POR QUE AMO
A INGLATERRA
Vinicius de Moraes
Revista Senhor, Abril de 1959
A Inglaterra não foi para mim um
amor à primeira vista. Ao chegar a Londres, em agosto de 1938, em gozo da
primeira bolsa para Oxford, dada a um brasileiro pelo Conselho Britânico, a
cidade surpreendeu-me pela sua reserva. Senti, de fato, a poesia do grande
porto, com meu navio a penetrar lentamente o Tamisa nas luzes de uma antemanhã cinza-azul, toda povoada de
lentas asas brancas de gaivotas. Mas quando enfrentei as calçadas de Piccadilly
Circus, cerca de meu hotel, senti como se a cidade imensa estivesse se
divertindo em observar o rapaz carioca – o rapaz carioca em quem o
moleque-de-praia era “doublé” de um poeta um tanto metafísico e esotérico – em
seu primeiro contacto com a austeridade do Império Britânico. E encabulei. Eram
seis horas da tarde e havia multidões que passavam por mim sem me olhar, a
dar-me a sensação de que eu era justamente o que minha vaidade de jovem poeta
premiado não podia permitir que eu fosse: uma forma liliputiana a mais a
passear no rosto gigantesco de Gulliver, acorrentado, mas a divertir-se com a
pequenez dos seus conquistadores. Lembro-me de que, num dado momento, passou
por mim uma família hindu, vestida a caráter, os homens de turbante, as
mulheres envoltas em saris. Eu nunca
tinha visto um hindu na minha vida. Aquilo foi demais para mim. Fui refugiar-me
atras de um sherry no bar do meu
hotel, de onde só sai para dormir, às nove da noite. No quarto, sozinho, senti
um isolamento atroz, que me parecia vir da cidade infinita a trazer-me de vez
em quando, adormecidos pela distancia, os ruídos informes de sua vida noturna.
Foi só três ou quatro dias depois,
ao tentar atravessar uma rua no momento errado, que me senti realmente
protegido pelo Império Britânico, e comecei a achar que, malgrado a minha
selvageria de menino de ilha, poderia amar a Inglaterra. Ao avançar, pousou-se
sobre o meu ombro uma mão, a um tempo imperiosa e amiga que me fixou ao solo
sem maior esforço. Olhei para o lado e vi, acima, muito acima de mim, mirando
em frente, esse ser especial no mundo que se chama um guarda inglês, um constable: alto como a Torre de Londres,
firme com a rocha de Gibraltar. Quando o momento de atravessar chegou, a
pressão desfez-se do meu ombro, a mão retirou-se e eu pude partir. Dei-lhe um olhar grato, a que
ele respondeu com um outro, em que senti um frio e inteligente senso-se-humor.
Uma
semana mais tarde, numa tarde agônica,
constantemente cortada de uma chuva fina e neurastenizante, estando eu a
comprar uma entrada para o concerto de Yehudi Menuhin, vi uma filha de guarda
chuvas formada numa rua cerca do teatro. Dirigi-me para lá. Pouco depois
passava, num automóvel, um senhor, ou melhor, um guarda-chuva famoso, a agitar
na mão uma folha de papel para o povo que o aplaudia. Nesse senhor reconheci o
Primeiro Ministro Neville Chamberlain e lembrei-me de que ele voltava de
Munique. O papel em questão era o pseudo-compromisso de não declarar guerra, de
Hitler, que, apesar disso, logo em seguida incorporaria a Tchecoslovaquia ao
poderio alemão. Não dei muita importância ao fato, pois naquele tempo eu tinha
apenas 24 anos e política não era o meu forte. Mas dois dias não eram passados
e vi no rosto do homem das ruas de Londres de siso grave e olhar
preocupado. Li pela primeira vez nos seus
traços o sentimento contido da cólera e achei que, desabafada, essa cólera
deveria ser terrível.
Não me lembro mais se foi na véspera
de Munique, ou pouco antes que correu a noticia de que Londres seria
bombardeada. Eu passara o dia em casa de um conhecido e ao sair à rua, sem
saber ainda de nada, entrei no fog
mais espesso que já vi na minha vida. Encostei-me em um edifício e resolvi
esperar, e não sem um certo sentimento de estranheza no coração. Foi novamente
um constable que me tirou da
dificuldade, encaminhando-me, como um guia de cego, até um taxi; e só quando
cheguei a meu quarto, numa pensão para onde me mudara – um quarto no subsolo,
desses de onde se vê, através da janela, apenas os pés da humanidade – é que
encontrei um bilhete do British Council mandando-me seguir com urgência para
Oxford. Do céu noturno de Londres chegava-me, maciço e constante, o ronco dos
aviões de caça, à espera de qualquer eventualidade. Era a minha experiência de
guerra, mas não tive nenhum medo e resolvi desobedecer ao Conselho Britânico.
