Rubens A. Barbosa (organizador):
Mercosul quinze
anos
(São Paulo: Fundação Memorial da América Latina-Imprensa
Oficial do Estado, 2007, 304 p.)
Em março de 2007, fui convidado para participar, no Memorial da América Latina, do seminário de lançamento do livro acima indicado (de cuja segunda edição eu vim a participar), ocasião na qual também se "comemorou" os 15 anos do Mercosul, então um "aborrecente" que não parecia encontrar o caminho da superação de seus problemas correntes.
Apresentei no seminário um conjunto de “teses” em torno das dificuldades do Mercosul, acompanhadas de propostas para seu reenquadramento no mainstream da integração, sob a forma de um PowerPoint, sob o título de “O Mercosul e suas sete encruzilhadas”; depois do seminário, o texto foi reelaborado e publicado no site gaúcho Via Política (22.04.2007), atualmente indisponível na internet; por essa razão, reproduzo a seguir o texto em questão.
Sete teses
impertinentes sobre o Mercosul
Paulo Roberto de
Almeida
O estado atual do Mercosul pode ser interpretado de maneira muito diversa
pelos observadores interessados nesse processo de integração. Eles terão,
segundo os casos, uma interpretação mais ou menos otimista quanto ao seu
desenvolvimento político no período recente e serão mais ou menos realistas
quanto às suas perspectivas evolutivas, no atual contexto da integração
sul-americana, dependendo da interação pessoal com esse processo. Aqueles
responsáveis por sua condução tenderão a enfatizar o muito que se fez nos
últimos anos para reforçar suas estruturas diretivas, para diversificar o
escopo e ampliar a cobertura da integração e para expandir sua influência na
região, ou, na pior das hipóteses, para evitar o prolongamento de uma crise que
parece ter começado em 1999. Os observadores mais críticos desse processo
poderão retrucar quanto ao não cumprimento dos principais objetivos fixados
originalmente e reafirmados de maneira recorrente nos anos que se seguiram, sem
que os obstáculos ao pleno funcionamento da zona de livre-comércio ou à plena
vigência da união aduaneira tenham de fato sido superados. Eles também saberão
reconhecer a preservação do esquema integracionista, ainda que possam discordar
quanto à utilidade das medidas adotadas para tal efeito.
Independentemente de qualquer julgamento sobre se as características atuais
do Mercosul resultaram de “acidentes de percurso” ou se elas derivaram, ao
contrário, de escolhas conscientes feitas pelos atuais dirigentes políticos,
vou tentar formular algumas “teses” sobre esse processo, oferecendo, ao final,
algumas propostas tendentes a superar algumas de suas atuais dificuldades. Cabe
registrar que, a despeito de um julgamento otimista ou pessimista que se faça
da situação atual do Mercosul, não há como recusar o fato de que esse processo
atravessa dificuldades notórias, superáveis ou não em função da avaliação que
se possa fazer quanto à natureza ou a origem desses males e sobre os “remédios”
aplicados ao caso.
1. Desvio de rota e
mudança de substância
O Mercosul desviou-se, ou foi desviado, de seus objetivos fundamentais,
que eram os da liberalização comercial e da integração econômica, e
converteu-se – ou foi levado a converter-se – num esquema fragmentado de
iniciativas setoriais, nos campos político, social, cultural, ou outros, não
coordenados e desconectados entre si.
2. Introversão
O Mercosul deixou de ser uma ferramenta facilitadora, ou um meio, para
atingir determinadas finalidades, que na origem eram as da modernização
produtiva dos países membros e sua inserção econômica internacional, e
tornou-se um fim em si mesmo, como se a forma devesse necessariamente
determinar o conteúdo. Com essa nova orientação “hacia adentro”, a integração
vem sendo perseguida pela própria integração, não como um veículo condutor ou
uma alavanca para a consecução de objetivos economicamente racionais. Seria
como se a preocupação “estética” tomasse a dianteira sobre o funcionamento
efetivo do esquema.
3. Fuga para frente
Em face de dificuldades reais, nos capítulos mais relevantes do processo
integracionista, o Mercosul foi levado a efetuar uma verdadeira fuite en avant, atitude que se desdobra
num número cada vez maior de iniciativas para compensar as tarefas não
cumpridas de sua agenda corrente. A criação de novos órgãos, todos meramente
acessórios ou simplesmente “redistribuidores”, confirma essa tendência, que não
levará necessariamente a maior coesão e coerência em relação aos objetivos
fundamentais.
4. Expansão arriscada
O Mercosul foi levado a expandir de maneira talvez impensada, em todo
caso de modo pouco condizente com os seus requerimentos intrínsecos, previstos
no tratado de Assunção e nas decisões já adotadas, em termos de Tarifa Externa
Comum, regras de origem, defesa da concorrência etc. Decisões políticas de
incorporação, sem atenção aos elementos constitutivos da união aduaneira,
fragilizam o edifício original e tornam mais difícil o consenso interno para
negociações externas.
