Margareth Thatcher, seu
legado econômico e a América Latina
Paulo Roberto de Almeida
Recebi, de um estudante de
jornalismo preparando reportagem sobre a morte da
ex-primeira-ministra Margareth Thatcher e seu legado econômico, as seguintes
perguntas para responder:
1) Gostaria de saber se houve de fato alguma
influência da política econômica de Thatcher na América Latina. Caso essa
influência seja real, de que forma ela ocorreu?
2) A crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo
econômico da ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao
neoliberalismo se apropriam das crises econômicas dos últimos anos para
fundamentar seus argumentos contra Thatcher?
3) Qual é o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser
classificado em positivo ou negativo?
Como as perguntas
encontram-se na ordem exatamente inversa de importância substantiva, e de
relevância jornalística, altero sua ordem e passo a responder sumariamente o
que segue abaixo. Como também sei que apenas parte reduzida de minhas respostas será aproveitada na matéria em preparação, permito-me postar neste blog a integralidade de meu texto.
1) Qual é
o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser classificado em positivo ou
negativo?
PRA: Nenhum legado de
dirigente político pode ser visto de forma maniqueísta, ou bom ou mau, ou
positivo ou negativo, ou branco ou preto. Isso se chama reducionismo, ou
simplismo. Todo dirigente, nas circunstâncias dadas em que recebe o poder e
inicia um governo, tem de enfrentar um conjunto de desafios que são de diversas
ordens: conjunturais (se o país está em crescimento ou em recessão, por
exemplo), estruturais (se o país conhece um processo sustentado de modernização
e de melhorias sociais), ou sistêmicas (como funcionam os sistemas de saúde, de
educação, de segurança, a logística e o ambiente dos negócios, a
infraestrutura, etc.). Para cada um desses conjuntos de problemas, o novo
dirigente tem de fornecer soluções, em parte baseados em seu programa eleitoral
(de candidato), em parte com base na expertise de seus auxiliares (ministros e
outros dirigentes), e em parte ainda em função das possibilidades do governo em
questão (déficit ou superávit orçamentário, desequilíbrios nas contas públicas,
situação do balanço de pagamentos, carências sociais, etc.).
O Reino Unido que
Margareth Thatcher “herdou” dos trabalhistas, em 1979, era um país em perfeita
decadência, como eu próprio constatei, visualmente, ao visitar a Inglaterra
pouco antes de sua vitória eleitoral: um país sujo, em constantes greves, com
serviços públicos funcionando precariamente, desemprego, delinquência,
inflação, déficits interno e externo, desconfiança e desalento da população,
pouca confiança na sua capacidade de cumprir requisitos de defesa estabelecidos
pela OTAN, enfim, quase um país de Terceiro Mundo, que no começo daquela década
ainda havia enfrentado uma crise série de desvalorização da libra.
Esse era o resultado de
décadas de um pacto perverso entre a “CUT” e a “Fiesp” deles, entre patrões e
sindicatos, a TUC, o Trade Union Congress, que fazia chantagem para conseguir
aumentos reais de salários para os seus afiliados, mesmo que isso significasse
mais inflação para o resto da população e o Labour (mas mesmo o Partido Tory, os
Conservadores) eram complacentes com esse estado de coisas, levando o país à
prostração. O dono do venerável e mais do que secular jornal Times não podia
tomar decisões quanto à modernização do seu parque gráfico, pois era o
sindicato dos gráficos que decidia quantos trabalhadores eram necessários para
rodar o jornal diariamente. Sindicatos de ferroviários, eletricitários,
condutores de ônibus e até coveiros mantinham a população refém de suas
chantagens salariais. Esse era o país que Thatcher assumiu.
A continuidade desse
estado de coisas, depois de duas ou três décadas de “consenso” socialdemocrata
levaria o Reino Unido a uma decadência ainda mais forte: sua economia já tinha
sido ultrapassada pela da Itália (ainda em crescimento) e se colocava entre as
últimas da Europa pela baixa dinâmica de investimentos e inovações. Pouco
depois, a colônia Hong Kong, com seus milhões de chineses morando em sampans no Rio das Pérolas,
ultrapassaria a metrópole em renda per capita, o que terminou de humilhar a
Grã-Bretanha.