Deitei-me e fiquei à escuta daquele ruído informe, sinistro e pressago, o
ouvido atento ao silvo eventual da primeira bomba ou ao estilhaçar da primeira
explosão. Aquilo tudo era, para mim, uma grande aventura, uma grande aventura
que, misteriosamente me aproximava da Inglaterra e do seu povo. Achei dentro de
mim que seria uma covardia eu desertar, abandonar Londres às bombas alemãs, não
estar presente a sua defesa, não defende-la eu mesmo – à cidade que tinha mãos
para proteger minha vida, cuidados maternos para com a minha inexperiência. E
assim que acabei por dormir. Nunca cheguei a confessar ao Conselho Britânico a
minha indisciplina, o que faço agora, certo de que no seu fair-play, a nobre entidade a estimara mais do que estimaria uma
obediência mecânica e menos proveitosa, do ponto de vista da experiência e do coração.
Uma certa noite, depois de alguns
drinques – e possivelmente one too many
– eu cismei de subir o underground de Piccadilly Circus no sentido inverso. A
escada rolante desce a uma velocidade razoável, e tratava-se de ultrapassar
essa velocidade e atingir a plataforma superior da grande estação. Lancei-me à
prova, que até hoje não sei como consegui terminar, tal foi o esforço
empregado. Pois bem: fui formidavelmente encorajado por todos os que desciam, a
me animarem com palavras e aplausos, havendo-se formado uma verdadeira torcida
a meu favor. Não houve um só protesto contra a impertinência do estrangeiro a
perturbar a boa ordem de um serviço de utilidade publica. Esse foi meu primeiro
contato com o espirito esportivo inglês, e uma das razoes porque amei a
Inglaterra e me senti tão bem em Londres.
Depois, em Oxford, muitos outros
elementos vieram solidificar a estrutura
desse sentimento de afetividade crescente para com a Inglaterra. Lembro-me, por
exemplo, da primeira gafe que cometi à mesa de jantar, no grande hall de Magdalen College. Ignorante
ainda dos usos e costumes da Universidade, alguma coisa fiz que foi notada pela
high table, ou seja, a mesa do Deão e
dos professores do colégio – os tutors,
como são chamados - , o que me valeu receber um bilhete em latim, trazido por
um mordomo numa pequena bandeja de prata. Segundo esse bilhete, eu deveria
expiar minha gafe bebendo uma quantidade de cerveja suficiente para afogar um
recém-nascido, cuja cerveja me foi trazida num fantástico canecão, cheio até as
bordas. Vi todo mundo parar de comer e voltar-se para mim: mais de quatrocentos
estudantes em suas capas pretas. Tratava-se de beber ou morrer. Levantei-me,
tomei da enorme caneca e iniciei a prova. Até a metade foi tudo muito bem. Mas
da metade para baixo, não sei até hoje como consegui ingerir aquilo. Sentia
como se a cerveja me fosse sair pelos ouvidos, de tal modo estava locupletado.
Mas o fato de ser o primeiro brasileiro com uma bolsa do Conselho Britânico
para Oxford impôs o dever moral de não fazer feito, custasse o que custasse. E
como fui encorajado, sobretudo na parte heróica da prova, pelos meus colegas.
Quando acabei, a ovação foi geral. Dali por diante todos passaram a falar
comigo afetuosamente, e comecei a ser convidado freqüentemente para os loucos parties nos quartos dos estudantes. Aí
está Reginald Maudling, ex-aluno de Merton College, atual Ministro do Império
Britânico e companheiro querido, que não me deixa mentir.