5. Mimetismo indevido
e foco em supostas assimetrias
O Mercosul foi levado a mimetizar formas de cooperação baseados em outras
experiências integracionistas, no caso a européia, como se ele devesse, sem
dispor dos mesmos instrumentos institucionais de compensação de desequilíbrios,
dar início a um programa completo de correção de supostas “assimetrias
estruturais”, à custa de transferência de recursos de alguns países a outros.
Concretamente, o único país que pode ser considerado “não assimétrico” seria o
Brasil – que, na verdade, possui muito mais assimetrias internas, regionais e
sociais, do que todos os demais –, ou então ele é o assimétrico absoluto, portanto
encarregado de redimir os males existentes.
6. Exceções
protecionistas desfiguram o Mercosul, sem reforçá-lo
O Mercosul foi levado a aceitar a introdução, ainda que parcial, de
restrições comerciais que de fato fragilizam o edifício integracionista, em
lugar de fortalecê-lo, como parece ser a intenção, restrições que são, no
mínimo, abusivas, quando não ilegais, seja do ponto de vista do próprio
Mercosul, seja do ponto de vista do GATT.
7. Ênfase na
superestrutura e carência de implementação infraestrutural
O Mercosul padece de excessos superestruturais, isto é, uma ênfase
exagerada no “cupulismo” e nas decisões políticas em torno de iniciativas em
geral mais retóricas do que substantivas, em detrimento da implementação de
medidas de caráter “infraestrutural”, que tendam a valorizar o trabalho das
burocracias nacionais ou da própria secretaria técnica.
Em face dessas características, quais poderiam ser as soluções aos
problemas apontados? Simetricamente, podem ser apontadas as seguintes orientações
em relação a cada uma das teses.
1. Retomada da rota
original e confirmação da substância
Caberia voltar aos propósitos originais do Mercosul, ou seja, retornar ao
mainstream da integração, resgatando
os objetivos da liberalização comercial e da conformação plena da união
aduaneira. Proclamar objetivos sociais, políticos ou culturais, em substituição
ao fortalecimento das bases efetivas do Mercosul, redunda necessariamente na
erosão dos seus fundamentos.
2. Extroversão
econômica e competição internacional
O Mercosul foi pensado como um instrumento facilitador e promotor da
inserção internacional dos países membros. Os mercados a serem perseguidos são
antes externos do que os recíprocos.
3. Concentrar-se no
básico
No longo processo europeu sempre existiu a preocupação de que, a despeito
de dificuldades eventuais, deveria ser garantido o chamado acquis communautaire, ou seja, o núcleo central de normas que regem
o processo. Isto implica fazer o dever de casa, isto é, empreender as reformas
necessárias para que as regras constitutivas do processo sejam preservadas e
reforçadas. Desvios ou tratamentos excepcionais podem ser aceitos apenas no que
se refere à aplicação delongada das próprias normas, não na alteração de seu
sentido original.
4. Expansão medida
O princípio de base deveria ser “aberto ma non troppo”, ou seja, novos sócios devem submeter-se aos
estatutos vigentes, não pretender alterar o funcionamento do clube. A simpatia
não pode ser um substituto para a seriedade no engajamento formal do respeito
às normas. Um entendimento claro quanto aos propósitos definidos e quanto aos
objetivos fundamentais é a primeira das condições para que novas incorporações
sejam decididas.
5. Assimetrias
constituem a própria base do comércio internacional
Não há, na história do comércio exterior, doutrinas que enfatizem a
necessidade de eliminação forçada das especializações competitivas baseadas em
dotações naturais ou adquiridas. Ao contrário, vantagens ricardianas sempre
funcionaram, em quaisquer latitudes e longitudes e constituem fonte de ganhos
líquidos para todas as partes. Verdades simples como esta podem servir para
avaliar os programas de “correção” de assimetrias, cujos efeitos podem ser mais
danosos do que benéficos. Reconversão deve significar adaptação aos novos
requerimentos, não equalização de condições.
6. Excesso de
exceções levam à criação de novas e “urgentes” exceções
Não ceder ao protecionismo setorial deveria ser uma regra básica dos
decisores. Caso se ceda à tentação protecionista, todos os demais setores vão
se julgar habilitados e demandar resguardo em algum momento da trajetória
competitiva. Não custa lembrar, tampouco, que salvaguardas sempre devem ser não
discriminatórias, por princípio.
7. Ênfase na
infraestrutura, retórica moderada na superestrutura
Consoante uma velha fábula, sistemas econômicos organizados e funcionais
requerem um pouco mais de formigas (isto é, empresários, trabalhadores e até
mesmo burocratas), para a preservação dos equilíbrios fundamentais. As cigarras
podem ajudar a enriquecer a harmonia do conjunto, mas nem sempre contribuem com
os estímulos adequados.
Verdades simples como estas podem ajudar a clarificar o debate.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 14 de março
de 2007
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