Como os censores são subordinados submissos, e não querem parecer distraídos, desatentos, ou complacentes com as vítimas, eles sempre acabam cortando bem mais do que pretendiam os seus chefes, os gorilas no poder.
Daí cortarem notícias anódinas, que vistas no contexto são sumamente ridículas.
Toda censura é burra, estúpida, uma ofensa à inteligência dos cidadãos.
Tem muito companheiro por aí que adoraria censurar notícias sobre suas patifarias e crimes.
Paulo Roberto de Almeida
O Estado de S Paulo trouxe em sua edição de 10 de outubro de 1972, inusitadamente, a seção carta ao editor em sua primeira página. O Jornal da Tarde optou por sair com um espaço em branco na capa. O recado ao leitor fora evidente: o material escolhido fora censurado. Tratava-se de reportagem sobre o discurso do então diretor responsável do Estado, Júlio Mesquita Neto, contra a censura aplicada pelo governo militar brasileiro.
O palco das críticas do “doutor Julio Neto” fora um encontro da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), em Santiago, Chile. Quase quarenta anos depois, a instituição prossegue na tarefa de condenar e desmontar os sistemas de restrição à liberdade de expressão vigentes nos vizinhos do Brasil na América Latina.
O relato sobre esse caso específico de censura ao Estado e ao JT consta da correspondência diplomática (telegrama) 497 do Consulado dos Estados Unidos em São Paulo daquele mesmo dia. O documento explica ter o Estado enfatizado a mensagem sobre a censura sofrida, em sua segunda edição, ao publicar uma fotografia de Júlio Mesquita Neto no espaço. “Os censores disseram também a outros jornais de São Paulo que a publicação de relatórios da SIP sobre a censura no Brasil está proibida”, completou o telegrama.
Em pesquisa no Arquivo Nacional dos Estados Unidos, o Estado encontrou outros três documentos diretamente relacionados à resistência dos jornais paulistas e de seus responsáveis à restrição da liberdade de imprensa e à proibição do debate e da crítica sobre temas considerados sensíveis pelo governo militar. O telegrama de outubro de 1972 encontrado no arquivo está incompleto. Parte de seu conteúdo continua submetido às regras americanas de confidencialidade. Apenas a primeira página foi liberada à consulta pública 40 anos depois, em 30 de julho de 2012.
Os telegramas cobrem um período de relativa instabilidade política, em meados do mandato presidencial do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). Com o aparato de repressão e de restrição às liberdades civis sustentado pelo AI-5 (Ato Institucional Número 5, de 1968) e pela ação das forças de segurança, o governo havia ampliado o escopo dos temas sob censura. A candidatura do general Ernesto Geisel, então presidente da Petrobrás, havia sido lançada pela Arena, o partido oficial, à revelia de Médici. O então presidente pretendia manter-se por mais tempo no poder.
Os quatro textos encontrados no Arquivo Nacional não chegam a informar o grau de censura aplicada pelo governo militar sobre o Estado e o JT. Desde 12 de dezembro de 1968, a véspera da edição do AI-5, ambos sofrera censura prévia. Toda a edição do dia 13 fora apreendida por decisão do general Sílvio Correia de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo. Andrade não gostara do editorial “Instituição em Frangalhos”, escrito por Júlio Mesquita Filho.
“Façam as reportagens e escrevam; os censores que cortem”, fora a orientação dos Mesquitas aos jornalistas da casa. Por sugestão do redator Antônio Carvalho Mendes, versos de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, passaram a ser publicados no lugar do material censurado. O JT preferiu preencher os espaços com receitas culinárias.
Camões apareceu no Estado 655 vezes e, entre 29 de março de 1973 e 3 de janeiro de 1975, 1.136 textos do jornal foram cortados, segundo reportagem de José Maria Mayrink. Repórteres dos dois jornais foram perseguidos e intimidados. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974. Um ano e meio depois, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, passou pela mesma experiência.
Apenas em 3 de janeiro de 1975, na véspera do centenário do Estado, a censura foi oficialmente eliminada, em cumprimento de promessa eleitoral do general Geisel (1974-1979). Mas, na prática, os censores continuaram seu trabalho na redação, e as restrições só acabaram com o fim da vigência do AI-5, em dezembro de 1978.
Uganda. Em 20 de setembro de 1972, a Embaixada dos EUA em Brasília enviou ao Departamento de Estado o telegrama 835, com detalhes sobre a expansão da censura no momento de tensão entre o presidente Médici e o candidato Geisel. O texto informou o governo americano que a nova cartilha do Ministério da Justiça proibira também textos sobre a situação econômico-financeira do país e o mercado de ações e, particularmente, que o Estado entrevistasse o economista Roberto Campos. Havia rumores sobre o propósito de Campos de criticar duramente o regime, que ele inicialmente apoiara.
