domingo, 5 de janeiro de 2014

Teoria do capital bibliográfico - Paulo Roberto de Almeida

Um texto antigo, mas sobre o qual "escorreguei", literalmente (revisando antigas listas de trabalhos, para colocar em ordem alguns extraviados), mas que ainda possui seu valor metodológico, uma vez que não mudei, fundamentalmente, de procedimentos, salvo agregar mais leituras online e em aparelhos eletrônicos.
Paulo Roberto de Almeida

Teoria do capital bibliográfico
Teses marxianas sobre relações de leitura e modo de redação

Paulo Roberto de Almeida

Arriscando-me a decepcionar alguns amigos – que por vezes me advertem que eu acabo escrevendo mais rápido do que eles conseguem ler minha produção – confesso que não tenho nenhuma receita particular sobre como e o quê fazer para ler bastante, digerir o máximo de informação possível e depois destilar esses insumos acumulados no conta-gotas da produção ensaística de pequeno porte ou no torrencial mais forte da elaboração livresca. Ou talvez eu tenha, sim, mas não sei se isso conforma um método muito efetivo ou aplicável em outros casos de atração pelos livros e pela arte da “escrevinhação”. Vejamos em todo caso o meu “modo peculiar de produção”.
No começo era a acumulação primitiva, como diria Marx, no meu caso uma carga concentrada de leituras estendendo-se ao longo de uma vida feita com os livros, pelos livros e para os livros. Depois da acumulação primitiva de leituras, veio a aplicação consciente de um modo de produção redacional que já passou por várias etapas históricas de desenvolvimento das forças produtivas: da redação manual em cadernos escolares até o capital fixo dos computadores e sistemas digitais de processamento de dados. As relações sociais de produção de meus artigos e livros foram alterando-se desde o ancien régime da máquina de escrever até o ultra-capitalismo informático, com o emprego das mais diversas técnicas, mas inevitavelmente resultando na mais-valia das resenhas críticas, dos ensaios analíticos e do alto valor agregado dos livros e compilações de trabalhos diversos. Tudo com um certo sentido de urgência e uma ponta de sentimento de atraso histórico, já que tenho sempre a impressão que estou atrasado na elaboração de algum trabalho planejado mentalmente ou iniciado algum tempo atrás.
Um primeiro método, mas talvez isso seja um vício, ou (numa versão mais amena) um pecado original, se situa na compulsão da leitura, no meu caso adquirida ainda antes de aprender a ler de verdade. Com efeito, frequento bibliotecas desde minha fase pré-alfabetizada e continuo a entreter esta atração fatal – a gentle madness, já disse um cultor passional de livros – por livrarias e bibliotecas em quaisquer circunstâncias, mesmo desconhecendo, em alguns casos longínquos, a língua em que estavam escritos aqueles obscuros objetos de desejo. Difícil ficar indiferente ao charme discreto dos livros.
A outra técnica consiste em ler sempre, continuamente, em qualquer tempo e lugar, sob chuva ou sob sol (literalmente), no inverno e no verão, andando ou dirigindo – o que não recomendo, sinceramente, pois que já bati, levemente, no parachoque adiante –, comendo ou bebendo e até, se possível, tomando banho (mas os únicos livros impermeáveis que conheço são feitos para bebês). Os audio-books poderiam suprir algumas dessas lacunas de leitura, mas ainda não encontrei Economia e Sociedade de Weber em formato cassette. É uma técnica provada e eficaz, mas ela pode trazer alguns problemas em contextos intensamente relacionais – familiares, por exemplo – ou mesmo na intimidade do casal: os cônjuges geralmente se irritam com o terceiro ou quarto “han-han, hum-hum” repetido. Para a santa paz do casal, recomendo uma companhia também livresca, bibliófila e leitora contumaz, mas a conjugação dos horários de dedicação compulsiva depende da capacidade de resistência do outro leitor voraz mas sonolento.
Trata-se apenas, como visto até aqui, das condições primárias e essenciais ao modo escrevinhador de produção, pois em algum momento se necessita transmutar – aufheben, diriam os hegelianos – a acumulação primitiva de leitura em mercadorias com valor de uso e, mais importante, valor de troca. Antes do produto final, vêm os meios de produção, tão ou mais importantes do que o capital inicial.
Borracha e lápis podem ser a base de tudo, mas ainda assim é preciso o suporte físico das idéias, a modesta folha de papel. Nos tempos da brilhantina, quando o computador fazia parte dos livros e filmes de ficção científica, um simples caderno escolar, desses de espiral, costumava dar conta do recado, mas eu sempre apreciei aqueles em formato brochura, suscetíveis de receber uma capa anódina e, providência prática, uma lombada com o tema indicativo de seu conteúdo (sociologia, história, antropologia, marxismo etc). Para as situações transitórias e incertas, ou seja deslocamentos e esperas repentinas, eu recomendo um caderninho de bolso, desses que você saca da “algibeira” (como diria Machado de Assis) para anotar rapidamente alguma nova idéia maluca ou o título de um livro encontrado por acaso. Em toda e qualquer circunstância, porém, eu costumo carregar um desses caderninhos, que saco do bolso da camisa quando me dedico ao meu esporte regular e preferido, a leitura em livrarias…
