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14/05/2013 11:00:52
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No dia 22 de agosto de 1975, o ministro de Relações Exteriores do Brasil, Antônio Azeredo da Silveira, escreveu mais uma longa carta para seu colega Henry Kissinger, que havia meia década ditava a política externa americana. As dezenas de cartas trocadas entre os dois são carregadas de um afeto pouco comum em correspondências diplomáticas, e Silveira sempre as iniciava com um “Meu querido Henry”. Nessa carta, porém, o embaixador brasileiro deixa clara sua admiração.
Apesar de não podermos nos dar ao luxo de prazeres puramente intelectuais, eu quero te dizer, candidamente, que a franca e honesta troca de cartas tem sido, entre os problemas desconcertantes que nos afligem, uma fonte de satisfação no meu trabalho como ministro brasileiro das relações exteriores.
Saudações afetuosas, Antônio
A carta marcava o fim de uma longa e próxima aliança entre os governos dos EUA e do Brasil – selada pela relação pessoal entre Kissinger e Silveira – que incluir articulações em diversos temas. Pouco depois de se conhecerem, em 1974, os dois se uniram refrear a volta de Cuba à OEA (de onde for a expulsa em 1962) como queriam países como México, Venezuela e Colômbia. O Brasil servia, na visão do secretário americano, como linha de apoio à sua política em relação a Cuba. Conseguiram, assim, moderar os países mais ansiosos por comercializar com a ilha comunista, protelando por um ano o fim do embargo na OEA, que impunha a proibição a qualquer país-membro de manter relações com Cuba.
Nas dezenas de documentos constantes da Biblioteca de Documentos Diplomáticos dos EUA, ou PlusD, do WikiLeaks, sobre o assunto, o governo brasileiro se mostra ainda mais radical do que os EUA, em relação à questão cubana; teve de ser convencido pelo próprio Kissinger a ter uma postura mais maleável nas negociações. A correspondência de 1975, Silveira defende medidas mais duras contra Cuba, chegando a repreender o amigo pelo fim das restrições de comércio entre subsidiárias de empresas americanas com Cuba.
A medida era vista pelo governo brasileiro como uma mudança de postura dos Estados Unidos – dentro da política de deténte, de amenização das tensões da guerra fria – que seria prejudicial à América do Sul. “Para nós, as questões fundamentais são, nesta ordem: 1) Se Cuba não constitui mais uma ameaça para a segurança dos outros membros do Tratado [do Rio, que estabelece a defesa recíproca dos membros da OEA], deixando de intervir diretamente ou indiretamente nos seus assuntos internos 2) Se Cuba está disposta a cooperar com outros países do sistema internamericano, adotando firmes compromissos nesse sentido”.
Desde o início de 1974, países latinoamericanos crescentemente descontentes com o embargo imposto dentro da OEA ameaçavam retomar relações comerciais, e com isso enfraquecer o Tratado do Rio. Em julho, Washington recebeu a notícia de que Colômbia e Venezuela estavam discutindo a adoção de uma medida unilateral em relação à Cuba. Em resposta, o chanceler da Costa Rica, Gonzalo Facio, iniciou uma empreitada em prol de uma reunião da OEA para levantar o embargo. Estava em jogo o esvaziamento do tratado do Rio, e portanto da própria OEA.
E os russos estavam cansados de Cuba
Por trás da iniciativa venezuelana estava, segundo contou seu próprio presidente, Carlos Andres Perez, a mão da União Soviética, que queria “se livrar do peso” de suprir petróleo a Cuba. “O que a URSS quer é parar de enviar o seu petróleo para Cuba e fazer com que a Venezuela se torne o principal fornecedor”, disse Perez em uma conversa privada com o embaixador dos EUA, Robert McClintock.
Segundo ele, os russos haviam traçado três possibilidades para essa estratégia. “Uma delas é engajar o governo espanhol, que mantém relações econômicas lucrativas com Cuba, sugerindo que o petróleo da Venezuela seja transferido para Cuba via Espanha, e os soviéticos completem a quantidade enviando o seu petróleo diretamente para a Espanha”. Outra opção seria estabelecer uma refinaria com petróleo venezuelano na antiga Ioguslávia, que seria exportado refinado para Cuba. “No entanto, a manobra mais fascinante dos soviéticos descrita pelo presidente Perez é a crescente pressão sobre Castro para que ele se reintegre ao sistema interamericano (…) suspendendo o bloqueio economico”, relatou o embaixador McClintock no dia 22 de julho.