Tanto a cartilha como a resposta “emocional” ao então ministro da Justiça Alfredo Buzaid escrita por Ruy Mesquita, então diretor do JT e atualmente diretor de Opinião do Estado, circularam e foram lidas no plenário do Congresso, diz o telegrama, “criando tensões em torno do que muitos vêem como divergências dentro do ‘sistema’”. Em um comentário final, o telegrama avalia que, se não foi uma refutação a Geisel, a carta de Ruy Mesquita “seria pelo menos um chamado aos que apoiam Geisel para que ele suavizasse as presentes restrições políticas” no País.
Trechos da carta foram copiados no telegrama, para acentuar a indignação do diretor do JT com os rumos adotados pelo regime, seus meios arbitrários e a censura aos meios de comunicação. “Mesquita disse que ele está ‘profundamente humilhado e envergonhado’ porque ‘o Brasil foi trazido à condição de uma república de bananas ou uma espécie de Uganda por um governo que parece ter perdido a compostura’”, diz o texto.
Houve destaque, no telegrama, à comparação feita por Ruy Mesquita do governo Médici aos da “Alemanha de Hitler, Itália de Mussolini e Rússia de Stalin” e a sua crítica aos rumos tomados pelo regime. “O Brasil vai aprender a história verdadeira desse período, quando foram abandonados os objetivos traçados pelo grande líder da Revolução de 64, Marechal Castelo Branco, e passou a ser conduzida pelos objetivos do caudilhismo militar, que estão ultrapassados até mesmo nas repúblicas hispano-americanas”, reproduz o telegrama.
Príncipes. No telegrama 911, intitulado “Censura contra a Imprensa Brasileira – Uma Noite com Júlio Mesquita”, o Consulado Americano em São Paulo traz a avaliação do diretor do Estado sobre a situação política do País durante um jantar informal de empresários dos dois países, promovido pelo Conselho das Américas. O documento foi enviado em 22 de setembro de 1972.
Mesquita relatara que, ao final de encontros com os então ministros Leitão de Abreu (Casa Civil) e Buzaid, estava convencido de que eles e outros colaboradores do governo estavam promovendo a extensão do mandato de Médici ou um novo mandato para o presidente. “Ele enfatizou o papel da família Mesquita e de O Estado nos destinos do Brasil e que eles eram duradouros guardiães da liberdade de imprensa no País”, afirmou o redator do telegrama.
“Os Mesquitas não podiam aceitar o continuísmo, e Júlio não escondeu sua simpatia pela candidatura de Ernesto Geisel”, mencionou, para em seguida citar novamente a carta de Ruy Mesquita a Buzaid.
“Príncipes, Orgulho e Poder” foi o título do telegrama A-61, do Consulado Americano em São Paulo, sobre “uma das maiores instituições brasileiras, o jornal O Estado de S Paulo“. Diz o texto que o jornal se guiava pelas tradições e orientações filosóficas de seus fundadores e então proprietários – todos diretamente envolvidos produção jornalística.
Naquele momento, o Estado tinha “poderosos inimigos e amigos fieis” e estava em constante conflito com o governo por causa da censura à imprensa, explica o telegrama. Seus leitores eram da “elite bem-informada e demandante”, mas o jornal fazia poucas concessões a eles. Os donos zelavam pela independência e segurança financeira do Estado, por necessidade editorial e por seus interesses econômicos, completa o texto.
“As pessoas que conduzem e trabalham para o Estado o fazem com seriedade. Eles estão convencidos de que o Estado é um dos jornais diários preeminentes no mundo e que é missão deles preservar suas tradições e mantê-lo grande”, diz o telegrama. “Sua rígida independência é muito conhecida, como também seus contenciosos, contradições e desavergonhados preconceitos profundamente arraigados”, critica.
Júlio e Ruy Mesquita são descritos como ”príncipes”, os herdeiros da família de jornalistas proprietária até o dias de hoje da empresa de comunicação. Dr. Julio Mesquita, diretor responsável entre 1891 e 1927, é comparado a James Reston (1909-1995), colunista e editor do New York Times. Julio Filho, seu sucessor na condução do jornal, entre 1927 e 1969, ”carregou sua tradição”, e Julio Neto (1969-1996) “é mais distante que seus predecessores, porém ainda envolvido ativamente no dia-a-dia das decisões editorais”, diz o texto.
O telegrama A-61 detalha o estilo operacional adotado pelo irmão de Júlio Neto, Ruy Mesquita, à frente do JT naquela época. “Sua escrivaninha está no centro da redação, de onde ele conduz sua equipe, escreve editoriais, manchetes e reportagens e é ativo quanto à distribuição do jornal”, afirma o telegrama.
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