Adquirida a matéria-prima da informação, ainda assim é preciso dar uma forma precisa ao produto da manufatura, obra do cérebro e da inspiração mental – e de alguma transpiração física, também –, uma vez que a mais valia final é sempre o feliz resultado da conjugação de algum tipo de insumo bruto e da atividade humana criadora. Tenho por hábito isolar um determinado problema e ficar pensando nele no trajeto para o trabalho ou de volta para casa, selecionando hipóteses, teses e antíteses, que depois serão combinadas numa síntese final mais ou menos acabada. Digo “mais ou menos”, porque mantenho dezenas, se não centenas, de trabalhos inacabados, de artigos semi-acabados e de projeto de livros, antes em simples notas em folhas de papel (jogadas em alguma pasta amarelada pelo tempo), hoje em arquivos digitais, dúzias e dúzias de “working files” que esperam acabamento algum dia. Isso não tem nenhuma importância, pois o que vale é unir o capital acumulado com a centelha – iskra, para os bolcheviques – da interpretação criadora, de molde a extrair a mercadoria valiosa do trabalho materializado.
O trabalho propriamente ideológico da produção intelectual é o que mais consome energia, impossível, todavia, de ser mensurada na escala monetária do capital circulante, pois que pertencente ao reino dos bens intangíveis e das criações do espírito. Muito fosfato, como diziam antigamente nossas avós, é consumido nessa atividade muito pouco primitiva de agregação de valor ao futuro objeto manufaturado (ele sempre o é, mesmo quando resultando da produção digital). A mais valia intelectual é sempre única e original e independe do estado de desenvolvimento das forças produtivas ou das relações sociais de produção; num certo sentido, trata-se de uma atividade transhistórica ou ahistórica, sem qualquer alusão a começo, meio ou fim (pouco adaptável a uma teoria materialista da história).
Conjugadas, de um lado, as técnicas e os materiais de produção (insumos e bens de capital) e, de outro, a mais valia intelectual, eis que surge como da cabeça de Minerva o produto final desse processo produtivo, pronto para ser consumido em sua forma inicial ou transformada (artigo ocasional, livro comercializado por algum capitalista editorial, que ainda vai auferir a maior parte dos lucros da operação, ficando o verdadeiro autor apenas com as glórias remuneradoras tão somente do ego e do espírito). Se o autor, como no meu caso, possui seu próprio canal de distribuição artesanal (neste caso o meu website www.pralmeida.org), ele escapa de transferir renda para o referido capitalista. Se no entanto pretende alcançar o circuito tradicional das livrarias pequeno-burguesas, tem de submeter-se a ser expropriado de parte (uma boa parte) de seus rendimentos pelo editor-capitalista, numa típica situação de “exploração do homem pelo homem”. Ele também pode participar de alguma cooperativa de produção, caso no qual terá de submeter-se às regras do coletivo popular, mas pode preferir um sistema auto-gestionário mais restrito, geralmente explorando a mão-de-obra de amigos e familiares (trabalho não pago).
No meu próprio caso, a maior parte de minha produção não é mercantilizada, podendo mesmo ser objeto de apropriações indevidas por parte de estudantes preguiçosos que se eximem de fazer pesquisa e vêm pilhar minha mais valia intelectual num processo de incorporação anárquica que parte do princípio de que “a propriedade é um roubo”. Trata-se de uma “filosofia miserável”, como poderia afirmar Monsieur Proudhon, ao que os adeptos do marxismo lassaliano poderiam retrucar: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo sua necessidade”.
Muito bonito na teoria, mas pouco eficiente na prática, pois a continuidade dessa apropriação de bens de uso (e de troca) sem a garantia do devido retorno dos direitos de propriedade intelectual pode resultar no esgotamento do processo produtivo associado a essa organização social, gerando esclerose e declínio, como ocorreu aliás na trajetória dos socialismos realmente existentes ao longo do século XX.
Quanto aos autores, como eu mesmo, que poderiam viver de seu trabalho intelectual mas dele não derivam sustento para si mesmo e suas famílias, fora de uma relação de assalariamento quase servil, eles só têm um caminho a adotar: grilhões precisam ser rompidos no esforço contínuo de liberação do homem e de sua capacidade espiritual. Eles serão rompidos, pois não há mais nada a perder. Autores de todo o mundo, uní-vos na defesa de vossos direitos. Viva o pensamento livre e sobretudo sua expressão material.

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 13 de junho de 2003

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