Se considerarmos que
depois de Thatcher a Inglaterra era um dos países mais dinâmicos da Europa, com
o dobro do crescimento dos países continentais, e a metade de suas taxas de
desemprego, com um setor financeiro renascido das cinzas, e o país acolhendo
investimentos estrangeiros, podemos considerar que, sob esse ponto de vista,
seu legado foi positivo. Tão positivo que o Labour, obrigado a corrigir seu
programa econômico esquizofrênico (datado de 1919, e que ainda recomendava
coletivização da economia) e a manter praticamente intactas todas as
realizações econômicas da era Thatcher. Algo semelhante ocorreu no Brasil, com
o pacto perverso da CUT com a Fiesp produzindo inflação desenfreada nos anos
pré-Real, com o PT se opondo de maneira desleal ao programa de privatização e
tentando sabotar o Plano Real, se opondo (até no STF) à Lei de Responsabilidade
Fiscal, acusando mentirosamente o governo que terminava de ter deixado uma
“herança maldita” (quando foi a própria campanha de Lula e a política econômica
esquizofrênica do PT que produziram a crise de 2002), para finalmente roubar o
“software” dos inimigos demonizados de forma fraudulenta e passar a governar
exatamente com os mesmos instrumentos e ferramentas do governo anterior,
mantendo todas as suas políticas. O Labour foi obrigado, como o PT o foi, a
governar de forma mais racional e mais responsável. Esse foi o legado da
Thatcher, como foi para o Brasil o legado de FHC e do PSDB para o governo de
Lula e do PT.
2) A
crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo econômico da
ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao neoliberalismo se
apropriam das crises econômicas dos últimos anos para fundamentar seus
argumentos contra Thatcher?
PRA: A crise de 2008 não tem nada a ver com um
suposto modelo econômico de MT. Quem tem modelo econômico são acadêmicos de
gabinete. Margareth Thatcher tinha um imenso desafio a resolver, o que ela fez,
não aplicando algum modelo econômico, como gostam certos economistas teóricos e
keynesianos de botequim, mas sim algumas ideias bem simples, como aliás se
encarregam de lembrar que a filha de um quitandeiro chegou a ser
primeira-ministra: um país, um governo, não pode viver acima de seus meios (e
isso vale para uma casa, para uma empresa e para a economia nacional); uma
empresa privada, buscando lucro, sempre será mais eficiente do que qualquer
governo tentando prestar um serviço coletivo; uma empresa estatal sempre será
deficitária, e buscará recursos no governo; sindicatos são máquinas de criar
desemprego e reservas de mercado, assim como o fazem patrões protegidos da
concorrência interna (por carteis) ou externa (por tarifas altas e
protecionismo regulatório); concorrência sempre é boa para satisfazer os consumidores;
controles de preços nunca dão certo; taxar muito o trabalho provoca desemprego;
taxar muito o capital gera desinvestimentos e fuga de capitais; manipular juros
e câmbio acabam dando em desastres e o melhor é deixá-los o mais possível
próximos do equilíbrio de mercado; um país não pode estacionar no processo de
modernização, e sim continuar sempre inovando e sendo competitivo para
simplesmente não ser ultrapassado por economias mais dinâmicas; enfim, um
conjunto de ideias simples que eram bem mais pragmáticas do que teóricas.
Se algum modelo havia em suas “receitas” para
corrigir o país decadente que era o Reino Unido esse era o da economia liberal,
cujos fundamentos ela foi buscar em Ludwig Von Mises e em Friedrich Hayek. Isso
não tem nada a ver com neoliberalismo, um falso conceito inventado pela
esquerda órfã do desastre socialista para tentar encontrar um rótulo qualquer
para aqueles que estavam revertendo décadas de políticas keynesianas que
levaram os países à estagnação e à crise. Se tratava de liberalismo clássico,
apenas isso, aquele fundamentado em Adam Smith, David Ricardo, James e John
Stuart Mill, e nos já citados economistas da escola liberal alemã ou austríaca.
A crise de 2008, como várias outras crises –
basta ler o clássico de Charles Kindleberger, Pânicos, Manias e Crises – foi criada por uma bolha, como sempre
ocorre (financeira, da bolsa, de títulos do governo, etc.). Desta vez foi a
bolha imobiliária que precipitou a crise bancária americana e daí para o resto
do mundo, pelo funcionamento em rede dos mercados financeiros. Quem criou a
crise foram os governos, ao manterem juros artificialmente baixos, ao estimular
indevidamente e exageradamente a construção imobiliária, ao expandir o crédito
acima da capacidade de endividamento das família (e ao oferecer garantias
falsas para casos de insolvências), enfim, ao manipular os mercados e os
indicadores macroeconômicos. Ora, a economia liberal se coloca frontalmente contrária
a todas essas manipulações do governo e prega, justamente, juros de mercado,
garantias reais, investimento sustentado em ativos financeiros existentes, não
em crédito criado artificialmente pelos governos; os liberais verdadeiros
pregam inclusive falências bancárias, em caso de sobre-exposição dos bancos,
assim como se coloca contra o monopólio emissionista dos governos, gerador de
inflação e de desvalorização da moeda, deixando todos bem mais pobres.
