segunda-feira, 22 de abril de 2013

Margareth Thatcher, seu legado e a América Latina - Paulo Roberto de Almeida


Margareth Thatcher, seu legado econômico e a América Latina

Paulo Roberto de Almeida

Recebi, de um estudante de jornalismo preparando reportagem sobre a morte da ex-primeira-ministra Margareth Thatcher e seu legado econômico, as seguintes perguntas para responder:
2) A crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo econômico da ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao neoliberalismo se apropriam das crises econômicas dos últimos anos para fundamentar seus argumentos contra Thatcher?
3) Qual é o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser classificado em positivo ou negativo? 

Como as perguntas encontram-se na ordem exatamente inversa de importância substantiva, e de relevância jornalística, altero sua ordem e passo a responder sumariamente o que segue abaixo. Como também sei que apenas parte reduzida de minhas respostas será aproveitada na matéria em preparação, permito-me postar neste blog a integralidade de meu texto.

1) Qual é o legado deixado por Thatcher? Esse legado pode ser classificado em positivo ou negativo?
PRA: Nenhum legado de dirigente político pode ser visto de forma maniqueísta, ou bom ou mau, ou positivo ou negativo, ou branco ou preto. Isso se chama reducionismo, ou simplismo. Todo dirigente, nas circunstâncias dadas em que recebe o poder e inicia um governo, tem de enfrentar um conjunto de desafios que são de diversas ordens: conjunturais (se o país está em crescimento ou em recessão, por exemplo), estruturais (se o país conhece um processo sustentado de modernização e de melhorias sociais), ou sistêmicas (como funcionam os sistemas de saúde, de educação, de segurança, a logística e o ambiente dos negócios, a infraestrutura, etc.). Para cada um desses conjuntos de problemas, o novo dirigente tem de fornecer soluções, em parte baseados em seu programa eleitoral (de candidato), em parte com base na expertise de seus auxiliares (ministros e outros dirigentes), e em parte ainda em função das possibilidades do governo em questão (déficit ou superávit orçamentário, desequilíbrios nas contas públicas, situação do balanço de pagamentos, carências sociais, etc.).
O Reino Unido que Margareth Thatcher “herdou” dos trabalhistas, em 1979, era um país em perfeita decadência, como eu próprio constatei, visualmente, ao visitar a Inglaterra pouco antes de sua vitória eleitoral: um país sujo, em constantes greves, com serviços públicos funcionando precariamente, desemprego, delinquência, inflação, déficits interno e externo, desconfiança e desalento da população, pouca confiança na sua capacidade de cumprir requisitos de defesa estabelecidos pela OTAN, enfim, quase um país de Terceiro Mundo, que no começo daquela década ainda havia enfrentado uma crise série de desvalorização da libra.
Esse era o resultado de décadas de um pacto perverso entre a “CUT” e a “Fiesp” deles, entre patrões e sindicatos, a TUC, o Trade Union Congress, que fazia chantagem para conseguir aumentos reais de salários para os seus afiliados, mesmo que isso significasse mais inflação para o resto da população e o Labour (mas mesmo o Partido Tory, os Conservadores) eram complacentes com esse estado de coisas, levando o país à prostração. O dono do venerável e mais do que secular jornal Times não podia tomar decisões quanto à modernização do seu parque gráfico, pois era o sindicato dos gráficos que decidia quantos trabalhadores eram necessários para rodar o jornal diariamente. Sindicatos de ferroviários, eletricitários, condutores de ônibus e até coveiros mantinham a população refém de suas chantagens salariais. Esse era o país que Thatcher assumiu.
A continuidade desse estado de coisas, depois de duas ou três décadas de “consenso” socialdemocrata levaria o Reino Unido a uma decadência ainda mais forte: sua economia já tinha sido ultrapassada pela da Itália (ainda em crescimento) e se colocava entre as últimas da Europa pela baixa dinâmica de investimentos e inovações. Pouco depois, a colônia Hong Kong, com seus milhões de chineses morando em sampans no Rio das Pérolas, ultrapassaria a metrópole em renda per capita, o que terminou de humilhar a Grã-Bretanha.
Se considerarmos que depois de Thatcher a Inglaterra era um dos países mais dinâmicos da Europa, com o dobro do crescimento dos países continentais, e a metade de suas taxas de desemprego, com um setor financeiro renascido das cinzas, e o país acolhendo investimentos estrangeiros, podemos considerar que, sob esse ponto de vista, seu legado foi positivo. Tão positivo que o Labour, obrigado a corrigir seu programa econômico esquizofrênico (datado de 1919, e que ainda recomendava coletivização da economia) e a manter praticamente intactas todas as realizações econômicas da era Thatcher. Algo semelhante ocorreu no Brasil, com o pacto perverso da CUT com a Fiesp produzindo inflação desenfreada nos anos pré-Real, com o PT se opondo de maneira desleal ao programa de privatização e tentando sabotar o Plano Real, se opondo (até no STF) à Lei de Responsabilidade Fiscal, acusando mentirosamente o governo que terminava de ter deixado uma “herança maldita” (quando foi a própria campanha de Lula e a política econômica esquizofrênica do PT que produziram a crise de 2002), para finalmente roubar o “software” dos inimigos demonizados de forma fraudulenta e passar a governar exatamente com os mesmos instrumentos e ferramentas do governo anterior, mantendo todas as suas políticas. O Labour foi obrigado, como o PT o foi, a governar de forma mais racional e mais responsável. Esse foi o legado da Thatcher, como foi para o Brasil o legado de FHC e do PSDB para o governo de Lula e do PT.

