Então e agora:
atualidade de um visionário do século XVIII
o Abade
Raynal e o Brasil
Paulo Roberto de Almeida
“O
Brasil converter-se-á num dos mais formosos estabelecimentos do globo (nada
para isso lhe falta) quando o tiverem libertado dessa multidão de impostos,
desse cardume de recebedores que o humilham e oprimem; quando inúmeros
monopólios não mais encadearem sua atividade; quando o preço das mercadorias
que lhe trazem não mais for duplicado pelas taxas que andam sobrecarregadas;
quando os seus produtos não pagarem mais direitos ou não os pagarem mais
avultados que os dos seus concorrentes; quando as suas comunicações com as
outras possessões nacionais se virem desembaraçadas dos entraves que as
restringem...”
O autor desta passagem, absolutamente pertinente para os nossos dias, é
o francês Guillaume-Thomas Raynal, mais conhecido como Abade Raynal
(1713-1796), na Histoire philosophique et
politique des établissements et du commerce des européens dans les deux Indes
(publicada em Amsterdã, a partir de 1770, para o primeiro dos seis volumes da
obra); a tradução deste trecho para o português foi feita pelo diplomata e historiador
Manuel de Oliveira Lima, no D. João VI no
Brasil (3a. ed.; Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 58-59).
Incrível, de fato, a atualidade dos argumentos transcritos acima, de
uma das cabeças mais lúcidas do século XVIII francês, um pouco obscurecido, é
verdade, pelos enciclopedistas Diderot e D’Alembert, com os quais, porém, ele
pode ser comparado com grande vantagem. Anti-escravista em plena era do mais
intenso tráfico africano (ele vinha de uma família de mercadores que enriqueceu
no comércio de escravos), pensador iluminista, profundo conhecedor das coisas
do mundo, mesmo sem ter viajado fora da Europa, o abade Raynal poderia ser
descrito, em linguagem moderna, como um “globalizador esclarecido”, categoria à
qual eu mesmo me orgulharia de pertencer, se existisse entre nós um tal clube
filosófico.
Com efeito, a sua provocadora Histoire
philosophique et politique des établissemens & du commerce des européens
dans les deux Indes pode ser classificada como o primeiro “tratado da
globalização” dos tempos modernos. Os franceses, sempre suscetíveis nessas
coisas de anglofonia, talvez preferissem chamá-la de premier traité de la mondialisation. [Nota: Os leitores interessados em ler
na íntegra esta obra, obviamente na linguagem original de 1770, em francês (bem como, outros escritos de Raynal), podem descarregá-la,
como eu fiz, da base de dados “Frantext”, do Institut National de la
Langue Française, na coleção Galica
da Bibliothèque Nationale de France, a partir
deste link: http://visualiseur.bnf.fr/Visualiseur?Destination=Gallica&O=NUMM-89431.]
Raynal começa sua obra monumental proclamando a mudança radical que
tinha sido a passagem do cabo da Boa-Esperança: “uma revolução começou então no
comércio, na potência das nações, nos costumes, na indústria e no governo dos
povos. Foi nesse momento que os homens dos lugares mais distantes se fizeram
necessários: os produtos dos climas equatoriais são consumidos nos climas
vizinhos do pólo; a indústria do norte é transportada ao sul; os tecidos do
Oriente vestem o Ocidente e, em todas as partes, os homens intercambiam suas
opiniões, suas leis, seus hábitos, seus remédios, suas enfermidades, suas
virtudes e seus vícios” (Nota: minha tradução, a partir do arquivo acima
citado). Além de lúcido, nosso abade era um visionário: “Tudo mudou e tudo deve
mudar ainda. Mas, as revoluções passadas e aquelas que ainda vão vir, podem ser
úteis à natureza humana? O homem, por causa delas, gozará um dia de mais
tranqüilidade, de mais virtudes ou de mais prazeres? Poderão essas revoluções
torná-lo melhor, ou elas apenas o mudarão um pouco?”
Estas perguntas, filosóficas, de fato, são examinadas à luz da obra
colonizadora dos europeus nas duas “Índias”, a do oriente e a do ocidente:
“Depois que se conheceu a América e a rota do Cabo, nações que não eram nada se
tornaram poderosas; outras, que faziam estremecer a Europa, se enfraqueceram”.
Entre as primeiras, o abade Raynal estava sobretudo pensando nas então treze
colônias americanas do Reino Unido, já dotadas de certa autonomia política e
com potencial econômico para igualar a metrópole em termos de desenvolvimento
material, como de fato se viu com a transposição, praticamente contemporânea,
das principais invenções da primeira revolução industrial, em curso na velha
Inglaterra, para a “new England”, no noroeste do que viria a constituir os
Estados Unidos independentes. Entre as segundas, ele estava provavelmente
pensando na China e no Império otomano, que já tinham começado sua longa
trajetória em direção à decadência e submissão ao imperialismo europeu.
Mas, continuava o abade Raynal: “Como essas descobertas influenciaram a
situação dos povos? Por que, enfim, as nações mais florescentes não são
exatamente aquelas com as quais a natureza foi mais pródiga?” Ele começa,
então, a explorar essas questões, partindo do pressuposto da unificação
comercial do mundo sob a hegemonia do se poderia chamar, hoje em dia, de
capitalismo ocidental. Sua análise é absolutamente atual, podendo-se dizer que
seus argumentos parecem referir-se à globalização contemporânea. De fato, as nações mais prósperas não são exatamente
aquelas mais bem dotadas de recursos naturais – embora esse fator seja
importante, como no caso dos Estados Unidos – e sim aquelas que desenvolveram
seus recursos humanos. Não fosse assim, o Japão seria um monte de ilhas de
desenvolvimento médio, ao passo que gigantes do petróleo, como Nigéria, Irã e
Venezuela, seriam países avançadíssimos nos campos social e tecnológico.
