Isaac e Isaiah
Mario Vargas Llosa
O Estado de S.Paulo, 30/11/2013
Num livro que acaba de publicar, Isaac &
Isaiah: The Cover Punishment of a Cold War Heretic, ("Isaac e Isaiah: a
punição oculta de um herege da Guerra Fria", em tradução livre), David
Caute compara as vidas, ideias e destinos de Isaac Deutscher e Isaiah Berlin,
dois ensaístas que, nos anos 50 e 60 do século passado, tiveram muito prestígio
e influenciaram muitos intelectuais da Europa e da América do Norte. Eles eram
muito semelhantes em vários aspectos, mas suas ideias representavam dois polos
irreconciliáveis: Deutscher, o marxismo revolucionário; Berlin, a democracia
liberal.
Ambos eram judeus não praticantes, da mesma
geração, e precisaram fugir dos seus respectivos países em razão do totalitarismo
(soviético no caso de Berlin, nascido na Letônia; e Deutscher, que era polonês,
do nazismo). Ambos acabaram se exilando em Londres e se naturalizaram
britânicos. A única coincidência, em termos de ideologia, entre eles, e só por
alguns anos, foi seu apoio ao sionismo, que mais tarde Deutscher atacou
duramente, chamando Israel de lacaio do imperialismo americano durante a Guerra
Fria.
Berlin foi muito reconhecido no âmbito acadêmico.
Passou quase toda a sua vida em Oxford, chegou a presidir a Royal Academy e ser
condecorado pela rainha. Ao passo que Deutscher, apesar de ter participado de
seminários e trabalhado como professor convidado em importantes universidades,
foi sobretudo jornalista e um escritor independente.
Seu único desejo, ser contratado por uma
universidade britânica, de Sussex, foi frustrado por culpa de Berlin, afirma o
autor, e daí o subtítulo um tanto enganador do livro: "A punição oculta a
um herege da Guerra Fria". Enganador porque, embora haja indícios de que a
opinião hostil de Berlin sobre a obra e a posição política de Deutscher influiu
na decisão da Universidade de Sussex de não contratá-lo, o caso não está nada
claro. E, de qualquer modo, Berlin sempre rejeitou a acusação, inclusive em
duas cartas explicando sua intervenção no caso à viúva do autor das célebres
biografias de Stalin e de Trotsky.
O livro é interessante, muito documentado, mas não
é agradável, diante da antipatia que Caute nutre por Berlin, sentimento que
transparece com frequência, sobretudo quando se empenha em ressaltar suas
frivolidades, sua tendência a cultivar a amizade dos poderosos e dos
milionários, e a mostrar-se, às vezes, presunçoso e arrogante com as pessoas. E
ainda, o que é muito mais grave, dando a entender, de maneira sub-reptícia, que
algumas das maiores contribuições de Berlin à cultura da liberdade, como sua
teoria sobre a liberdade "negativa" e a "positiva", a
divisão dos intelectuais em "ouriços" e "raposas" e a clara
demarcação entre um liberal e um conservador, não foram nem originais nem importantes.
A verdade é outra: Berlin é um dos mais importantes
pensadores políticos do nosso tempo e um dos poucos cuja obra define com uma
coerência sistemática e perfeita o liberalismo limitado e sectário dos que o
entendem como sendo uma doutrina exclusivamente econômica de defesa do mercado,
e os que, como ele próprio, veem no liberalismo uma doutrina em que a
tolerância, a coexistência política, os direitos humanos, o espírito crítico, a
cultura e a fiscalização do poder são tão importantes quanto a propriedade
privada e a economia de mercado para estimular o progresso social.
Isaiah Berlin e Isaac Deutscher viram-se apenas
duas vezes na vida e nunca se enfrentaram diretamente. Mas, como diz o autor,
as coisas que defendiam e criticavam eram quase sempre incompatíveis e, ao
mesmo tempo, de grande solidez intelectual e elegância expositiva. No decorrer
dos anos e diante de tudo o que ocorreu na vida deles, sabemos que o debate foi
vencido por Berlin, como prova o desaparecimento da União Soviética e a conversão
da China ao capitalismo autoritário.