2) A crise econômica de 2008 é uma comprovação de que o modelo econômico da ex-primeira-ministra era falho? De que forma os críticos ao neoliberalismo se apropriam das crises econômicas dos últimos anos para fundamentar seus argumentos contra Thatcher?
PRA: A crise de 2008 não tem nada a ver com um suposto modelo econômico de MT. Quem tem modelo econômico são acadêmicos de gabinete. Margareth Thatcher tinha um imenso desafio a resolver, o que ela fez, não aplicando algum modelo econômico, como gostam certos economistas teóricos e keynesianos de botequim, mas sim algumas ideias bem simples, como aliás se encarregam de lembrar que a filha de um quitandeiro chegou a ser primeira-ministra: um país, um governo, não pode viver acima de seus meios (e isso vale para uma casa, para uma empresa e para a economia nacional); uma empresa privada, buscando lucro, sempre será mais eficiente do que qualquer governo tentando prestar um serviço coletivo; uma empresa estatal sempre será deficitária, e buscará recursos no governo; sindicatos são máquinas de criar desemprego e reservas de mercado, assim como o fazem patrões protegidos da concorrência interna (por carteis) ou externa (por tarifas altas e protecionismo regulatório); concorrência sempre é boa para satisfazer os consumidores; controles de preços nunca dão certo; taxar muito o trabalho provoca desemprego; taxar muito o capital gera desinvestimentos e fuga de capitais; manipular juros e câmbio acabam dando em desastres e o melhor é deixá-los o mais possível próximos do equilíbrio de mercado; um país não pode estacionar no processo de modernização, e sim continuar sempre inovando e sendo competitivo para simplesmente não ser ultrapassado por economias mais dinâmicas; enfim, um conjunto de ideias simples que eram bem mais pragmáticas do que teóricas.
Se algum modelo havia em suas “receitas” para corrigir o país decadente que era o Reino Unido esse era o da economia liberal, cujos fundamentos ela foi buscar em Ludwig Von Mises e em Friedrich Hayek. Isso não tem nada a ver com neoliberalismo, um falso conceito inventado pela esquerda órfã do desastre socialista para tentar encontrar um rótulo qualquer para aqueles que estavam revertendo décadas de políticas keynesianas que levaram os países à estagnação e à crise. Se tratava de liberalismo clássico, apenas isso, aquele fundamentado em Adam Smith, David Ricardo, James e John Stuart Mill, e nos já citados economistas da escola liberal alemã ou austríaca.
A crise de 2008, como várias outras crises – basta ler o clássico de Charles Kindleberger, Pânicos, Manias e Crises – foi criada por uma bolha, como sempre ocorre (financeira, da bolsa, de títulos do governo, etc.). Desta vez foi a bolha imobiliária que precipitou a crise bancária americana e daí para o resto do mundo, pelo funcionamento em rede dos mercados financeiros. Quem criou a crise foram os governos, ao manterem juros artificialmente baixos, ao estimular indevidamente e exageradamente a construção imobiliária, ao expandir o crédito acima da capacidade de endividamento das família (e ao oferecer garantias falsas para casos de insolvências), enfim, ao manipular os mercados e os indicadores macroeconômicos. Ora, a economia liberal se