A Journey Inside the Whale:
submergindo sob o peso dos livros, literalmente
Paulo Roberto de Almeida
Existem coisas contra as
quais não adianta lutar, ao que parece. Ao vir para os EUA, e “abandonar”
um número indeterminado de livros no Brasil (talvez na casa de uns poucos
milhares), fiz-me a promessa – oh, quão vãs são essas promessas contra a
natureza – de que não iria comprar livros, ou pelo menos muitos livros. Afinal
de contas, já não tenho onde colocar no Brasil, e se começasse a comprar outros
aqui teria também de comprar mais estantes, bem mais do que desejaria.
Mas, quem disse que essa
loucura gentil, essa compulsão perigosa, esse desvio de caráter, essa tendência
maniática, todos esses vícios poderiam ser controlados apenas por uma promessinha
assim feita ao apagar das luzes brasilienses e antes de chegar na realidade
livresca “estadounidense”, como gostam de dizer os companheiros a respeito de
tudo o que se refere ao império. Pois fiquem sabendo os companheiros que este
império do mal, como eles gostariam que fosse, é antes de tudo um império do
saber, do conhecimento, da abundância livresca, e de revistas, e de sites, e de
tudo o que possa se expressar livremente, e que tem relação com o gênio humano
(mas também tem muita bobagem, e outras francamente inqualificáveis).
Este é também o Império do
livre comércio, da lei da oferta e da procura (ela funciona, para os que não
acreditam nos mercados), das relações comerciais livremente consentidas,
algumas até obrigadas, tal o volume de publicidade e de apelos de toda ordem.
Os meus apelos todos sabem quais são, e por vezes fica difícil resistir. Vinha
resistindo, mais ou menos, e nos quatro últimos meses só tinha comprado uns 10
ou 15 livros, poucos para o meu gosto e meu ritmo habitual. Pois agora
exagerei, talvez, mas as justificativas são explicadas abaixo, como passo a
relatar.
Como sempre, procuro
resistir, a despeito de sempre frequentar livrarias e de consultar os
lançamentos pelos veículos de book reviews e pelos boletins das editoras. Nas
livrarias, sempre sento com dois ou três no café (invariavelmente um Starbucks,
quando se trata da Barnes & Noble, a única grande rede que ainda resiste ao
império dos ebooks), e fico fazendo anotações nos meus Moleskines de bolso
(sempre levo dois, por se acaso...), prometendo a mim mesmo não comprar, ou só
comprar depois que aparecer mais barato no Abebooks (para os que não sabem, se
trata da maior rede de livros usados do mundo, com filiais por vários países, o
que não inclui, of course, o Brasil). Fico anotando, com aquela angústia a
apertar o coração sobre se devo comprar ou não, quando vou ter tempo de ler por
inteiro, anotar, e usar em algum trabalho corrente ou futuro. Dúvidas
kirkegaardianas, para os que conhecem esse tipo de angústia intelectual.
Hélas, infelizmente, malgré
moi, in despite of promises, recaí nos velhos vícios. Tive um acesso de encomendite
aguda, logo transformada em compras compulsivas num dos maiores sebos reais dos
EUA, a livraria Powell’s, em Chicago (mas tem também em Portland, no Oregon).
Voltei de viagem, ao Illinois (em Urbana e Chicago) com o carro cheio de
livros, meus e de Carmen Lícia. Relaciono os meus, cuja aquisição começou antes
de partir em viagem (pelo Abebooks, justamente), que recolhi a chegar de volta,
feliz com os meus 20 kgs de livros.
Começo então pelos que já
tinha encomendado antes de partir (mas apenas desta fase recente, deixando de
lado os que comprei ou recebi nos meses anteriores a maio).
Primeiro tinha pensado em
comprar o último do Thomas Sowell, possivelmente um dos maiores intelectuais
dos EUA, negro, mas indiferente a isso, ou melhor, altamente preocupado em que
a “raça” não se converta em ideologia. Seu livro mais recente (não o último,
claro), que acaba de sair em 2013, se chama, justamente, Intellectuals and Race, que eu folheei bastante
numa ida à B&N, fiquei namorando, anotando e quase comprei, desistindo para
cumprir minha promessa. Mas não resisti quando vi que havia uma síntese de seus
principais escritos, o que me pareceu mais apropriado. Assim, encomendei pela
Abebooks, pelo ridículo valor de 4 dólares, mas novo, absolutamente novo (ao
preço de capa de $ 29.99), mais 3 dólares de frete, The Thomas Sowell Reader,
um livro de 2011 da Basic Books, contendo os trabalhos mais importantes de Sowell
nos campos das questões sociais, economia, política, questões jurídicas, raça e
etnicidade, educação, além de rascunhos biográficos e pensamentos ao acaso,
como ele chamou sua última seção. Recomendo, vivamente: são 400 páginas da mais
pura honestidade intelectual disponível no mercado (a preços de mercado...).