É nesse momento que Kissinger se volta para o Brasil. No dia seguinte, pediu a seu embaixador em Brasília, Hugh Crimmins, que marcasse “uma reunião urgente” com Silveira. “Fatos recentes nos levam a esperar um desafio iminente e sério à manutenção das sanções na OEA”, escreveu Kissinger. “Conforme nosso acordo de ficar em contato com o governo brasileiros sobre esse assunto, queremos compartilhar nossas avaliações sobre a situação e consultá-los sobre novos passos”. Reiterando que a posição dos EUA “não havia mudado”, escreve: “Nossos objetivos imediatos são dois: A) Suspender qualquer defecção unilateral das sanções e B) Evitar qualquer reunião formal multilateral para tratar do assunto neste momento. Se necessário, podemos indicar que não vamos nos opor a uma reunião do conselho permanente da OEA para debater a questão das sanções a Cuba no final do ano – no fim de novembro ou dezembro”.
O americano apostava, com razão, que o governo Geisel não engoliria uma vitória diplomática de Fidel Castro. Não errou. O próprio Silveira explicaria que o pesadelo dos militares brasileiros era a volta de Cuba à OEA – o Brasil não queria de forma alguma restabelecer laços com o país. Silveira achava que “a real grande questão – readmissão ao sistema, com todos os seus problemas e implicações, não está recebendo atenção”, relatava o embaixador Hugh Crimmins em 30 de outubro. Ele mesmo já havia explicado em outro desapacho que, para os militares brasileiros, a discussão sobre o fim do embargo estava andando “com demasiada rapidez”. O assunto havia sido discutido no Conselho de Segurança Nacional em agosto, revitalizando, segundo Crimmins, “a linha mais dura, ou pelo menos mais cautelosa, do Ministério de Relações Exteriores sobre Cuba”.
A estratégia de Kissinger de não confrontar publicamente a empreitada agindo contra ela sorrateiramente e aproveitando-se do sentimento brasileiro foi bem-sucedida. No final do ano, como queriam os americanos, a questão foi levantada na reunião da OEA em Quito (de 8 a 12 de novembro) e os pró-Cuba foram derrotados na votação. Durante os meses que precederam a reunião, Kissinger manteve estreito contato com Silveira, através de cartas, encontros pessoais e da visita de um enviado especial a Brasília, o subsecretário para temas interamericanos Harry Shlaudeman.
“Inteligência intuitiva”
Segundo o historiador Mathias Spektor, autor do livro “Kissinger e o Brasil”, Kissinger costumava brincar com seu colega brasileiro: “Você temuma inteligência intuitiva de primeira classe. Eu tenho uma inteligência analítica de primeira classe e uma inteligência intuitiva de terceira”.
Os dois se conheceram em 16 de abril de 1974, pouco depois de Silveira assumir o Itamaraty a convite do general Geisel, que assumia a pesidência do Brasil. No primeiro encontro, o americano soltou uma provocação, sua marca registrada: “Eu tive dificuldades com seu predecessor porque ele sempre falava de Cuba comigo. Qual é a sua opinião?”. “O senhor vai ter uma surpresa”, respondeu Silveira. “Cuba (…) é um problema de segurança do Estados Unidos. É uma ponta de lança contra vocês (…) Nunca mais vou falar de Cuba com o senhor, é o senhor quem vai querer falar de Cuba comigo’”. Segundo Mathias Spektor, trinta anos depois, Kissinger ainda repetiria que Silveira fora “incrivelmente brilhante” naquele dia.
Pouco depois, enviaria a primeira carta pessoal.
Caro Antônio,
Quero dizer-lhe quanto apreciei encontrá-lo e as nossas valiosas conversas… Tenho firme convicção de que devemos manter estreito contato em toda gama de assuntos de relevância para nós dois. Valorizo, mais do que sou capaz de demonstrar, a fraqueza com a qual você discutiu vários problemas comigo, incluindo a questão cubana, e você pode contar com igual fraqueza da minha parte… Escreverei para você novamente, de tempos em tempos, e anseio por dar continuidade à nossa estreita relação pessoal, que teve início tão auspiciosamente na semana passada, em cooperação.
Saudações afetuosas, Henry.
Nascia um vínculo pessoal que teria enorme importância para as relações Brasil-Estados Unidos. Para Mathias Spektor, Kissinger reafirmava o “desejo do governo americano de manter relações ‘especialmente próximas’ com o Brasil”, mas “insistia num arranjo, de facto, sem publicidade e sem manifestações públicas de alto perfil”. A chave era a amizade com Silveira.
No final de setembro de 1974, a relação entre os dois estaria mais estreita do que nunca. Em meio aos conchavos para impedir o fim do embargo a Cuba na OEA, Silveira viajou para os EUA, onde foi recebido pelo presidente Ford e se reuniu com Kissinger duas vezes – no Departamento de Estado, para um almoço oficial, e em Nova York, para um encontro informal.