coloca frontalmente contrária a todas essas manipulações do governo e prega, justamente, juros de mercado, garantias reais, investimento sustentado em ativos financeiros existentes, não em crédito criado artificialmente pelos governos; os liberais verdadeiros pregam inclusive falências bancárias, em caso de sobre-exposição dos bancos, assim como se coloca contra o monopólio emissionista dos governos, gerador de inflação e de desvalorização da moeda, deixando todos bem mais pobres.
Os supostos críticos do neoliberalismo deveriam dirigir suas baterias contra os governos, não contra os economistas liberais. Afinal de contas são os governos que fixam as taxas de juros, que emitem moeda, que expandem o crédito, que dão garantias aos compradores de casa (ao avalizar seus títulos hipotecários), são eles que manipulam o câmbio, não os mercados, que simplesmente reagem segundo as reações espontâneas e não coordenadas de milhares de agentes econômicos individuais, que estão sempre buscando valorizar ou aumentar seus ativos atuando de maneira especulativa. Os supostos crises do neoliberalismo estão totalmente equivocados em suas críticas a mercados desregulados, pois a regulação dos governos, e das instituições multilaterais – como BIS ou FMI, por exemplo – é muito intensa e extensa, apenas que feita por burocratas, que não podem, obviamente, prever todos os movimentos de milhares de agentes econômicos disputando fatias de ganhos especulativos nos mercados.
Os keynesianos são os mais equivocados de todos, pois eles acreditam que governos podem, impunemente, produzir bondades, apenas “injetando liquidez” nos mercados, ou seja, emitindo dinheiro, produzindo inflação, déficit ou dívida pública. O próprio conceito macroeconômico de Keynes é equivocado, ao ignorar as lições mais elementares da microeconomia, como a lei da oferta e da procura e do equilíbrio dos mercados. Não foi o neoliberalismo, nem a austeridade que provocou as crises na Grécia, na Irlanda ou em Portugal, e sim a prodigalidade gastadora dos governos, sua irresponsabilidade no tratamento da política monetária, as bondades distribuídas de forma irresponsável pelos políticos sob a forma de altos salários para os funcionários públicos, as pensões generosas, os muitos seguros sociais existentes (que levam a um exército de assistidos com o dinheiro público, ou seja, de todos), etc. Nenhum banqueiro ou especulador de Wall Street obrigou a Grécia a se endividar de forma irresponsável; foram seus governos que tomaram recursos externos (sob a cobertura do euro e das taxas de juros mais favoráveis) acima da capacidade do país, que dispunha de produtividade abaixo do aceitável para atuar da forma como fizeram seus dirigentes.
Não há tampouco legitimidade nas críticas dos sociais-democratas contra a política social de Margareth Thatcher, pois ela legou um país mais organizado, com mais investimentos e maior nível de renda, ultrapassando novamente a Itália e a França. Os problemas que advieram depois, muito depois, em 2008-2009, não têm nada a ver com a sua gestão, terminada em 1991, e continuada integralmente sob Tony Blair (assim como Lula continuou com as políticas de FHC, que estão sendo desmanteladas, todavia, a partir de 2006).