Depois encomendei um livro
que acaba de sair (por $ 35, a preço de editora), o do David Stockman, The Great Deformation: the corruption of
capitalism in America (que paguei um pouco mais, $ 23 + 3); livro
novíssimo, estrito e lato sensu, pois ainda está sendo resenhado nos principais
veículos literários (eu mesmo já postei trechos e críticas em meu blog). Ele
foi secretário do Orçamento do primeiro Reagan, e se demitiu no meio do segundo
ano, quando percebeu que, a despeito das promessas de correção das deformações
do capitalismo americano, o Reagan (ou seus conselheiros) estava na verdade
praticando Keynesianismo militar. De fato, existe muita bobagem escrita sobre o
tal de neoliberalismo ou conservadorismo econômico do Reagan, e sua
Reaganomics, ou supply side economics. Lembro-me de ter lido, na época (começo
dos anos 1980) artigos do próprio Stockman, defendendo os princípios econômicos
republicanos, que foram abandonados pelos próprios republicanos, e aí ele se
mandou, simplesmente, pois não queria compartilhar dos gastos militares e
outras embromações. O livro é um catatau de mais de 700 páginas, que examina
toda a política econômica americana desde os anos Reagan, mas recua em diversas
passagens ao New Deal de Roosevelt, que ele desmistifica devidamente, como a
própria crise atual. Vale vários debates, o que pretendo fazer, assim que
mergulhar no livro.
Também encomendei na
Abebooks, antes de partir, e ao ridículo preço de 5 dólares, o primeiro livro
do Francis Fukuyama dedicado à teoria política: The Origins of Political Order, que vai da era das cavernas à
Revolução francesa. Já conhecia o livro, por ter lido resenhas, trechos e
folheado em livrarias, e estava esperando a publicação dos dois (o segundo
ainda não saiu) para comprar de uma vez. Como ainda demora um pouco, comprei a
edição paperback (mas igualmente novíssimo, como sempre faço, um pouco por
sorte, outro por comparação) no sebo eletrônico. O livro é antes de mais nada
uma homenagem ao seu velho mestre Samuel Huntington, cujo Political Order in
Changing Societies também aprecio, como Fukuyama (que corrige e completa que
foi seu antigo mentor e guia intelectual).
Bem, aí parti para dar
minha palestra sobre “Brazilian Foreign Policy and the Economic Consequences of
Mister Lula” (excusez du Keynesianisme involontaire), no Lemann Institute of
Brazilian Studies da Universidade do Illinois em Urbana. Lá comecei ganhando o
livro mais recente de meu amigo Jerry Dávila, Dictatorship in South America (Wiley-Blackwell, 2013), examinando
os casos da Argentina, Brasil e Chile; ele está dirigindo o Institute e dá
aulas de história. Gostei, e vou resenhar, assim que possível. Também ganhei,
do meu velho amigo, grande brasilianista, e ex-diretor do mesmo Instituto,
Joseph Love, seu famoso livro sobre o regionalismo gaúcho, Rio Grande do Sul and Brazilian Regionalism, 1882-1930 (Stanford,
1971), examinando o pensamento e a ação dos castilhistas e outros malucos que
fizeram do RS uma potência política; eu só tinha uma edição brasileira desse
livro, mal traduzido por sinal, e sem as muitas fotos do original. Bem, esses
dois não me custaram nada, só carregar, mas em compensação deixei com eles
muitos livros, meus, da Funag, e a RBPI, que tinha levado especialmente para
isso. Sabem como é: ninguém visita grandes amigos acadêmicos impunemente. Meus
três livros mais recentes (Relações
Internacionais, pela LTC, Globalizando,
pela Lumen Juris, e Integração Regional,
pela Saraiva) valeram o convite, os dois restaurantes, e a simpatia dos dois
acima citados, mais o Werner Baer, que já formou gerações de economistas em
Urbana (antes em Vanderbilt), mas parece que alguns não aprenderam muito...
Aproveitei a loja da Apple
na Universidade para comprar o novo iPad mini, na maior potência e a um preço
menor do que as lojas comerciais; Carmen Lícia comprou um disco externo, para
guardar suas milhares de fotos que ilustram nossas viagens (e algumas
comilanças, também). Pelo menos este iPad pesa menos na barriga quando vou ler
na cama, iBooks, Kindle, ou outros ebooks em outras plataformas.
Bem, agora começa
realmente o festival de livros, na Powell’s de Chicago, onde fui duas vezes,
uma delas sozinho, o que me permitiu abusar (mas Carmen Lícia me disse que já
tinha comprado tudo o que precisava, uns quatro ou cinco de sua área de estudos
chineses e orientais). Vou só relacionar os livros, pois seria muito extenso e
cansativo falar de cada um deles, vários que eu já conhecia de bibliotecas,
resenhas ou miradas rápidas em livrarias. Cada um deles custou, com uma ou duas
exceções, de 4 a 6 dólares, apenas, e seria um crime deixá-los na prateleira,
pegando poeira, a esses preços, e todos totalmente novos, ou seja, usados não
usados (eles são loucos esses caras da Powell’s, esses americanos, em geral).