Os supostos críticos do neoliberalismo deveriam
dirigir suas baterias contra os governos, não contra os economistas liberais.
Afinal de contas são os governos que fixam as taxas de juros, que emitem moeda,
que expandem o crédito, que dão garantias aos compradores de casa (ao avalizar
seus títulos hipotecários), são eles que manipulam o câmbio, não os mercados,
que simplesmente reagem segundo as reações espontâneas e não coordenadas de
milhares de agentes econômicos individuais, que estão sempre buscando valorizar
ou aumentar seus ativos atuando de maneira especulativa. Os supostos crises do
neoliberalismo estão totalmente equivocados em suas críticas a mercados
desregulados, pois a regulação dos governos, e das instituições multilaterais –
como BIS ou FMI, por exemplo – é muito intensa e extensa, apenas que feita por
burocratas, que não podem, obviamente, prever todos os movimentos de milhares
de agentes econômicos disputando fatias de ganhos especulativos nos mercados.
Os keynesianos são os mais equivocados de todos,
pois eles acreditam que governos podem, impunemente, produzir bondades, apenas
“injetando liquidez” nos mercados, ou seja, emitindo dinheiro, produzindo
inflação, déficit ou dívida pública. O próprio conceito macroeconômico de
Keynes é equivocado, ao ignorar as lições mais elementares da microeconomia,
como a lei da oferta e da procura e do equilíbrio dos mercados. Não foi o
neoliberalismo, nem a austeridade que provocou as crises na Grécia, na Irlanda
ou em Portugal, e sim a prodigalidade gastadora dos governos, sua
irresponsabilidade no tratamento da política monetária, as bondades
distribuídas de forma irresponsável pelos políticos sob a forma de altos
salários para os funcionários públicos, as pensões generosas, os muitos seguros
sociais existentes (que levam a um exército de assistidos com o dinheiro
público, ou seja, de todos), etc. Nenhum banqueiro ou especulador de Wall
Street obrigou a Grécia a se endividar de forma irresponsável; foram seus
governos que tomaram recursos externos (sob a cobertura do euro e das taxas de
juros mais favoráveis) acima da capacidade do país, que dispunha de
produtividade abaixo do aceitável para atuar da forma como fizeram seus
dirigentes.
Não há tampouco legitimidade nas críticas dos
sociais-democratas contra a política social de Margareth Thatcher, pois ela
legou um país mais organizado, com mais investimentos e maior nível de renda,
ultrapassando novamente a Itália e a França. Os problemas que advieram depois,
muito depois, em 2008-2009, não têm nada a ver com a sua gestão, terminada em
1991, e continuada integralmente sob Tony Blair (assim como Lula continuou com
as políticas de FHC, que estão sendo desmanteladas, todavia, a partir de 2006).
3) Gostaria de saber se houve de fato alguma
influência da política econômica de Thatcher na América Latina. Caso essa
influência seja real, de que forma ela ocorreu?
PRA: Não, redondamente não. Se houve, foi
tardia, equivocada, incompleta, ou implementada fora dos parâmetros. A América
Latina já estava em crise bem antes de MT começar seu ciclo de mudanças de
política econômica exclusivamente talhada para a situação do seu país, sem nada
a ver com a situação dos países latino-americanos. A crise destes tinha a ver
com o esgotamento das políticas de crescimento para dentro, com forte
introversão econômica, excessivo protecionismo, manipulações exageradas dos
governos nos mercados de capitais, laboral, no câmbio, nas políticas relativas
ao investimento estrangeiro (fortemente restringido, como aliás todo o
comércio) e dezenas de outros exemplos de dirigismo excessivo, estatizações e
monopólios abusivos, controles de preços, de estoques, tributação excessiva e
outros pecados mais ou menos mortais. Mais do que tudo, os países abusaram da
liquidez financeira provocada pela alta dos preços do petróleos e a reciclagem
de petrodólares para se endividarem além da conta (aproveitando os juros
baixos, aliás abaixo da inflação, ou seja negativos), e a partir da elevação
dos juros pelo Federal Reserve, em 1979, se descobriram incapazes de honrar,
sequer suas dívidas, mas o simples pagamento do serviço da dívida. Ou seja, os
problemas dos países latino-americanos tinham algo a ver, mas em nada deviam à
decadência inglesa pré-Thatcher.