3) Gostaria de saber se houve de fato alguma influência da política econômica de Thatcher na América Latina. Caso essa influência seja real, de que forma ela ocorreu?
PRA: Não, redondamente não. Se houve, foi tardia, equivocada, incompleta, ou implementada fora dos parâmetros. A América Latina já estava em crise bem antes de MT começar seu ciclo de mudanças de política econômica exclusivamente talhada para a situação do seu país, sem nada a ver com a situação dos países latino-americanos. A crise destes tinha a ver com o esgotamento das políticas de crescimento para dentro, com forte introversão econômica, excessivo protecionismo, manipulações exageradas dos governos nos mercados de capitais, laboral, no câmbio, nas políticas relativas ao investimento estrangeiro (fortemente restringido, como aliás todo o comércio) e dezenas de outros exemplos de dirigismo excessivo, estatizações e monopólios abusivos, controles de preços, de estoques, tributação excessiva e outros pecados mais ou menos mortais. Mais do que tudo, os países abusaram da liquidez financeira provocada pela alta dos preços do petróleos e a reciclagem de petrodólares para se endividarem além da conta (aproveitando os juros baixos, aliás abaixo da inflação, ou seja negativos), e a partir da elevação dos juros pelo Federal Reserve, em 1979, se descobriram incapazes de honrar, sequer suas dívidas, mas o simples pagamento do serviço da dívida. Ou seja, os problemas dos países latino-americanos tinham algo a ver, mas em nada deviam à decadência inglesa pré-Thatcher.
Da mesma forma, a solução encontrada não se encontrou num suposto modelo “thatcheriano” de política econômica, e sim em respostas desenhadas pelos próprios países, com a ajuda do FMI e de economistas liberais, no sentido de inverter todas aquelas políticas descritas acima. A reversão começou no México, logo em seguida à sua crise da dívida externa (1982), num momento em que as políticas econômicas de Thatcher sequer tinham começado a fazer efeito, o que só ocorreu a partir de meados da década; depois as mesmas políticas foram aplicadas no Chile e paulatinamente em outros países (mas o Brasil e a Argentina foram os mais tímidos, ou incompetentes, em aplicá-las, e por isso conheceram crises hiperinflacionárias, desvalorizações cambiais, mudanças de moedas e outros desastres, já bem depois que Thatcher abandonou o governo inglês. É um mito que os países latino-americanos tenham aplicado suas políticas, inclusive porque elas eram inaplicáveis fora do contexto britânico, com exceção, talvez, das privatizações de monopólios estatais, o que aliás respondia simples bom senso (as estatais eram ineficientes, deficitárias e não atendiam aos consumidores), e não por que isso fosse determinado por sofisticadas teorias econômicas.
Esse amálgama indevido, fantasmagórico, inexistente, totalmente equivocado entre um suposto “thatcherismo” econômico, mais a chamada “reaganomics” – que tampouco existiu, pois o presidente era um ignorante em econômica, se contentando com algumas ideias simples, geralmente liberais, mas sobretudo pragmáticas, um pouco como Thatcher, aliás – e o famoso “Consenso de Washington”, e a alegada influência dessas ideias “neoliberais” – um conceito equivocado, como já se disse – na América Latina são construções surrealistas criadas por uma esquerda desprovida de ideias claras sobre os processos econômicos, e que se compraz em colar rótulos vazios em dirigentes que aplicam políticas que contradizem seu keynesianismo de botequim. O chamado “Consenso de Washington”, por falar nele, é posterior ao início da fase de reformas em alguns países da América Latina, e visa, justamente, condensar num conjunto de ideias simples (mais uma vez) os ensinamentos de quase dez anos de reformas econômicas na região. Ele está orientado pelos mesmos princípios: equilíbrio fiscal, baixa inflação, orçamentos realistas, taxas de juros e de câmbio bem mais determinadas pelos mercados do que pelos governos, privatização e desmonopolização, abertura a comércio e aos investimentos, proteção dos ativos proprietários, etc. Nunca falou da liberalização dos movimentos de capitais ou da abertura financeira, como parece ignorar a esquerda. E, tanto quanto o “thatcherismo”, ele nunca foi aplicado na América Latina como se fosse um modelo prêt-à-porter, aplicável em quaisquer circunstâncias. Esse é outro mito, e uma outra mentira de certa esquerda, que manifestamente não entende de economia ou de processos reais de governança econômica (geralmente acadêmicos que atuam com base apenas em slogans políticos).
O único exemplo, provavelmente, de políticas à la Thatcher aplicadas na região se referem, como já indicado anteriormente, às privatizações de monopólios estatais, mas isso era uma decorrência da própria situação falimentar dessas empresas, não que houvesse um manual thatcheriano para empreender essas medidas (tanto porque cada processo foi diferente de um país a outro, provocando resultados bons e outros maus). Abertura a investimentos nem é uma ideia thatcheriana, e sim uma velha realidade da região (e de todas as outras), enterrada durante a grande dominação keynesiana, nacionalista e protecionista das décadas de 1930 a 1980, e retomada a partir de então.
Infelizmente, a América Latina atualmente – não todos os países – parece retornar aos velhos tempos: fechamento econômico, protecionismo comercial, dirigismo econômico, reestatizações, controles de preços, manipulações cambiais, etc. O Brasil, também infelizmente, parece ter acompanhado a Argentina no seu retorno ao velho protecionismo dos anos 1970; espera-se apenas que ela não a acompanhe no retorno muito mais nefasto aos anos 1930: controles de capitais, distorções cambiais, centralização estatal de várias operações financeiras externas, o que seria um bilhete certo para o desastre econômico, que é para onde está apontada a Argentina. Nem se mencione, aqui, o desastre econômico da Venezuela, um país destinado ao desastre do seu socialismo petrolífero.
Uma Thatcher faria bem a vários países da América Latina: infelizmente não se criam líderes políticos com perfil de estadista facilmente, sendo bem mais prolífica a fauna de demagogos, populistas e falastrões (e seus conselheiros econômicos que merecem o título de keynesianos de botequim).

Paulo Roberto de Almeida (Hartford, 22 de abril de 2013)

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