Agora, o fato de todas as profecias e anseios
políticos de Deutscher terem malogrado não desvaloriza sua obra nem diminui o
mérito, a coragem e a honestidade com que sempre defendeu suas ideias. Ele foi
um marxista contrário ao totalitarismo, uma exceção. Foi a razão pela qual o
Partido Comunista polonês o expulsou das suas fileiras e porque sempre foi o
pesadelo dos stalinistas da União Soviética e do Ocidente.
Nunca negou os terríveis crimes cometidos à época de
Stalin e, nos livros e ensaios que dedicou ao ditador soviético e a Trotsky,
ele os documentou rigorosamente. No entanto, estava convencido de que, apesar
de tudo, o comunismo se reformaria no curto ou no longo prazo e um retorno às
fontes primitivas do marxismo criaria sociedades mais justas, mais humanas,
mais decentes do que o capitalismo, cujo êxito exigia a exploração da maioria
pela minoria e era inerentemente injusto, por isso, condenado, cedo ou tarde, a
perecer. A famosa reforma interna da União Soviética, pela qual Deutscher tanto
esperou, jamais tornou-se realidade. Afinal, foi o comunismo que deixou de
existir, pelo menos como uma alternativa concreta às democracias liberais.
Mas, em sua condenação ao colonialismo, à corrupção
e aos abusos que o poder econômico podia chegar a cometer nos países
capitalistas, na ênfase na necessidade de não condicionar o progresso
exclusivamente ao crescimento econômico, conferir à democracia um conteúdo
criativo e constantemente renovado por um ideal de justiça e solidariedade com
os pobres, os discriminados, os marginalizados, as ideias de Deutscher têm
valor perene.
E é verdade também, afirma Caute, que sua vida foi
um modelo de coerência, o que lhe exigiu sacrifícios enormes. Mas também se
equivocou muitas vezes. Por exemplo, acreditou que o movimento contra a guerra
do Vietnã, nos EUA, seria a gestação de um socialismo que uniria os estudantes
e os trabalhadores americanos numa revolução contra o capitalismo.
Por que Berlin sempre manifestou uma antipatia tão
profunda com relação a Deutscher a ponto de, em sua correspondência, usar
contra ele termos tão insólitos como "repelente" e
"desprezível"? Certamente, não era a divergência de ideias que os
separava. Berlin dedicou mais tempo tentando entender os inimigos da liberdade
do que seus defensores e consagrou ensaios escrupulosamente honestos a Marx,
Comte, Herder, Hobbes e Sorel, e muitos outros dessa corrente.
Assim, a razão da antipatia não era ideológica. E
também não era pessoal, pois eles apenas se viram em duas ocasiões. O autor do
livro dá a entender que a razão poderia estar numa crítica negativa escrita por
Deutscher contra o ensaio de Berlin sobre a "inevitabilidade
histórica". No entanto, esse parece um episódio muito pequeno para
despertar tanto ódio pessoal.
Não menos surpreendente é o desprezo que Berlin
manifestou sempre por Hannah Arendt, uma amante da liberdade não menos
comprometida do que ele na luta contra o comunismo e o fascismo (que conheceu
na carne, pois foi torturada durante nove dias e nove noites pela Gestapo antes
de conseguir fugir da Alemanha) e quase toda a sua obra é dedicada a estudar as
raízes do totalitarismo, suas origens culturais e históricas e as iniquidades
que causou. Em suas cartas, Berlin refere-se a ela de uma maneira profundamente
depreciativa, negando-lhe competência filosófica e acusando-a, injustamente, de
escrever calhamaços incompreensíveis.
Talvez não haja respostas para essas
perguntas. Ou talvez sim, mas não são satisfatórias em razão de sua imprecisão.
Os grandes nomes - e Isaiah é um deles - são também seres humanos e não
super-homens e, por isso, sujeitos às pequenezes e misérias que, por exemplo,
nos deixam consternados quando revolvemos a vida íntima de um Picasso, um
Victor Hugo ou qualquer outro gênio. Eram grandes quando escreviam, compunham,
filosofavam ou pintavam. Entretanto, quanto ao resto, eram feitos do mesmo
barro que nós, pobres mortais.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
* É ESCRITOR E PRÊMIO NOBEL DE
LITERATURA
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