De outra feita, um rapaz cujo nome
não me lembro, disse à mesa coisas desairosas sobre o Brasil . Disse-o mais
para implicar comigo, pois era o único estudante dos que sentavam perto de mim
que parecia não ir particularmente com meu jeito. Na saída do hall, numa escada, ainda ajuntou algo
mais, alto bastante para que eu ouvisse. Desci-lhe o braço, e não fosse a
quantidade de estudantes que se aglomeravam na escada e que o sustentaram na
queda, é possível que se tivesse machucado seriamente. Fui, muito amolado com a
história, para o meu quarto, à espera dos seus padrinhos, que ele me disse
mandaria imediatamente, a fim de que nós fossemos fight it out, nos grounds
do colégio. Embora muito brigão em menino, sempre me desagradou a violência
física, e não sei o que teria dado para ver o assunto resolvido amigavelmente.
Pois bem: os deuses da boa educação inglesa tenderam aos meus rogos. Meia hora
depois chegavam os padrinhos do rapaz, mas não para me levarem com eles. Para
conversarem, sim, com os meus padrinhos, e apresentarem desculpas em nome do
meu desafeto. Que ele reconhecia ter-se comportado mal e gostaria que eu
esquecesse o acidente.
Larguei todo o mundo e fui, correndo e emocionado, ao seu quarto,
onde nos abraçamos estreitamente. Depois disso ficamos bons camaradas, e só não
o ficamos mais, porque, no período seguinte, ele saia da Universidade. Isso
chama-se fair play: qualidade que se
pode encontrar eventualmente em indivíduos, mas nunca tão universalmente como
na Inglaterra.
Não foi exatamente fácil para mim a
vida em Oxford. Estranhei de inicio, a
quase total liberdade dada aos estudantes de trabalhar, numa espécie de desafio
ao seu senso de responsabilidade. Meu inglês, apesar de o haver eu capinado
duramente antes de sair do “Brasil, estava longe de ser perfeito, e tive de
enfrentar um período preliminar de anglo-saxão, em cima do “Beowulf” e outros
textos arcaicos da literatura inglesa. Chegava, uma vez por semana ao quarto de
meu tutor em total desalento. Ele me encorajava. Que não desanimasse, era assim
mesmo, logo me habituaria. Paralelamente, frequentava o curso de Poesia do
Professor Fox, e devorava os livros que constituíam meu dever semanal. Mas
atrapalhava-me muito o estado altamente lírico em que o ambiente universitário
me deixava, agudizado ainda mais pela leitura, por minha conta, dos poetas
modernos. À noite, em meu estúdio, pegava o violão, que tanto encantava minha landlady Miss Mourdaunt, e me deixava
estar cogitando versos, sonhando a forma nova de minha poesia, que deveria
realmente revelar-se a partir daí. Depois murava-me contra a poltrona, com uma
tábua de escrever, e fazia versos sem parar. Quando me faltava o espirito,
traduzia literalmente os sonetos de Shakespeare, que procurava depois recriar
em português. Vivia às voltas com o dicionário de Oxford. Sabia que ali no meu
colégio, tinha estudado Shelley, um poeta grandemente amado. Tudo isso me
perturbava muito. Às vezes saia à noite, pelas vielas internas, para um passeio
a coberto dos proctors, os guardiães
da Universidade, que volta e meia passavam, nos seus bowler-hats, à cata de estudantes noctívagos. Sofria da beleza
daqueles muros ilustres, daquela pedra patinada por séculos de cultura, como o
exsudar dentro da noite o calor de sua sábia austeridade.
Foi talvez o período mais fecundo de
minha vida de poeta. O verso, a principio timidamente, foi-se afirmando numa
forma cada vez mais enxuta e clara, como um anseio muito maior de comunicação.
O soneto, principalmente, começou a impor-se a determinados temas com uma
prestança nunca experimentada. Dois terços de meu livro Poemas, Sonetos e Baladas foram escritos em Oxford, a bem dizer nos
primeiros seis meses universitários.
Houve outros sofrimentos também,
tirante os da vida puramente escolar. O caso é que, no Brasil, eu tinha remado,
cerca de um ano no Clube de Regatas do Flamengo, sobe os palavrões de
ensinamento de um palamenta[1]
famoso como “Engole-Garfo”, que fizera num iole-a-dois[2]
o raid Montevidéu-Rio de Janeiro.
Tratava-se de um ambiente da mais total boçalidade, mas eu saíra do Clube sob a
impressão de que era um remador. Assim é que, quando me perguntaram que
esportes queria praticar, disse imediatamente: remos e boxe. Quem sabe não
chegaria a disputar um dia um campeonato intercolegial...