De forma geral, todos os ensaios “filosóficos” do abade Raynal podem
ser colocados sob o signo controverso da globalização do seu tempo, tendo ele
enfrentado opositores às suas idéias nos campos opostos da Igreja e dos
reformistas radicais, por dizer exatamente o que pensava, e não aquilo que
certos leitores gostariam de ler. Representantes das correntes anti-iluministas
ligadas à Igreja e ao ancien régime
colocaram a sua obra no index dos
livros proibidos e tentaram calar sua voz incômoda e libertária (a Igreja
católica não o suportou por muito tempo, “cassando” seus direitos de abade, o
que o fez viver de seus escritos). Depois da publicação da terceira edição da
sua história filosófica das duas Índias, seus inimigos a fazem condenar – sim,
as obras – pelo Parlamento de Paris, queimando-a em praça pública, enquanto ele
se refugiava na Suíça (onde cuida de erigir um monumento em honra à liberdade).
Raynal freqüenta em seguida a corte de Frederico II, da Prússia, e logo depois
a de Catarina II, da Rússia.
Às vésperas da Revolução, Raynal continuava encarnando os ideais do
Iluminismo e dos direitos humanos e protesta contra a autocracia e a escravidão
nos territórios coloniais, cujos horrores ele já conhecia muito bem, por ser
descendente de uma família de grandes comerciantes. Tendo sido perseguido pelo ancien Régime, ele se coloca, também,
contra os exageros “libertários” do novo, como declarado em sua carta à
Assembléia Nacional em 31 de maio de 1791: “eu alertei os reis quanto aos seus
deveres, inquietai-vos de que hoje eu fale ao povo dos seus erros” (in “Guillaume-Thomas Raynal”, artigo na
Wikipedia; link: http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaume-Thomas_Raynal; acesso em 11/10/2007).
Até nisso, o pensamento do abade Raynal possui atualidade, uma vez que
suas idéias confrontam o senso comum. De fato, mesmo os mais bem intencionados,
como por exemplo, os hoje chamados altermondialistes
franceses – e seus seguidores miméticos no Terceiro-Mundo, os
antiglobalizadores –, cometem erros crassos de política econômica, ao pretender
substituir as pretensas iniqüidades da globalização capitalista por sistemas
econômicos surrealistas, cujo único efeito prático seria o de fazer com que os
povos das antigas colônias ficassem ainda mais pobres do que já o são. A julgar
pelo que Raynal disse sobre o Brasil dos tempos pombalinos – como transcrito na
abertura deste ensaio –, os mesmos equívocos de política econômica continuam a
ser praticados impunemente pelos dirigentes.
Nisso, os atuais protecionistas comerciais e intervencionistas econômicos
encontram companheiros, entre os detentores de idéias bizarras, como os
altermundialistas. Alguns deles são seguidores de filosofias démodées, outros são defensores de
propostas que já eram anacrônicas no momento de sua formulação e todos eles são
perfeitamente representados pela fauna variada de propugnadores de “um outro
mundo possível” que freqüentam os ruidosos encontros anuais do Fórum Social
Mundial. Ainda que esse novo mundo alternativo não seja obviamente o mesmo para
as diversas tribos componentes desse grande jamboree
regular de contestação inócua, todos eles continuam insistindo em lutar contra
a globalização, como se ela fosse a responsável pelos males que eles combatem:
miséria, desemprego, concentração de renda, injustiças várias.
O mais curioso dessa história toda é que esses grupos de contestadores
infantis – entre os quais se encontram velhos sindicalistas e os órfãos do
socialismo – se tornaram populares justamente por causa e no bojo dessa
globalização tão vilipendiada por eles. Eles são os seres humanos mais
conectados do planeta, graças às famosas TIC (tecnologias de informação e de
comunicação) que se desenvolveram extraordinariamente sob o impulso da
globalização.
Quanto à pluralidade de idéias e a suposta “hegemonia do pensamento
liberal”, a realidade é exatamente a oposto do que eles proclamam. Nunca
encontrei um grupo tão coeso na defesa do “pensamento único” quanto esses
jovens ingênuos (e alguns velhos militantes de causas fracassadas), a despeito
de eles pretenderem que a globalização unifica o mundo sob a mesma idéia fixa
da globalização capitalista. De toda forma, qualquer diálogo com os
altermundialistas é virtualmente impossível, pela absoluta inexistência de
idéias concretas, salvo slogans facilmente agitados nas manifestações. Confesso
que eu nunca consegui descobrir quais são, na verdade, essas idéias, a despeito
dos muitos slogans que eles agitam em suas bandeiras, condenando coisas vagas
como o “neoliberalismo” e o “consenso de Washington”. Acho que os
altermundialistas bem fariam em ler o Abade Raynal.
Nota final: O escritor
católico Antoine Sérieys (1755-1819) publicou em 1805, sob o título de Éléments de l’histoire du Portugal, contenant les causes de la
décadence des Portugais, leurs lois, leur commerce, les révolutions de ce
royaume (Paris: Demoraine, an XIII [1805]; viii+232 p.), uma obra que parece ter sido composta por Raynal. Com
efeito, o trabalho é menos uma história de Portugal do que uma série de
considerações gerais inteiramente concebidas à maneira e ao estilo de Raynal, o
que mereceria ser esclarecido. Devo esta nota final (complementada por uma
busca no catálogo da BNF) ao hipertexto: “RAYNAL, historien et philosophe,
1711-1796; Oeuvres, correspondance et divers”, neste link: http://perso.orange.fr/dboudin/zGalerie/Raynal.html#a; acesso em 4/11/2007.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de novembro de 2007
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