Sra Kissinger e Sra Silveira se conhecem
Siliveira se referiu ao encontro em uma carta de 16 de outubro.
Meu querido Henry, desta vez você não estará em posição de me culpar por não responder as suas cartas. Eu recebi a sua mensagem (…) e estou muito grato. Aprecio muito a sua atenção em escrever para mim em meio ao trabalho preparatório para sua viagem ao Oriente Médio. Meus parabéns pelo sucesso alcançado, o que para mim jamais é uma surpresa”, escreveu, acrescentando: “Quero agradecer pela sua generosidade em me receber em Nova York no dia 23 de setembro. Minha esposa apreciou profundamente conhecer a Sra Kissinger, charmosa como sempre. Eu, da mesma maneira, considero como altamente recompensadora a troca de visões que tivemos naquela ocasião, e a franca e abrangente conversa que tivemos no almoço no Departamento de Estado, no dia 28 de setembro, foi particularmente útil.
Em resposta, Kissinger escreveu: “Querido Antônio: Muito obrigada pela sua resposta à minha carta. Você foi, como sempre, gracioso e direto. Nosso encontro de 23 de setembro em Nova York foi realmente muito agradável. Nancy e eu gostamos muito de conhecer a Sra Silveira. Nós dois esperamos ansiosamente retomarmos nossos contatos no próximo ano”.
Naquele almoço, ficou decidido que as consultas sobre a questão cubana deveriam ser mais frequentes e diretas. Kissinger explicou que, se era inevitável uma mudança na OEA, “seria mais fácil que os EUA seguissem uma maioria” em vez de mudar de posição. Manteriam, assim, silêncio sepulcral. Ele reforçou ainda que queria acompanhar o Brasil no assunto. “Nós não iremos além de nos abster”, disse Kissinger. “Os EUA querem seguir a liderança brasileira nessa questão”. Silveira respondeu que o Brasil também se absteria, mas reiterou o tema era “de importância doméstica no Brasil, obnde há grupos opostos ao reconhecimento de Cuba”. Horas depois, Kissinger prepararia o presidente Ford para se encontrar com Silveira da seguinte maneira: “Os brasileiros são bem-comportados. Eles estão mostrando suas garras um pouco, mas são bons amigos. Diga-lhe que o Brasil é um país-chave e que vamos coordenar nossa política com eles”.
Tramando juntos
Manobrando com o Brasil nos bastidores, Kissinger conseguiu esvaziar a proposta de queda das sanções na OEA. Na reunião em Quito, entre 8 e 12 de novembro, Uruguai, Paraguai e Chile votaram contra o fim do embargo, seis (inclusive EUA e o Brasil) se abstiveram, e doze votaram a favor – dois a menos do que os 2/3 necessários. A manobra americana foi questionada com uma intervenção emocionada do chanceler colombiano, Enrique Gaviria, segundo um documento diplomático sobre uma reunião a portas fechadas.
“Gaviria, de maneira bastante emocional, questionou o silêncio da delegação americana”, descreve cinicamente o assessor direto de Kissinger, o subsecretário de Estado Robert Ingersoll. “Eu respondi que ficamos em silêncio em público porque não queríamos passar a impressão de tentar influenciar outras posições”, relata, no documento diplomático. “E reforcei que os EUA foram criticados no passado por influenciar outras delegações em reuniões similares e, por essa razão, adotaram essa posição. Então disse que os EUA iriam se abster em qualquer proposta, e acrescentei que achava que a nossa posição era conhecida por todos”.
No dia seguinte, logo depois depois da votação final, Silveira encontrou-se com Ingersoll durante 20 minutos no hall de conferência. Ambos comemoravam. “Silveira expressou sua satisfação com os resultados, embora tenha dito que não falaria isso em público. A conferência foi mal preparada pelos que a convocaram”. Kissinger, que falara com Ingersoll naquela manhã, concordava. “A reunião veio antes do tempo”. Silveira comentou ainda que todos os ministros apreciaram a “nova” postura americana de deixar os governos latinoamericanos “expressar suas visões” e tomar posições”. “O importante, ele disse, era forçar Castro a negociar em vez de lhe dar o que ele quer em uma bandeja de prata”.
Levaria ainda oito meses para que as sanções a Cuba na OEA fossem suspensas, em julho de 1975, permitindo a qualquer país do continente comercializar com a ilha – e 35 anos antes que Cuba fosse convidada a se reintegrar à OEA, com a revogação oficial do ato de expulsão. Quando finalmente, em 3 de junho de 2009, a OEA decidiu convidar Cuba a se reintegrar à organização, o governo de Raul Castro rejeitou a proposta. “Cuba não pediu nem quer retornar à OEA, cheia de uma história tenebrosa e entreguista”, escreveu o governo cubano em um comunicado.
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