê-las sob sabatina, é outra. Amaury sabatinava.
Um dia, lá pelo final dos anos 90, farto
com os descaminhos do Brasil, Amaury falou seriamente em sair do país. Seu
destino seria Miami, confessou, rota de fuga de muitos brasileiros.
"Miami?" perguntei, tentando imaginá-lo - aquela presença marcante,
sempre alinhada e movida a uma energia quase atômica - flanando pela South
Beach, de óculos Ray Ban e camisa estampada de hibisco. Felizmente, Amaury
desistiu da ideia. Sua esposa, Martha, vez por outra lembrava daquela conversa,
com mistura de espanto e bom humor, e até me agradecia pela intervenção
amigável que, quem sabe, os tivesse salvo de um fim tropical kitsch. Obrigado,
Martha. Mas foi puro interesse. Como eu iria fazer para entender o Brasil com
Amaury lá longe, tomando mojito?
Tive a grande sorte de conviver com
Amaury em sua terra, que ele pensava e interpretava como ninguém. Não foi
diferente na semana retrasada, quando encontramos na Urca, no bar a poucos
passos da sua casa. Magro e fragilizado pela doença, Amaury fazia questão de
estar ali, tomar chope, falar de livros (estava imerso em
"Jerusalém", último tomo do historiador Simon Sebag Montefiore),
comentar o julgamento do mensalão e decifrar os rumos da política brasileira.
Amaury podia estar doente, mas nunca o vi adoentado. Gostava demais da vida. Em
pouco tempo, passei de aprendiz a admirador, a amigo de Amaury, e custa
acreditar que isso tenha terminado.
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