Da mesma forma, a solução encontrada não se
encontrou num suposto modelo “thatcheriano” de política econômica, e sim em
respostas desenhadas pelos próprios países, com a ajuda do FMI e de economistas
liberais, no sentido de inverter todas aquelas políticas descritas acima. A
reversão começou no México, logo em seguida à sua crise da dívida externa
(1982), num momento em que as políticas econômicas de Thatcher sequer tinham
começado a fazer efeito, o que só ocorreu a partir de meados da década; depois
as mesmas políticas foram aplicadas no Chile e paulatinamente em outros países
(mas o Brasil e a Argentina foram os mais tímidos, ou incompetentes, em
aplicá-las, e por isso conheceram crises hiperinflacionárias, desvalorizações
cambiais, mudanças de moedas e outros desastres, já bem depois que Thatcher
abandonou o governo inglês. É um mito que os países latino-americanos tenham
aplicado suas políticas, inclusive porque elas eram inaplicáveis fora do
contexto britânico, com exceção, talvez, das privatizações de monopólios
estatais, o que aliás respondia simples bom senso (as estatais eram
ineficientes, deficitárias e não atendiam aos consumidores), e não por que isso
fosse determinado por sofisticadas teorias econômicas.
Esse amálgama indevido,
fantasmagórico, inexistente, totalmente equivocado entre um suposto “thatcherismo”
econômico, mais a chamada “reaganomics” – que tampouco existiu, pois o
presidente era um ignorante em econômica, se contentando com algumas ideias
simples, geralmente liberais, mas sobretudo pragmáticas, um pouco como
Thatcher, aliás – e o famoso “Consenso de Washington”, e a alegada influência
dessas ideias “neoliberais” – um conceito equivocado, como já se disse – na América
Latina são construções surrealistas criadas por uma esquerda desprovida de
ideias claras sobre os processos econômicos, e que se compraz em colar rótulos
vazios em dirigentes que aplicam políticas que contradizem seu keynesianismo de
botequim. O chamado “Consenso de Washington”, por falar nele, é posterior ao
início da fase de reformas em alguns países da América Latina, e visa,
justamente, condensar num conjunto de ideias simples (mais uma vez) os
ensinamentos de quase dez anos de reformas econômicas na região. Ele está
orientado pelos mesmos princípios: equilíbrio fiscal, baixa inflação,
orçamentos realistas, taxas de juros e de câmbio bem mais determinadas pelos
mercados do que pelos governos, privatização e desmonopolização, abertura a
comércio e aos investimentos, proteção dos ativos proprietários, etc. Nunca
falou da liberalização dos movimentos de capitais ou da abertura financeira,
como parece ignorar a esquerda. E, tanto quanto o “thatcherismo”, ele nunca foi
aplicado na América Latina como se fosse um modelo prêt-à-porter, aplicável em
quaisquer circunstâncias. Esse é outro mito, e uma outra mentira de certa esquerda,
que manifestamente não entende de economia ou de processos reais de governança
econômica (geralmente acadêmicos que atuam com base apenas em slogans
políticos).
O único exemplo,
provavelmente, de políticas à la Thatcher aplicadas na região se referem, como
já indicado anteriormente, às privatizações de monopólios estatais, mas isso
era uma decorrência da própria situação falimentar dessas empresas, não que
houvesse um manual thatcheriano para empreender essas medidas (tanto porque
cada processo foi diferente de um país a outro, provocando resultados bons e
outros maus). Abertura a investimentos nem é uma ideia thatcheriana, e sim uma
velha realidade da região (e de todas as outras), enterrada durante a grande
dominação keynesiana, nacionalista e protecionista das décadas de 1930 a 1980,
e retomada a partir de então.
Infelizmente, a América
Latina atualmente – não todos os países – parece retornar aos velhos tempos:
fechamento econômico, protecionismo comercial, dirigismo econômico,
reestatizações, controles de preços, manipulações cambiais, etc. O Brasil,
também infelizmente, parece ter acompanhado a Argentina no seu retorno ao velho
protecionismo dos anos 1970; espera-se apenas que ela não a acompanhe no
retorno muito mais nefasto aos anos 1930: controles de capitais, distorções
cambiais, centralização estatal de várias operações financeiras externas, o que
seria um bilhete certo para o desastre econômico, que é para onde está apontada
a Argentina. Nem se mencione, aqui, o desastre econômico da Venezuela, um país
destinado ao desastre do seu socialismo petrolífero.
Uma Thatcher faria bem a
vários países da América Latina: infelizmente não se criam líderes políticos
com perfil de estadista facilmente, sendo bem mais prolífica a fauna de
demagogos, populistas e falastrões (e seus conselheiros econômicos que merecem
o título de keynesianos de botequim).
Paulo Roberto de Almeida (Hartford, 22 de abril de
2013)
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