Comprei
calções extraordinários, camisas de lã fabulosas e lá fui através de Christ
Church Meadows, para a barcaça de Magdalen College, ancorada à margem do Isis,
que é o nome universitário do Tamisa em sua tranqüila passagem por Oxford. O
instrutor pôs-me num esquife e, de sua bicicleta, à margem, ordenou-me com um
alto-falante manual que desse umas poucas voltas pelo rio, que era para julgar
de minhas possibilidades. O resultado é que eu, o remador do ‘flamengo, tive
que remar quinze dias a seco, num esquife especial colocado em terra, para
reaprender tudo de novo. Desde a posição das mãos nos remos ate o tempo das
remadas estava tudo errado. Fiquei meio humilhado, mas embora nunca tivesse a
honra de remar pelo meu colégio, nem por isso deixaram de me colocar numa
guarnição que nas frias manhas de Oxford, remava como um só homem, antes da
ducha quente na barcaça de Magdalen College.
Com o boxe a experiência foi mais
dolorosa ainda. Comprei luvas de seis onças, calções de primeira qualidade,
sapatos apropriados, e ingressei na Academia da Universidade. Tive um mês de
instrução, aprendendo o a-b-c do boxeador, e fazendo muita corda e muito saco
de areia para endurecer a fibra. Depois passei para a punching ball e, de vez em quando, fazia um ou dois rounds com o
meu instrutor. Mas meu instrutor era um santo, e nunca me acertava à vera. Uma
bela tarde, chego à Academia e ele me anuncia ter destacado um aluno mais
antigo para me experimentar. Fui para o ringue e não pude deixar de sorrir ante
o físico do meu adversário. Tratava-se de um magriço, um rapazinho de minha
altura mas muito menos sólido que eu, com as costelas à mostra e uns bracinhos
finos, que as luvas pareciam engolir. Resultado, não o acertei uma só vez, e
ele encaixou tantos que, no fim do terceiro round, completamente grogue e presa
dessa horrível angustia da impotência diante da competência, fui dado como
incapaz de continuar a luta. Confesso que não voltei à Academia nem sequer para
buscar os meus apetrechos, que tinha deixado lá.
Tudo isso, embora não desse ao mundo
nenhum grande desportista, não deixou de incutir no primeiro bolsista
brasileiro para Oxford um senso de esportividade. Torci muito pela minha
universidade, nas grandes regatas contra Cambridge, que, ai de mim, perdemos
nesse ano.
E o que não dizer de minha grande
divida à poesia inglesa, de que já falei atrás, mas sobre o que quero voltar.
Que não dizer do que devo a esses poetas todos que, desde Chaucer, desde os
anônimos elizabetanos, comecei a ler e amar, e que tanto me deram nos duros
caminhos da poesia... O que não dizer da imensa divida à Shakespeare, para mim
o maior dos poetas da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no
texto dos Sonetos, sobre que teria feito a minha tese, não houvesse a guerra,
que me apanhou em férias na França, impedido a minha volta à Universidade. O
que não dizer das noites do terrível inverno de 1938, passadas no meu estúdio
de High Street, em companhia de Milton, Dreyden, Blake, Eliot; das noites de
releitura de tantos clássicos da meninice: Robinson
Crusoé, Ivanhoe, Alice in Wonderland e o conhecimento de clássicos novos: Pilgrim’s Progress, Pride and Prejudice,
Wuthering Heights, The Forsyte, Saga, Jude, The Obscure e tantos outros – o
romance inglês a me oferecer um novo panorama da vida e da paixão dos homens e
mulheres da Inglaterra.
Eis por que amo a Inglaterra, e eis
por que sua lembrança ficou em mim, todo esse tempo, viva e exata com a de
nenhum outro pais jamais visitado e conhecido. Ao voltar a Londres depois de 16
anos, como me foi doce reconhecer ruas percorridas, rever edifícios familiares,
olhar os doces telhados de Chelsea, onde morei, em King’s Road, e que me sugeriram
o canto bilíngue de minha “Quinta Elegia”... E à BBC, onde trabalhei durante as
grandes ferias de verão de 1938, nos primeiros programas para o Brasil, pude
dizer com emoção: já fostes a minha casa. Pois foi em casa que me senti nela e
em Londres; como, de resto, em toda aquela bela e grande ilha, ao mesmo tempo
apaixonada e discreta, cordial e austera, pátria de poetas como não se viu
maiores, na longa luta do mundo para realizar-se em tranquilidade e poesia.
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