O recidivista deve ser objeto dos mais obscuros desejos de vingança de algumas de suas vítimas, que talvez o imaginem numa cela escura, trancafiado com um gigante mal-encarado e animado dos mesmos impulsos que ele mantinha em relação às funcionárias. Mal, entrado, e devidamente trancado, completamente abandonado pelos carcereiros, o vicioso e viciado ouve o brutamontes falar com uma voz doce e maviosa:
-- Vem cá, meu gostoso, nesta noite você é todo meu!
(Corte da Censura).
[Deixo o resto à imaginação de cada um...]
Estou fazendo teatro à la Nelson Rodrigues, ou melhor, à la Plínio Marcos, claro, mas que ele merecia, isso merecia...
Paulo Roberto de Almeida
Brasil
IstoÉ, Edição: 2271 - 24 de Maio de 2013
A Embaixada do assédio
Como o ritual de cantadas, gritarias e desrespeito mantido pelo cônsul Américo Fontenelle transformou o consulado do Brasil na Austrália num ambiente indecente e insuportável
Liz Lacerda, de Sydney, e Claudio Dantas Sequeira, de Brasília
Era mais uma manhã comum de trabalho para Viviane Jones, auxiliar administrativa do Consulado-Geral do Brasil em Sydney, Austrália. Por volta das 11h, enquanto ela estava concentrada trabalhando, uma pessoa chegou sorrateiramente por trás, beijou-lhe o rosto e sussurrou em seu ouvido. “Sua linda”, disse. Era seu chefe, o embaixador Américo Dyott Fontenelle. Atitudes como esta já não eram mais surpresa. Outra vez, na recepção, enquanto Viviane atendia um visitante, o embaixador se aproximou e cochichou em seu ouvido. “Estou louco para te dar um beijo”, disse. Nesse mesmo dia, ela ouviu dos colegas algo revelador da personalidade de Fontenelle que a assustou ainda mais. O embaixador, segundo os relatos, falava dela em reuniões, comentava de suas roupas, do perfume e até da maquiagem. “Dizia que ficava imaginando o que estava debaixo da minha blusa, da minha saia e ainda falou que os australianos ficavam loucos comigo na recepção”, lembra. Dias depois, Viviane foi até a cozinha pegar um café. Os copos descartáveis haviam acabado. Ela se abaixou para procurá-los em uma das gavetas do armário, quando foi surpreendida por uma voz masculina. “Nossa, Viviane, você está em uma posição muito sugestiva”, disse Fontenelle. A funcionária, de 37 anos, separada e mãe de um garoto de 11, vestia uma calça social preta e uma blusa da mesma cor. A cantada de mau gosto foi testemunhada por outro funcionário, Luiz Neves, responsável pelo setor comercial e de investimentos. “Ele deixou a porta aberta e ouvi o que disse”, afirmou Neves à ISTOÉ. A funcionária estava se achando indefesa. “Foi o momento em que senti mais medo”, desabafa.
Os acontecimentos afetaram a vida pessoal de Viviane, que se tornou agressiva em casa e passou a ter crises de ansiedade e insônia. O medo de perder o emprego a fez ficar em silêncio por muito tempo.
LASCÍVIA
Sob a gestão de Américo Fontenelle (acima), o Consulado-Geral
do Brasil em Sydney, na Austrália, virou palco de vulgaridades
O dia 24 de janeiro foi o limite. Era uma quinta-feira, Viviane estava atendendo no balcão quando o cônsul-adjunto, Cesar Cidade, a repreendeu por se desculpar com o público do consulado pela falta de etiquetas para passaportes. “Pare de se humilhar para esses australianos filhos da puta, porque brasileiro gosta de dar o rabo para os australianos”, gritou Cidade. Ela teve uma crise de choro e se trancou no banheiro por meia hora. Saiu dali convicta de que tinha de pôr um basta naquela situação. Foi o que fez. Escreveu ao Itamaraty uma denúncia sobre o comportamento de seus chefes e encaminhou cópias à Chancelaria australiana e à Comissão de Direitos Humanos do Parlamento local. A partir daí, outros colegas aderiram à denúncia. Pressionado, o Itamaraty foi obrigado, meses depois, a abrir um processo administrativo disciplinar e, finalmente, afastou Fontenelle e Cesar Cidade de suas funções até conclusão da investigação.
Apesar do sigilo que envolve o caso, as vítimas dos diplomatas resolveram contar tudo à ISTOÉ. Os detalhes chocantes mostram como Fontenelle conseguiu transformar a rotina consular num ritual de abusos contra seus subordinados. Além de se esfregar nas funcionárias, o embaixador perseguia, violava a intimidade, tinha acessos de fúria e demonstrava prazer em humilhar a todos publicamente.
Em depoimentos reveladores, funcionários do consulado de Sydney contam
como agiam o cônsul Américo Fontenelle e seu número 2, Cesar Cidade
Os abusos levaram o oficial de chancelaria Alberto Amarilho, vice-cônsul, a se aliar ao grupo. “Diante de tudo isso, você se sente um babaca. Via o sofrimento dos funcionários locais. Então, fiquei me achando covarde e conivente”, lembra. Cidade chegou a chamá-lo de “filho da puta”, porque ele deixou farelos de pão na tostadeira da cozinha. O comportamento de Fontenelle e Cidade refletiu na piora do trabalho do consulado. A rotina diária se transformou num inferno. Amarilho foi o único funcionário de carreira do Itamaraty a apoiar formalmente as denúncias dos contratados locais. Ele escreveu e-mail para cinco diplomatas da Comissão de Ética do Ministério, se posicionando a favor da abertura do processo administrativo disciplinar.
Como se sabe, Fontenelle é reincidente. Antes de Sydney, chefiou o Consulado-Geral de Toronto, no Canadá, onde foi denunciado, investigado e absolvido. A brasileira Vanice Lopes, hoje com 40 anos, lembra com angústia dos momentos na embaixada. “Isso mexe com nosso lado de mulher, de mãe e esposa.” Um dia o embaixador a chamou no arquivo. Ao entrar, ele ordenou “tire a roupa”. Ela saiu correndo, enquanto ele gargalhava.
Servidores do consulado em Toronto confirmam rotina de imoralidades
Se não se pode afirmar que Fontenelle recorreu a Dirceu para livrá-lo há cinco anos das acusações em Toronto, é certo que o Itamaraty não fez nenhum esforço real. Agora, ao nomear o ministro de segunda classe Roberto Abdalla para investigar o caso, o chanceler Antônio Patriota deu demonstrações de que o empenho segue tímido. Mais novo e hierarquicamente inferior ao investigado, Abdalla é como um coronel investigando um general. Talvez por isso, ao chegar a Sydney, tentou convencer os funcionários de que “o que era assédio na cultura australiana não era na cultura brasileira”.
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