Comprados na Powell’s, de Chicago:
1) Feinstein, Temin, Toniolo: The World Economy between the World Wars
(Oxford, 2008); já tinha lido esse livro e anotado, copiado, na Biblioteca do
Itamaraty; muito bom e recomendo vivamente, para os que praticam história
econômica, como eu;
2) Peter Isard: Globalization and the International Financial System: what’s wrong and
what can be done (Cambridge: 2005); história econômica empírica, não impressionismo;
3) A. C. Crayling: Toward the Light of Liberty: the struggles for freedom and rights tha
made the Modern Western World (Walker, 2007); um exame da história e do
contexto das grandes declarações revolucionárias pelas liberdades democráticas;
4) Timothy Ferris: The Science of Liberty:
Democracy, Reason, and the Laws of Nature (Harper Collins, 2010); como a
revolução científica impulsionou a democracia;
5) David. L. Bosco: Five to Rule Them All: The UN Security Council and the Making of Modern
World (Oxford, 2009); a velha e a nova geopolítica e o multilateralismo;
6) Sylvia Nasar: Grand Pursuit: The Story of Economic Genius (Simon and Schuster,
2011); pela mesma autora de A Beautiful
Mind, um exame dos grandes economistas;
7) Andreas Kalivas and Ira Katznelson: Liberal Beginnings: Making a Republic for
the Moderns (Cambridge, 2008); a velha questão da democracia dos antigos e
modernos;
8) Guillermo Calvo: Emerging Capital Markets in Turmoil: Bad luck or Bad Policy? (MIT
Press, 2005); o brilhante economista argentino nos EUA (FMI e universidades)
que trata das crises financeiras dos anos 1990, inclusive no seu país e no
Brasil;
9) E. Wayne Nafziger: Economic Development (Cambridge, 2004); 4a edição deste
excelente manual acadêmico, precioso, a vários títulos, inclusive a
bibliografia;
10) Findlay, Henriksson, Lindgren and
Lundhal (eds): Eli Heckscher, International Trade, and Economic History (MIT
Press, 2006); estudos em homenagem ao grande teórico do comércio internacional,
um grande historiador econômico, além disso.
Bem, esses foram os poucos
livros que comprei em Chicago, onde tinha ido apenas para assistir
apresentações de ex-alunos de Friedrich Katz (um austríaco emigrado nos EUA,
como tantos intelectuais fugidos do nazismo) e de John Coastsworth (de quem
tenho livros de quando ela ainda estava em Harvard, agora na Columbia), e a
quem conheci pessoalmente: dei-lhe um livro meu e ficamos de nos ver em NY; os
dois foram os grandes promotores da história econômica da América Latina em
Chicago, uma tradição que sobrevive apenas parcialmente, depois da morte do
primeiro e da saída do segundo; Chicago é sinônimo de economia teórica,
atualmente, quando não denegrida pelo mito absolutamente simplista dos Chicago
boys e sua economia liberal (os austríacos não acham, e consideram os
chicagoanos ainda intervencionistas demais). Mas é isso.
Eram tantos livros que não
pude carregar para casa de uma vez só: tive de fazer em duas viagens, do carro
na garagem ao apartamento, e agora não tenho onde coloca-los mais; estão todos
no chão, esperando que eu um dia arrume as mesas; vou ter de usar o parapeito
das janelas, ou comprar mais estantes...
Um dia volto a falar de
todos esses livros, ou vou usá-los em meus trabalhos; estou terminando um texto
sobre a Brazilian Trade Policy, e depois tenho de fazer um outros sobre
Economic Regime Change in Brazil, o que vai me dar muito prazer. Sim, ainda
tenho um outro livrão, de mais de 700 páginas, que comprei numa sessão em
homenagem ao Albert Hirschman, em Princeton, onde fui duas semanas atrás: sua
biografia intelectual por Jeremy Adelman, um ex-aluno e admirador (como eu,
aliás...). Falando nisso, vou postar um artigo sobre ele na mais recente New
York Review of Books. Na sequência...
Quando vou terminar de ler
e de escrever? Não tenho certeza, mas como já adiantei ao Criador (se ele me
escuta, o que duvido, pois eu desconfio que ele não está nem aí para
irreligiosos como eu), vou precisar de mais ou menos 150 anos adicionais, para
terminar de ler só o que tenho, sem falar de mais 200 outros, para ler os de
bibliotecas e os que foram aparecendo por aí.
Voltarei a falar de
livros, leituras, escritos, e outras distrações intelectuais...
Não babem no teclado, por
favor...
Chicago-Hartford, 5-7 Maio 2013.
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